Language of document : ECLI:EU:T:2023:862

Processo T166/21

Autorità di sistema portuale del Mar Ligure occidentale e o.

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Décima Secção Alargada) de 20 de dezembro de 2023

«Auxílios de Estado — Tributação das autoridades portuárias em Itália — Isenção do imposto sobre as sociedades — Decisão que declara o auxílio incompatível com o mercado interno — Auxílio existente — Conceito de “empresa” — Conceito de “atividade económica” — Vantagem — Seletividade — Distorção da concorrência — Afetação das trocas comerciais entre os Estados‑Membros — Igualdade de tratamento»

1.      Recurso de anulação — Fundamentos — Falta de fundamentação ou fundamentação insuficiente — Fundamento distinto daquele que tem por objeto a legalidade quanto ao mérito

(Artigos 263.° e 296.° do TFUE)

(cf. n.os 46, 47)

2.      Concorrência — Aplicação das regras de concorrência — Igualdade de tratamento entre empresas públicas e privadas — Regime da propriedade pública — Não incidência

(Artigos 106.°, n.° 1, 107.°, n.° 1, e 345.° TFUE)

(cf. n.os 55‑57)

3.      Concorrência — Regras da União — Empresa — Conceito — Exercício de uma atividade económica — Critério determinante — Estatuto jurídico e modo de financiamento da entidade — Falta de pertinência

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 65, 67, 68)

4.      Concorrência — Regras da União — Empresa — Conceito — Exercício de uma atividade económica — Poder de apreciação da Comissão — Prática decisória anterior — Qualificação de atividades análogas às já examinadas em decisões anteriores em conformidade com a referida prática — Qualificação de uma atividade na falta de uma prática decisória anterior com base em investigações próprias do caso em apreço — Violação do princípio da igualdade de tratamento — Inexistência

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 20.° e 21.°)

(cf. n.os 77‑88)

5.      Auxílios concedidos pelos Estados — Afetação das trocas comerciais entre EstadosMembros — Infração à concorrência — Critérios de apreciação — Concorrência entre certos portos italianos e certos portos de outros EstadosMembros — Caráter suficiente de uma potencial concorrência

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 93, 94, 190, 191)

6.      Concorrência — Regras da União — Destinatários — Empresas — Conceito — Exercício de uma atividade económica — Conceito — Concessão de autorizações para as operações portuárias — Serviço que constitui uma prerrogativa de poder público de natureza não económica — Serviço que não é prestado num determinado mercado — Exclusão

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 96‑101)

7.      Concorrência — Regras da União — Destinatários — Empresas — Conceito — Exercício de uma atividade económica — Conceito — Concessão de acesso aos portos e a outorga de concessões — Caráter remuneratório — Critérios de apreciação

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 105‑111)

8.      Concorrência — Regras da União — Destinatários — Empresas — Conceito — Exercício de uma atividade económica — Conceito — Concessão de autorizações para as operações portuárias — Caráter remuneratório — Critérios de apreciação

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 112‑115)

9.      Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Auxílios provenientes de recursos do Estado — Concessão, imputável ao Estado, de uma vantagem através de recursos estatais — Isenção fiscal prevista na regulamentação nacional — Inclusão

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 124‑129)

10.    Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Caráter seletivo da medida — Distinção entre a exigência de seletividade e a deteção concomitante de uma vantagem económica, bem como entre um regime de auxílios e um auxílio individual

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 134‑139)

11.    Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Caráter seletivo da medida — Medida que confere um benefício fiscal — Quadro de referência para determinar a existência de um benefício — Delimitação material — Critérios — Identificação do regime fiscal comum ou normal — Disposição que se insere num sistema fiscal mais amplo

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 144‑155)

12.    Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Caráter seletivo da medida — Derrogação ao sistema fiscal geral — Justificação relativa à natureza e à economia do sistema — Critérios de apreciação

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 161‑165; 169‑173)

13.    Auxílios concedidos pelos Estados — Afetação das trocas comerciais entre EstadosMembros — Infração à concorrência — Critérios de apreciação — Falta de harmonização em matéria de fiscalidade direta — Limitação do exame da potencial distorção da concorrência apenas ao plano nacional — Inexistência

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.° 195)

14.    Recurso de anulação — Acórdão de anulação — Alcance — Anulação parcial de um ato do direito da União — Requisito — Caráter destacável dos elementos anuláveis do ato impugnado

(cf. n.os 199, 200)

Resumo

Pronunciando‑se em formação alargada de cinco juízes, o Tribunal Geral negou parcialmente provimento ao recurso interposto por diferentes autoridades portuárias italianas destinado à anulação da Decisão da Comissão Europeia de 4 de dezembro de 2020, relativa ao regime de auxílios (1) de que beneficiam as autorità di sistema portuale (autoridades de sistema portuárias, Itália, a seguir «AdSP»). Com este acórdão, o Tribunal Geral precisa, em particular, segundo que critérios se deve apreciar o caráter económico das atividades exercidas por uma entidade pública sem fins lucrativos encarregada da gestão de infraestruturas portuárias.

Adotada na sequência de um inquérito realizado em 2013, em todos os Estados‑Membros, destinado a obter uma visão global sobre o funcionamento e a tributação dos respetivos portos, a decisão impugnada declara que a medida de isenção do imposto sobre o rendimento das sociedades dos operadores ativos no setor portuário constitui um regime de auxílios de Estado existente incompatível com o mercado interno. Consequentemente ordena a supressão dessa medida e a sujeição dos rendimentos das atividades económicas dos seus beneficiários ao imposto sobre o rendimento das sociedades, a partir do início do ano fiscal seguinte à data da sua adoção.

Mais especificamente, a legislação italiana relativa ao imposto sobre o rendimento das sociedades (a seguir «IRES») isenta deste imposto uma multiplicidade de entidades estatais e de organismos públicos, entre os quais os organismos gestores do domínio coletivo. Entre estes últimos, figuram, segundo as autoridades italianas, as AdSP.

As AdSP são pessoas coletivas de direito público estabelecidas por lei com vista a assegurar, de forma autónoma, a gestão das infraestruturas portuárias de que estão encarregadas. Para o efeito, as AdSP dispõem de diversos recursos financeiros, entre os quais o produto das taxas que estão habilitadas a cobrar como contrapartida da concessão de acesso aos portos (a seguir «taxas portuárias»), da concessão de autorizações para operações portuárias (a seguir «taxas de autorização») e da outorga de concessões para áreas do domínio público e docas (a seguir «taxas de concessão»).

Na decisão impugnada, a Comissão considerou que as AdSP exercem atividades não económicas e atividades económicas, correspondendo estas últimas às três categorias de atividades que dão origem às taxas acima referidas. Nestas circunstâncias, a Comissão conclui que a isenção do IRES constitui um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.°, n.° 1, TFUE, nos casos em que as AdSP exercem atividades económicas.

Apreciação do Tribunal Geral

Num primeiro momento, o Tribunal Geral examina o fundamento relativo à violação do artigo 107.°, n.° 1, TFUE, pelo qual as recorrentes criticam, em substância, a Comissão por ter erradamente considerado que algumas das atividades exercidas pelas AdSP têm natureza económica.

A este respeito, o Tribunal Geral sublinha, antes de mais, que a apreciação da Comissão não pode ser criticada por não ter tido em conta o estatuto jurídico das entidades em questão. Com efeito, como resulta de jurisprudência constante, o artigo 107.°, n.° 1, TFUE é aplicável a qualquer empresa, entendida como entidade que exerce uma atividade económica, independentemente do seu estatuto jurídico e do seu modo de financiamento.

Em seguida, não pode ser declarada nenhuma violação do princípio da igualdade de tratamento, à luz da prática decisória anterior da Comissão invocada pelas recorrentes sobre este aspeto. A este respeito, o Tribunal Geral considera que a Comissão tratou de forma igual situações comparáveis, no que respeita às atividades sujeitas às taxas de concessão e às taxas portuárias, uma vez que teve em conta a natureza económica de atividades equivalentes exercidas pelas autoridades portuárias belgas e francesas objeto das decisões anteriores. Em contrapartida, quanto às taxas de autorização, há que observar que estas taxas ainda não foram objeto de exame pela Comissão.

Por último, o Tribunal Geral examina sucessivamente as alegações relativas à apreciação do caráter económico das atividades exercidas pelas AdSP e à sua qualificação como empresas, relativas à inexistência de um mercado no qual as AdSP prestem os seus serviços e à natureza das taxas cobradas pelas AdSP. A este respeito, importa recordar que o conceito de empresa abrange qualquer entidade que exerça uma atividade económica, independentemente do seu estatuto jurídico e do seu modo de financiamento, entendendo‑se que qualquer atividade que consista no fornecimento de bens ou de serviços num determinado mercado constitui uma atividade económica.

No caso em apreço, no que respeita, por um lado, à pretensa inexistência de um mercado no qual as AdSP prestem os seus serviços, o Tribunal Geral salienta, antes de mais, que é erradamente que as recorrentes sustentam que as AdSP não estão expostas a nenhuma concorrência, tendo em conta o seu monopólio legal. Com efeito, como a Comissão salientou, pelo contrário, acertadamente, existe concorrência entre certos portos italianos e certos portos situados noutros Estados‑Membros, pelo que pôde concluir, com razão, que a concessão de acesso aos portos e a outorga de concessões de áreas do domínio público e docas constituíam serviços prestados num determinado mercado. Em contrapartida, no que respeita à concessão de autorizações para operações portuárias, o Tribunal Geral entende, à luz dos elementos expostos na decisão impugnada a este respeito, que as tarefas exercidas a esse título parecem corresponder a uma missão de controlo que tem por objeto verificar o respeito de exigências legais que, enquanto tal, se insere numa prerrogativa de poder público de natureza não económica. Nestas condições, há que concluir que a Comissão não demonstrou que a concessão de autorizações constituía um serviço prestado num mercado.

Por outro lado, na parte em que a Comissão é criticada por não ter reconhecido o facto de que as taxas cobradas pelas AdSP constituíam impostos e não remunerações por serviços de natureza económica, o Tribunal Geral conclui que a Comissão fez prova bastante de que as taxas de concessão e as taxas portuárias constituíam a contrapartida por atividades de natureza económica prestadas pelas AdSP. Pelo contrário, quanto às taxas de autorização, o Tribunal Geral recorda que, segundo jurisprudência constante, o facto de um organismo público fornecer um produto ou um serviço ligado ao exercício das suas prerrogativas de poder público mediante remuneração prevista por lei não basta para qualificar a atividade exercida de atividade económica e a entidade que a exerce de empresa. Ora, no caso em apreço, uma vez que a Comissão não examinou o método de cálculo, nem o montante das taxas de autorização, nem o nível de controlo exercido pelo Estado a este respeito, daqui resulta que a Comissão não fez prova bastante de que as taxas de autorização representam uma contrapartida por um serviço de natureza económica.

Tendo em conta as considerações precedentes, o Tribunal Geral julga procedente o primeiro fundamento no que respeita à concessão de autorizações, julga‑o improcedente quanto ao restante, e só examina os fundamentos segundo a quarto na parte em que têm por objeto as taxas de concessão e as taxas portuárias.

Num segundo momento, na medida em que têm por objeto as taxas de concessão e as taxas portuárias, o Tribunal Geral examina sucessivamente os fundamentos relativos à violação do artigo 107.°, n.° 1, TFUE, destinados, em substância, a contestar as conclusões da Comissão segundo as quais a isenção do IRES dava lugar a uma transferência de recursos estatais e conferia uma vantagem seletiva às AdSP, suscetível, além disso, de distorcer a concorrência e de afetar as trocas comerciais entre Estados‑Membros.

A este respeito, o Tribunal Geral conclui, em primeiro lugar, que a Comissão considerou, com razão, que, ao isentar as AdSP do IRES, apesar de exercerem uma atividade económica, a Administração Fiscal italiana renuncia a receitas que constituem recursos estatais, o que, consequentemente, dá lugar a uma transferência de recursos estatais na aceção do artigo 107.° TFUE. Neste contexto, é irrelevante que as AdSP sejam empresas públicas e que a vantagem concedida permaneça na esfera económica do Estado em sentido lato. Com efeito, se assim não fosse, tal abordagem poderia comprometer o efeito útil das regras em matéria de auxílios de Estado e introduzir uma discriminação injustificada entre os beneficiários públicos e os beneficiários privados, em violação do princípio da neutralidade previsto no artigo 345.° TFUE.

Em segundo lugar, o Tribunal Geral valida a análise da Comissão segundo a qual a isenção do IRES confere uma vantagem de natureza seletiva às entidades que dela beneficiam.

A este respeito, o Tribunal Geral considera, por um lado, que a Comissão determinou corretamente o sistema de referência ao invocar, a esse título, as disposições da legislação italiana que enunciam o princípio segundo o qual todos os rendimentos estão sujeitos ao IRES, designadamente os rendimentos de sociedades comerciais e de outros organismos públicos ou privados que têm, ou não, por objeto exclusivo ou principal o exercício de atividades comerciais. Com efeito, na falta de tal princípio, a isenção das entidades estatais e públicas em causa seria desprovida de qualquer utilidade.

Por outro lado, o Tribunal Geral constata que a isenção do IRES derroga o sistema de referência em benefício das AdSP, sem qualquer justificação válida. Com efeito, à luz do princípio subjacente ao referido sistema de referência, a situação factual e jurídica das AdSP, na medida em que exercem atividades económicas, é comparável, se não idêntica, à de outras entidades sujeitas ao IRES.

Em terceiro lugar, foi igualmente com razão que a Comissão considerou que a isenção de IRES é suscetível de falsear a concorrência ao afetar as trocas entre Estados‑Membros, tendo em conta a existência, anteriormente evocada, de uma concorrência entre certos portos italianos e certos portos de outros Estados‑Membros. O Tribunal Geral precisa, neste contexto, que a apreciação da distorção da concorrência pela Comissão não se limita necessariamente às empresas ou produções do Estado‑Membro em causa, mesmo na falta de harmonização em matéria de fiscalidade direta. Assim, o facto de o setor portuário se caracterizar por trocas comerciais transfronteiriças é suficiente para que a Comissão possa incluir a concorrência de certos portos de outros Estados‑Membros na sua análise.

Tendo em conta todas as considerações precedentes, o Tribunal Geral anula a decisão impugnada na parte em que qualifica de atividade económica a concessão de autorizações para as operações portuárias, e nega provimento ao recurso quanto ao restante.


1      Regime de auxílios SA.38399 ‑ 2019/C (ex 2018/E) implementado pela Itália ‑ Aplicação do imposto sobre o rendimento das sociedades aos portos na Itália (JO 2021, L 354, p. 1; a seguir «decisão impugnada»).