Language of document : ECLI:EU:C:2021:607

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

15 de julho de 2021(*)

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Função pública — Processo disciplinar — Sanção disciplinar — Determinação desta sanção — Retenção de um montante da pensão — Condenação penal e civil nos órgãos jurisdicionais nacionais — Reparação, na totalidade ou em parte, dos danos não patrimoniais causados à União Europeia — Falta de relevância desta reparação — Artigo 10.o do Estatuto dos Funcionários da União Europeia — Princípio da igualdade de tratamento — Princípio da proporcionalidade»

No processo C‑851/19 P,

que tem por objeto um recurso de um acórdão do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interposto em 19 de novembro de 2019,

DK, representado inicialmente por S. Orlandi e T. Martin, e em seguida por S. Orlandi, avocats,

recorrente,

sendo a outra parte no processo:

Serviço Europeu para a Ação Externa (SEAE), representado por S. Marquardt e R. Spáč, na qualidade de agentes,

recorrido em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, A. Kumin, T. von Danwitz (relator), P. G. Xuereb e I. Ziemele, juízes,

advogado‑geral: G. Hogan,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 26 de novembro de 2020,

profere o presente

Acórdão

1        Com o seu recurso, DK pede a anulação do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 10 de setembro de 2019, DK/SEAE (T‑217/18, não publicado, EU:T:2019:571), pelo qual este negou provimento ao seu recurso destinado, por um lado, à anulação da Decisão do Serviço Europeu para a Ação Externa (SEAE) de 23 de maio de 2017, que lhe aplicou uma sanção disciplinar (a seguir «decisão controvertida») e, por outro, à reparação dos danos que sofreu devido a uma pretensa violação, pelo SEAE, dos seus direitos de defesa no âmbito do processo penal contra si instaurado na Bélgica.

 Quadro jurídico

2        O artigo 22.o do Estatuto dos Funcionários da União Europeia, na sua versão aplicável ao litígio (a seguir «Estatuto»), que figura no título II do mesmo, intitulado «Direitos e deveres do funcionário», dispõe, no seu primeiro parágrafo:

«O funcionário pode ser obrigado a reparar, na totalidade ou em parte, o prejuízo sofrido pela União [Europeia], em consequência de culpa grave em que tiver incorrido no exercício, ou por causa do exercício das suas funções.»

3        O artigo 86.o do Estatuto, que figura no título VI do mesmo, sob a epígrafe «Regime disciplinar», tem a seguinte redação:

«1.      Todo e qualquer incumprimento dos deveres com fundamento no presente Estatuto, a que o funcionário ou o ex‑funcionário se encontra vinculado, voluntariamente efetivado ou por negligência, sujeita o mesmo a uma sanção disciplinar.

2.      Sempre que a entidade competente para proceder a nomeações ou o OLAF [Organismo Europeu de Luta Antifraude], tomem conhecimento de provas de um incumprimento na aceção do n.o 1, podem dar início a um inquérito administrativo para verificar se esse incumprimento se verificou.

3.      As regras, procedimentos e medidas disciplinares, bem como as regras e procedimentos relativos aos inquéritos administrativos, constam do anexo IX.»

4        O anexo IX do Estatuto incide, segundo o seu título, sobre o «Processo disciplinar». O artigo 9.o desse anexo, que figura na secção 3 do mesmo, intitulada «Sanções disciplinares», dispõe:

«1.      A entidade competente para proceder a nomeações pode aplicar uma das seguintes sanções:

a)      Advertência por escrito;

b)      Repreensão;

c)      Suspensão de subida de escalão por um período determinado que pode variar entre um e 23 meses;

d)      Descida de escalão;

e)      Classificação num grau inferior por um período determinado que pode variar entre 15 dias e um ano;

f)      Classificação num grau inferior no mesmo grupo de funções;

g)      Classificação num grupo de funções inferior, com ou sem descida de grau;

h)      Demissão e, quando justificado, segundo as circunstâncias, a redução da pensão ou a retenção, por um período determinado, de um montante do subsídio de invalidez; os efeitos desta sanção não serão extensivos aos dependentes do funcionário. Contudo, em caso de redução, o rendimento do ex‑funcionário não pode ser inferior ao mínimo vital previsto no artigo 6.o do anexo VIII, acrescido das eventuais prestações familiares devidas.

2.      Se o funcionário estiver a receber uma pensão de aposentação ou um subsídio de invalidez, a entidade competente para proceder a nomeações pode decidir reter um montante da pensão ou do subsídio de invalidez, durante um período determinado; os efeitos desta sanção não serão extensivos aos dependentes do funcionário. No entanto, o rendimento do funcionário não pode ser inferior ao mínimo vital previsto no artigo 6.o do anexo VIII, acrescido das eventuais prestações familiares devidas.

3.      A mesma falta não pode dar origem a mais de uma sanção disciplinar.»

5        Nos termos do artigo 10.o deste anexo:

«A severidade da sanção disciplinar imposta deve ser proporcional à gravidade da falta cometida. Para determinar a gravidade da falta e tomar uma decisão quanto à sanção a aplicar, serão tidos em conta, em especial:

a)      A natureza da falta e as circunstâncias em que ocorreu;

b)      A importância do prejuízo causado à integridade, à reputação ou aos interesses das instituições em consequência da falta cometida;

c)      O grau de dolo ou da negligência que envolve a falta cometida;

d)      Os motivos que levaram o funcionário a cometer a falta;

e)      O grau e a antiguidade do funcionário;

f)      O grau de responsabilidade pessoal do funcionário;

g)      O nível das funções e das responsabilidades do funcionário;

h)      A repetição dos atos ou comportamentos faltosos;

i)      A conduta do funcionário ao longo da sua carreira.»

6        O artigo 25.o do referido anexo, que figura na secção 7 do mesmo, intitulada «Processo penal paralelo», prevê:

«Se o funcionário for perseguido judicialmente pelos mesmos factos, só será tomada uma decisão final depois de o tribunal competente ter proferido uma sentença final.»

 Antecedentes do litígio

7        DK entrou ao serviço da Comissão das Comunidades Europeias como funcionário em 1994. Durante o ano de 1999, foi‑lhe confiada a gestão dos edifícios dessa instituição em países terceiros. A partir de 1 de janeiro de 2011, foi colocado no SEAE. Em 1 de janeiro de 2016, DK reformou‑se antecipadamente.

 Processo penal instaurado contra DK na Bélgica

8        Durante o ano de 2004 foi instaurado um processo penal contra DK na Bélgica por atos de corrupção na gestão de contratos públicos verificados, a partir de 1999, durante um período de vários anos. A União, representada pela Comissão, constituiu‑se parte civil nesse processo.

9        Por Sentença de 16 de maio de 2014, o tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Língua Francesa de Bruxelas, Bélgica) condenou DK nas seguintes penas, por várias infrações cometidas no exercício das suas funções:

–        uma pena de prisão de dois anos, suspensa por cinco anos;

–        uma multa de 27 500 euros;

–        a proibição de exercer um mandato de administrador, gerente ou auditor de uma sociedade comercial durante um período de dez anos;

–        uma pena de perda do montante de 176 367,15 euros.

10      Este tribunal condenou igualmente DK, no processo cível, no pagamento solidário do montante de 25 000 euros a título de reparação dos danos não patrimoniais causados à União resultante da ofensa que o interessado tinha causado à imagem desta.

11      Por Acórdão de 30 de junho de 2015, a cour d’appel de Bruxelles (Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica) confirmou a sentença do referido tribunal, aumentando, no entanto, a pena de prisão aplicada a DK para três anos, suspensa por cinco anos, e fixando em 38 814 euros o montante pelo qual DK era condenado a título de reparação dos danos não patrimoniais que tinha causado à União.

12      Em 10 de fevereiro de 2016, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação, Bélgica) negou provimento ao recurso interposto por DK do acórdão desse tribunal de recurso.

 Processo disciplinar estatutário

13      Por Decisão de 2 de maio de 2007, a entidade competente para proceder a nomeações (a seguir «AIPN») da Comissão instaurou um processo disciplinar contra DK.

14      Tendo este processo disciplinar sido suspenso até à conclusão definitiva do processo penal nacional instaurado contra o interessado pelos mesmos factos, o SEAE retomou, por Decisão de 12 de julho de 2016, o processo disciplinar instaurado contra DK.

15      Em 12 de dezembro de 2016, após ter ouvido DK, o Conselho de Disciplina adotou um parecer fundamentado que foi notificado ao interessado. Nesse parecer, o Conselho de Disciplina salientou, nomeadamente, que «os factos [estavam] provados pelos órgãos jurisdicionais penais nacionais», que «o comportamento do funcionário [constituía] uma violação dos artigos 11.o, 11.o‑A, 12.o e 21.o do Estatuto» e que «a única sanção possível [consistia] em reter um montante da pensão». No âmbito da sua avaliação de diferentes circunstâncias agravantes e atenuantes, o referido Conselho de Disciplina tomou nomeadamente em consideração «o facto de os órgãos jurisdicionais nacionais já [terem] condenado o funcionário no pagamento de indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais». Com este fundamento, o mesmo Conselho de Disciplina recomendou à AIPN que adotasse uma sanção disciplinar que consiste numa retenção mensal de 400 euros sobre o montante da pensão líquida de DK por um período de três anos.

16      Pela decisão controvertida, a AIPN aplicou a DK, depois de o ter ouvido, «a sanção de retenção de 1 105 euros da pensão mensal até 30 de setembro de 2025, nos termos do artigo 9.o, n.o 2, do anexo IX do Estatuto».

17      Em 20 de dezembro de 2017, a AIPN indeferiu a reclamação que DK tinha apresentado contra a decisão controvertida.

 Tramitação do processo no Tribunal Geral e acórdão recorrido

18      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 28 de março de 2018, DK interpôs um recurso destinado, por um lado, à anulação da decisão controvertida e, por outro, à reparação dos danos pretensamente sofridos devido à violação dos seus direitos de defesa pelo SEAE no âmbito do processo penal contra si instaurado na Bélgica.

19      DK invocou dois fundamentos nos pedidos de anulação, relativos, respetivamente, à determinação da sanção disciplinar a aplicar e à tomada em consideração de circunstâncias atenuantes no âmbito da mesma.

20      No acórdão recorrido, o Tribunal Geral julgou improcedente o recurso interposto por DK na parte em que se destinava à anulação da decisão controvertida, e inadmissível e, em todo o caso, improcedente na parte em que visava obter a reparação dos danos pretensamente sofridos. O Tribunal condenou igualmente DK nas despesas.

21      Em especial, no que respeita ao pedido de anulação da decisão controvertida, o Tribunal Geral, nos n.os 28 a 53 do acórdão recorrido, julgou improcedente a primeira parte do primeiro fundamento invocado por DK, relativa a um erro manifesto de apreciação na tomada em consideração de um dano que já tinha dado lugar a reparação. O Tribunal Geral considerou, em substância, que a AIPN não estava obrigada, no âmbito da aplicação do artigo 10.o do anexo IX do Estatuto, a ter em conta a reparação dos danos causados à União que já tinha tido lugar a nível nacional.

 Pedidos das partes

22      DK pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

–        anular o acórdão recorrido,

–        anular a decisão controvertida, e

–        condenar o SEAE nas despesas em ambas as instâncias.

23      A SEAE pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

–        negar provimento ao recurso, e

–        condenar DK nas despesas.

 Quanto ao recurso

 Argumentos das partes

24      O DK invoca um único fundamento de recurso. Neste, sustenta que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito, no n.o 52 do acórdão recorrido, ao interpretar o artigo 10.o, segundo período, alínea b), do anexo IX do Estatuto no sentido de que permite à AIPN basear‑se nos danos não patrimoniais causados à União para justificar a aplicação de uma sanção disciplinar mais grave do que a recomendada pelo Conselho de Disciplina, quando esse dano já deu lugar a reparação a nível nacional.

25      Este fundamento divide‑se em três partes.

26      Em primeiro lugar, DK sustenta, em substância, que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar, no n.o 52 do acórdão recorrido, que a AIPN não tinha cometido um erro manifesto de apreciação ao declarar que, por força do artigo 10.o, segundo período, alínea b), do anexo IX do Estatuto, não era obrigada a ter em conta a reparação dos danos não patrimoniais causados à União que já tinha tido lugar a nível nacional. Considera que, em conformidade com o artigo 25.o do anexo IX do Estatuto, a AIPN estava vinculada pelas constatações de facto efetuadas a nível nacional, bem como pelo princípio segundo o qual os danos que tenham dado lugar a uma reparação integral são considerados como nunca tendo ocorrido.

27      Em segundo lugar, DK alega, em substância, que, ao considerar, no n.o 52 do acórdão recorrido, que a AIPN não era obrigada a ter em conta a reparação dos danos não patrimoniais causados à União que já tinha tido lugar a nível nacional, o Tribunal Geral violou igualmente a exigência de proporcionalidade da sanção disciplinar e o princípio segundo o qual os danos que tenham dado lugar a uma reparação integral são considerados como nunca tendo ocorrido. Fazendo referência à jurisprudência resultante do Acórdão de 9 de setembro de 1999, Lucaccioni/Comissão (C‑257/98 P, EU:C:1999:402, n.os 19 e 20), DK sustenta que, contrariamente ao que o Tribunal Geral declarou no n.o 34 do acórdão recorrido, este último princípio não está apenas consagrado no direito belga, mas constitui um princípio geral de direito comum aos sistemas jurídicos dos Estados‑Membros, que proíbe a dupla indemnização do mesmo dano.

28      Em terceiro lugar, DK observa que, no n.o 38 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral declarou, no entender daquele, com razão, que o artigo 10.o do anexo IX do Estatuto traduz a preocupação do legislador da União de não violar o princípio geral da igualdade de tratamento ao reservar um tratamento diferente aos funcionários infratores consoante a extensão dos danos causados à instituição da União a que estes pertencem. Todavia, DK alega que, nos n.os 39 a 41 desse acórdão, o Tribunal Geral violou esse princípio ao considerar que o facto de o dano causado à União já ter dado lugar a reparação, na totalidade ou em parte, não é relevante no âmbito da determinação das sanções disciplinares a aplicar com base no referido artigo 10.o Com efeito, segundo DK, um funcionário que tenha reparado os danos causados à União não se encontra na mesma situação que um funcionário que não procedeu a essa indemnização.

29      A título preliminar, o SEAE sustenta que a argumentação de DK segundo a qual a AIPN agravou a sanção que lhe tinha sido aplicada tendo em conta os danos que pretensamente já deram lugar a reparação é inadmissível em sede de recurso, na medida em que esta argumentação não visa demonstrar um eventual erro de direito do Tribunal Geral, mas põe em causa a apreciação da AIPN e constitui uma reformulação de um fundamento invocado em primeira instância. Além disso, se DK invocava uma violação do princípio da igualdade de tratamento, a referida argumentação põe igualmente em causa a apreciação da AIPN e não o acórdão recorrido. Por outro lado, DK invocou a mesma argumentação pela primeira vez em sede de recurso.

30      Quanto ao mérito, o SEAE sustenta que o fundamento único de recurso deve ser julgado improcedente. Em seu entender, o Tribunal Geral não cometeu um erro de direito ao considerar que a reparação dos danos não patrimoniais causados à União, conforme constatado a nível nacional, não é relevante para efeitos da apreciação da gravidade da falta disciplinar cometida ao abrigo do artigo 10.o do anexo IX do Estatuto.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

 Quanto ao fundamento de inadmissibilidade oposto pelo SEAE

31      O fundamento de inadmissibilidade oposto pelo SEAE baseia‑se, em primeiro lugar, no facto de a argumentação invocada por DK não se destinar a demonstrar um eventual erro de direito do Tribunal Geral, mas a pôr em causa a apreciação da AIPN e constitui, por outro lado, uma reformulação de um fundamento suscitado em primeira instância.

32      A este respeito, resulta do artigo 256.o TFUE, do artigo 58.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, do artigo 168.o, n.o 1, alínea d), e do artigo 169.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça que o recurso de uma decisão do Tribunal Geral deve indicar de modo preciso os elementos contestados do acórdão cuja anulação é pedida, bem como os argumentos jurídicos que especificamente sustentam esse pedido. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, não cumpre esse requisito o recurso que, sem sequer incluir uma argumentação especificamente destinada a identificar o erro de direito que pretensamente vicia o acórdão recorrido, se limita a reproduzir os fundamentos e argumentos já apresentados no Tribunal Geral. Com efeito, esse recurso constitui, na verdade, um pedido de simples reanálise da petição apresentada no Tribunal Geral, o que escapa à competência do Tribunal de Justiça (Acórdão de 16 de dezembro de 2020, Conselho e o./K.Chrysostomides & Co. e o., C‑597/18 P, C‑598/18 P, C‑603/18 P e C‑604/18 P, EU:C:2020:1028, n.o 127 e jurisprudência referida).

33      Contudo, quando um recorrente contesta a interpretação ou a aplicação do direito da União feita pelo Tribunal Geral, as questões jurídicas analisadas em primeira instância podem ser novamente discutidas em sede de recurso. Com efeito, se um recorrente não pudesse basear o seu recurso em fundamentos e argumentos já utilizados no Tribunal Geral, o processo de recurso ficaria privado de uma parte do seu sentido (Acórdãos de 9 de julho de 2020, Haswani/Conselho, C‑241/19 P, EU:C:2020:545, n.o 50, e de 9 de dezembro de 2020, Groupe Canal +/Comissão, C‑132/19 P, EU:C:2020:1007, n.o 19 e jurisprudência referida).

34      No presente processo, importa salientar que, no recurso, DK critica a conclusão do Tribunal Geral, que figura no n.o 52 do acórdão recorrido, segundo a qual a AIPN não cometeu um erro manifesto de apreciação ao decidir que, no âmbito da aplicação do artigo 10.o do anexo IX do Estatuto, não se devia ter em conta a reparação dos danos causados à União que já tinha tido lugar a nível nacional, bem como a análise jurídica que o levou a julgar improcedente a primeira parte do primeiro fundamento suscitado no Tribunal Geral. Além disso, embora o recurso faça referência à apreciação da AIPN, só o faz na medida em que esta é confirmada pelo Tribunal Geral e com o objetivo de pôr em causa pretensos erros de direito cometidos por este último, sem se limitar a reproduzir os fundamentos e os argumentos que já foram apresentados no Tribunal.

35      No que respeita, em segundo lugar, à argumentação do SEAE segundo a qual DK invocou pela primeira vez uma violação do princípio da igualdade de tratamento em sede de recurso, há que recordar que, no âmbito de um recurso de uma decisão do Tribunal Geral, a competência do Tribunal de Justiça está limitada à apreciação da solução legal que foi dada aos fundamentos e aos argumentos debatidos no Tribunal Geral. Contudo, no âmbito de um fundamento que é admissível, em princípio, compete ao recorrente apresentar, como entender, argumentos em seu apoio, baseando‑se nos argumentos já utilizados no Tribunal Geral ou elaborando novos argumentos, designadamente em relação às posições do Tribunal Geral. Se assim não fosse, o processo ficaria privado de parte do seu sentido (v., neste sentido, Acórdãos de 18 de janeiro de 2007, PKK e KNK/Conselho, C‑229/05 P, EU:C:2007:32, n.os 61 e 64, e de 19 de dezembro de 2019, HK/Comissão, C‑460/18 P, EU:C:2019:1119, n.os 26 e 27).

36      No caso em apreço, há que salientar que a interpretação do artigo 10.o do anexo IX do Estatuto e a sua aplicação no contexto de um prejuízo à União que já deu origem a reparação foram debatidas no Tribunal Geral no âmbito do processo em primeira instância. Ora, a argumentação invocada por DK, relativa à violação do princípio da igualdade de tratamento, visa contestar a análise do Tribunal Geral relativa à primeira parte do primeiro fundamento do recurso que lhe foi submetido. No âmbito desta análise, o Tribunal destacou, nos n.os 38 a 41 do acórdão recorrido, o facto de as faltas cometidas pelos funcionários da União deverem ser tratadas de forma diferente consoante a dimensão dos danos causados, ao mesmo tempo que considerou que o facto de esses danos já terem dado lugar, na totalidade ou em parte, a reparação, não é relevante para efeitos da determinação da gravidade da falta cometida, para efeitos desta disposição. Assim, esta argumentação visa contestar de forma circunstanciada a interpretação e a aplicação feita pelo Tribunal Geral da referida disposição, nesses números do acórdão recorrido, e não constitui um fundamento novo cuja apresentação em sede de recurso seja proibida (v., por analogia, Acórdãos de 18 de janeiro de 2007, PKK e KNK/Conselho, C‑229/05 P, EU:C:2007:32, n.o 63, e de 19 de dezembro de 2019, HK/Comissão, C‑460/18 P, EU:C:2019:1119, n.o 28).

37      Por conseguinte, há que julgar improcedente o fundamento de inadmissibilidade oposto pelo SEAE.

 Quanto ao mérito

38      No âmbito da primeira parte do fundamento único de recurso, relativa à violação do artigo 10.o, segundo período, alínea b), do anexo IX do Estatuto, lido em conjugação com o artigo 25.o deste mesmo anexo, DK alega, em substância, que os danos que deram integralmente lugar a reparação não podem ser tidos em conta para efeitos da apreciação da gravidade da falta disciplinar cometida, com o fundamento de que, segundo essa disposição, a AIPN está vinculada pelas conclusões em matéria de facto efetuadas pelos órgãos jurisdicionais penais nacionais e pelo princípio segundo o qual os danos que deram lugar a uma reparação integral são considerados como nunca tendo existido.

39      A este respeito, há que salientar que, nos termos do artigo 10.o, primeiro período, do anexo IX do Estatuto, a severidade da sanção disciplinar imposta deve ser proporcional à gravidade da falta cometida. O artigo 10.o, segundo período, deste anexo precisa, de forma não exaustiva, nas suas alíneas a) a i), um certo número de elementos que são «em especial» tidos em conta para determinar a gravidade da falta cometida e para tomar uma decisão quanto à sanção a aplicar. Entre esses elementos figura, nos termos do artigo 10.o, segundo período, alínea b), do referido anexo, «a importância do prejuízo causado à integridade, à reputação ou aos interesses das instituições em consequência da falta cometida».

40      Além disso, há que recordar que, em conformidade com o artigo 25.o do anexo IX do Estatuto, se o funcionário em causa for perseguido judicialmente pelos mesmos factos pelos quais é objeto de um processo disciplinar, só será tomada uma decisão final depois de o tribunal competente ter proferido uma sentença final. Esta disposição responde, por um lado, à preocupação de não afetar a posição do funcionário em causa no âmbito dos processos penais contra ele instaurados devido a factos que, por outro lado, são objeto de um processo disciplinar na sua instituição e permite, por outro, tomar em consideração, no âmbito desse processo disciplinar, as conclusões em matéria de facto do juiz penal nacional quando a sentença deste último transitou em julgado.

41      A referida disposição não especifica se as conclusões em matéria de facto do juiz penal nacional são suscetíveis de vincular a AIPN no âmbito do referido processo disciplinar. Em todo o caso, a qualificação jurídica dos factos à luz das disposições pertinentes do direito da União, como o artigo 10.o do anexo IX do Estatuto, compete exclusivamente às autoridades da União competentes. Estas autoridades não podem estar vinculadas por uma eventual qualificação desses factos efetuada no âmbito do processo penal nacional (v. por analogia, tratando‑se de um processo disciplinar relativo a um membro da Comissão, Acórdão de 11 de julho de 2006, Comissão/Cresson, C‑432/04, EU:C:2006:455, n.o 121). Com efeito, uma vez que este artigo 10.o não efetua uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance, deve ser objeto de uma interpretação autónoma e uniforme na ordem jurídica da União, a fim de assegurar a igualdade de tratamento dos funcionários no âmbito da aplicação das disposições do Estatuto (v. por analogia, no que respeita ao artigo 85.o‑A do Estatuto, Acórdão de 15 de outubro de 2015, Axa Belgium, C‑494/14, EU:C:2015:692, n.os 21 e 23 a 25).

42      No caso em apreço, resulta dos n.os 8, 10 e 11 do presente acórdão que o tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Língua Francesa de Bruxelas) e, em sede de recurso, a cour d’appel de Bruxelles (Tribunal de Recurso de Bruxelas) condenaram DK a reparar, no montante de 38 814 euros, os danos não patrimoniais que causou à União, segundo as constatações desses órgãos jurisdicionais penais, por atos de corrupção na gestão de contratos públicos cometidos durante o período compreendido entre 1999 e 2005.

43      Todavia, a determinação, pelos referidos órgãos jurisdicionais penais, no âmbito do direito nacional, da extensão dos danos não patrimoniais sofridos pela União e da reparação daí resultante, em nada prejudica a tomada em consideração dos referidos danos e da sua eventual reparação para efeitos da determinação da gravidade da falta disciplinar cometida pelo interessado, uma vez que essa operação não constitui uma questão de facto, mas enquadra‑se na qualificação jurídica dos factos que cabe à AIPN efetuar à luz das disposições do artigo 10.o do anexo IX do Estatuto, sem que a AIPN esteja vinculada a esse respeito por uma eventual classificação efetuada no âmbito do processo penal a nível nacional.

44      Ora, nada nos termos do artigo 10.o, segundo período, alínea b), do anexo IX do Estatuto subordina a determinação da gravidade da falta cometida pelo funcionário em causa e da sanção disciplinar a aplicar‑lhe, tendo em conta a importância do prejuízo causado à integridade, à reputação ou aos interesses das instituições da União em consequência da falta cometida à condição de esse prejuízo ainda não ter dado lugar a reparação. Com efeito, como o Tribunal Geral salientou com razão no n.o 39 do acórdão recorrido, no âmbito disciplinar do artigo 10.o do anexo IX do Estatuto, é pouco importante que os danos tenham dado lugar, total ou parcialmente, a reparação, uma vez que o objetivo desta disposição não é conceder uma indemnização, mas aplicar uma sanção. Em todo o caso, tendo em conta as considerações que figuram nos n.os 40 e 41 do presente acórdão, não se pode deduzir do artigo 25.o do anexo IX do Estatuto que o princípio do direito civil de um Estado‑Membro, segundo o qual danos que tenham sido integralmente indemnizados são considerados como nunca tendo existido, possa ser aplicado mutatis mutandis no âmbito de um processo disciplinar.

45      Donde se conclui que a primeira parte do fundamento único de recurso deve ser julgada improcedente.

46      Com a terceira parte do fundamento único de recurso, que importa examinar em segundo lugar, DK alega, em substância, que o Tribunal Geral violou o princípio da igualdade de tratamento ao declarar, nos n.os 39 a 41 do acórdão recorrido, que é pouco importante, no âmbito da determinação da gravidade da falta disciplinar cometida, que os danos causados à União já tenham dado lugar, na totalidade ou em parte, a reparação.

47      A este respeito, há que recordar que o princípio da igualdade de tratamento exige que situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de maneira igual, a menos que esse tratamento seja objetivamente justificado (Acórdãos de 7 de março de 2017, RPO, C‑390/15, EU:C:2017:174, n.o 41, e de 25 de junho de 2020, CSUE/KF, C‑14/19 P, EU:C:2020:492, n.o 90 e jurisprudência referida).

48      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, os elementos que distinguem situações diferentes e, eventualmente, o seu caráter comparável, devem ser determinados e apreciados à luz do objeto e do objetivo prosseguido pelas disposições em causa, entendendo‑se que devem ser tidos em conta, para este efeito, os princípios e os objetivos do domínio em causa (Acórdãos de 7 de março de 2017, RPO, C‑390/15, EU:C:2017:174, n.o 42 e jurisprudência referida, e de 6 de setembro de 2018, Piessevaux/Conselho, C‑454/17 P, não publicado, EU:C:2018:680, n.o 79).

49      No caso em apreço, DK sustenta que um funcionário que tenha reparado os danos causados à União não está na mesma situação que um funcionário que não procedeu a tal indemnização, pelo que, em seu entender, os danos causados pelo primeiro desses funcionários não devem ser tomados em consideração no âmbito da aplicação do artigo 10.o, segundo período, alínea b), do anexo IX do Estatuto.

50      Foi recordado, no n.o 39 do presente acórdão, que este artigo 10.o regula a determinação da sanção disciplinar a aplicar e dispõe que esta sanção deve ser proporcionada em relação à gravidade da falta cometida, tendo em conta, nomeadamente, a importância do prejuízo causado à União. Como o Tribunal Geral salientou, em substância, no n.o 37 do acórdão recorrido, decorre dos próprios termos do referido artigo 10.o que a medida disciplinar que prevê tem por objetivo punir um comportamento faltoso. Em conformidade com o artigo 86.o, n.o 1, do Estatuto, esse comportamento culposo resulta de qualquer incumprimento pelo funcionário em causa dos deveres que lhe incumbem com fundamento no Estatuto. Por conseguinte, como salientou o advogado‑geral no n.o 58 das suas conclusões, o Estatuto procura assegurar o cumprimento das regras e obrigações destinadas a garantir o bom funcionamento de uma instituição da União através da imposição de sanções disciplinares.

51      Em contrapartida, ao constituir‑se parte civil no âmbito do processo penal instaurado contra DK na Bélgica, a União procurou obter reparação dos danos não patrimoniais causados à sua reputação. Ora, como observou o advogado‑geral, em substância, no n.o 57 das suas conclusões, a concessão dessa indemnização não visa sancionar o comportamento culposo do funcionário em causa, mas obter uma indemnização cível suscetível de restabelecer a posição anterior a esse comportamento.

52      Resulta do exposto que o objeto e o objetivo, por um lado, da sanção disciplinar aplicada a DK e, por outro, da indemnização dos danos causados à União invocada por este são diferentes.

53      Tanto mais que, embora o artigo 86.o, n.o 1, do Estatuto consagre como princípio que qualquer incumprimento por parte de um funcionário das suas obrigações estatutárias é suscetível de implicar a aplicação de uma sanção disciplinar ao interessado, o artigo 22.o, primeiro parágrafo, do mesmo prevê que esse funcionário pode ser obrigado a reparar, na totalidade ou em parte, o prejuízo sofrido pela União, em consequência de culpa grave em que tiver incorrido no exercício, ou por causa do exercício das suas funções, pelo que a aplicação de uma sanção disciplinar e a indemnização dos danos causados à União são independentes uma da outra.

54      Assim, a circunstância de um funcionário ter reparado os danos não patrimoniais que causou à União não é suscetível de o colocar numa situação diferente da de um funcionário que não procedeu a tal indemnização para efeitos de determinar a gravidade da falta cometida por este e da sanção disciplinar a aplicar‑lhe atendendo, nomeadamente, à importância do prejuízo causado à União, nos termos do artigo 10.o, segundo período, alínea b), do anexo IX do Estatuto.

55      Por conseguinte, o Tribunal Geral não violou o princípio da igualdade de tratamento ao declarar, nos n.os 39 a 41 do acórdão recorrido, que, no âmbito da determinação da gravidade da falta disciplinar cometida por um funcionário e da sanção disciplinar a aplicar‑lhe com base nessa disposição, é pouco importante que os danos causados à União já tenham dado origem, na totalidade ou em parte, a reparação.

56      Por conseguinte, a terceira parte do fundamento único de recurso deve ser julgada improcedente.

57      Por último, quanto à segunda parte do fundamento único de recurso, relativa à violação do princípio da proporcionalidade, importa salientar que, embora a AIPN tenha aplicado ao DK uma sanção pecuniária, esta, tendo em conta as considerações que figuram no n.o 50 do presente acórdão, não tem por objeto nem por objetivo indemnizar o prejuízo causado à União, mas aplicar uma sanção à falta disciplinar que DK cometeu ao violar as suas obrigações estatutárias. Assim, contrariamente ao que este último sustenta, não se pode considerar que a aplicação dessa sanção equivalha a indemnizar duas vezes esses danos em violação do princípio da proporcionalidade. Daqui resulta que a questão de saber se o princípio referido no n.o 26 do presente acórdão não é apenas um princípio do direito civil belga, mas constitui, como alega o recorrente, um princípio geral de direito comum aos sistemas jurídicos dos Estados‑Membros, que proíbe a dupla indemnização de um mesmo dano, não é pertinente no caso em apreço.

58      Esta conclusão não pode ser posta em causa pela jurisprudência resultante do Acórdão de 9 de setembro de 1999, Lucaccioni/Comissão (C‑257/98 P, EU:C:1999:402, n.os 19 e 20), invocada por DK na terceira parte do fundamento único de recurso, na medida em que esse acórdão não dizia respeito, como no caso em apreço, ao cúmulo de uma indemnização e de uma sanção disciplinar, mas ao cúmulo de diferentes formas de indemnização do prejuízo causado a um funcionário na sequência de um acidente ou de uma doença.

59      Por conseguinte, a terceira parte do fundamento único de recurso deve ser também julgada improcedente.

60      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que negar provimento ao recurso na íntegra.

 Quanto às despesas

61      Por força do artigo 184.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, se o recurso da decisão do Tribunal Geral for julgado improcedente, o Tribunal de Justiça decide sobre as despesas. O artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, aplicável aos processos de recursos de decisões do Tribunal Geral por força do disposto no artigo 184.o, n.o 1, deste, dispõe que a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

62      Tendo o SEAE pedido a condenação de DK e tendo este sido vencido no seu único fundamento, há que condená‑lo nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      DK é condenado nas despesas.



*      Língua do processo: francês.