CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL
ELEANOR SHARPSTON
apresentadas em 15 de Junho de 2006 1(1)
Processo C‑467/04
G. Francesco Gasparini
Jose Mª L.A. Gasparini
G. Costa Bozzo
Juan de Lucchi Calcagno
Francesco Mario Gasparini
José A. Hormiga Marrero
Sindicatura Quiebra
1. No presente pedido de decisão prejudicial, a Sección Primera de la Audiencia Provincial de Málaga (Primeira Secção do Tribunal Provincial de Málaga, Espanha) (a seguir «órgão jurisdicional de reenvio») pretende obter uma clarificação do âmbito do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 54.° da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen (a seguir «CAAS») (2).
2. O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em especial, se, por força deste princípio, uma decisão de um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro que impede a instauração de novo processo‑crime por determinados actos, com fundamento na prescrição do procedimento criminal, nos termos da legislação nacional, constitui uma decisão que impede os tribunais criminais de outros Estados‑Membros de acusarem o mesmo ou outros réus por um crime resultante dos mesmos factos.
3. A resposta a esta questão exige que o Tribunal de Justiça defina um dos aspectos fundamentais do princípio ne bis in idem, contido no artigo 54.° da CAAS (e portanto, necessariamente, no direito comunitário, de um modo mais geral), a saber, a possibilidade de o princípio se aplicar apenas quando o primeiro tribunal tenha tomado a sua decisão após apreciação do mérito.
Disposições pertinentes
Disposições relativas ao acervo de Schengen e à CAAS
4. Nos termos do artigo 1.° do Protocolo que integra o Acervo de Schengen no âmbito da União Europeia (3) (a seguir «Protocolo»), treze Estados‑Membros, incluindo Espanha e Portugal, ficam autorizados a instaurar entre si uma cooperação reforçada no âmbito do chamado «acervo de Schengen».
5. O anexo ao Protocolo define o «acervo de Schengen» no sentido de incluir o Acordo entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em Schengen em 14 de Junho de 1985 (4) (a seguir «Acordo de Schengen») e, em especial, a CAAS.
6. O objectivo dos signatários do Acordo de Schengen e da CAAS é a «supressão dos controlos nas fronteiras comuns no que diz respeito à circulação das pessoas [...]» (5), uma vez que «a união cada vez mais estreita entre os povos dos Estados‑Membros das Comunidades Europeias deve encontrar a sua expressão na livre passagem das fronteiras internas por todos os nacionais dos Estados‑Membros [...]» (6). Nos termos do primeiro parágrafo do preâmbulo do Protocolo, o acervo de Schengen destina‑se «a reforçar a integração europeia e, em especial, a possibilitar que a União Europeia se transforme mais rapidamente num espaço de liberdade, de segurança e de justiça».
7. Nos termos do quarto travessão do primeiro parágrafo do artigo 2.° UE, a manutenção e o desenvolvimento desse espaço, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, asilo e imigração, bem como de prevenção e combate à criminalidade, é um dos objectivos da União Europeia.
8. O primeiro parágrafo do artigo 2.°, n.° 1, do Protocolo dispõe que, a partir da data de entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, o acervo de Schengen será imediatamente aplicável aos treze Estados‑Membros indicados no artigo 1.° do Protocolo.
9. Deliberando nos termos do n.° 1, segundo período do segundo parágrafo, do artigo 2.° do Protocolo, o Conselho adoptou a decisão 1999/436/CE que determina, nos termos das disposições pertinentes do Tratado que institui a Comunidade Europeia e do Tratado da União Europeia, a base jurídica de cada uma das disposições ou decisões que constituem o acervo de Schengen (7). Resulta do artigo 2.° desta decisão, conjugado com o seu Anexo A, que o Conselho optou pelos artigos 31.° UE e 34.° UE, que fazem parte do Título VI do Tratado da União Europeia, «Disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal», como base jurídica dos artigos 54.° a 58.° da CAAS.
10. Os artigos 54.° a 58.° da CAAS constituem o capítulo 3, intitulado «Aplicação do princípio ne bis in idem», do Título III, que respeita à «Polícia e Segurança» (8).
11. O artigo 54.° dispõe que «[a]quele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida».
12. O artigo 57.° estabelece regras que se destinam a assegurar a colaboração das autoridades competentes das partes contratantes no sentido de trocarem informações para colocar em prática o princípio ne bis in idem.
Convenções internacionais relativas ao princípio ne bis in idem
13. Várias convenções regulam directa ou indirectamente a aplicação do princípio ne bis in idem a nível internacional e a nível europeu (9). Entre elas, o artigo 4.° do Protocolo n.° 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH») trata especificamente do princípio ne bis in idem.
14. O artigo 4.°, n.° 1, do Protocolo n.° 7 dispõe que «[n]inguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado». O artigo 4.°, n.° 2, dispõe, todavia, que «[a]s disposições do número anterior não impedem a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afectar o resultado do julgamento».
15. O artigo 4.°, n.° 2, do Protocolo n.° 7 foi citado pelo Tribunal de Justiça quando declarou que o princípio ne bis in idem era um princípio fundamental do direito comunitário (10).
Litígio no processo principal e questões prejudiciais
16. O pedido de decisão prejudicial surge no âmbito de um processo‑crime instaurado em Espanha contra várias pessoas relacionadas com a sociedade espanhola Minerva SA, relativamente à venda de azeite.
17. Resulta do despacho de reenvio que a Minerva, com sede em Málaga, foi constituída em 1989, tendo como objecto a refinação de azeite e a sua venda a granel. Comercializava os seus produtos tanto em Espanha como no estrangeiro. Em 1997, foi instaurado em Portugal um processo‑crime contra os seus accionistas e administradores, a seguir «arguidos em Portugal». Neste processo, alegava‑se, ao que parece, que os accionistas e administradores tinham acordado, em 1993, importar azeite de baixa qualidade da Tunísia e da Turquia através do porto de Setúbal, em Portugal; que várias remessas tinham dado entrada em Setúbal; que o azeite não tinha sido declarado às autoridades aduaneiras, tendo sido transportado por estrada para Málaga, em Espanha; e que tinha sido concebido um sistema de facturas falsas para dar a impressão que o azeite provinha da Suíça.
18. Verifica‑se que entre os arguidos no processo espanhol (a seguir «arguidos em Espanha») se incluem dois dos arguidos em Portugal.
19. O despacho de reenvio indica que, num recurso que a acusação interpôs do acórdão do Tribunal Judicial de Setúbal – Vara Competência Mista (a seguir «Tribunal Criminal de Setúbal») no processo português, o Supremo Tribunal de Justiça declarou «que o azeite que se introduziu em Portugal procedeu de Tunis em dez ocasiões e da Turquia numa ocasião, tendo sido declarado em Portugal que fora introduzida uma quantidade inferior à real e absolvendo‑se os [arguidos em Portugal] em razão da prescrição do procedimento criminal [nos termos do Código Penal português]».
20. Há que esclarecer desde já que a exactidão da descrição da matéria de facto feita pelo órgão jurisdicional de reenvio é vivamente contestada pelos arguidos em Espanha. Tratarei desta questão de modo mais aprofundado ao examinar a admissibilidade (11).
21. Em Espanha, foi também instaurado um processo‑crime em Málaga, em 1997. O Juzgado de Instrucción (juiz de instrução) proferiu um despacho de abertura do procedimento criminal abreviado. Os arguidos em Espanha recorreram desse despacho para o órgão jurisdicional de reenvio.
22. Alegavam, essencialmente, que os factos já tinham sido julgados em Portugal. Assim, em razão do princípio do caso julgado, estes factos não podiam ser novamente julgados em Espanha. Sustentavam também que todos os arguidos em Espanha deviam beneficiar do efeito reflexo do caso julgado penal, independentemente do facto de os acórdãos dos órgãos jurisdicionais portugueses respeitarem a apenas dois dos arguidos em Espanha. Alegavam também que não tinha ficado demonstrado no processo‑crime português que a mercadoria provinha de fora da Comunidade.
23. O Ministério Público alegou que o processo‑crime espanhol não respeitava à importação ilegal do azeite (já julgada em Portugal) mas sim à sua posterior comercialização em Espanha, conduta autónoma da importação. O Ministério Público afirmou também que o facto de a natureza extracomunitária da mercadoria não ter sido apreciada em Portugal não impedia outros Estados‑Membros, onde a mercadoria foi posteriormente vendida, de alargarem o âmbito da investigação criminal para demonstrar que a mercadoria provinha de fora da Comunidade e tinha sido objecto de importação clandestina, em violação da pauta aduaneira comum.
24. Os arguidos responderam que o contrabando comporta uma série de actividades e que, uma vez que a mercadoria tinha sido importada especificamente para ser vendida, a importação e a venda estavam indissociavelmente ligadas e não podiam ser apreciadas separadamente.
25. O órgão jurisdicional de reenvio suspendeu, portanto, a instância e apresentou as seguintes questões:
«No que respeita ao caso julgado penal, este Tribunal de Málaga necessita da interpretação do artigo 54.° da [CAAS] sobre:
1) A apreciação da prescrição do procedimento criminal pelos tribunais de um Estado comunitário é vinculativa para os tribunais dos demais Estados comunitários?
2) A absolvição de um [arguido] [da prática de um crime], por prescrição do procedimento criminal, tem efeitos reflexos favoráveis para os [arguidos] noutro Estado comunitário, quando os factos são idênticos? Ou, o que é o mesmo, pode entender‑se que aquela prescrição também favorece os [arguidos] noutro Estado comunitário com base em factos idênticos?
3) Se os tribunais [criminais] de um Estado comunitário declaram que não se comprova a natureza extracomunitária de uma mercadoria para efeitos de um crime de contrabando, e absolvem [os réus], podem os tribunais de outro Estado comunitário ampliar a investigação para demonstrar que a introdução da mercadoria sem pagamento [do devido nos termos da] pauta aduaneira foi feita a partir de um Estado não comunitário?
No que respeita ao conceito de mercadoria em livre prática, este Tribunal de Málaga necessita da interpretação do artigo 24.° [CE] relativamente a:
4) Declarado por um tribunal [criminal] comunitário que não se provou que a mercadoria tenha sido introduzida ilicitamente no território comunitário ou que prescreveu o procedimento criminal relativamente ao crime de contrabando:
a) A referida mercadoria pode considerar‑se em livre prática no resto do território comunitário?
b) Pode considerar‑se que a comercialização [noutro Estado‑Membro], posterior à importação para o Estado comunitário que absolveu [os arguidos], constitui uma conduta autónoma e por isso punível, ou deve entender‑se que constitui uma conduta que é consubstancial à importação?»
26. Foram apresentadas observações escritas pelos arguidos em Espanha, com excepção de José Hormiga Marrero e da Sindicatura Quiebra, e pela Comissão, Espanha, Itália, Países Baixos e Polónia. Na audiência, as mesmas partes, excepto a Polónia, e a França apresentaram alegações.
Apreciação
Admissibilidade
27. Nos termos do artigo 35.° UE, Espanha aceitou a competência do Tribunal de Justiça para decidir a título prejudicial sobre a validade e a interpretação de actos adoptados ao abrigo do Título VI do Tratado da UE. Espanha escolheu a opção, prevista no artigo 35.°, n.° 3, alínea a), segundo a qual só um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno pode apresentar ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial.
28. Na audiência, Espanha explicou que o órgão jurisdicional de reenvio é abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 35.°, n.° 3, alínea a), no contexto do caso em apreço, uma vez que a sua decisão sobre o recurso interposto pelos arguidos (12), que deu origem ao presente pedido de decisão prejudicial, não é susceptível de recurso ordinário nos termos do direito interno. Como tal, em aplicação da jurisprudência do Tribunal de Justiça nos termos do artigo 234.° CE sobre a noção de «órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno», o órgão jurisdicional de reenvio deve ser considerado um órgão jurisdicional de última instância, na acepção do artigo 35.°, n.° 3, alínea a), UE. O pedido de decisão prejudicial é, portanto, em princípio, admissível.
29. Do enquadramento do despacho de reenvio pode surgir uma questão de admissibilidade mais delicada. Embora nenhuma das partes que apresentaram observações tenha sugerido explicitamente que as questões prejudiciais devam ser julgadas inadmissíveis por essa razão, algumas delas criticaram aspectos fundamentais da exposição da matéria de facto feita no despacho de reenvio.
30. Os arguidos em Espanha alegam que a descrição da matéria de facto feita pelo órgão jurisdicional de reenvio, em especial a paráfrase das conclusões do Supremo Tribunal português, é simplesmente incorrecta.
31. Os arguidos transcrevem nas suas observações escritas parágrafos do acórdão desse tribunal. Referiram‑se também abundantemente na audiência ao acórdão proferido em primeira instância pelo Tribunal Criminal de Setúbal. Alegam que, com efeito, ambos os tribunais, depois de terem apreciado as provas apresentadas, declaram que o ministério público não tinha demonstrado a existência de importação ilegal, o que é exactamente o oposto do que se regista no despacho de reenvio.
32. Do mesmo modo, a Comissão e, em menor medida, o Governo dos Países Baixos, consideram nas suas observações que a hipótese em que as terceira e quarta questões se parecem basear (de a importação ilegal e a natureza extracomunitária da mercadoria não ter ficado demonstrada para efeitos do crime de contrabando) está em clara contradição com a matéria de facto contida no despacho de reenvio, tal como foi atrás exposta (13).
33. Tendo examinado os acórdãos do Tribunal Criminal de Setúbal e do Supremo Tribunal português (14), parece‑me manifesto que o despacho de reenvio é confuso e resume os factos de um modo que está em clara contradição com estes textos. Resulta destes acórdãos que os arguidos em Portugal eram acusados de quatro crimes, decorrentes de um único conjunto de factos, a saber, a importação para Portugal, em várias ocasiões, de diferentes tipos de azeite. O procedimento criminal por dois desses crimes foi declarado prescrito, em primeira instância, por despacho separado do Tribunal Criminal de Setúbal. Verifica‑se que os arguidos em Portugal foram absolvidos das duas outras acusações, em primeira instância, com fundamento em que o Ministério Público não tinha conseguido provar a matéria de facto necessária. Ambas as decisões foram depois confirmadas, em recurso, pelo Supremo Tribunal português. Não resulta claramente dos autos, todavia, se as duas absolvições eram consequência do processo‑crime, em sentido estrito, ou da acção civil paralela em que a potencial responsabilidade civil dos arguidos foi apreciada pelos mesmos tribunais (15).
34. Não considero, porém, que as questões devam ser julgadas inadmissíveis. Segundo jurisprudência assente, compete exclusivamente ao juiz nacional determinar o objecto das questões que pretende colocar ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 234.° CE (16). O órgão jurisdicional nacional indicou que necessita de ajuda relativamente ao âmbito de determinados aspectos do princípio ne bis in idem contido no artigo 54.° da CAAS (questões 1, 2 e 3) e relativamente à noção de mercadoria «em livre prática», na acepção do artigo 24.° CE (questão 4). É manifesto que as três primeiras questões são pertinentes e não se pode excluir definitivamente que uma resposta à quarta questão também possa ser relevante para parte do processo‑crime pendente no órgão jurisdicional de reenvio.
35. Por conseguinte, considero que todas as questões são admissíveis e devem ser objecto de resposta.
Quanto ao mérito
Jurisprudência existente do Tribunal de Justiça sobre o princípio ne bis in idem
36. Até à data, o Tribunal de Justiça interpretou o princípio ne bis in idem estabelecido no artigo 54.° da CAAS em três acórdãos: Gözütok e Brügge (17), Miraglia (18) e Van Esbroeck (19).
37. Além disso, o Tribunal de Justiça interpretou o princípio geral ne bis in idem noutras áreas do direito comunitário (20). A aplicação mais extensiva do princípio verificou‑se em processos relativos à aplicação de sanções comunitárias no âmbito do direito comunitário da concorrência (21). Para o caso em apreço, os mais relevantes destes processos são o Vinyl Maatschappij (22) e o Cimento (23).
Jurisprudência relativa ao artigo 54.° do CAAS
38. No processo Gözütok e Brügge perguntava‑se ao Tribunal de Justiça se o princípio ne bis in idem contido no artigo 54.° da CAAS se aplicava a procedimentos nacionais que levassem a «transacções extrajudiciais» nos termos das quais o Ministério Público, sem intervenção de um órgão jurisdicional, apresenta uma proposta unilateral de arquivamento do processo‑crime se o arguido satisfizer determinadas condições, especialmente o pagamento de multas. A aceitação destas condições leva à extinção da acção penal, pelos mesmos factos, nos termos do direito penal nacional.
39. O Tribunal de Justiça respondeu a esta questão em sentido afirmativo. Segundo o Tribunal de Justiça, «quando, na sequência de um processo como os que estão em causa nos processos principais, a acção penal fica definitivamente extinta, a pessoa em causa deve ser considerada ‘definitivamente julgada’, na acepção do artigo 54.° da CAAS, em relação aos factos de que é acusada» (24).
40. O Tribunal de Justiça fundamentou a sua posição do seguinte modo.
41. Em primeiro lugar, declarou que «um processo deste tipo [...] pune o comportamento ilícito imputado ao arguido» (25).
42. Em segundo lugar, considerou que o facto de nenhum órgão jurisdicional ter intervindo «não é susceptível de infirmar esta interpretação, na medida em que estes elementos processuais e formais não têm qualquer incidência sobre os efeitos [de extinção] deste processo, [...] que, na falta de uma indicação expressa contrária no artigo 54.° da CAAS, devem ser considerados suficientes para permitirem a aplicação do princípio ne bis in idem previsto nesta disposição» (26).
43. Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça salientou que a harmonização prévia das legislações penais nacionais não constituía um requisito para a aplicação do artigo 54.° da CAAS: «nenhuma disposição do título VI do Tratado da União Europeia, relativo à cooperação policial e judiciária em matéria penal [...] nem o acordo de Schengen ou a própria CAAS subordinam a aplicação do artigo 54.° da CAAS à harmonização ou, pelo menos, à aproximação das legislações penais dos Estados‑Membros no domínio dos procedimentos de extinção da acção penal» (27).
44. Em quarto lugar, o Tribunal de Justiça deu particular importância ao princípio da confiança mútua, subjacente ao artigo 54.° da CAAS. Este princípio implica necessariamente «que exista uma confiança mútua dos Estados‑Membros nos respectivos sistemas de justiça penal e que cada um aceite a aplicação do direito penal em vigor noutros Estados‑Membros, ainda que a aplicação do seu direito nacional leve a uma solução diferente» (28).
45. Em quinto lugar, o Tribunal de Justiça considerou que a interpretação adoptada era «a única que faz[ia] prevalecer o objecto e a finalidade [do artigo 54.° da CAAS] sobre aspectos processuais ou puramente formais, que variam segundo os Estados‑Membros em causa, e que garant[ia] uma aplicação útil do referido princípio» (29).
46. Por fim, o Tribunal de Justiça salientou os objectivos de integração do Tratado UE. Recordou que «a União Europeia atribui a si mesma como objectivo a manutenção e o desenvolvimento desta enquanto espaço de liberdade, de segurança e de justiça em que seja assegurada a livre circulação de pessoas» e que «a aplicação no âmbito da União Europeia do acervo de Schengen, de que faz parte o artigo 54.° da CAAS, destina‑se a reforçar a integração europeia e, em especial, a possibilitar que a União se transforme mais rapidamente num espaço de liberdade, de segurança e de justiça que esta tem por objectivo manter e desenvolver» (30). Nesta perspectiva, «o artigo 54.° da CAAS, que tem por objectivo evitar que uma pessoa, pelo facto de exercer o seu direito de livre circulação, seja, pelos mesmos factos, submetida a uma acção penal no território de vários Estados‑Membros, apenas pode contribuir com utilidade para a realização completa deste objectivo se for igualmente aplicável a decisões que extingam definitivamente os procedimentos criminais num Estado‑Membro, ainda que sejam adoptadas sem a intervenção de um órgão jurisdicional e que não tenham a forma de uma sentença» (31).
47. Observe‑se que, ao fundamentar a sua decisão, o Tribunal de Justiça sublinhou que procedimentos como os que estavam então em causa eram de aplicação limitada e se aplicavam geralmente a crimes de pouca gravidade (32). Recorde‑se também que o ponto de partida da análise do Tribunal de Justiça era a circunstância de os procedimentos abreviados em questão punirem, efectivamente, a conduta ilícita em causa (33).
48. No processo Miraglia, pedia‑se ao Tribunal de Justiça que esclarecesse um aspecto diferente do artigo 54.° da CAAS. O Tribunal de Justiça declarou que «uma decisão judicial [...] proferida após o Ministério Público ter decidido não instaurar a acção penal com o único fundamento de já ter sido instaurada uma acção penal contra o mesmo arguido, pelos mesmos factos, noutro Estado‑Membro, sem levar a cabo qualquer apreciação de mérito, não pode constituir uma decisão que julga definitivamente essa pessoa na acepção do artigo 54.° da CAAS» (34). Consequentemente, não se aplicava o princípio ne bis in idem.
49. O raciocínio do Tribunal de Justiça no acórdão Miraglia foi semelhante ao seguido no acórdão Gözütok e Brügge, mas levou a conclusão oposta. Tal como no acórdão Gözütok e Brügge, o Tribunal de Justiça afirmou que esta interpretação era a única que fazia «prevalecer o objecto e a finalidade [do artigo 54.° da CAAS] sobre aspectos processuais, de resto variáveis consoante os Estados‑Membros em causa, e que garant[ia] uma aplicação útil deste artigo» (35). Porém, ao contrário do acórdão Gözütok e Brügge, no acórdão Miraglia o Tribunal de Justiça deu prioridade à necessidade de assegurar a punição do crime, dando menos valor à promoção da livre circulação de pessoas. Afirmou‑o explicando que «a aplicação [do artigo 54.° da CAAS] a uma decisão de arquivar o processo penal, como a que está em causa no processo principal, teria o efeito de dificultar, ou mesmo impossibilitar, qualquer hipótese concreta de punir nos Estados‑Membros em causa o comportamento ilícito imputado ao arguido» (36). O Tribunal de Justiça sublinhou que «a referida decisão de arquivamento terá sido adoptada pelas autoridades judiciárias de um Estado‑Membro sem qualquer apreciação do comportamento ilícito imputado ao arguido» (37). Prosseguiu, afirmando que «a abertura de um processo penal pelos mesmos factos noutro Estado‑Membro ficaria comprometida quando foi precisamente a instauração dessa acção penal que justificou a renúncia à acção penal por parte do Ministério Público do primeiro Estado‑Membro. Uma consequência desta natureza iria manifestamente contra a própria finalidade das disposições do título VI do Tratado da União Europeia, como a enunciada no artigo 2.°, primeiro parágrafo, quarto travessão, UE, a saber, a manutenção e o desenvolvimento da União enquanto espaço de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de [...] prevenção e combate à criminalidade» (38).
50. Por fim, no acórdão Van Esbroeck, pedia‑se ao Tribunal de Justiça que esclarecesse, nomeadamente, o alcance da noção de «os mesmos factos» contida no artigo 54.° da CAAS. A questão surgia no contexto de processos‑crime instaurados em dois Estados contratantes diferentes (a Noruega e a Bélgica) (39) contra a mesma pessoa, pelos mesmos factos, a saber, o transporte de drogas ilegais da Bélgica para a Noruega. O arguido era acusado na Noruega pelo crime de importação de substâncias ilícitas e na Bélgica pelo crime da sua exportação. A questão prejudicial era a de saber se «os mesmos factos» exigia a mera identidade dos factos materiais, ou se era necessário, além disso, que os factos consubstanciassem o mesmo crime nos dois sistemas penais nacionais. Por outras palavras, era necessário existir «unidade do interesse jurídico protegido», tal como o Tribunal de Justiça tinha exigido relativamente às sanções comunitárias pela violação do direito comunitário da concorrência (40)?
51. O Tribunal de Justiça decidiu interpretar o princípio ne bis in idem de modo mais amplo do que o anteriormente adoptado no âmbito dessa área do direito comunitário, e declarou que «a unidade do interesse jurídico protegido» não é necessária para a aplicação do artigo 54.° da CAAS. Segundo o Tribunal de Justiça, no acórdão Van Esbroeck, o «único critério relevante» para efeitos do artigo 54.° da CAAS é o da «identidade dos factos materiais, entendido como a existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si» (41).
52. Para chegar a esta conclusão, o Tribunal de Justiça seguiu o mesmo raciocínio que já havia utilizado no acórdão Gözütok e Brügge.
53. Em primeiro lugar, invocou a redacção do artigo 54.° da CAAS, que se refere apenas à materialidade dos factos, com exclusão da sua qualificação jurídica (42).
54. Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça baseou‑se no raciocínio da «promoção da livre circulação» e da «confiança mútua», adoptado no acórdão Gözütok e Brügge. Recordou que nenhuma das disposições pertinentes subordina a aplicação do artigo 54.° da CAAS à harmonização ou, pelo menos, à aproximação das legislações penais nacionais (43). Pelo contrário, o princípio ne bis in idem implica necessariamente que exista uma confiança mútua das Partes contratantes nos respectivos sistemas de justiça penal (44). Por esta razão, o facto de se poderem aplicar diferentes qualificações jurídicas aos mesmos factos em duas Partes contratantes diferentes não deve obstar à aplicação do artigo 54.° da CAAS.
55. Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça fez referência ao objectivo do artigo 54.° da CAAS, declarando que o direito de livre circulação só é plenamente garantido se o autor de um acto souber que, uma vez condenado e depois de cumprida a pena ou uma vez absolvido definitivamente num Estado‑Membro, se pode deslocar no interior do espaço Schengen sem medo de ser objecto de acções penais, por esse acto constituir uma infracção distinta no ordenamento jurídico de outro Estado‑Membro (45).
56. O Tribunal de Justiça concluiu que, devido à inexistência de harmonização das legislações penais nacionais, a aplicação de um «critério baseado na qualificação jurídica dos factos ou no interesse jurídico protegido é susceptível de criar tantos obstáculos à liberdade de circulação no espaço Schengen quantos sejam os sistemas penais dos Estados contratantes» (46).
Jurisprudência sobre o princípio fundamental ne bis in idem no direito comunitário da concorrência
57. No acórdão Vinyl Maatschappij, o Tribunal de Justiça declarou que o princípio ne bis in idem é um «princípio fundamental do direito comunitário, consagrado, aliás, pelo artigo 4.°, n.° 1, do protocolo n.° 7 da CEDH» (47). Prosseguiu, afirmando que este princípio «não obsta, em si mesmo, à retoma de um processo que tenha como objecto o mesmo comportamento anticoncorrencial quando uma primeira decisão foi anulada por motivos de forma sem que tenha havido uma decisão de fundo quanto aos factos imputados, a decisão de anulação não sendo, neste caso, equivalente a ‘absolvição’ na acepção dada a este termo em matéria punitiva» (48).
58. No acórdão Cimento, o Tribunal de Justiça aplicou o princípio fundamental ne bis in idem na área do direito comunitário da concorrência, submetendo‑o a uma «tripla condição» de «identidade dos factos, de unidade de infractor e de unidade do interesse jurídico protegido» (49).
Conflitos na actual jurisprudência
59. A análise destes processos revela duas áreas de conflito na actual jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o princípio ne bis in idem.
60. Em primeiro lugar, existe alguma contradição no âmbito da jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o artigo 54.° da CAAS.
61. Nos acórdãos Gözütok e Brügge e Van Esbroeck o Tribunal de Justiça parece ter optado por uma interpretação ampla do artigo 54.° da CAAS, fazendo prevalecer o objectivo da livre circulação de pessoas sobre os objectivos de repressão da criminalidade e de protecção da segurança pública. Todavia, no acórdão Miraglia, o Tribunal de Justiça aplicou uma interpretação mais restritiva, fazendo prevalecer a prevenção e a luta contra o crime sobre a livre circulação de pessoas.
62. Além disso, nos acórdãos Gözütok e Brügge e Van Esbroeck o Tribunal de Justiça sublinhou o princípio da «confiança mútua», subjacente ao artigo 54.° da CAAS, e considerou que a inexistência de harmonização das legislações penais e de processo penal dos Estados‑Membros não obstava à aplicação do princípio ne bis in idem. Consequentemente, no acórdão Gözütok e Brügge, aplicou este princípio a um procedimento específico que tinha como resultado a extinção da acção penal no «primeiro» Estado‑Membro. No acórdão Miraglia, porém, o Tribunal de Justiça declarou que uma decisão sobre o mérito era uma condição prévia de aplicação do princípio previsto no artigo 54.° da CAAS. O acórdão Miraglia sugere, portanto, que a extinção de um processo por razões processuais no «primeiro» Estado‑Membro não basta, normalmente, para justificar a aplicação do artigo 54.° da CAAS.
63. Em segundo lugar, há uma discrepância entre a jurisprudência relativa ao artigo 54.° da CAAS, a qual (ao que parece) não exige a «unidade do interesse jurídico protegido», permitindo a aplicação do princípio ne bis in idem desde que exista «identidade dos factos materiais» (50) e que os arguidos sejam os mesmos em ambos os tribunais (51); e a jurisprudência relativa ao princípio ne bis in idem como «princípio fundamental de direito comunitário», que exige, para que o mesmo seja aplicável, a verificação da «tripla condição de identidade dos factos, de unidade de infractor e de unidade do interesse jurídico protegido» (52).
Primeira questão
64. Através da primeira questão pretende‑se obter um esclarecimento sobre se o princípio ne bis in idem contido no artigo 54.° da CAAS deve ser interpretado no sentido de se aplicar a uma situação em que um tribunal competente do «primeiro» Estado‑Membro proferiu uma decisão final (res judicata) que extingue a acção penal relativamente a certas pessoas, com fundamento na prescrição do procedimento criminal nos termos da lei penal desse Estado‑Membro.
Observações preliminares
65. Antes de responder à primeira questão, parece‑me necessário apresentar certas observações preliminares.
Prazos de prescrição
66. Na maioria dos sistemas jurídicos continentais, o direito de acção penal do Estado está sujeito a prazos. Decorridos esses prazos, o direito prescreve, em aplicação da legislação pertinente. Quando um tribunal competente declara, em última instância, que o procedimento criminal prescreveu, a decisão tem força de caso julgado. Deixa de ser possível instaurar novos procedimentos criminais contra o infractor, pelos mesmos factos, nesse Estado‑Membro.
67. Os prazos são estabelecidos em função da gravidade do crime. Há, porém, diferenças significativas entre os Estados‑Membros quanto aos prazos de prescrição para crimes em grande medida semelhantes (53).
68. Pelo contrário, nos sistemas inglês, escocês e irlandês, os procedimentos criminais não estão, regra geral, sujeitos a prazos de prescrição (54).
69. Não há, portanto, um reconhecimento universal dos prazos de prescrição como princípio geral comum aos sistemas de direito penal de todos Estados‑Membros.
70. Várias razões são apresentadas para justificar a aplicação de um prazo de prescrição ao direito de acção penal de um Estado. Alega‑se, por exemplo, que decorrido um certo número de anos é preferível, para a salvaguarda da paz social, deixar estar o passado em vez de reavivar a instabilidade social causada pelo eventual crime. Se o Estado agir com negligência ao não levar o arguido a tribunal dentro dos prazos fixados, pode justificar‑se que a sociedade perca o direito de punir os indivíduos em questão. Por fim, numa perspectiva mais prática, quanto mais tempo tenha decorrido após o alegado crime mais difícil será a obtenção de provas fiáveis e a realização de um julgamento justo.
71. Todas estas razões respeitam à eficaz administração da justiça penal e, de um modo mais geral, a considerações de interesse público (55).
Razão de ser do princípio ne bis in idem
72. Em contrapartida, o princípio ne bis in idem responde a uma razão de ser diferente. Este princípio, cujas origens nos sistemas jurídicos ocidentais remontam à antiguidade clássica (56), é principalmente (embora não exclusivamente) (57) considerado um meio de protecção do indivíduo contra eventuais abusos, pelo Estado, do seu jus puniendi (58). Deve impedir‑se que o Estado tente por várias vezes condenar um indivíduo por um alegado crime. Depois da realização de um julgamento, acompanhado de todas as garantias processuais adequadas, e de a questão da eventual dívida do indivíduo para com a sociedade ter sido apreciada, o Estado não o deve submeter à provação de um novo julgamento [ou, segundo a expressão utilizada nos sistemas jurídicos anglo‑americanos, não o deve colocar em «double jeopardy» (duplo risco de ser condenado) (59)]. Tal como o juiz Black, do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, concisamente explica, «a ideia subjacente […] é a de que o Estado, com todos os seus recursos e poderes, não possa repetidamente tentar condenar um indivíduo por um alegado crime, sujeitando‑a assim a dificuldades, despesas e provações, e obrigando‑o a viver num estado permanente de ansiedade e insegurança, e aumentando as probabilidades de vir a ser julgado culpado, apesar de estar inocente» (60) (tradução livre).
73. O direito de não ser acusado duas vezes pelos mesmos factos evoluiu, assim, no sentido de se tornar um direito humano fundamental à protecção contra o jus puniendi do Estado, e foi codificado em várias convenções internacionais (61).
74. Se é esta a razão de ser do princípio ne bis in idem, este princípio pressupõe, porém, que a sociedade tenha já tido plena oportunidade de acertar contas com o indivíduo suspeito de ter cometido um crime contra ela.
75. Segundo uma certa perspectiva, isto só pode verificar‑se se tiver havido um julgamento quanto ao mérito e a conduta do arguido tiver sido examinada pelos representantes nomeados pela sociedade. Esta perspectiva é corroborada pela redacção do artigo 4.°, n.° 2, do Protocolo n.° 7 à CEDH, que dispõe que um processo pode ser reaberto, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afectar o resultado do julgamento penal (62). Por outras palavras, a sociedade só tem, normalmente, uma oportunidade para julgar o arguido, embora possa (a título excepcional) ter direito a uma «segunda tentativa» após uma absolvição inicial no caso de: a) haver matéria de facto nova (e relevante) ou b) a conduta do arguido não ter sido devidamente apreciada durante o primeiro processo‑crime. No contexto da UE, pode afirmar‑se que o artigo 4.° do Protocolo n.° 7 constitui a mais elevada expressão jurídica do princípio ne bis in idem como direito humano fundamental.
76. Segundo a perspectiva alternativa, a única oportunidade da sociedade de acertar contas com o arguido está, em si, limitada pelos prazos de prescrição que a sociedade se impõe a si própria, sendo irrelevante que – seja por que razão for – não chegue a haver um julgamento «quanto ao mérito». Embora respeite a coerência intelectual desta perspectiva, parece‑me que é susceptível de gerar considerável perturbação no meio multinacional e multisocial da CAAS. No contexto de uma única «sociedade», é sem dúvida razoável afirmar que a própria sociedade abdicou da oportunidade de acertar contas depois de decorrido um certo número de anos. O mesmo argumento já parecerá menos razoável quando aplicado no âmbito de dezassete sociedades, ou seja, os treze Estados‑Membros que até à data aplicaram plenamente o acervo de Schengen, acrescidos da Islândia e da Noruega, como Partes contratantes da CAAS, e do Reino Unido (63) e da Irlanda (64) quanto, nomeadamente, aos artigos 54.° a 58.° da CAAS (65).
77. Parece‑me, portanto, que a questão essencial no caso em apreço, a nível da jurisprudência, é a de saber se uma decisão que põe termo a um processo‑crime, com fundamento na prescrição do procedimento criminal, implica que a pessoa seja colocada «em risco de ser condenada», para efeitos do artigo 54.° da CAAS, permitindo‑lhe, assim, exercer o seu direito fundamental de não ser colocada em risco «bis» «in idem». Como explicarei mais adiante, sou de opinião que não será esse o caso, excepto se a decisão for resultado de um processo que tenha envolvido a apreciação do mérito da causa. Só neste caso a pessoa em questão foi efectivamente «colocada em risco de ser condenada», de modo a poder invocar o artigo 54.° da CAAS (66).
Âmbito do princípio ne bis in idem
78. Embora a razão de ser do princípio ne bis in idem seja geralmente reconhecida, e se encontrem geralmente variantes desse princípio (como seria de esperar) nos sistemas jurídicos dos Estados Contratantes da CAAS e na maioria dos sistemas jurídicos desenvolvidos, resulta de uma breve análise comparativa que não existe uma definição única, verdadeiramente comum, do sentido exacto deste princípio, do seu âmbito exacto, do seu campo preciso de aplicação, e assim sucessivamente (67).
79. No contexto da UE, a inexistência de uma perspectiva comum subjacente é demonstrada pelo facto de as várias medidas legislativas e iniciativas adoptadas pelas instituições comunitárias e pelos Estados‑Membros, ao abrigo do Título VI do Tratado UE, não terem conseguido definir o âmbito do princípio contido no artigo 54.° da CAAS (68).
O princípio ne bis in idem como princípio propriae naturae no direito comunitário
80. Consequentemente, para efeitos do direito da UE, parece‑me quase inevitável que o conceito do princípio ne bis in idem (que, tal como Tribunal de Justiça observou no acórdão Vinyl Maatschappij, é um princípio fundamental do direito comunitário) deve ser entendido como um princípio autónomo, ou propriae naturae. Na falta de outras iniciativas, através de alterações do Tratado ou de direito comunitário derivado, deve, portanto, ser aperfeiçoado e desenvolvido pelo Tribunal de Justiça, no exercício do seu «monopólio hermenêutico» quanto a tais conceitos chave do direito da UE (69). A aplicação específica do princípio em áreas determinadas (quer se trate do direito da concorrência ou da aplicação do artigo 54.° da CAAS) deve integrar‑se numa compreensão global do significado que tal princípio fundamental tem (ou deve ter) no ordenamento jurídico comunitário.
81. Permito‑me sugerir que a tese segundo a qual o princípio ne bis in idem deve ser entendido como conceito autónomo no âmbito da UE não é demasiado ousada. A UE constitui um novo ordenamento jurídico (70) e o processo de integração europeia uma construção internacional única. O artigo 54.° da CAAS, por seu lado, representa uma das primeiras tentativas bem‑sucedidas de aplicar o princípio ne bis in idem de modo multilateral num contexto transnacional (71). Parece‑me natural, portanto, que a definição do princípio deva ser propriae naturae, adaptada às características particulares do contexto supranacional em que deve ser aplicado.
O equilíbrio entre a livre circulação de pessoas e as exigências do combate à criminalidade e do elevado nível de protecção «num espaço de liberdade, de segurança e de justiça»
82. Por fim, há que situar esta discussão no contexto mais amplo do equilíbrio apropriado que deve ser obtido entre dois conceitos igualmente fundamentais e importantes: por um lado, a livre circulação de pessoas, e, por outro, o combate eficaz à criminalidade e a garantia de um elevado nível de protecção «num espaço de liberdade, de segurança e de justiça».
83. Quanto a este aspecto, há que recordar que, nos termos do artigo 29.° UE (a primeira disposição do Título VI «Disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal», em que os artigos 54.° a 58.° da CAAS se baseiam), «[...] será objectivo da União facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança e justiça, mediante a instituição de acções em comum entre os Estados‑Membros no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal». Consequentemente, se a implementação da livre circulação de pessoas é importante, a obtenção de um «elevado nível de protecção» também o é. De igual modo, o artigo 2.° UE dá a mesma importância à garantia da livre circulação de pessoas e à prevenção e combate à criminalidade (72).
84. Parece‑me, em definitivo, que a livre circulação de pessoas, sendo embora, sem dúvida, importante, não é absoluta (73). O que a CAAS visa atingir é a livre circulação dentro de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça. Uma parte integrante desse processo consiste em encontrar uma definição propriae naturae do princípio ne bis in idem que permita os direitos de livre circulação dentro de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, caracterizado por um elevado nível de protecção. Era necessário, evidentemente, inserir uma disposição que incorporasse o princípio ne bis in idem na CAAS – a falta de um conceito tão fundamental teria constituído uma grave lacuna. Simultaneamente, o princípio não deve ser distorcido de modo desproporcionado. Por outras palavras, deve ser‑lhe atribuído um âmbito adequado, mas não ilimitado.
Resposta a dar à primeira questão
85. Ao responder à primeira questão apresentada, o Tribunal encontra‑se perante a escolha radical de declarar que uma prescrição processual (cuja aplicação, em princípio, não carece de qualquer apreciação do mérito da causa relativamente ao arguido) basta para desencadear a aplicação do princípio ne bis in idem ou que, para que o princípio se aplique, é necessário que se verifique alguma apreciação do mérito no contexto do primeiro processo (indicando, neste caso, a medida de tal apreciação). Para simplificar, designarei a primeira abordagem por «abordagem processual» e a última por «abordagem substancial».
86. A posição das partes pode resumir‑se do seguinte modo.
87. Os arguidos em Espanha defendem, essencialmente, uma abordagem processual.
88. Em contrapartida, todos os Estados‑Membros que apresentaram observações adoptam uma abordagem substancial. A Espanha, os Países Baixos, a Polónia e a França alegam, essencialmente, que o artigo 54.° da CAAS se aplica apenas quando o tribunal competente, numa decisão final, tiver apreciado o mérito da causa e proferido uma sentença sobre a responsabilidade penal do arguido. Não é isso que se passa quando um processo‑crime é definitivamente extinto com fundamento apenas na prescrição do procedimento criminal. A Itália alega, numa linha semelhante, que o artigo 54.° da CAAS se aplica apenas quando a decisão final de pôr termo ao processo com fundamento em prescrição resulta de um processo que implicou uma apreciação do mérito da causa e da responsabilidade penal do arguido.
89. A Comissão adopta uma abordagem processual, baseando‑se em considerações de ordem meramente prática. Na sua opinião, consoante as circunstâncias a nível nacional, as «absolvições» por razões processuais podem ou não envolver uma apreciação do mérito. Para evitar as dificuldades com que os tribunais nacionais se podem deparar se tiverem que determinar se uma decisão anterior de outro tribunal envolveu de facto tal apreciação, a Comissão sugere, como regra geral, que qualquer decisão que impeça futuros procedimentos criminais pelos mesmos factos num Estado‑Membro seja considerada uma decisão final, para efeitos do artigo 54.° da CAAS.
90. Concordo com a Comissão quanto a este aspecto: parece de facto que os procedimentos nacionais que levam a decisões que envolvem a aplicação de prazos de prescrição podem ou não envolver uma apreciação do mérito (em função, precisamente, de como, por quem e quando foi suscitada a questão da prescrição) (74). Todavia, na minha opinião, a extinção do procedimento criminal com fundamento em prescrição sem qualquer apreciação do mérito não deve ser abrangida pelo princípio ne bis in idem contido no artigo 54.° da CAAS.
91. Passo a expor, na secção que se segue, as razões pelas quais considero que a abordagem substancial constitui a melhor interpretação do artigo 54.° da CAAS. Examinarei seguidamente algumas objecções à adopção de uma abordagem substancial, suscitadas pelos defensores da abordagem processual.
Argumentos a favor de uma abordagem substancial do princípio ne bis in idem
92. Em primeiro lugar, a abordagem substancial corresponde mais fielmente à razão que subjaz ao princípio ne bis in idem. Segundo este princípio, o Estado tem uma oportunidade de apreciar e julgar a conduta alegadamente criminosa de um indivíduo. É só após uma apreciação substantiva que se pode coerentemente dizer que a pessoa em questão foi colocada «em risco de ser condenada» e que, salvo circunstâncias excepcionais, não deve haver uma segunda apreciação («ne bis») dos mesmos factos («in idem»).
93. Os prazos de prescrição baseiam‑se, pelo contrário, conforme já referi, numa razão de ser diferente. A sociedade utiliza‑os não para emitir um juízo sobre o arguido, mas para emitir um juízo sobre a importância que confere a um determinado crime, considerado objectivamente (75) – juízo esse que revela grandes variações de Estado para Estado – e, consequentemente, sobre o período de tempo durante o qual é adequado que o Estado conserve o seu direito de acção penal.
94. Recorde‑se que nos encontramos num contexto supranacional onde não existe uma definição comum do âmbito do princípio, nem existe uma autoridade exterior directamente competente (76). Neste contexto, parece‑me que, para efeitos do princípio ne bis in idem, se pode e deve atribuir sentido diferente a a) «extinção definitiva do procedimento criminal» por prescrição e b) impossibilidade de novo procedimento criminal pelos mesmos factos após a «absolvição definitiva» de um indivíduo na sequência de um julgamento integral. E assim será mesmo no caso de, num contexto puramente interno, ambos os processos levarem ao mesmo resultado (ou seja, impedir novos procedimentos criminais contra a mesma pessoa pelos mesmos factos).
95. Em minha opinião, parece‑me que a realização de um julgamento em que a conduta do arguido é apreciada pelo tribunal à luz do direito e, consequentemente, avaliada, constitui um requisito essencial para a aplicação do princípio ne bis in idem contido no artigo 54.° da CAAS (77). É esse o caso, evidentemente, quando é proferida uma decisão final quanto ao mérito. Não chego, porém, ao extremo de exigir uma decisão que declare o arguido «culpado» ou «inocente», para que o princípio se possa aplicar. Na minha opinião, tal submeteria a aplicação do artigo 54.° da CAAS a condições excessivamente rigorosas e reduziria a sua importância prática a um nível inaceitável.
96. Sugiro, portanto, que um arguido também deva poder invocar o princípio ne bis in idem quando tenha de facto sido colocado em risco de ser condenado mas o seu processo tenha sido arquivado com fundamento na prescrição do procedimento (78). Se o processo‑crime nacional tiver implicado uma apreciação significativa do mérito da causa, parece‑me que o arguido terá de facto sido colocado numa situação de risco (79). Como tal, deve beneficiar do princípio ne bis in idem, ficando excluída, nos termos do artigo 54.° da CAAS, qualquer posterior acusação do mesmo arguido noutro Estado‑Membro, pelos mesmos factos (80). Esta tese é compatível com a razão de ser subjacente ao princípio ne bis in idem. Consequentemente, se uma decisão que declara a prescrição do procedimento criminal for anterior à apreciação do mérito, embora se verifique, nessa medida, uma extinção definitiva do procedimento criminal, é uma extinção que não deve ser abrangida pelo âmbito de aplicação do princípio ne bis in idem (81).
97. Em segundo lugar, parece‑me que a abordagem substancial atinge um equilíbrio mais adequado entre os dois objectivos pretendidos, a saber, por um lado, o de promover a livre circulação de pessoas e, por outro, o de assegurar que os direitos de livre circulação são exercidos num espaço de «liberdade, de segurança e de justiça» caracterizado por um elevado nível de protecção, em que a criminalidade é eficazmente controlada. Como já referi (82), nem o artigo 2.° nem o artigo 29.° UE dão prioridade à livre circulação de pessoas sobre a prevenção e combate à criminalidade e a obtenção de um elevado nível de protecção. Efectivamente, no acórdão Miraglia, o Tribunal de Justiça deu prioridade a este último sobre o primeiro. Ao proceder ao necessário equilíbrio entre estes dois objectivos fundamentais, concluo que uma pessoa relativamente à qual foi extinto um procedimento criminal num Estado‑Membro com fundamento em prescrição, sem apreciação do mérito da causa, não deve beneficiar da aplicação do artigo 54.° da CAAS.
98. Em terceiro lugar, na minha opinião, a abordagem substancial não só constitui uma aplicação lógica da essência do princípio ne bis in idem, como é corroborada, até agora, pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.
99. De entre os processos relativos ao artigo 54.° da CAAS, o Tribunal de Justiça exigiu explicitamente, no acórdão Miraglia, que houvesse uma apreciação do mérito para que o princípio ne bis in idem se pudesse aplicar. Nos acórdãos Van Esbroeck e Gözütok e Brügge, respectivamente, os arguidos ou já tinham sido submetidos a um julgamento formal e cumprido parte da pena aplicada ou tinham admitido a culpa numa fase anterior ao julgamento. Tanto no acórdão Van Esbroeck como no Gözütok e Brügge tinham, portanto, sido punidos pelos crimes em questão. Os três processos foram, portanto, de facto, objecto de uma abordagem substancial.
100. A bondade da interpretação substancial é ainda reforçada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao princípio ne bis in idem em direito da concorrência, em especial no acórdão Vinyl Maatschappij. Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou expressamente que a «[...] ‘absolvição’ na acepção dada a este termo em matéria punitiva» só se verifica, e o princípio geral ne bis in idem só opera, quando «tenha havido uma decisão de fundo quanto aos factos imputados» (83).
101. Em quarto lugar, a interpretação a dar ao princípio ne bis in idem deve ser a mesma em todas as áreas do direito da UE. Esta conclusão resulta do artigo 6.° UE, inserido no Título I, «Disposições comuns», que é aplicável a todos os pilares abrangidos pelo Tratado UE. O artigo 6.°, n.° 1, dispõe que «[a] União assenta nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de direito, princípios que são comuns aos Estados‑Membros». O artigo 6.°, n.° 2, dispõe, ainda, que «[a] União respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais [...] e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário». O princípio fundamental ne bis in idem constitui, portanto, uma norma suprema no âmbito do sistema jurídico da UE. A sua interpretação deve, como tal, ser coerente em todas as áreas de actividade sujeitas ao Tratado UE, ou seja, incluindo tanto o Tratado CE como o acervo de Schengen (84).
102. Consequentemente, se ao abrigo das normas de concorrência do Tratado CE o princípio fundamental ne bis in idem exige uma apreciação do mérito (como é o caso), também assim deverá ser quando o princípio é aplicado ao abrigo do artigo 54.° da CAAS.
103. Poderá alegar‑se que o princípio ne bis in idem em direito da concorrência pode e deve ser diferente do princípio ne bis in idem nos termos do artigo 54.° da CAAS. Apreciarei este argumento mais adiante (85). Porém, a questão de saber se este princípio exige que tenha havido uma apreciação do mérito diz respeito a um dos elementos nucleares do próprio princípio. Esse elemento nuclear deve manter‑se inalterado, independentemente do contexto jurídico em que o princípio venha a ser aplicado. Não vejo de que modo o conteúdo de um elemento nuclear de um princípio fundamental possa variar substancialmente consoante o princípio ne bis in idem seja aplicado no âmbito do artigo 54.° da CAAS ou, em geral, como princípio fundamental do direito comunitário (por exemplo, no âmbito do direito da concorrência).
104. Em quinto lugar, a abordagem substancial contribuiria, além disso, para impedir a possibilidade, que me parece indesejável, da «escolha do tribunal criminal». Uma aplicação sem restrições do princípio da confiança mútua poderia ter o efeito de um indivíduo procurar deliberadamente ser objecto de um procedimento criminal num Estado‑Membro onde soubesse que tal procedimento seria necessariamente declarado prescrito, invocando depois o princípio ne bis in idem para circular livremente dentro da UE (86).
Possíveis objecções possíveis à abordagem substancial
105. Parecem ser três as objecções que devo considerar: o papel do princípio da «confiança mútua» subjacente ao artigo 54.° da CAAS; a exclusão explícita pelo Tribunal de Justiça da harmonização prévia como condição de aplicação do artigo 54.° da CAAS; e as dificuldades práticas que podem decorrer da aplicação de uma abordagem substancial. Examinarei, por ordem, cada uma delas.
106. Em primeiro lugar, uma abordagem substancial é incompatível com o relevo que o Tribunal de Justiça tem dado, até à data, à importância da «confiança mútua» entre os Estados‑Membros?
107. Nos acórdãos Gözütok e Brügge e Van Esbroeck o Tribunal de Justiça atribuiu, com efeito, considerável importância ao princípio da «confiança mútua» (87) subjacente ao artigo 54.° da CAAS e à cooperação entre os Estados‑Membros em matéria penal nos termos do Tratado de Amesterdão (88) (tal como o Conselho de Tampere expressamente reconheceu) (89).
108. Porém, na minha opinião, o conceito de confiança mútua não se alarga ao ponto de constituir uma base lógica de aplicação do princípio ne bis in idem a todas as decisões nacionais que ponham termo a procedimentos criminais por prescrição.
109. Parece‑me, pelo contrário, que se pode e deve estabelecer uma distinção entre, por um lado, confiar nos procedimentos criminais, em geral, dos outros Estados‑Membros (incluindo questões como a garantia de um julgamento imparcial, a qualificação material dos crimes e as normas relativas à produção e admissibilidade das provas) e, por outro, confiar numa decisão segundo qual não pode haver qualquer apreciação substantiva do crime porque o procedimento criminal prescreveu. A primeira situação é uma expressão verdadeira de respeito pela qualidade e validade da lei penal de outros Estados soberanos, num mundo não harmonizado. A segunda equivale a uma harmonização de facto pelo menor denominador comum (90).
110. Poderá talvez estabelecer‑se aqui um paralelo com a jurisprudência relativa ao princípio do reconhecimento mútuo aplicável às principais liberdades previstas no Tratado CE. Embora o reconhecimento mútuo seja importante, existem excepções a este princípio, tanto por força de disposições específicas do Tratado CE como da jurisprudência relativa aos «requisitos imperativos». Para ser plenamente aplicado, o princípio exige, de qualquer modo, que as qualidades ou características das pessoas, mercadorias ou serviços relativamente às quais se pretendem invocar as disposições sobre a livre circulação sejam compráveis às exigidas no Estado de acolhimento ou de importação (91).
111. Por maioria de razão, deve ser possível estabelecer excepções e requisitos de «comparabilidade» semelhantes no contexto do acervo de Schengen (o qual, embora faça agora parte do direito da UE na sequência do Tratado de Amesterdão, não atinge ainda os objectivos e mecanismos de plena integração do Tratado CE). Além disso, devem ser adequados, no contexto da cooperação em matéria de direito penal, área delicada da soberania nacional, na medida em que codifica os valores éticos e sociais das sociedades nacionais (92).
112. Considere‑se, a título de exemplo, a idade da imputabilidade penal – manifestamente uma escolha deliberada da sociedade, que varia consideravelmente entre os Estados‑Membros (93). Na falta de um acordo de harmonização entre os Estados‑Membros, parece‑me que um «princípio de confiança mútua», vagamente definido, não constitui uma base adequada para considerar que a extinção do procedimento criminal no «primeiro» Estado‑Membro, por a idade do arguido ser inferior à da imputabilidade penal, é suficiente para justificar a aplicação do princípio ne bis in idem noutro Estado‑Membro, onde a idade da imputabilidade penal é mais baixa. No estado actual da integração europeia em matéria penal, tal resultado não parece compatível com o grau de competência de que cada Estado‑Membro ainda goza (94).
113. Em segundo lugar, exige a abordagem substancial, como condição prévia de aplicação do princípio ne bis in idem, um nível mínimo de harmonização entre os sistemas de direito penal dos Estados‑Membros? Se assim for, opõe‑se manifestamente à abordagem adoptada pelo Tribunal de Justiça tanto no acórdão Gözütok e Brügge como no acórdão Van Esbroeck.
114. Parece‑me que as observações que acabo de fazer quanto ao princípio da confiança mútua também se justificam aqui. Tal como no caso do reconhecimento mútuo no contexto das disposições do Tratado CE relativas à livre circulação, o princípio da confiança mútua não pode, por si só, assegurar eficazmente que sejam alcançados os objectivos visados no título VI UE (Cooperação policial e judiciária em matéria penal). Para assegurar plenamente a livre circulação num contexto em que existe uma considerável diversidade nas abordagens nacionais das questões penais, será provavelmente necessário, a seu tempo, um certo nível de harmonização ou aproximação das legislações penais nacionais (95). Estas considerações aplicam‑se, claramente, à questão da prescrição. Enquanto esse nível não for atingido, parece‑me que o princípio da confiança mútua constitui uma base insatisfatória para alargar o princípio ne bis in idem de modo a abranger o caso julgado por razões formais, resultante da aplicação de um prazo de prescrição sem apreciar o mérito da causa. Se o resultado consistir, neste caso, em dar prioridade à manutenção de um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, de segurança, de justiça, sobre direitos absolutos de livre circulação, que assim seja.
115. Em terceiro lugar, a adopção de uma abordagem substancial implica (como a Comissão alega) sérias dificuldades práticas? A Comissão sugeriu dois problemas principais que podem surgir. Em primeiro lugar, os tribunais nacionais terão que determinar se houve alguma apreciação do mérito no «primeiro» Estado‑Membro. Em segundo lugar, a Comissão receia que, consequentemente, surjam casos de tratamento discriminatório. As pessoas «absolvidas» num Estado‑Membro onde a decisão envolve uma apreciação do mérito da causa poderiam beneficiar do princípio ne bis in idem, ao passo que as pessoas «absolvidas» pelas mesmas razões num Estado‑Membro onde não há apreciação do mérito não o poderiam fazer.
116. Discordo da posição da Comissão.
117. No que respeita ao argumento relativo a dificuldades práticas, não vejo de que modo estas dificuldades sejam intrinsecamente diferentes das dificuldades com que os tribunais criminais nacionais necessariamente se deparam quando cooperam com tribunais criminais de outros Estados‑Membros. Além da obrigação de cooperação imposta pelo artigo 57.° da CAAS, existem já suficientes mecanismos de cooperação para assegurar a solução (relativamente) fácil de quaisquer dúvidas que um tribunal nacional possa ter quanto ao alcance de uma decisão de direito penal, que deve tomar em consideração, adoptada por um tribunal de outro Estado‑Membro. Basta que o tribunal criminal do «segundo» Estado‑Membro peça ao tribunal nacional do «primeiro» Estado‑Membro que esclareça, no contexto destes procedimentos de cooperação, se se procedeu ou não a uma apreciação do mérito.
118. Parece‑me também razoável presumir que o mandatário do arguido suscitará a questão no segundo processo e alegará (tal como o mandatário dos arguidos em Espanha, no caso em apreço) que a absolvição no primeiro Estado‑Membro, fundada embora na prescrição do procedimento criminal, implicou, todavia, uma apreciação do mérito.
119. No que respeita ao argumento da discriminação, há que observar que a discriminação consiste em tratar duas situações comparáveis de modo diferente. A situação de um arguido absolvido na sequência de uma apreciação do mérito não é comprável à situação de um arguido absolvido sem tal apreciação. Não considero, portanto, que a abordagem substancial seja susceptível de gerar qualquer problema de discriminação.
120. À luz destas considerações, e em concordância com a posição adoptada por Espanha, Itália, Polónia, França e Países Baixos, sugiro que se responda à primeira questão no sentido de que, no actual estado de desenvolvimento do direito da União Europeia, o artigo 54.° da CAAS deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional nacional só está vinculado por uma decisão que declara a prescrição do procedimento criminal, adoptada num processo‑crime por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, se a) essa decisão for definitiva, à luz do direito nacional, b) o processo no outro Estado‑Membro tiver envolvido uma apreciação do mérito da causa, e c) os factos materiais (96) e o(s) arguido(s) forem os mesmos nos processos em ambos os tribunais (97). É ao órgão jurisdicional nacional que compete decidir se estas condições se verificam nos casos que lhe são submetidos. Se se verificarem, fica excluída a possibilidade de se intentar qualquer novo procedimento contra o(s) mesmo(s) arguido(s) com base nos mesmos factos.
Segunda questão
121. Através da sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, essencialmente, se o princípio ne bis in idem estabelecido no artigo 54.° da CAAS deve ser interpretado no sentido de impedir a instauração de uma acção penal no Estado‑Membro B contra certas pessoas, pelo facto de um procedimento criminal pelos mesmos factos, envolvendo outras pessoas, ter sido extinto, por prescrição, no Estado‑Membro A.
122. Partilho da opinião de todas as partes que apresentaram observações – com excepção (como seria de esperar) dos arguidos no processo principal – de que esta questão é simples e deve ser objecto de resposta negativa.
123. O artigo 54.° da CAAS declara explicitamente que «[a]quele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial intentada por uma outra parte contratante». Resulta da interpretação literal desta disposição que a mesma apenas beneficia o indivíduo ou indivíduos específicos que tenham sido definitivamente absolvidos ou condenados. Aparentemente, esta disposição não abrange, portanto, outros indivíduos que possam ter estado implicados nos mesmos factos mas não tenham ainda sido julgados. Com efeito, o Tribunal de Justiça já aplicou a interpretação literal do artigo 54.° no acórdão Gözütok e Brügge, em que declarou que «que o princípio ne bis in idem, como está enunciado nesta disposição, tem como único efeito evitar que uma pessoa definitivamente julgada num Estado‑Membro seja objecto de novos procedimentos criminais pelos mesmos factos noutro Estado‑Membro» (98).
124. Esta conclusão é corroborada pelo acórdão Cimento. Nesse processo, o Tribunal de Justiça declarou, relativamente às normas comunitárias sobre a concorrência, que a aplicação do princípio ne bis in idem está sujeita, nomeadamente, à condição da «unidade de infractor» (99).
Terceira questão
125. Através da terceira questão pretende‑se saber se, no caso de os tribunais criminais de um Estado‑Membro declararem que não ficou demonstrada a origem extracomunitária da mercadoria, para efeitos do crime de contrabando e, consequentemente, absolverem o arguido, os tribunais criminais de outro Estado‑Membro podem alargar o âmbito da investigação para demonstrar que a introdução de mercadorias sem o pagamento de direitos alfandegários provinha de um Estado não membro.
126. Tal como a Comissão e os arguidos em Espanha correctamente observaram, esta questão baseia‑se numa hipótese que é contrária à descrição da matéria de facto feita no despacho de reenvio (100). Uma vez que há razões para crer que uma resposta a esta questão pode ser útil ao órgão jurisdicional de reenvio, procederei, todavia, à sua análise.
127. Concordo com a maioria dos Estados‑Membros que apresentaram observações (101) que a resposta a esta questão depende, essencialmente, de saber se a própria decisão em que foi apurada a primeira matéria de facto respeita as condições de aplicação do princípio ne bis in idem previsto no artigo 54.° da CAAS. Já examinei estas condições na análise que fiz das duas primeiras questões e remeto, portanto, para as conclusões a que cheguei.
128. Sugiro, consequentemente, que se responda à terceira questão no sentido de que, no actual estado de desenvolvimento do direito da União Europeia, o artigo 54.° da CAAS deve ser interpretado no sentido de que os tribunais criminais de um Estado‑Membro só estão vinculados por uma decisão adoptada num processo‑crime por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, se a) a decisão for definitiva, à luz do direito nacional, b) o processo no outro Estado‑Membro tiver envolvido uma apreciação do mérito da causa e c) os factos materiais e o(s) arguido(s) forem os mesmos nos processos em ambos os tribunais.
129. É ao órgão jurisdicional nacional que compete decidir se estas condições se verificam nos casos que lhe são submetidos. Se se verificarem, fica excluída a possibilidade de se intentar qualquer novo procedimento contra o(s) mesmo(s) arguido(s) com base nos mesmos factos e o órgão jurisdicional nacional não pode, alargando o âmbito da sua investigação, colocar em causa o apuramento da matéria de facto feito na primeira decisão (102).
130. Se, pelo contrário, não se verificarem as condições que indiquei, os tribunais criminais do outro Estado‑Membro podem dar início a novas investigações criminais, quando seja essa a sua função nos termos da lei penal nacional, de modo a determinar se foi cometido um crime de importação ilegal.
Quarta questão
131. A redacção da quarta questão subentende que o Supremo Tribunal português já tinha declarado que as mercadorias em causa não tinham sido importadas ilegalmente para Portugal, o que está em contradição com outras passagens do despacho de reenvio (103). Todavia, tendo em conta o teor geral deste despacho, procederei, tal como a Comissão e os Estados‑Membros que apresentaram observações, a uma reformulação destas questões para fornecer uma resposta útil ao órgão jurisdicional nacional.
132. A quarta questão decompõe‑se em duas questões separadas.
Questão 4 a)
133. A primeira sub‑questão, que respeita à noção de mercadoria em livre prática, nos termos do artigo 24.° CE, compreende, por sua vez, dois aspectos.
134. O primeiro aspecto levanta a questão de saber se a declaração por um tribunal criminal de um Estado‑Membro de que não foi demonstrada a importação ilegal confere à mercadoria em questão o estatuto irreversível de mercadoria em livre prática, ao abrigo do artigo 24.° CE, e é vinculativa para os tribunais criminais de outros Estados‑Membros em procedimentos criminais relativos à mesma mercadoria.
135. O segundo aspecto incide, novamente, sobre a questão de saber se a decisão final de um tribunal criminal que declara a prescrição de um procedimento criminal por importação ilegal e, por essa razão, impede qualquer novo procedimento criminal por importação ilegal nesse Estado‑Membro, é vinculativa para os tribunais criminais e para as autoridades competentes de todos os outros Estados‑Membros, os quais, consequentemente, têm que aceitar que a mercadoria em causa está efectivamente em livre prática.
136. Ao examinar as três primeiras questões desenvolvi já, embora em termos gerais, os elementos necessários para responder a estes dois aspectos.
137. Porém, para fornecer uma resposta mais útil, parece‑me necessário distinguir entre, por um lado, o estatuto de direito administrativo da mercadoria em livre prática e, por outro, a responsabilidade penal que pode resultar da importação ilegal para a Comunidade de mercadoria proveniente de países terceiros. A primeira situação rege‑se pelas normas comunitárias. A última, pelo contrário, é do âmbito do direito penal nacional.
138. Nos termos do artigo 24.° CE «[c]onsideram‑se em livre prática num Estado‑Membro os produtos provenientes de países terceiros em relação aos quais se tenham cumprido as formalidades de importação e cobrado os direitos aduaneiros ou encargos de efeito equivalente exigíveis nesse Estado‑Membro, e que não tenham beneficiado de draubaque total ou parcial desses direitos ou encargos».
139. O Código Aduaneiro Comunitário, estabelecido pelo Regulamento (CEE) n.° 2913/92 do Conselho (104) (a seguir «Código Aduaneiro»), e o Regulamento (CEE) n.° 2454/93 da Comissão sobre a aplicação do Código Aduaneiro (a seguir «Regulamento de aplicação») (105), contêm normas mais detalhadas.
140. Nos termos do artigo 24.° CE e das disposições pertinentes do Código Aduaneiro e do Regulamento de aplicação (106), por mercadorias em livre prática devem entender‑se os produtos provenientes de países terceiros que tenham sido devidamente importados para qualquer um dos Estados‑Membros, em conformidade com os requisitos estabelecidos no artigo 24.° CE (107). As mercadorias importadas de países terceiros, depois de serem introduzidas em livre prática, adquirem o estatuto de mercadorias comunitárias (108). A introdução em livre prática implica o «cumprimento das [...] formalidades previstas para a importação de mercadorias, bem como a aplicação dos direitos legalmente devidos» (109). Presume‑se, salvo prova em contrário, que as mercadorias que circulam na Comunidade gozam do estatuto de mercadorias em livre prática (110).
141. Nos termos das normas comunitárias aplicáveis, as autoridades aduaneiras têm ainda a possibilidade, dentro dos limites estabelecidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o princípio da proporcionalidade e sobre a livre circulação de mercadorias (111), de verificar a autenticidade dos documentos que comprovam o estatuto das mercadorias e de proceder a inquéritos destinados a assegurar o cumprimento da legislação aduaneira (112). No caso de mercadorias importadas ilegalmente ou introduzidas ilegalmente em livre prática, o Código Aduaneiro e o Regulamento de aplicação dispõem que tais mercadorias geram uma dívida aduaneira, que deve ser paga pela pessoa responsável (113).
142. Assim, depois de concluídas as formalidades de importação e pagos os eventuais encargos devidos, as mercadorias importadas de países terceiros gozam do estatuto de mercadorias em livre prática e de todos os direitos a ele associados nos termos das normas comunitárias. As autoridades nacionais estão vinculadas por estas normas comunitárias. As autoridades de outros Estados‑Membros devem presumir que uma declaração das autoridades aduaneiras nacionais segundo a qual a mercadoria está em livre prática é válida, salvo prova em contrário. Neste último caso, a dívida aduaneira que daí decorra deve ser paga. É aqui que termina a aplicação do direito aduaneiro comunitário.
143. As normas comunitárias só tratam, portanto, dos aspectos da importação ilegal relacionados com o direito administrativo. Não visam a harmonização do tratamento jurídico das infracções aduaneiras nos termos das legislações penais nacionais. Os Estados‑Membros conservaram o poder de punir as infracções aduaneiras ao Código Aduaneiro (114), nas condições estabelecidas pelo Tribunal de Justiça, especialmente no que respeita à proporcionalidade. Assim, a questão de saber se a importação ilegal (além de gerar uma dívida aduaneira nos termos do direito administrativo) constitui uma infracção aduaneira susceptível de fazer incorrer o seu autor em responsabilidade penal, deve ser apreciada à luz das leis penais nacionais aplicáveis.
144. É óbvio que os elementos de tal infracção relativos à questão de saber se houve, de facto, uma importação ilegal para a Comunidade se regem pelas normas comunitárias pertinentes. Nessa medida, as normas comunitárias desempenham um papel, ao determinar se foi cometida uma infracção aduaneira, à luz da legislação penal nacional. O facto de ter ou não sido apurada essa matéria de facto num determinado processo‑crime reflecte‑se no modo e no momento em que a eventual questão da prescrição é suscitada nesse processo.
145. Daqui resulta que, como já observei na resposta que dei à terceira questão, no actual estado de desenvolvimento do direito da UE, se estiverem reunidas todas as condições necessárias para a aplicação do princípio ne bis in idem contido no artigo 54.° da CAAS, não é possível instaurar novos procedimentos criminais contra o(s) mesmo(s) arguido(s) com base nos mesmos factos materiais, e um órgão jurisdicional nacional não pode colocar em causa o apuramento da matéria de facto feito na primeira decisão (115).
146. Se assim não for, porém, os tribunais criminais de outros Estados‑Membros não estão vinculados pelo anterior apuramento da matéria de facto feito pelos tribunais criminais de um Estado‑Membro.
147. A questão de determinar se certa mercadoria goza do estatuto de «mercadoria comunitária» ou de saber se a sua importação para a Comunidade constitui uma infracção aduaneira susceptível de implicar responsabilidade penal é da competência do órgão jurisdicional nacional que, para determinar se a mercadoria está «em livre prática», deve aplicar as disposições pertinentes do direito comunitário (ou seja, o artigo 28.° CE, o Código Aduaneiro e o seu Regulamento de aplicação), e, no que respeita à responsabilidade penal, as normas nacionais pertinentes relativas às infracções aduaneiras.
Questão 4 b)
148. Através da segunda sub‑questão pergunta‑se, essencialmente, se, para efeitos da aplicação do artigo 54.° da CAAS, a importação e a posterior venda da mercadoria deve ser considerada um único facto ou dois factos separados.
149. A noção de «mesmos factos», para efeitos do artigo 54.° da CAAS, foi interpretada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Van Esbroeck. Declarou aí que «o único critério relevante» para efeitos dessa disposição é o da «identidade dos factos materiais, entendido como a existência de um conjunto de circunstâncias concretas indissociavelmente ligadas entre si» (116). O Tribunal de Justiça sugeriu que os factos materiais em questão seriam «os mesmos factos» se constituíssem «um conjunto de factos indissociavelmente ligados no tempo, no espaço e pelo seu objecto» (117).
150. Os factos no processo Van Esbroeck (exportação e importação das mesmas drogas de e para Estados contratantes diferentes) foram considerados pelo Tribunal de Justiça como sendo, em princípio, os «mesmos factos», para efeitos do artigo 54.° da CAAS (118). Todavia, uma vez que o problema foi suscitado como uma questão de facto no contexto de um pedido de decisão prejudicial, era da competência do órgão jurisdicional nacional.
151. A importação e comercialização de mercadorias constituem uma «identidade dos factos materiais», entendida como «um conjunto de factos indissociavelmente ligados no tempo, no espaço e pelo seu objecto»?
152. Não me parece que seja necessariamente assim. O acto de importar mercadorias ilegalmente, entendido no sentido de trazer mercadorias para o território aduaneiro da UE sem pagar os direitos aduaneiros aplicáveis ou sem cumprir as formalidades de importação, não compreende também necessária ou automaticamente o acto de venda dessas mercadorias a terceiros, nesse território. Pode facilmente conceber‑se, por exemplo, uma importação ilícita de mercadorias para consumo próprio, caso em que não se verifica qualquer venda. Do mesmo modo, é possível imaginar uma importação ilegal por uma pessoa e a venda subsequente por outra, noutro Estado‑Membro. Neste caso, haveria duas séries de factos materiais, envolvendo duas pessoas diferentes, em dois locais diferentes e em dois momentos diferentes.
153. Parece‑me, portanto, que importação ilegal e a venda da mesma mercadoria nem sempre constituem «um conjunto de factos indissociavelmente ligados no tempo, no espaço e pelo seu objecto». Consequentemente, não são necessariamente os «mesmos factos», para efeitos do artigo 54.° da CAAS, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça no acórdão Van Esbroeck. Ou, utilizando a expressão do órgão jurisdicional de reenvio, a venda de mercadoria importada ilegalmente não é necessariamente parte integrante da importação.
154. É óbvio que pode haver casos em que a importação ilegal e a posterior venda de mercadoria de contrabando estejam, com efeito, tão indissociavelmente ligadas (119) que possam ser consideradas como sendo os mesmos factos, na acepção do acórdão Van Esbroeck. É uma questão que compete ao órgão jurisdicional nacional decidir.
155. Cabe aqui chamar a atenção para uma diferença de abordagem entre o acórdão Van Esbroeck e o acórdão Cimento. No acórdão Cimento, no contexto da aplicação ao direito da concorrência do princípio ne bis in idem como princípio fundamental do direito comunitário, o Tribunal de Justiça fez depender a sua aplicação de uma «tripla condição» de «identidade dos factos, de unidade de infractor e de unidade do interesse jurídico protegido» (120). Em contrapartida, no acórdão Van Esbroeck, o Tribunal de Justiça declarou explicitamente que a existência de uma «unidade do interesse jurídico protegido» não é uma condição de aplicação do artigo 54.° da CAAS. Basta a mera identidade dos factos materiais.
156. Aceitando‑se, como é o meu caso (121), que, por razões de ordem lógica, o princípio ne bis in idem não deve ser substancialmente diferente, consoante se aplique nos termos do artigo 54.° da CAAS ou como princípio fundamental do direito comunitário, há que conciliar a jurisprudência destes dois acórdãos.
157. Parece‑me que o elemento distintivo consiste no facto de no acórdão Cimento o Tribunal de Justiça aplicar o princípio ne bis in idem aos poderes das instituições comunitárias de aplicarem sanções a empresas, nos termos das normas comunitárias da concorrência – ou seja, num contexto estritamente supranacional e relativamente a uma única ordem jurídica, regida por um conjunto de normas uniforme. Nestas circunstâncias, o interesse jurídico protegido já foi, por definição, estabelecido pelas normas comunitárias de concorrência e é o mesmo para toda a Comunidade. É razoável, portanto, que o Tribunal de Justiça exija, nesse contexto «unitário», que se verifique uma «unidade do interesse jurídico protegido», como uma das condições de aplicação do princípio ne bis in idem.
158. A enunciação do princípio ne bis in idem no artigo 54.° da CAAS, pelo contrário, prevê expressamente que este não se destina a ser aplicado no contexto de um único sistema jurídico uniforme. Visa, sim, reger certos aspectos da cooperação entre os Estados‑Membros em matéria penal, no âmbito do Acordo de Schengen. Neste contexto, é possível que as diferentes ordens jurídicas nacionais pretendam proteger interesses jurídicos muito diferentes através das suas legislações penais. Tal como o advogado‑geral (122) e o Tribunal de Justiça (123) salientaram no processo Van Esbroeck, exigir a «unidade do interesse jurídico» como requisito de aplicação do princípio ne bis in idem do artigo 54.° da CAAS esvaziaria o princípio da sua essência e eficácia, relativamente ao objectivo de promoção da livre circulação de pessoas.
159. Por fim, é importante observar que a diferença de abordagem entre o acórdão Cimento e o acórdão Van Esbroeck pode ter considerável relevo para a definição do âmbito de aplicação do artigo 54.° da CAAS. Assim, segundo a abordagem ampla adoptada no acórdão Van Esbroeck, sempre que uma pessoa tenha sido acusada de vários crimes decorrentes da mesma série de factos num processo‑crime nacional, a absolvição final quanto a uma das acusações basta para desencadear a aplicação do princípio ne bis in idem nos termos do artigo 54.° da CAAS (124).
Conclusão
160. À luz das considerações anteriores, entendo que o Tribunal de Justiça deve responder às questões apresentadas pela Audiencia Provincial de Málaga do seguinte modo:
1) No actual estado de desenvolvimento do direito da União Europeia, o artigo 54.° da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional nacional só está vinculado por uma decisão que declara a prescrição do procedimento criminal, adoptada num processo‑crime por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, se a) essa decisão for definitiva, à luz do direito nacional, b) o processo no outro Estado‑Membro tiver envolvido uma apreciação do mérito da causa, e c) os factos materiais e o(s) arguido(s) forem os mesmos nos processos em ambos os tribunais. É ao órgão jurisdicional nacional que compete decidir se estas condições se verificam nos casos que lhe sejam submetidos. Se se verificarem, fica excluída a possibilidade de se intentar qualquer novo procedimento contra o(s) mesmo(s) arguido(s) com base nos mesmos factos.
2) Uma vez que o artigo 54.° da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen se aplica apenas quando se trate do mesmo arguido, não obsta a que se intentem acções penais num Estado‑Membro apesar de um procedimento criminal, pelos mesmos factos, envolvendo outras pessoas, ter sido extinto, noutro Estado‑Membro, por prescrição.
3) No actual estado de desenvolvimento do direito da União Europeia, o artigo 54.° da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen deve ser interpretado no sentido de que os tribunais criminais de um Estado‑Membro só estão vinculados por uma decisão adoptada num processo‑crime por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, se a) a decisão for definitiva, à luz do direito nacional, b) o processo no outro Estado‑Membro tiver envolvido uma apreciação do mérito da causa e c) os factos materiais e o(s) arguido(s) forem os mesmos nos processos em ambos os tribunais. É ao órgão jurisdicional nacional que compete decidir se estas condições se verificam nos casos que lhe são submetidos. Se se verificarem, fica excluída a possibilidade de se intentar qualquer novo procedimento contra o(s) mesmo(s) arguido(s) com base nos mesmos factos, e o órgão jurisdicional nacional não pode, alargando o âmbito da sua investigação, colocar em causa o apuramento da matéria de facto feito na primeira decisão.
4 a) A resposta à questão 3 aplica‑se independentemente de o tribunal criminal do primeiro Estado‑Membro ter decidido que os factos alegados não foram provados ou que o procedimento criminal prescreveu, nos termos da sua legislação penal nacional.
4 b) A importação e posterior venda da mesma mercadoria não constituem os «mesmos factos», para efeitos do artigo 54.° da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, salvo se estiverem indissociavelmente ligados no tempo, no espaço e pelo seu objecto. É ao órgão jurisdicional nacional que compete decidir se estas condições se verificam nos casos que lhe sejam submetidos.