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Processo C286/22

KBC Verzekeringen NV

contra

P&V Verzekeringen CVBA

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação, Bélgica)]

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção) de 12 de outubro de 2023

«Reenvio prejudicial – Seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis – Diretiva 2009/103/CE – Artigo 1.°, ponto 1 – Conceito de “veículo” – Legislação nacional que prevê a indemnização automática de certos utentes da estrada vítimas de acidentes rodoviários – Pessoa que não conduz um “veículo automóvel” na aceção desta legislação – Conceito equivalente ao de “veículo” na aceção da Diretiva 2009/103 – Bicicleta equipada de um motor elétrico que fornece pedalagem assistida, dispondo de uma função de aceleração que só pode ser ativada depois do uso da força muscular»

1.        Aproximação das legislações – Seguro de responsabilidade civil automóvel – Diretiva 2009/103 – Determinação do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos – Competência dos EstadosMembros – Limites

(Diretiva 2009/103 do Parlamento Europeu e do Conselho)

(cf. n.os 23‑25)

2.        Aproximação das legislações – Seguro de responsabilidade civil automóvel – Diretiva 2009/103 – Conceito de veículo – Bicicleta equipada de um motor elétrico que fornece pedalagem assistida, dispondo de uma função de aceleração que só pode ser ativada depois do uso da força muscular – Exclusão

[Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho 2006/126, artigo 4.°, n.° 1, e 2009/103, considerando 2 e artigos 1.°, n.° 1, e 13.°, n.° 1, alínea b)]

(cf. n.os 34, 37‑41)

Resumo

Em 14 de outubro de 2017, BV (a seguir «vítima»), que circulava numa bicicleta com assistência elétrica na via pública, foi atingido por um veículo segurado pela KBC Verzekeringen NV (a seguir «KBC»). A vítima faleceu. Uma vez que o acidente foi considerado um «acidente de trajeto», a P&V Verzekeringen CVBA (a seguir «P&V»), seguradora do empregador da vítima em matéria de acidentes de trabalho, pagou as indemnizações devidas e ficou sub‑rogada nos seus direitos e nos dos seus sucessores legais.

A P&V instaurou um processo contra a KBC para obter o reembolso das suas despesas com base na regulamentação nacional. No caso em apreço, esta prevê designadamente uma obrigação de as seguradoras de responsabilidade civil dos condutores de veículos automóveis envolvidos num acidente rodoviário indemnizarem, em todas as situações, os danos sofridos pelas vítimas desse acidente quando sejam consideradas «utentes mais fracos da via», dependendo esta qualificação da questão de saber se a vítima do acidente era ou não o condutor do «veículo automóvel» no momento desse acidente. A KBC apresentou um pedido reconvencional destinado a obter por parte da P&V o reembolso de uma quantia de dinheiro que teria sido indevidamente paga. Em sua defesa, a P&V alegou que a vítima não podia ser considerada condutor de um veículo automóvel.

Tendo‑lhe sido interposto recurso pela KBC, o Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação, Bélgica) submeteu um reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça quanto à interpretação do conceito de «veículo», na aceção do artigo 1.°, ponto 1, da Diretiva 2009/103 (1).

No seu acórdão hoje proferido, o Tribunal de Justiça declara que este conceito não abrange uma bicicleta com um motor elétrico que só fornece pedalagem assistida e que dispõe de uma função que lhe permite acelerar sem pedalar até à velocidade de 20 km/hora, só podendo esta função ser ativada depois de a força muscular ter sido utilizada.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Antes de mais, o Tribunal de Justiça salienta que decorre da redação do artigo 1.°, ponto 1, da Diretiva 2009/103 que apenas estão abrangidos pelo conceito de «veículo», na aceção desta disposição, os veículos destinados a circular sobre o solo, que possam ser acionados por uma força mecânica, com exceção dos que se deslocam numa via-férrea. No entanto, esta redação não permite, por si só, determinar se essa força mecânica deve desempenhar um papel exclusivo no acionamento do veículo em causa.

Em seguida, o Tribunal recorda, por um lado, que, segundo o considerando 2 da Diretiva 2009/103, a obrigação de «seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis» remete para o «seguro automóvel» e que esta expressão visa tradicionalmente o seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de engenhos como os motociclos, os veículos automóveis e os camiões que, fora os casos em que estejam fora de uso, são movidos exclusivamente através de uma força mecânica.

Por outro lado, o artigo 13.° da Diretiva 2009/103 (2) especifica que cada Estado‑Membro toma todas as medidas adequadas para que seja considerada sem efeito, no que se refere a ações de terceiros vítimas de um sinistro, qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro e que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos por pessoas que não sejam titulares de uma carta de condução que lhes permita conduzir o veículo em causa. Ora, resulta da Diretiva 2006/126 (3), que, em princípio, apenas a condução de veículos que podem circular pelos seus próprios meios, com exceção dos veículos que se deslocam sobre carris, está submetida a uma carta de condução nacional.

Por último, no que diz respeito aos objetivos prosseguidos pela Diretiva 2009/103, o Tribunal sublinha que esta pretende garantir que as vítimas dos acidentes causados por veículos automóveis beneficiem de um tratamento comparável, independentemente do lugar do território da União em que tenha ocorrido o acidente, bem como assegurar assim a sua proteção.

Ora, os engenhos que não são exclusivamente acionados por uma força mecânica e que não se podem assim deslocar sobre o solo sem utilização da força muscular, como uma bicicleta com assistência elétrica que pode acelerar sem pedalar até à velocidade de 20 km/h, não parecem suscetíveis de causar a terceiros danos físicos ou materiais comparáveis, quanto à sua gravidade ou quantidade, aos danos que podem ser causados por motociclos, veículos automóveis, camiões ou outros veículos que circulam sobre o solo, acionados exclusivamente por uma força mecânica Com efeito, estes últimos podem atingir uma velocidade significativamente mais elevada do que a que pode ser atingida por esses engenhos, sendo, ainda atualmente, muito mais utilizados para fins de circulação. O objetivo de proteção das vítimas de acidentes rodoviários causados pelos veículos automóveis, prosseguido pela Diretiva 2009/103, não obriga, deste modo, a que tais engenhos sejam abrangidos pelo conceito de «veículo», na aceção do artigo 1.°, ponto 1, desta diretiva.


1      Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO 2009, L 263, p. 11).


2      Diretiva 2009/103, artigo 13.°, n.° 1, alínea b).


3      Diretiva 2006/126/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 2006, relativa à carta de condução (JO 2006, L 403, p. 18), artigo 4.°, n.° 1.