CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
HENRIK SAUGMANDSGAARD ØE
apresentadas em 15 de julho de 2021 (1)
Processo C‑160/20
Stichting Rookpreventie Jeugd,
Stichting Inspire2live,
Rode Kruis Ziekenhuis BV,
Stichting ClaudicatioNet,
Nederlandse Vereniging voor Kindergeneeskunde,
Nederlandse Vereniging voor Verzekeringsgeneeskunde,
Accare, Stichting Universitaire en Algemene Kinder‑ en Jeugdpsychiatrie Noord‑Nederland,
Vereniging Praktijkhoudende Huisartsen,
Nederlandse Vereniging van Artsen voor Longziekten en Tuberculose,
Nederlandse Federatie van Kankerpatiëntenorganisaties,
Nederlandse Vereniging Arbeids‑ en Bedrijfsgeneeskunde,
Nederlandse Vereniging voor Cardiologie,
Koepel van Artsen Maatschappij en Gezondheid,
Nederlandse Vereniging voor Kindergeneeskunde,
Koninklijke Nederlandse Maatschappij tot bevordering der Tandheelkunde,
College van Burgemeester en Wethouders van Amsterdam
contra
Staatssecretaris van Volksgezondheid, Welzijn en Sport,
com a intervenção de:
Vereniging Nederlandse Sigaretten‑ en Kerftabakfabrikanten (VSK)
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo rechtbank Rotterdam (Tribunal de Primeira Instância de Roterdão, Países Baixos)]
«Reenvio prejudicial — Fabrico, apresentação e venda de produtos do tabaco — Diretiva 2014/40/UE — Cigarros com filtro — Níveis máximos de emissão — Artigo 4.o, n.o 1 — Método de medição das emissões de alcatrão, nicotina e monóxido de carbono com base em normas ISO — Não publicação do conteúdo dessas normas no Jornal Oficial da União Europeia — Exigências em matéria de publicação — Artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE — Condições de acesso ao conteúdo das referidas normas — Princípio do livre acesso»
I. Introdução
1. Poderá o legislador da União, nos atos legislativos que adota, fazer referência a normas internacionais elaboradas por entidades privadas (no presente caso, normas ISO (2)) sem publicar o seu conteúdo no Jornal Oficial da União Europeia, nem prever um acesso direto e gratuito dos cidadãos da União Europeia a esse conteúdo, embora essas normas estejam acessíveis naquela organização contra o pagamento de uma taxa pelos direitos de autor que invoca?
2. Esta é, no essencial, uma das questões a que, no presente processo, o Tribunal de Justiça é chamado a responder ao Rechtbank Rotterdam (Tribunal de Primeira Instância de Roterdão, Países Baixos).
3. O pedido de decisão prejudicial foi apresentado no contexto de um litígio que opõe a Stichting Rookpreventie Jeugd (Fundação para a Prevenção do Tabagismo entre os Jovens, Países Baixos, a seguir «Stichting») e outras quinze entidades (a seguir, conjuntamente, «recorrentes no processo principal») ao Staatssecretaris van Volksgezondheid, Welzijn en Sport (Secretário de Estado da Saúde Pública, do Bem‑Estar e do Desporto, Países Baixos, a seguir «staatssecretaris»).
4. Nesse contexto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, mais concretamente, apurar se as condições de acesso ao conteúdo das normas ISO a que se refere o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40/UE (3), que define um método de medição das emissões de alcatrão, de nicotina e de monóxido de carbono dos cigarros com filtro, estão em conformidade com as exigências de publicação constantes do artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE (4) e com o princípio da transparência que, entre outros, subjaz a essa disposição.
5. No termo da minha exposição, proporei ao Tribunal de Justiça que declare que o artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE não obriga à publicação do conteúdo das normas ISO em causa no Jornal Oficial. Além disso, apresentarei as razões pelas quais entendo que as condições de acesso ao conteúdo dessas normas não violam os princípios gerais de que essa disposição é expressão.
II. Enquadramento jurídico
A. Regulamento (CE) n.o 1049/2001
6. O artigo 12.o do Regulamento (CE) n.o 1049/2001 (5) prevê:
«1. As instituições fornecerão, tanto quanto possível, acesso público direto aos documentos sob forma eletrónica ou através de um registo, nos termos das regras em vigor na instituição em causa.
2. Em especial, os documentos legislativos, ou seja os documentos elaborados ou recebidos no âmbito de procedimentos tendo em vista a aprovação de atos juridicamente vinculativos nos, ou para os, Estados‑Membros, deveriam ser tornados diretamente acessíveis, sem prejuízo do disposto nos artigos 4.o e 9.o
[…]»
7. Nos termos do artigo 4.o, n.o 2, desse regulamento:
«As instituições recusarão o acesso aos documentos cuja divulgação pudesse prejudicar a proteção de:
– interesses comerciais das pessoas singulares ou coletivas, incluindo a propriedade intelectual,
– […]»
B. Regulamento (UE) n.o 1025/2012
8. O artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1025/2012 (6) estabelece:
«Os organismos nacionais de normalização devem incentivar e facilitar o acesso das PME às normas e aos processos de elaboração de normas com vista a alcançar um elevado nível de participação no sistema de normalização, nomeadamente:
[…]
c) Oferecendo acesso gratuito, ou com tarifas especiais, a atividades de normalização;
d) Oferecendo acesso gratuito a projetos de normas;
e) Disponibilizando gratuitamente, no seu sítio web, sínteses das normas;
[…]»
9. Nos termos do artigo 10.o, n.o 6, desse regulamento:
«Caso a norma harmonizada satisfaça os requisitos que visa abranger, constantes da legislação correspondente da União em matéria de harmonização, a Comissão publica sem demora uma referência a essa norma harmonizada no [Jornal Oficial], ou por outros meios, de acordo com as condições estabelecidas no ato correspondente da legislação da União em matéria de harmonização.»
C. Diretiva 2014/40
10. O considerando 11 da Diretiva 2014/40 refere:
«Para medir os teores de alcatrão, nicotina e monóxido de carbono nos cigarros (a seguir designados “níveis de emissão”), deverá recorrer‑se às normas ISO internacionalmente reconhecidas. […]»
11. Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, dessa diretiva:
«Os níveis de emissão dos cigarros comercializados ou fabricados nos Estados‑Membros (“níveis máximos de emissão”) não podem ser superiores a:
a) 10 mg de alcatrão por cigarro;
b) 1 mg de nicotina por cigarro;
c) 10 mg de monóxido de carbono por cigarro.»
12. O artigo 4.o, n.o 1, da referida diretiva determina:
«1. As emissões de alcatrão, nicotina e monóxido de carbono dos cigarros são medidas segundo a norma ISO 4387 para o alcatrão, a norma ISO 10315 para a nicotina e a norma ISO 8454 para o monóxido de carbono.
A exatidão das medições relativas ao alcatrão, à nicotina e ao monóxido de carbono é determinada segundo a norma ISO 8243.»
III. Litígio no processo principal, questão prejudicial e tramitação do processo no Tribunal de Justiça
13. Por cartas datadas de 31 de julho e 2 de agosto de 2018, os recorrentes no processo principal solicitaram à Nederlandse Voedsel‑ en Warenautoriteit (Autoridade neerlandesa para a Segurança dos Produtos Alimentares e dos Produtos de Consumo, Países Baixos, a seguir «NVWA») que se certificasse de que os cigarros com filtro propostos aos consumidores nos Países Baixos cumprem, quando utilizados da forma prevista, os níveis máximos de emissão de alcatrão, de nicotina e de monóxido de carbono previstos no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 e, eventualmente, adotasse medidas coercivas para que os produtos que não cumpram essas exigências sejam retirados do mercado (7).
14. Por Decisão de 20 de setembro de 2018, a NVWA indeferiu o pedido de medidas coercivas apresentado por uma das recorrentes no processo principal, a Stichting, cujo objetivo é a prevenção do tabagismo na juventude. Tanto esta como todos os outros recorrentes no processo principal reclamaram desse indeferimento para o Staatssecretaris.
15. Em 31 de janeiro de 2019, o Staatssecretaris indeferiu, por improcedente, a reclamação da Stichting, e por inadmissível a dos outros recorrentes no processo principal.
16. Os recorrentes no processo principal interpuseram recurso judicial dessa última decisão para o órgão jurisdicional de reenvio. A Vereniging Nederlandse Sigaretten‑ en Kerftabakfabrikanten (Associação dos fabricantes neerlandeses de cigarros e de tabaco, Países Baixos, a seguir «VSK») pediu para intervir no processo principal. O seu pedido foi deferido.
17. No âmbito desse processo, a Stichting alega, no essencial, que o método para medir os níveis de alcatrão, de nicotina e de monóxido de carbono dos cigarros com filtro a que se refere o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 não é vinculativo. Segundo afirma, essas emissões deviam ser medidas tendo em conta, designadamente, a utilização prevista para esses produtos e, mais exatamente, o facto de os dedos e lábios dos fumadores obstruírem, parcialmente, as microperfurações existentes no filtro dos cigarros. Em consequência disso, as referidas emissões são, na verdade, maiores do que as que esse método permite determinar (8). Nessas condições, impõe‑se o recurso a outro método, mais protetor da saúde dos consumidores (9).
18. O Staatssecretaris, a quem a VSK se associa, opõe‑se a essa argumentação e defende que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 tem caráter obrigatório. Assim, as autoridades nacionais não se podem afastar, por iniciativa própria, do método definido nessa disposição. De todo o modo, é sempre ao legislador da União que cabe decidir alterar, ou não, essa disposição.
19. Dados estes argumentos, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em primeiro lugar, se o facto de as normas ISO a partir das quais são medidas as emissões de alcatrão, de nicotina e de monóxido de carbono dos cigarros com filtro não serem publicadas no Jornal Oficial e só estarem acessíveis na ISO contra pagamento é compatível, nomeadamente, com o regime de publicação previsto no artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE, bem como com o princípio da transparência.
20. Em segundo lugar, interroga‑se sobre o caráter vinculativo do método de medição dos níveis de emissões previsto no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40, bem como sobre a validade dessa disposição à luz dos objetivos da mesma diretiva e de outras normas jurídicas de hierarquia superior (10).
21. Nestas condições, o rechtbank Rotterdam (Tribunal de Primeira Instância de Roterdão), por Decisão de 20 de março de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 24 de março de 2020, ordenou a suspensão da instância e, designadamente, a submissão da seguinte questão prejudicial ao Tribunal de Justiça(11):
«A definição do método de medição previsto no artigo 4.o, n.o 1, da diretiva, com base em normas ISO que não são de livre acesso, está de acordo com o artigo 297.o, n.o 1, TFUE e com o princípio da transparência que também está na base da referida diretiva?»
22. A Stichting, a VSK, o Governo neerlandês, o Parlamento Europeu, o Conselho da União Europeia e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas ao Tribunal de Justiça. No presente processo, não houve audiência de alegações. Porém, as partes e os intervenientes responderam por escrito às questões que o Tribunal de Justiça colocou em 9 de fevereiro de 2021.
IV. Análise
A. Considerações preliminares
23. De acordo com o solicitado pelo Tribunal de Justiça, as presentes conclusões centrar‑se‑ão na primeira questão prejudicial.
24. Por meio desta questão, que se subdivide em duas partes, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que esclareça, por um lado, se o artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE obriga a que as normas ISO a que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 se refere sejam publicadas no Jornal Oficial e, por outro, se as condições de acesso ao conteúdo dessas normas (que, para além de não serem publicadas no Jornal Oficial, a ISO só coloca à disposição do público contra pagamento, sem que as instituições da União tornem o seu conteúdo direta e gratuitamente acessível) estão em conformidade com o princípio da transparência.
25. A título preliminar, cabe sublinhar que, a partir do momento em que, no presente processo, o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se sobre uma questão que, em definitivo, tem a ver com a acessibilidade ao conteúdo da lei, ou seja, com a possibilidade de os cidadãos a conhecerem, o ponto de partida da resposta a essa questão deve evidentemente, em minha opinião, ser o de que, numa sociedade democrática, todo o cidadão deve ter livre acesso ao conteúdo da lei. Trata‑se de um dos fundamentos do Estado de direito (12).
26. Esse princípio do livre acesso ao conteúdo da lei deve, em minha opinião, ser garantido, pelo menos por duas razões. A primeira decorre do adágio segundo o qual «o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém», que implica necessariamente que a lei não pode ser oponível aos sujeitos de direito enquanto estes não tiverem a possibilidade de a conhecer. A segunda decorre da necessidade de os cidadãos, em sentido amplo, terem a possibilidade de consultar a totalidade dos diplomas que regulam a vida em sociedade, adotados pelos poderes públicos, a fim de assegurar o seu respeito (13) e de exercer efetivamente os direitos que lhes são conferidos numa sociedade democrática (14). De resto, é aí que se encontra a própria essência da diligência dos recorrentes no processo principal: através do recurso que interpuseram no órgão jurisdicional de reenvio, essas entidades, cujo objetivo comum é a prevenção do tabagismo, pretendem precisamente afirmar que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 define um método de medição que, segundo entendem, não protege suficientemente a saúde dos consumidores.
27. Decorre desse princípio que as normas ISO referidas num ato legislativo da União, como, no presente caso, a Diretiva 2014/40 (15), devem ser publicadas no Jornal Oficial ou, pelo menos, que as instituições da União são obrigadas a garantir que o seu conteúdo é direta e gratuitamente colocado à disposição do público?
28. A este propósito, antes de mais, devo esclarecer que nenhuma disposição de direito da União trata especificamente dos requisitos de publicação que as normas internacionais, como as normas ISO em causa, devem cumprir quando são assim referidas num ato legislativo. Em especial, o artigo 10.o, n.o 6, do Regulamento n.o 1025/2012, que define obrigações precisas no que respeita à publicação das normas harmonizadas (16), não é aplicável às normas ISO. Neste contexto, parece‑me importante ter presente que este reenvio prejudicial não é sobre a questão de saber se a publicação de outras normas técnicas no Jornal Oficial, independentemente de serem nacionais, harmonizadas ou europeias (17), deve ser completa, ou não, ou sobre se o seu conteúdo deve ser livremente acessível ao público. No presente caso, apenas se trata de normas internacionais e, mais especificamente, de normas ISO elaboradas por uma organização privada, cujo financiamento provém, nomeadamente, da venda das normas de que é autora (18).
29. Em seguida, e como sublinharei adiante na minha exposição, a resposta à primeira questão prejudicial depende, em meu entender, da forma como o ato legislativo da União que refere as normas ISO pretende utilizar essas normas.
30. Existem diversos elementos que, nesta sede, me parecem pertinentes. O presente processo levar‑me‑á a abordar três. Em primeiro lugar, serão as normas em causa necessárias para conhecer os «requisitos essenciais» do ato legislativo que se lhes refere ou são de ordem técnica e acessória relativamente a esses requisitos? Em segundo lugar, é objetivo dessas normas impor obrigações às empresas cujos produtos ou atividades integram o âmbito das referidas normas? Em terceiro lugar, no caso de essas normas serem de ordem técnica e acessória e não pretenderem impor obrigações às referidas empresas, daí decorrendo (como explicarei na secção B das presentes conclusões) que não devem ser objeto de publicação no Jornal Oficial nos termos do artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE, o facto de as instituições da União não preverem condições de acesso mais favoráveis do que as já previstas para a ISO dificulta desproporcionadamente a possibilidade de o público delas tomar conhecimento e, nessa medida, põe em causa os princípios gerais subjacentes a esta última disposição (secção C)?
31. Acrescento que este último elemento me parece de menor importância, dado ser claro que as normas ISO referidas num ato legislativo se assemelham a uma forma de codificação de conhecimentos técnicos por e para os profissionais (19). Em contrapartida, quanto mais próxima a norma estiver de um domínio em que os cidadãos podem procurar exercer os direitos que lhe são conferidos numa sociedade democrática (por exemplo, como no caso em apreço, no domínio da saúde e da proteção dos consumidores), mais o referido elemento deve ser tido em conta e mais importará suscitar a questão de saber se o conteúdo da norma deve ser de livre acesso ao público.
B. Quanto à publicação ao abrigo do artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE (primeira parte da primeira questão)
32. Recordo que o artigo 297.o, n.o 1, TFUE exige, nos termos do seu terceiro parágrafo, que os atos legislativos sejam publicados no Jornal Oficial.
33. No presente caso, em meu entender, devem ser examinadas duas hipóteses. Ou as próprias normas ISO em causa podem ser consideradas «atos legislativos» e, se assim for, é claro que, por força dessa disposição, se impõe a publicação integral do seu conteúdo (secção 1); ou não se pode considerar que essas normas correspondem a essa definição, e haverá então que apurar se a publicação do seu conteúdo é, apesar de tudo, necessária, ao abrigo da referida disposição, porquanto são «elementos» de um ato legislativo (isto é, da Diretiva 2014/40) (secção 2).
1. As normas ISO em causa não constituem, por si só, «atos legislativos»
34. O conceito de «atos legislativos» encontra‑se definido no artigo 289.o, n.o 3, TFUE no sentido de englobar os «atos jurídicos adotados por processo legislativo». O Tribunal de Justiça declarou que, de acordo com essa disposição, um ato jurídico só pode ser qualificado como «ato legislativo» da União se for adotado com base numa disposição dos Tratados que se refira expressamente ao processo legislativo ordinário a que se refere o artigo 289.o, n.o 1, e o artigo 294 TFUE ou ao processo legislativo especial a que se refere o artigo 289.o, n.o 2, TFUE (20).
35. No presente caso, todas as partes e intervenientes no presente processo, com exceção dos recorrentes no processo principal, consideram que as normas ISO referidas no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 não podem ser consideradas, em si mesmas, «atos legislativos».
36. Compartilho, sem qualquer dificuldade, desse entendimento.
37. Com efeito, é evidente que essas normas — que, conforme a Comissão justamente recordou, foram elaboradas por um organismo privado, a ISO (21) — não foram objeto de um processo legislativo ordinário ou especial próprio, ou seja, de um processo que tinha especificamente por objeto a sua adoção pelo legislador da União, com base numa disposição dos Tratados.
38. A circunstância de as referidas normas, após terem sido adotadas pela ISO, terem sido escolhidas pelo legislador da União, no decurso do processo legislativo que levou à adoção da Diretiva 2014/40, para medir o nível das emissões dos cigarros com filtro e verificar que estão abaixo dos limites fixados no artigo 3.o, n.o 1, dessa diretiva, também não permite, do meu ponto de vista, concluir que foram «adotadas», em si, como «atos legislativos» através desse processo. Com efeito, este apenas tinha por objeto a adoção da referida diretiva.
39. Atentos estes elementos, e como das mencionadas disposições do Tratado FUE resulta claramente que os autores do Tratado adotaram uma abordagem formal (22), por força da qual os «atos legislativos» só são assim qualificados se tiverem sido adotados de acordo com o processo legislativo ordinário ou segundo um processo legislativo especial, parece‑me claro que as normas ISO em causa não podem ser qualificadas nessa categoria de atos (23).
2. As normas ISO em causa são «elementos» de um ato legislativo cuja publicação integral no Jornal Oficial não é, todavia, necessária
40. Da subsecção anterior decorre que, no contexto do presente processo, só a Diretiva 2014/40, que foi publicada no Jornal Oficial, corresponde à definição de «ato legislativo», na aceção do artigo 289.o, n.o 3, TFUE. Para utilizar a expressão usada pelo Governo neerlandês, as normas ISO referidas no artigo 4.o, n.o 1, dessa diretiva são, na melhor das hipóteses, «elementos» desse ato legislativo.
41. Deverão esses elementos, por força do disposto no artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE, ser integralmente publicados no Jornal Oficial? Em minha opinião, não.
42. A este propósito, observo que a advogada‑geral E. Sharpston, nas Conclusões que apresentou no processo Heinrich (24), em que estava em causa um anexo de um regulamento (25) que não tinha sido publicado no Jornal Oficial, referiu que a não publicação desse anexo equivalia à «publicação do esqueleto [do ato] sem a substância» e era, portanto, uma «publicação deficiente e inadequada» que não cumpria o disposto no artigo 297.o, n.o 2, TFUE (relativo à publicação de atos não legislativos adotados sob a forma de regulamentos, de diretivas e de decisões).
43. Subscrevo esta análise, que me parece poder ser transposta para o regime da publicação dos atos legislativos previsto no artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE. Segundo entendo, esta última disposição ficaria desprovida de todo o seu sentido se só a formalização da adoção de tal ato, e não a integralidade da sua «substância», tivesse de ser publicada no Jornal Oficial.
44. Como adiante explicarei, não me parece, todavia, que a referida disposição obrigue à publicação no Jornal Oficial quando, como no presente caso, os «elementos» referidos numa ou mais disposições do ato legislativo são normas ISO que correspondem a simples especificações técnicas e acessórias relativamente aos «requisitos essenciais» desse ato (primeiro critério) e não pretendem impor obrigações às empresas a cujos produtos ou atividades se aplicam as referidas normas (segundo critério).
a) As normas ISO em causa são de ordem técnica e acessória relativamente aos «requisitos essenciais» constantes do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 (primeiro critério)
45. Por «requisitos essenciais» entendo as regras que, num ato legislativo da União cujo objeto é definir as condições prévias para a entrada em circulação de produtos no mercado interno (como, no presente caso, os cigarros com filtro), se relacionam precisamente com essas condições e, assim, refletem a essência da escolha política efetuada pelo legislador para efeitos da concretização dos seus objetivos (26).
46. Face a esta definição, considero que a questão de saber se as normas ISO referidas nesse ato legislativo devem, ou não, ser publicadas no Jornal Oficial depende do nexo que possuem com esses «requisitos essenciais» e da forma como se relacionam assim com a «substância» do ato. Mais exatamente, há, em minha opinião, que distinguir a situação em que essas normas são técnicas e acessórias relativamente a esses requisitos essenciais daquela em que essas normas são necessárias para apreender o seu alcance ou conteúdo.
47. Nesta sede, verifico, em primeiro lugar, que as normas ISO referidas no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 visam detalhar, no plano técnico, o método com base no qual se medem as emissões de alcatrão, de nicotina e de monóxido de carbono dos cigarros com filtro.
48. Em segundo lugar, da articulação entre essa disposição e o artigo 3.o, n.o 1, dessa mesma diretiva decorre que, enquanto essas normas apenas dizem respeito ao método de medição utilizado para verificar se são respeitados os níveis máximos de emissões fixados nesta última disposição, esses níveis refletem a essência da escolha política efetuada pelo legislador da União com vista a concretizar os seus objetivos de proteção dos consumidores e, designadamente, de proteção da saúde (27). A isto acresce o facto, por um lado, de os cigarros com filtro a que se refere a Diretiva 2014/40 não poderem ser colocados no mercado se os referidos níveis forem ultrapassados (ou seja, esses mesmos níveis são um requisito prévio à colocação no mercado desses produtos) e, por outro, de esses níveis, expressamente quantificados no artigo 3.o, n.o 1, dessa diretiva (28), poderem ser conhecidos de qualquer cidadão da União independentemente dessas normas.
49. Desses elementos infiro que, no contexto da aplicação da Diretiva 2014/40, não são as normas ISO em causa, mas os níveis máximos de emissão constantes do artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva, que devem, em meu entender, ser considerados «requisitos essenciais». Além disso, as normas ISO referidas no artigo 4.o, n.o 1, dessa mesma diretiva são acessórias relativamente a tais requisitos.
50. Explicarei em seguida que esta conclusão é corroborada pelo facto de essas mesmas normas não imporem obrigações aos fabricantes e importadores de cigarros com filtro (segundo critério).
b) As normas ISO em causa não impõem obrigações às empresas a cujos produtos se aplicam essas normas (segundo critério)
51. No que respeita ao segundo critério, é importante recordar que a(s) «norma[s]» em sentido amplo se define(m), na União, como «especificaç[ões] técnica[s], aprovada[s] por um organismo de normalização reconhecido […] cuja observância não é obrigatória» (29). Por conseguinte, geralmente não se destinam a impor obrigações às empresas a cujos produtos se aplicam essas normas.
52. Isto posto, reconheço que, atenta a secção anterior, as normas ISO, caso fossem utilizadas pelo legislador da União para criar obrigações a essas empresas, deveriam, em princípio, ser incluídas na categoria dos «requisitos essenciais» (30) e, portanto, ser publicadas no Jornal Oficial (31). Com efeito, a sua observância seria um requisito prévio à entrada em circulação no mercado interno dos produtos em causa (32).
53. No presente caso, considero que as normas ISO elencadas no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 não pretendem impor obrigações aos fabricantes e importadores de cigarros com filtro.
54. É verdade que, ao adotar esta última disposição, o legislador da União não parece ter considerado a hipótese (33) de as emissões de cigarros com filtro poderem ser medidas com base num método diferente do definido nas normas ISO em causa, pelos laboratórios encarregados de, em conformidade com o disposto no artigo 4.o, n.o 2, dessa diretiva, controlar essas emissões.
55. Contudo, e ao mesmo tempo que reconheço esse caráter vinculativo para os laboratórios de controlo (34), considero que a única verdadeira obrigação que, no presente caso, pesa sobre os fabricantes e importadores de cigarros com filtro é a de as referidas emissões respeitarem os níveis máximos de emissão previstos no artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva. Não são esses mesmos importadores e fabricantes que são obrigados a aplicar o método de medição definido nas normas ISO elencadas no artigo 4.o, n.o 1, dessa mesma diretiva.
56. Além disso, como é sempre apenas por referência a esses níveis máximos de emissão que a conformidade desses produtos deve ser verificada, parece‑me ser possível, a esses importadores e fabricantes, assegurarem‑se, mesmo sem conhecer o conteúdo das normas ISO em causa, de que esses limites são respeitados e, portanto, introduzir no mercado produtos conformes a esses requisitos essenciais.
57. Atento o que precede, considero que essas normas não se destinam a impor obrigações aos fabricantes e importadores de cigarros com filtro, o que confirma o seu caráter técnico e acessório relativamente aos «requisitos essenciais» que, por seu lado, se encontram definidos no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40, e sobre eles impendem.
c) Conclusão intercalar
58. A análise dos dois critérios identificados no n.o 44 das presentes conclusões leva‑me a concluir que as normas ISO referidas no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 escapam à regra da publicação prescrita no artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE. Com efeito, relativamente aos níveis máximos de emissão previstos no artigo 3.o, n.o 1, dessa diretiva e que são «requisitos essenciais» desse ato, essas normas são elementos técnicos e acessórios que, em meu entender, não devem ser publicados no Jornal Oficial.
59. Acrescento que, desde que cumpram esses dois critérios, me parece que as referidas normas são utilizadas pelo legislador da União de uma forma que afinal se aproxima da prevista para as normas harmonizadas adotadas com base nas diretivas «nova abordagem» (35), relativamente às quais o legislador considerou bastar a publicação das referências a essas normas no Jornal Oficial.
60. A esse propósito, esclareço que, no Acórdão James Elliott Construction (36), que dizia respeito a uma norma harmonizada desse tipo (37), o Tribunal de Justiça referiu, após ter sublinhado que os efeitos jurídicos dessa norma dependiam da publicação prévia das suas referências no Jornal Oficial, ser competente para, a título prejudicial, interpretar o seu conteúdo. Não atribuiu qualquer importância à circunstância de o conteúdo das normas harmonizadas não ter sido integralmente publicado no Jornal Oficial.
61. Observo, a este propósito, que o Tribunal de Justiça não deixa de pôr em causa, mesmo em sede prejudicial, as premissas relativas à interpretação do direito da União que lhe parecem duvidosas (38). Ora, no presente caso não o fez, embora a inobservância dos exigências de publicação aplicáveis afetasse diretamente a possibilidade de essa norma produzir efeitos jurídicos (39).
62. Atento o conjunto destas considerações, entendo que se deve responder à primeira parte da primeira questão prejudicial que a não publicação do conteúdo integral das normas ISO referidas no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 no Jornal Oficial não viola o artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE.
C. Quanto aos princípios gerais subjacentes ao artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE (segunda parte da primeira questão)
63. Através da segunda parte da sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se as condições de acesso ao conteúdo das normas ISO em causa são conformes ao princípio da transparência que, entre outros, subjaz ao artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE.
64. A minha análise dessa problemática será organizada da seguinte forma. Numa primeira parte, especificarei o que se deve entender pelo princípio da transparência a que o órgão jurisdicional de reenvio se refere na sua questão. Explicarei que, em meu entender, esse órgão jurisdicional se refere, na realidade, ao princípio do livre acesso ao conteúdo da lei, cuja importância já recordei no n.o 25 das presentes conclusões. Numa segunda parte, indicarei que a questão que, nesta fase, importa esclarecer é a de saber se as instituições da União devem definir condições de acesso mais favoráveis do que as previstas pela ISO (que obriga ao pagamento de uma taxa a quem pretenda aceder ao conteúdo das normas que elabora), ou seja, proceder de forma que essas normas sejam direta e gratuitamente colocadas à disposição de todos. Sublinho que a resposta a esta questão depende de saber se as condições de acesso ao conteúdo dessas normas, por um lado, se justificam e, por outro, não dificultam desproporcionadamente a possibilidade de o público as conhecer.
1. Quanto à pertinência do princípio da transparência
65. O conceito de «transparência» não se encontra textualmente refletido nas disposições dos Tratados. Os autores dos Tratados optaram pelas expressões «forma […] aberta», no artigo 1.o, segundo parágrafo, TUE, que faz referência às decisões tomadas de uma forma tão aberta quanto possível e ao nível mais próximo possível dos cidadãos, e «princípio da abertura», no artigo 15.o, n.o 1, TFUE, que prevê que, «[a] fim de promover a boa governação e assegurar a participação da sociedade civil», a atuação das instituições, órgãos e organismos da União se pauta pelo maior respeito possível do referido princípio.
66. O Tribunal de Justiça interpretou o princípio da abertura no sentido de que se encontra enunciado de forma genérica nas referidas disposições e encontrou concretização, nomeadamente, no «direito de acesso» aos documentos consagrado no artigo 15.o, n.o 3, TFUE, no artigo 42.o da Carta e no Regulamento n.o 1049/2001 (40).
67. A transparência está associada ao direito de acesso aos documentos pelo considerando 2 desse regulamento (41). Segundo entendo, esse direito não está subjacente, mas acresce à obrigação de publicação já prevista no artigo 297.o TFUE, ao exigir que as instituições tornem acessíveis ao público categorias de documentos que não integram o âmbito desta última disposição (42).
68. Neste contexto, parece‑me, portanto, que a transparência remete mais para a possibilidade de os cidadãos controlarem todas as informações que constituíram o fundamento de um ato legislativo (43), do que para a possibilidade de aceder ao conteúdo do próprio ato legislativo e dos «elementos» desse ato, que está no cerne da problemática em causa no presente processo.
69. Atento o que precede, parece‑me que, através da segunda parte da sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, na realidade, interrogar o Tribunal de Justiça não sobre o princípio da transparência, mas sobre o princípio do livre acesso ao conteúdo da lei. Em minha opinião, é certo que esse princípio — efetivamente não consignado por escrito nos textos dos Tratados ou na Carta, mas que se impõe como um fundamento do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.o TUE — subjaz ao artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE. Com efeito, que expressão mais forte e mais concreta desse princípio se poderia encontrar do que a obrigação de publicar o conteúdo da lei?
70. Em meu entender, quando essa disposição não obriga à publicação no Jornal Oficial dos elementos referidos em disposições de um ato legislativo (como, no presente caso, as normas ISO referidas no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40), esse mesmo princípio impõe que as instituições da União garantam um acesso tão amplo quanto possível de todos os cidadãos a esses elementos. Assim, qualquer restrição à possibilidade de os cidadãos tomarem livremente conhecimento desses elementos deve, por um lado, ser justificada e, por outro, não dificultar desproporcionadamente essa possibilidade.
71. Conforme referi no n.o 26 das presentes conclusões, o princípio do livre acesso ao conteúdo da lei tem uma dupla razão de ser. Por um lado, é corolário do princípio da segurança jurídica que exige que as normas jurídicas sejam claras, precisas e previsíveis nos seus efeitos, para que os interessados se possam orientar nas situações e nas relações jurídicas abrangidas pela ordem jurídica da União (44). Por outro lado, ao garantir um livre acesso dos cidadãos ao conteúdo da lei, ou seja, ao conjunto dos diplomas adotados pelos poderes públicos que regulam a vida em sociedade, permite‑lhes exercer os seus direitos democráticos. Ninguém poderia contestar a lei e tentar fazê‑la evoluir se não a pudesse conhecer.
72. O presente processo abrange essa segunda dimensão do princípio do livre acesso ao conteúdo da lei. Com efeito, integra‑se precisamente num contexto em que entidades que tiveram claramente conhecimento do conteúdo das normas ISO referidas no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 se opõem ao método definido nessas normas para efeitos da obtenção da retirada de produtos que consideram não conformes, e tentam, em definitivo, pôr em causa a escolha do legislador da União de se basear nessas normas.
73. Explicarei, na subsecção seguinte, as razões que me levam a considerar que, no caso vertente, as condições de acesso ao conteúdo das normas ISO referidas no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40, ou seja, o facto de as instituições da União não preverem para o público em sentido amplo condições de acesso mais favoráveis do que as definidas pela ISO, se justificam e não dificultam desproporcionadamente a possibilidade de o referido público delas ter conhecimento.
2. As condições de acesso ao conteúdo das normas ISO em causa não são contrárias ao princípio do livre acesso ao conteúdo da lei
a) Quanto à justificação
74. No presente caso, o acesso ao conteúdo das normas ISO em causa contra pagamento justifica‑se pelo facto de estas terem sido elaboradas por uma organização privada (a ISO) cujo financiamento provém, designadamente, da venda das normas que elabora. O bom funcionamento dessa organização assenta na possibilidade de obter um retorno sobre o investimento, atento o facto, designadamente, de as referidas normas, pela sua complexidade e tecnicidade, implicarem uma importante mobilização de recursos pessoais e materiais da ISO. Além disso, como essa organização reivindica direitos de autor sobre as normas que adota, o facto de ficarem direta e gratuitamente acessíveis equivaleria a contornar a existência desses direitos.
75. É igualmente importante, para os membros da ISO (ou seja, para os organismos de normalização nacionais), poder vender essas normas, pois cabe‑lhes uma parte dos lucros realizados com essas vendas (45).
76. Dados estes elementos, é evidente que a gratuitidade das normas, que resultaria de uma eventual obrigação, para as instituições da União, de prever um acesso direto do público às mesmas, teria a consequência de diminuir (46) os investimentos desses organismos de normalização na investigação e desenvolvimento de normas.
77. Ora, a este respeito, é, em minha opinião, inegável que as normas ISO ocupam um importante lugar na paisagem normativa da União, porquanto, designadamente, inúmeras normas europeias são elaboradas com base nelas (47), e o Comité Europeu de Normalização (CEN) e a ISO celebraram um acordo (48) de cooperação técnica que atribuiu, no essencial, às normas ISO prioridade sobre as normas europeias (49). A utilização das normas internacionais e, em especial, das normas ISO, impõe‑se igualmente por força do Acordo sobre os Obstáculos Técnicos ao Comércio (OTC) (50), no qual são partes todos os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC), onde se inclui a União.
78. A isto acresce o facto de, mais genericamente, a normalização ser apreendida pelo legislador como um instrumento estratégico (51) que permite apoiar a legislação e as políticas da União (52).
79. Com efeito, embora as normas fossem tradicionalmente apresentadas como uma forma de codificação dos conhecimentos por e para profissionais (53), são essenciais para o desenvolvimento do mercado interno. São também reconhecidas como sendo de importância crescente para o comércio internacional (54). Para além dos seus consideráveis benefícios económicos (designadamente em matéria de competitividade das empresas (55) e de facilitação das trocas comerciais (56)), são omnipresentes na vida quotidiana (57), bem como em inúmeros domínios de política pública (58).
80. Atentas estas considerações, entendo que o facto de as instituições da União não preverem condições de acesso ao conteúdo das normas ISO mais favoráveis do que as definidas pela ISO (e por alguns organismos de normalização nacionais) se justifica pela necessidade de essa organização e esses organismos financiarem a elaboração das respetivas normas e atividades, por um lado, e pela importância dessas normas para a legislação da União, por outro. Resta‑me ainda examinar se o encargo que essas tarifas representam para os cidadãos consubstanciam uma interferência desproporcionada na possibilidade de esses cidadãos conhecerem esse conteúdo.
b) Quanto à inexistência de um obstáculo desproporcionado à possibilidade de o público aceder ao conteúdo das normas ISO em causa
81. A este respeito, recordo, antes de mais, que qualquer cidadão da União pode aceder ao conteúdo das normas elaboradas pela ISO. O único obstáculo a esse acesso é de ordem pecuniária, já que essa organização só disponibiliza esse conteúdo contra o pagamento dos direitos de acesso que impõe.
82. Em seguida, parecem‑me dever ser particularmente referidos os seguintes elementos.
83. Em primeiro lugar, o encargo que onera o cidadão deve ser ponderado com o interesse do legislador da União em dispor de um sistema de normalização eficiente e produtivo que não apenas proporcione uma plataforma flexível e transparente, mas seja também financeiramente viável (59).
84. Esclareço, a este respeito, que o facto de as normas serem elaboradas por entidades privadas (como a ISO) tem vantagens nas quais o legislador da União decidiu basear a sua técnica legislativa, ao fazer referência a essas normas em regulamentos e diretivas. Entre essas vantagens figuram o seu elevado grau de especialização, a sua capacidade de rápida adaptação a novos desafios técnicos e a flexibilidade dos seus procedimentos que permite, nomeadamente, a participação de intervenientes privados (60).
85. Em segundo lugar, esse ónus deve igualmente ser ponderado com o interesse dos profissionais em que o legislador da União não renuncie à utilização dessas normas devido à sua natureza remunerada. Quanto a este aspeto, a Comissão sublinhou que, na medida em que é habitual os intervenientes no mercado relevante estarem representados nos organismos de normalização (61), também é do seu interesse que a legislação da União utilize normas elaboradas por essas entidades privadas e não seja ela própria a definir essas especificações técnicas.
86. O interesse dos profissionais parece‑me, no entanto, ser de menor importância num caso como o em causa no processo principal, pois as normas em causa abrangem domínios, mais concretamente os da saúde e da proteção dos consumidores, em que, como sublinhei no n.o 31 das presentes conclusões, os cidadãos são ainda mais propensos a invocar os seus direitos. Nesse caso, as instituições da União devem, muito especialmente, em minha opinião, assegurar‑se de que os cidadãos dispõem de um acesso tão amplo quanto possível ao conteúdo dessas normas.
87. Em terceiro lugar e a esse respeito, acrescento que, embora do artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1025/2012 decorra, nomeadamente, que o legislador da União não previu que o acesso às normas (em sentido amplo) fosse oficiosamente gratuito, não deixa de ser verdade que os organismos nacionais de normalização estão sujeitos, ao abrigo dessa disposição, à obrigação de incentivar e facilitar esse acesso às pequenas e médias empresas (PME) (62). A referida disposição já reflete, assim, por si só, a procura de um equilíbrio justo entre a preocupação de tornar esse acesso tão fácil quanto possível e o reconhecimento de que a natureza remunerada das normas é uma componente fundamental do sistema de normalização da União.
88. Embora estas obrigações não tenham sido expressamente alargadas de forma a facilitar o acesso do público, no sentido amplo do termo, parece‑me que, na prática, pode ser esse o caso (63). Mais concretamente, o facto de o teor das normas ISO referidas no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40 só ser acessível na ISO contra pagamento não significa que seja impossível conhecê‑lo, a título gratuito, através de outros meios.
89. A este propósito, o Parlamento e a VSK observam, corretamente, que, no presente caso, o organismo neerlandês de normalização permite consultar gratuitamente o conteúdo das normas ISO em causa (64). Outros organismos nacionais de normalização preveem igualmente essa possibilidade (65).
90. Em quarto e último lugar, as quantias a pagar pelos cidadãos da União (66) que pretendam aceder ao conteúdo dessas normas e que o requerem junto da ISO ou de organismos nacionais de normalização não me parecem, de qualquer modo, excessivas (67).
91. À luz do conjunto das considerações que precedem, sou de opinião que o princípio do livre acesso ao conteúdo da lei não exige nem que se garanta, de forma absoluta, um acesso direto e gratuito às normas ISO referidas no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40, nem que estas sejam publicadas no Jornal Oficial. As condições de acesso a essas normas não dificultam desproporcionadamente a possibilidade de o público as conhecer e traduzem um equilíbrio justo entre, por um lado, as exigências desse princípio e, por outro, os diferentes interesses em jogo.
92. Acrescento, para terminar, que a política da consulta gratuita posta em prática pelo organismo neerlandês de normalização (da qual decorre que os recorrentes no processo principal, admitindo que o tenham requerido, puderam conhecer gratuitamente o conteúdo dessas mesmas normas) (68) me parece louvável em todos os aspetos (69), especialmente porque não elimina a possibilidade de os organismos nacionais de normalização venderem as normas ISO a qualquer pessoa que as deseje descarregar ou obter uma cópia. Em minha opinião, essa política devia ser alargada o mais possível, ou encorajada pelo legislador da União, através de uma decisão formal, destinada a completar as garantias instituídas pelo artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1025/2012.
V. Conclusão
93. Atento o conjunto das observações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à primeira questão prejudicial apresentada pelo Rechtbank Rotterdam (Tribunal de Primeira Instância de Roterdão, Países Baixos) nos seguintes termos:
As condições de acesso às normas ISO referidas no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2014/40/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros no que respeita ao fabrico, apresentação e venda de produtos do tabaco e produtos afins e que revoga a Diretiva 2001/37/CE, não violam nem o artigo 297.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TFUE, nem o princípio do livre acesso ao conteúdo da lei subjacente a essa disposição.