ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Quarta Secção)
30 de Março de 2000 (1)
«Concorrência - Vidro float - Direitos de defesa e direitos processuais da
denunciante - Mercado do produto e mercado geográfico - Artigo 86.° do
Tratado CE (actual artigo 82.° CE)»
No processo T-65/96,
Kish Glass & Co. Ltd, com sede em Dublim (Irlanda), representada por M. Byrne,
solicitor, com domicílio escolhido no Luxemburgo no escritório dos advogados
Arendt e Medernach, 8-10, rue Mathias Hardt,
contra
Comissão das Comunidades Europeias, representada inicialmente por R. Lyal,
membro do Serviço Jurídico, e R. Caudwell, funcionária nacional destacada junto
da Comissão, depois, na audiência, por B. Doherty, membro do Serviço Jurídico,
na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de
C. Gómez de la Cruz, membro do Serviço Jurídico, Centre Wagner, Kirchberg,
apoiada por
Pilkington United Kingdom Ltd, com sede em Saint Helens, Merseyside (Reino
Unido), representada por J. Kallaugher, solicitor, Andreas Weitbrecht, advogadoem Berlim, e M. Hansen, advogado em Bruxelas, com domicílio escolhido no
Luxemburgo no escritório dos advogados Loesch e Wolter, 11, rue Goethe,
que tem por objecto a anulação da decisão da Comissão de 21 de Fevereiro de
1996 (processo IV/34.193 - Kish Glass) que indeferiu uma queixa apresentada pela
recorrente, em 17 de Janeiro de 1992, com fundamento no artigo 3.°, n.° 2, do
Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, primeiro regulamento
de execução dos artigos 85.° e 86.° do Tratado (JO 1962, 13, p. 204;
EE 08 F1 p. 22), na qual denunciava uma violação do artigo 86.° do Tratado CE
(actual artigo 82.° CE),
O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA
DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Quarta Secção),
composto por: R. M. Moura Ramos, presidente, V. Tiili e P. Mengozzi, juízes,
secretário: J. Palacio González, administrador,
vistos os autos e após a audiência de 28 de Abril de 1999,
profere o presente
Acórdão
Matéria de facto na origem do litígio
- 1.
- Em 17 de Janeiro de 1992, a Kish Glass & Co Ltd. (a seguir «Kish Glass» ou
«recorrente»), sociedade de direito irlandês fornecedora de vidro, apresentou à
Comissão uma queixa nos termos do artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 do
Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, primeiro regulamento de execução dos
artigos 85.° e 86.° do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22, a seguir
«Regulamento n.° 17»), na qual denunciava o abuso de posição dominante que
teriam cometido a Pilkington United Kingdom Ltd. (a seguir «Pilkington») e a sua
filial alemã, Flabeg GmbH, no mercado irlandês do vidro float de 4 mm ao
aplicarem-lhe condições diferentes das oferecidas a outros compradores para
prestações equivalentes e ao recusarem fornecer-lhe o referido tipo de vidro para
além de determinado limite, colocando-a desse modo numa situação de
concorrência desvantajosa.
- 2.
- Em 14 de Fevereiro de 1992, a Comissão enviou um pedido de informações à
recorrente, nos termos do artigo 11.° do Regulamento n.° 17, ao qual esta
respondeu em 10 de Março de 1992.
- 3.
- Convidada pela Comissão a tomar posição sobre a queixa em causa, a Pilkington
afirmou que não ocupava uma posição dominante no mercado do vidro float e que
aplicava um sistema de descontos baseado na importância do cliente, nos prazos
de pagamento e na quantidade adquirida.
- 4.
- Em 1 de Julho de 1992, a recorrente apresentou à Comissão os seus comentários
sobre as observações da Pilkington. Reiterou que o sistema de classificação dos
clientes utilizado pela Pilkington era discriminatório e que esta, com uma quota de
mercado superior a 80%, era o primeiro fornecedor de vidro float de 4 mm na
Irlanda, mercado geográfico relevante na apreciação da posição dominante que a
mesma ocupava.
- 5.
- Em 9 de Julho de 1992, a Comissão respondeu à recorrente que um sistema de
descontos baseado na classificação dos clientes por categorias e na quantidade não
era discriminatório. A recorrente enviou as suas observações sobre estas afirmações
em 10 de Agosto de 1992.
- 6.
- Em 18 de Novembro de 1992, a Comissão enviou à recorrente uma carta nos
termos do artigo 6.° do seu Regulamento n.° 99/63/CEE, de 25 de Julho de 1963,
relativo às audições previstas nos n.os 1 e 2 do artigo 19.° do Regulamento n.° 17
do Conselho (JO 1963, 127, p. 2268; EE 08 F1 p. 62, a seguir «Regulamento
n.° 99/63»), na qual referia que não havia fundamento suficiente para dar
sequência favorável à queixa apresentada e convidava a recorrente a apresentar
eventuais observações complementares com vista à sua tomada de posição
definitiva. A Kish Glass correspondeu a essa solicitação.
- 7.
- Na sequência de uma reunião informal realizada em 27 de Abril de 1993, a
Comissão informou a recorrente, por carta de 24 de Junho de 1993, de que as suas
observações não continham qualquer elemento de facto ou de direito susceptível
de afectar as conclusões contidas na sua carta de 18 de Novembro de 1992.
Contudo, a Comissão comunicou à recorrente a sua intenção de enviar à Pilkington
um pedido de informações nos termos do artigo 11.° do Regulamento n.° 17, e
referiu-lhe que seria informada da sequência do processo.
- 8.
- Em 3 de Dezembro de 1993, a Comissão enviou à recorrente uma versão não
confidencial da resposta da Pilkington ao referido pedido de informações.
- 9.
- Por cartas de 16 de Fevereiro e 1 de Março de 1994, a Pilkington expôs à
Comissão o seu ponto de vista sobre a definição do mercado geográfico em causa
e sobre a alegada posição dominante que no mesmo ocuparia.
- 10.
- Por duas cartas de 8 de Março de 1994 enviadas à Comissão, a Kish Glass
confirmou o seu ponto de vista sobre a definição do mercado geográfico relevante,
que é o mercado irlandês, e sobre o alegado abuso de posição dominante que a
Pilkington teria cometido sobre o mercado específico do vidro float de 4 mm.
Forneceu também à Comissão informações sobre os preços praticados pela
Pilkington no mercado irlandês.
- 11.
- Em 24 e 27 de Maio de 1994, a recorrente apresentou à Comissão outros
elementos que demonstravam que as despesas de transporte da Europa continental
para a Irlanda são muito mais elevadas que as do Reino Unido para a Irlanda e
provavam a existência de um mercado geográfico local.
- 12.
- Por carta de 10 de Junho de 1994, a Pilkington manifestou à Comissão o seu
desacordo sobre as informações relativas às despesas de transporte fornecidas pela
recorrente.
- 13.
- Após ter recolhido informações junto de outros fabricantes de vidro da
Comunidade, a Comissão enviou à recorrente, em 19 de Julho de 1995, uma
segunda carta nos termos do artigo 6.° do Regulamento n.° 99/63, na qual
confirmava que o mercado do produto em causa era o da venda aos distribuidores
de vidro float de todas as espessuras, que o mercado geográfico relevante abrangia
toda a Comunidade e que a Pilkington não ocupava no mesmo uma posição
dominante.
- 14.
- Em 31 de Agosto de 1995, a recorrente apresentou as suas observações sobre esta
segunda carta nos termos do artigo 6.° do Regulamento n.° 99/63, nas quais
contestava de novo tanto a definição do mercado geográfico e do mercado do
produto adoptada pela Comissão como a sua apreciação da posição dominante
detida pela Pilkington.
- 15.
- Entre 31 de Outubro e 3 de Novembro de 1995, a Comissão informou-se junto de
oito importadores de vidro com sede na Irlanda, telefonicamente e por telecópia,
quanto aos métodos de aquisição de vidro float de 4 mm.
- 16.
- Em 14 de Novembro de 1995, a Comissão enviou pedidos de informações, nos
termos do artigo 11.° do Regulamento n.° 17, a sociedades que operam no mercado
irlandês, incluindo a recorrente e a Pilkington, a fim de obter informações sobre
a quantidade de vidro float de 4 mm vendida na Irlanda, as espessuras do vidro
vendido e os preços de transporte para a zona de Dublim.
- 17.
- Em 18 de Dezembro de 1995, a Comissão enviou à recorrente cinco respostas de
sociedades vidreiras, que foram recebidas em 22 de Dezembro de 1995. Em 7 de
Fevereiro de 1996, a Comissão enviou-lhe cinco outras respostas de sociedades
vidreiras, que foram recebidas em 12 de Fevereiro de 1996.
- 18.
- Por decisão de 21 de Fevereiro de 1996, que foi recebida pela recorrente em 1 de
Março de 1996, a Comissão indeferiu definitivamente a queixa apresentada pela
Kish Glass (processo IV/34.193 - Kish Glass) (a seguir «decisão impugnada»). Nela
a Comissão mantém a sua posição anterior, ou seja, que o mercado do produto em
causa é constituído pela venda de vidro float de quaisquer espessuras aos
distribuidores, que o mercado geográfico em causa abrange a Comunidade
considerada no seu todo, ou pelo menos a parte norte da Comunidade, e que a
Pilkington não ocupa no mesmo uma posição dominante.
Tramitação processual
- 19.
- Por petição entrada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 11 de
Maio de 1996, a Kish Glass interpôs o presente recurso.
- 20.
- Por requerimento entrado na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 30
de Setembro de 1996, a Pilkington pediu para intervir em apoio dos pedidos da
recorrida. Por despacho de 30 de Junho de 1997, o presidente da Terceira Secção
do Tribunal de Primeira Instância admitiu esta intervenção.
- 21.
- Com base no relatório do juiz-relator, o Tribunal (Quarta Secção) decidiu dar
início à fase oral do processo sem instrução. Convidou, contudo, a Comissão a
responder a determinadas questões escritas, às quais a Comissão respondeu em 22
de Março de 1999.
- 22.
- Foram ouvidas alegações das partes e as suas respostas às questões do Tribunal de
Primeira Instância na audiência de 28 de Abril de 1999.
Pedidos das partes
- 23.
- A recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:
- anular a decisão da Comissão, de 21 de Fevereiro de 1996, no processo
IV/34.193 - Kish Glass;
- condenar a Comissão nas despesas.
- 24.
- A recorrida, apoiada pela interveniente, conclui pedindo que o Tribunal se digne:
- negar provimento ao recurso;
- condenar a recorrente nas despesas.
Questão de direito
- 25.
- Em apoio do seu recurso, a recorrente invoca cinco fundamentos. No primeiro
fundamento, que se divide em duas partes, queixa-se de que a Comissão, por um
lado, violou os seus direitos de defesa e, por outro, violou o princípio da segurança
jurídica e cometeu um desvio de poder. No segundo fundamento, queixa-se de que
a recorrida ignorou as regras processuais. O terceiro fundamento assenta na
violação de formalidades essenciais e do princípio da segurança jurídica. Nos quarto
e quinto fundamentos, a recorrente queixa-se de que a Comissão cometeu um erro
manifesto de apreciação na determinação, por um lado, do mercado do produto
relevante e, por outro, do mercado geográfico.
Quanto ao primeiro fundamento, assente em violação dos direitos de defesa da
recorrente e do princípio da segurança jurídica, bem como em desvio de poder
Argumentos das partes
- 26.
- Em primeiro lugar, a recorrente afirma que a Comissão não lhe concedeu um
prazo suficiente para lhe permitir apresentar o seu ponto de vista, violando dessemodo os seus direitos de defesa. Em segundo lugar, afirma que a Comissão, ao
recolher informações segundo métodos não previstos no Regulamento n.° 17,
cometeu um desvio de poder e violou o princípio da segurança jurídica.
- Quanto à violação dos direitos de defesa da recorrente
- 27.
- A recorrente salienta, por um lado, que a Comissão, por carta de 14 de Novembro
de 1995, solicitou às sociedades irlandesas que lhe fornecessem informações sobre
a quantidade, dimensões e espessuras do vidro float vendido no mercado irlandês
e nos mercados da Europa continental. A recorrente recebeu cópia das respostas
das sociedades irlandesas em 22 de Dezembro de 1995 e 12 de Fevereiro de 1996,
nas quais se baseia a decisão impugnada, adoptada em 21 de Fevereiro de 1996.
O conteúdo das respostas poderia apoiar a sua tese, mas a Comissão deu à
recorrente um prazo demasiado curto (nove dias) para comentar o conjunto das
respostas das sociedades irlandesas, impedindo-a assim de exercer os seus direitos
de defesa.
- 28.
- A recorrente lembra, por outro lado, que, na sua jurisprudência, o Tribunal de
Justiça estabeleceu que a protecção dos direitos da defesa constitui um princípio
fundamental do direito comunitário que deve ser garantido, mesmo não existindo
qualquer regulamentação específica, em qualquer processo susceptível de conduzir
a uma medida desfavorável a uma pessoa. No âmbito da aplicação dos direitos da
defesa, a Comissão estabeleceu, aliás, regras que regulam o acesso ao processo
tanto para o requerido como para o requerente. Além disso, a jurisprudência do
Tribunal de Primeira Instância, tanto em matéria de concorrência como em matéria
de dumping, esclareceu que resulta implicitamente do direito de acesso ao processo
o direito de comentar as peças que o compõem.
- 29.
- A Comissão afirma que os documentos anexos à petição inicial demonstram que,
durante a instrução da sua queixa, a recorrente teve várias vezes ocasião de
apresentar à Comissão o seu ponto de vista; em especial, desde a apresentação da
queixa até à carta que lhe foi enviada em 19 de Julho de 1995, a recorrente usou
por nove vezes da faculdade de apresentar as suas observações. A este respeito,
a Comissão precisa que, em 18 de Dezembro de 1995, foram enviadas à recorrente
cópias não confidenciais das respostas da Pilkington e de quatro importadores
irlandeses de vidro, ou seja, dois meses antes da adopção da decisão impugnada;
duas destas quatro empresas figuravam entre os três principais importadores e as
duas restantes entre os importadores de vidro mais pequenos. Acresce que foram
enviadas à recorrente, em 7 de Fevereiro de 1996, cópias não confidenciais de
cinco outras respostas: estas respostas corroboravam as informações que a
Comissão obteve através dos seus inquéritos telefónicos, realizados entre 31 de
Outubro e 3 de Novembro de 1995, informações que foram comunicadas à
recorrente. Esta beneficiou de duas semanas adicionais para apresentar as suas
observações quanto às respostas referidas em último lugar. A recorrente estava
plenamente informada do seu direito de dar a conhecer o seu ponto de vista sobre
os documentos juntos ao processo, aos quais tinha acesso; não era, assim,
necessário que lhe fosse dirigido um convite formal nesse sentido.
- Quanto ao desvio de poder e à violação do princípio da segurança jurídica
- 30.
- A recorrente salienta que, durante a fase escrita do processo, a Comissão
esclareceu que os pedidos de informações enviados em 14 de Novembro de 1995
às empresas irlandesas tinham como único objectivo obter provas documentais das
respostas que as mesmas tinham já dado por telecópia e por telefone. Afirma que
o método escolhido pela Comissão para obter as informações de que necessitava,
ou seja, por telefone e seguidamente por escrito, não está previsto no artigo 11.°,
n.os 2 a 6, do Regulamento n.° 17 e, consequentemente, é incompatível com estas
últimas disposições. A Comissão cometeu, por isso, um desvio de poder e violou
o princípio da segurança jurídica.
- 31.
- A Comissão considera que o artigo 11.° do Regulamento n.° 17 não exclui a
possibilidade de obter informações verbalmente, acompanhadas posteriormente por
pedidos de informação oficiais.
Apreciação do Tribunal
- Quanto à violação dos direitos de defesa da recorrente
- 32.
- Segundo jurisprudência bem assente, o respeito dos direitos da defesa em qualquer
processo dirigido contra uma pessoa e susceptível de levar à adopção de um acto
que lese os interesses desta constitui um princípio fundamental do direito
comunitário e deve ser garantido mesmo na falta de regulamentação especifica.
Este princípio exige que a empresa interessada tenha sido posta em condições,desde a fase do procedimento administrativo, de dar a conhecer utilmente o seu
ponto de vista sobre a realidade e a pertinência dos factos, acusações e
circunstâncias alegadas pela Comissão (v., designadamente, acórdãos do Tribunal
de Justiça de 14 de Fevereiro de 1990, França/Comissão, C-301/87, Colect.,
p. I-307, n.° 29, de 12 de Fevereiro de 1992, Países Baixos e o./Comissão, C-48/90
e C-66/90, Colect., p. I-565, n.° 37, de 29 de Junho de 1994, Fiskano/Comissão,
C-135/92, Colect., p. I-2885, n.os 39 e 40, e de 14 de Maio de 1998, Windpark
Groothusen/Comissão, C-48/96 P, Colect., p. I-2873, n.° 47).
- 33.
- Contudo, deve realçar-se que este princípio diz respeito aos direitos de defesa de
pessoas contra as quais a Comissão dirige o seu inquérito. Ora, como a Comissão
já observou, um inquérito deste tipo não constitui um processo contraditório entre
as empresas interessadas, mas um processo instaurado pela Comissão,
oficiosamente ou na sequência de uma queixa, no exercício da sua missão de zelar
pelo respeito das regras de concorrência. Daqui resulta que as empresas contra as
quais foi instaurado o processo e as que apresentaram um pedido nos termos do
artigo 3.° do Regulamento n.° 17, justificando o interesse legítimo na cessação de
uma alegada violação, não se encontram na mesma situação processual e que as
últimas não podem invocar os direitos da defesa na acepção da jurisprudência
invocada (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de Novembro de
1987, BAT e Reynolds/Comissão, 142/84 e 156/84, Colect., p. 4487, n.° 19, e
acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 15 de Julho de 1994, Matra
Hachette/Comissão, T-17/93, Colect., p. II-595, n.° 34).
- 34.
- No que respeita ao direito de acesso ao processo, dado que o mesmo se enquadra
também nas garantias processuais destinadas a proteger os direitos da defesa, o
Tribunal de Primeira Instância decidiu, de modo análogo, que o princípio da
natureza plenamente contraditória do procedimento administrativo perante a
Comissão no domínio das regras de concorrência aplicáveis às empresas só se
impõe relativamente às empresas susceptíveis de ser sancionadas por uma decisão
da Comissão que declare uma infracção aos artigos 85.° e 86.° do Tratado CE
(actuais artigos 81.° e 82.° CE), no sentido em que os direitos dos terceiros, tais
como consagrados no artigo 19.° do Regulamento n.° 17, estão limitados ao direito
de ser associados ao processo administrativo. Em especial, os terceiros não podem
pretender dispor de um direito de acesso ao procedimento em poder da Comissão
em condições idênticas àquelas que podem pretender as empresas acusadas
(acórdão Matra Hachette/Comissão, já referido, n.° 34).
- 35.
- No que respeita aos direitos da recorrente enquanto queixosa, o Tribunal de
Primeira Instância recorda que, no presente caso, o processo de instrução da
queixa se prolongou por mais de quatro anos e a recorrente teve ocasião de
manifestar o seu ponto de vista por várias vezes. Quanto, em especial, às cinco
últimas respostas das sociedades irlandesas que foram comunicadas à recorrente,
as mesmas não alteravam os pontos essenciais que são objecto do processo e,
consequentemente, o facto de a Comissão só ter dado nove dias à recorrente, antesda adopção da decisão impugnada, para comentar as suas respostas não a impediu
de dar a conhecer validamente o seu ponto de vista.
- 36.
- Nestas circunstâncias, não se pode afirmar que os direitos de defesa da recorrente
foram violados.
- Quanto ao desvio de poder e à violação do princípio da segurança jurídica
- 37.
- No que respeita ao argumento segundo o qual a Comissão cometeu um desvio de
poder ao solicitar às sociedades vidreiras irlandesas informações por telefone ou
telecópia, embora o artigo 11.° do Regulamento n.° 17 estabeleça que esses pedidos
devem ser feitos por escrito, deve recordar-se previamente que, segundo
jurisprudência constante, constitui um desvio de poder a adopção, por uma
instituição comunitária, de um acto com a finalidade exclusiva ou, pelo menos,
determinante de atingir fins diversos dos invocados (v. acórdão do Tribunal de
Justiça de 12 de Novembro de 1996, Reino Unido/Conselho, C-84/94, Colect.,
p. I-5755, n.° 69, e acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 15 de Janeiro de
1997, SFEI e o./Comissão, T-77/95, Colect., p. II-1, n.° 116).
- 38.
- No presente processo, há que observar, por um lado, que o artigo 11.° do
Regulamento n.° 17 não impede a Comissão de obter informações por meio de
pedidos verbais, acompanhando-os de pedidos formulados em devida forma e, por
outro, que a recorrente não apresentou prova de que a recolha verbal dessas
informações tivesse outro fim que não o previsto no referido artigo.
- 39.
- Daqui resulta que o primeiro fundamento deve ser julgado improcedente na
totalidade.
Quanto ao segundo fundamento, assente em violação das regras processuais
Argumentos das partes
- 40.
- A recorrente afirma que a Comissão ignorou as garantias processuais previstas pelo
direito comunitário ao dirigir à Pilkington um pedido de informações não redigido
de forma objectiva.
- 41.
- Em apoio da sua tese, a recorrente realça que a Comissão enviou à Pilkington um
pedido de informações, em 14 de Novembro de 1995, no próprio dia em que
enviou pedidos de informações às sociedades irlandesas. Nos termos do pedido de
informações da Comissão: «Na sua resposta, a Kish reitera que o vidro float claro
de 4 mm constitui um mercado distinto na Irlanda... a Kish reitera ainda que
apenas a Pilkington pode fornecer as dimensões requeridas pelo mercado irlandês.
A Comissão analisou este ponto, que se afigura pouco fundamentado. Apesar disso,
para que do processo constem todos os elementos necessários ao indeferimento da
queixa, mostrou-se necessário apresentar um novo pedido de informações.» Emconsequência, a Comissão informou a Pilkington de que o pedido tinha pouco
fundamento, embora o problema em questão não tivesse ainda sido analisado, dado
que não tinha ainda recebido as respostas às questões colocadas na carta de 14 de
Novembro de 1995. Daqui resulta que a Comissão não podia fazer qualquer ideia
do que poderia resultar dos pedidos de informações, mas, apesar disso, declarou
à requerida que tinha intenção de indeferir a queixa, solicitando-lhe que lhe
fornecesse as provas que lhe permitiriam assim proceder.
- 42.
- A Comissão observa que o artigo 11.°, n.° 3, do Regulamento n.° 17 a obriga a
indicar o objectivo para o qual são solicitadas as informações. Já sabia, no
momento em que foram escritas as referidas cartas, que as afirmações da Kish
Glass não tinham provavelmente fundamento, uma vez que, telefonicamente e por
telecópia, já tinha obtido as respostas das empresas às quais se ia dirigir por
escrito. A Comissão tinha, por isso, analisado seriamente e com a diligência exigida
os argumentos da Kish Glass, mas tinha constatado que os mesmos eram
incorrectos.
- 43.
- Segundo a interveniente, para que não seja violado o dever de imparcialidade, é
essencial que a Comissão, no âmbito das suas averiguações, não faça juízos prévios
sobre a sequência a dar a uma queixa; isto não significa que os funcionários da
Comissão não possam formar uma primeira ideia quanto aos problemas levantados
por uma queixa. O dever de imparcialidade exige que, pelo menos até que a
queixosa tenha exercido o seu direito de apresentar observações nos termos do
artigo 6.° do Regulamento n.° 99/63, a Comissão continue aberta a toda e qualquer
discussão que a possa fazer mudar de opinião. Contudo, quando os funcionáriosda Comissão tenham formado uma ideia preliminar, não existe qualquer obstáculo
jurídico a que estes a comuniquem à empresa visada no inquérito. No caso em
apreço, a Comissão já tinha comunicado o seu ponto de vista à Kish Glass, por
carta nos termos do artigo 6.° do Regulamento n.° 99/63, segundo a qual não havia
que dar sequência à sua queixa. Além disso, a mesma já tinha tido ocasião de
apresentar as suas observações sobre a posição da Comissão. Quando enviou o
pedido de informação em questão, a Comissão já tinha uma primeira ideia, e a
comunicação desta à Pilkington não constitui uma violação do princípio de
objectividade e imparcialidade.
Apreciação do Tribunal de Primeira Instância
- 44.
- Em primeiro lugar, deve recordar-se que, nos termos do artigo 11.°, n.° 3, do
Regulamento n.° 17, quando a Comissão envia um pedido de informações a uma
empresa ou a uma associação de empresas, é obrigada a indicar as bases jurídicas
e o objectivo do pedido, bem como as sanções previstas no caso de ser fornecida
uma informação incorrecta. Consequentemente, a Comissão tinha obrigação de
informar a Pilkington, na carta de 14 de Novembro de 1995, das razões que a
levavam a solicitar-lhe informações complementares.
- 45.
- Em segundo lugar, deve salientar-se que, segundo jurisprudência bem assente,
quando a Comissão decide proceder à instrução de uma denúncia que lhe seja
apresentada, deve, salvo fundamentação devidamente pormenorizada, fazê-lo com
o cuidado, a seriedade e a diligência necessários para poder apreciar com pleno
conhecimento de causa os elementos de facto e de direito submetidos à sua
apreciação pelos denunciantes (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 29
de Junho de 1993, Asia Motor France e o./Comissão, T-7/92, Colect., p. II-669,
n.° 36).
- 46.
- No caso em apreço, resulta do processo que o inquérito da Comissão decorreu por
um período que excedeu quatro anos, durante o qual a Comissão recolheu as
observações de um número significativo de empresas do sector, as analisou e deu
à queixosa, por várias vezes, a oportunidade de apresentar todos os elementos que
podiam ser tidos em consideração. Ao assim proceder, a Comissão desempenhou
todas as suas actividades com o cuidado, a seriedade e a diligência exigidos. Ao
limitar-se a observar que a Comissão, na sua carta de 14 de Novembro de 1995,
considerou que a sua queixa tinha «pouco fundamento» e solicitou informações
suplementares à Pilkington para a «indeferir», a recorrente não demonstrou o
contrário.
- 47.
- Consequentemente, o segundo fundamento deve ser julgado improcedente.
Quanto ao terceiro fundamento, assente em violação de formalidades essenciais e do
princípio da segurança jurídica
Argumentos das partes
- 48.
- A recorrente afirma que a decisão da Comissão está viciada do ponto de vista
formal e viola o princípio da segurança jurídica.
- 49.
- A este respeito, afirma que as decisões de indeferimento de queixas assumem
habitualmente a forma de uma carta fundamentada, assinada pelo membro da
Comissão encarregado da concorrência. No caso presente, este assinou
simplesmente uma carta confirmativa que, depois de fazer um resumo do processo,
indeferiu a queixa remetendo, quanto à fundamentação, para um documento
separado. O referido documento não contém qualquer elemento (tal como uma
assinatura ou mesmo iniciais) que prove que o membro da Comissão competente
o tenha visado. Tendo em conta este procedimento não habitual, a recorrente não
dispõe, então, de qualquer meio para determinar se o membro da Comissão
competente viu ou aprovou a argumentação que serviu de fundamento ao
indeferimento da sua queixa. Trata-se, assim, no presente caso, de um problema
de forma e não de um problema de fundamentação.
- 50.
- A Comissão observa, por um lado, que a decisão impugnada não reveste uma
forma não habitual e, por outro, que a mesma remete expressamente para o anexo
que contém os fundamentos pelos quais decidiu indeferir a queixa.
Apreciação do Tribunal de Primeira Instância
- 51.
- Deve recordar-se que a jurisprudência considera que a referência feita num acto
a um acto distinto deve ser analisada à luz do artigo 190.° do Tratado CE (actual
artigo 253.° CE) e não viola o dever de fundamentação que incumbe às instituições
comunitárias. No seu acórdão de 12 de Junho de 1997, Tiercé Ladbroke/Comissão
(T-504/93, Colect., p. II-923, n.° 55), o Tribunal de Primeira Instância decidiu,
assim, que uma decisão da Comissão comunicada ao autor da queixa que deu
origem a um inquérito e que se refere a uma carta que lhe foi enviada nos termos
do artigo 6.° do Regulamento n.° 99/63 evidencia de modo suficientemente claro
as razões pelas quais a referida queixa foi indeferida e preenche assim a obrigação
de fundamentação imposta no artigo 190.° do Tratado. Independentemente da
circunstância de a utilização desta referência ser qualificada como um problema de
fundamentação ou de forma, esta análise é válida, a fortiori, quando é feita
referência a um documento anexo a uma decisão e, consequentemente, contido na
mesma. Além disso, a recorrente de modo algum fundamentou as suspeitas de que
o membro da Comissão responsável não tenha tido conhecimento da
fundamentação do acto impugnado.
- 52.
- A referência acima mencionada é suficiente para satisfazer os requisitos de
segurança jurídica exigidos pelo direito comunitário.
- 53.
- Daqui resulta que o terceiro fundamento deve igualmente ser julgado
improcedente.
Quanto ao quarto fundamento, assente em erro manifesto de apreciação na definição
do mercado do produto em causa.
Argumentos das partes
- 54.
- A recorrente afirma que a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação ao
definir, no n.° 19 da decisão impugnada, o mercado do produto em causa não como
o do vidro float de 4 mm, mas como o do vidro float em bruto ou tosco de
quaisquer espessuras, vendido aos distribuidores, tomando em consideração a
identidade dos operadores do referido mercado, tanto do lado da oferta como do
lado da procura, para todas as espessuras de vidro. Quando produtos de dimensões
e tipos diferentes não são substituíveis entre si do ponto de vista do utilizador, não
basta averiguar se os operadores de mercado são os mesmo mas, como fez o
Tribunal de Justiça no acórdão de 9 de Novembro de 1983, Michelin/Comissão
(322/81, Recueil, p. 3461), convém igualmente tomar em consideração as condições
de concorrência e a estrutura da oferta e da procura no mercado.
- 55.
- No que respeita às condições da concorrência, a recorrente salienta que, uma vez
que uma percentagem significativa do mercado está reservada, de facto, apenas a
um fabricante, os produtores que não vendem placas de vidro com as dimensões
britânicas (2 440 mm x 1 220 mm) não são provavelmente competitivos no resto
do mercado e podem, assim, decidir não o explorar e nem procurar apoiar aí a
concorrência. Isto tem uma repercussão importante sobre as condições da
concorrência no resto do mercado e é confirmado pela circunstância de grande
parte do mercado (84%) do vidro float de 4 mm ser detida pela Pilkington. A este
respeito, a recorrente salienta que, tanto quanto sabe, a Pilkington é o único
fabricante de vidro float de 4 mm que utiliza chapas de determinadas dimensões,
sobre as quais o vidro é arrefecido («lehr-beds»), que lhe permitem adaptar o
vidro às dimensões britânicas sem desperdícios. A recorrente julga saber que os
outros produtores, que produzem vidro continental, utilizam «lehr-beds» que só
lhes permitem fabricar placas de formato continental (3 210 mm x 2 250 mm). Por
último, é provável que, no mercado irlandês, apenas dois distribuidores possuam
o equipamento necessário para reduzir as dimensões continentais às dimensões
britânicas e que, além disso, um dos dois se abasteça junto da Pilkington em 30%
do que necessita no que respeita a dimensões britânicas.
- 56.
- Por outro lado, no que diz respeito à estrutura da oferta, a recorrente afirma que,
como foi confirmado pelas respostas das sociedades irlandesas, mais de 27% do
vidro float de 4 mm vendido na Irlanda é de formato britânico. A Pilkington ocupa
uma posição de quase monopólio no que respeita ao formato em questão (95% das
vendas) e, além disso, detém 84% do mercado irlandês de vidro float de 4 mm. A
oferta no mercado do vidro float é consequentemente afectada: devido a esta
estrutura do mercado, os clientes que adquirem placas de formato britânico são
obrigados a negociar, para o conjunto dos formatos, com este fabricante, que está
em condição de satisfazer às suas outras necessidades em vidro float de 4 mm.
- 57.
- Além disso, a recorrente afirma que o vidro float de 4 mm deve ser considerado
como o mercado do produto em causa, uma vez que o referido produto não pode
ser substituído por vidro float de outras espessuras: a elasticidade cruzada da
procura de vidro float de 4 mm e da de vidro de outras espessuras é igual a zero;
os aumentos de preço do vidro float de 4 mm não têm provavelmente qualquer
efeito sobre a procura de outros produtos de vidro float. A este respeito, apesar
da flutuação importante do preço do vidro float de 4 mm na Irlanda, a procura de
outros produtos de vidro float manteve-se constante. Resulta tanto da
jurisprudência do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Primeira Instância como das
decisões da Comissão [Decisão 88/138/CEE da Comissão, de 22 de Dezembro de
1987, relativa a um processo de aplicação do artigo 86.° do Tratado CEE
(IV/30.787 e 31.488 - Eurofix - Bauco/Hilti) (JO 1988, L 065, p. 19); Decisão
92/163/CEE da Comissão, de 24 de Julho de 1991, relativa a um processo de
aplicação do artigo 86.° do Tratado CEE (IV/31.043 - Tetra Pak II) (JO 1992,
L 72, p. 1); acórdão do Tribunal de Justiça de 2 de Março de 1994, Hilti/Comissão,
C-53/92 P, Colect., p. I-667; acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 12 deDezembro de 1991, Hilti/Comissão, T-30/89, Colect., p. II-1439, e de 6 de Outubro
de 1994, Tetra Pak/Comissão, T-83/91, Colect., p. II-755] que existe um mercado
do produto em causa quando a elasticidade cruzada da procura entre produtos que
podem ser considerados como substituíveis entre si é escassa: daí resulta que um
mercado de produto é, por maioria de razão, distinto de outro quando a
elasticidade cruzada é igual a zero.
- 58.
- Por último, acrescenta que se pode deduzir do facto de uma das quatro instalações
de fabrico da Pilkington ser especializada na produção de vidro float de 4 mm que
não é possível converter rapidamente a produção para outras espessuras.
- 59.
- A Comissão afirma que, no acórdão Michelin/Comissão, já referido, o Tribunal de
Justiça declarou que produtos de tipos e dimensões diferentes, que não são
substituíveis entre si do ponto de vista do utilizador, podem, apesar disso, ser
considerados como fazendo parte de um único mercado quando sejam
tecnicamente semelhantes ou complementares e sejam fornecidos por intermédio
de revendedores que tenham de dar resposta a uma procura relativa a toda a gama
dos produtos. Isto aplica-se ao mercado do vidro float em bruto, no qual os
operadores do lado da oferta e do lado da procura, no primeiro estádio da
distribuição, são os mesmos para todas as espessuras de vidro. Afirma que a
recorrente não apresentou prova da sua afirmação e segundo as quais as condições
da concorrência são afectadas quando, por um lado, uma percentagem significativa
do mercado é efectivamente detida por um produtor e, por outro, os produtores
que não vendem placas de vidro float de 4 mm de formato britânico têm poucas
hipóteses de concorrer no resto do mercado e podem decidir não entrar em
concorrência nesta última parte do mercado.
- 60.
- No que respeita às afirmações da recorrente sobre a estrutura da oferta segundo
as quais a posição de quase monopólio sobre a parte de mercado do vidro float
vendido nas dimensões britânicas confere à Pilkington uma vantagem insuperável
sobre o conjunto do mercado, a Comissão responde que o vidro de determinada
espessura vendido em certas dimensões pode ser substituído por vidro da mesma
espessura vendido noutras dimensões, dado que todos os grossistas podem cortar
os formatos maiores para obter o formato pretendido pelos transformadores eutilizadores finais. O vidro float de dimensões britânicas é utilizado exactamente
para os mesmos fins económicos que o vidro float de medidas continentais.
- 61.
- Por último, salienta que a recorrente não apresentou qualquer prova em apoio da
sua afirmação de que o comportamento do mercado do vidro float de 4 mm na
Irlanda, pela sua alegada especificidade, seja independente do dos mercados de
vidro de outras espessuras. Na realidade, a produção de vidro é tecnicamente
quase idêntica para todas as espessuras, e a linha de produção pode ser
rapidamente adaptada, sem custos excessivos, a fim de passar de uma espessura a
outra.
Apreciação do Tribunal de Primeira Instância
- 62.
- Deve recordar-se que, segundo jurisprudência bem assente, para efeitos da análise
da posição, eventualmente dominante, de uma empresa em determinado mercado,
as possibilidades de concorrência devem ser apreciadas no âmbito do mercado que
agrupa o conjunto dos produtos que, em função das suas características, são
particularmente aptos à satisfação das necessidades constantes e são pouco
susceptíveis de substituição por outros produtos (v., designadamente, acórdãos do
Tribunal de Justiça de 11 de Dezembro de 1980, L'Oreal, 31/80, Recueil, p. 3775,
n.° 25, e Michelin/Comissão, já referido, n.° 37). Por outro lado, segundo a mesma
jurisprudência (acórdão Michelin/Comissão, já referido, n.° 44), a inexistência de
substituição entre diferentes tipos e dimensões de um produto do ponto de vista
das necessidades específicas do utilizador não permite considerar que, para cada
um dos referidos tipos e medidas, existe um mercado distinto para efeitos de
apreciação da existência de uma posição dominante. Além disso, dado que a
determinação do mercado em causa serve para avaliar se a empresa em questão
tem a possibilidade de obstar à manutenção de uma concorrência efectiva e de, em
medida apreciável, se comportar independentemente dos seus concorrentes, dos
clientes e dos consumidores, não se pode, para este efeito, limitar a análise apenas
às características objectivas dos produtos em questão, mas é também necessário ter
em consideração as condições de concorrência e a estrutura da procura e da oferta
no mercado (acórdão Michelin/Comissão, já referido, n.° 37).
- 63.
- No presente processo, o Tribunal de Primeira Instância deve analisar se as
condições de concorrência e a estrutura da oferta no mercado do vidro float
impediam que a Comissão, baseando-se no acórdão Michelin/Comissão, já referido,
pudesse afirmar que, mesmo não sendo o vidro de diferentes espessuras susceptível
de substituição para os utilizadores finais, o mercado do produto em causa deve ser
considerado como o do vidro float em bruto de qualquer espessura, uma vez que
os distribuidores devem dar resposta a uma procura que abrange a totalidade da
gama de produtos.
- 64.
- A título preliminar, o Tribunal de Primeira Instância recorda que resulta de
jurisprudência constante que, embora o órgão jurisdicional comunitário exerça, de
modo geral, um controlo integral no que respeita à questão de saber se estão ou
não reunidas as condições de aplicação das regras de concorrência, o controlo que
exerce sobre as apreciações económicas complexas feitas pela Comissão deve,
contudo, limitar-se à verificação do respeito das regras processuais e de
fundamentação, bem como da exactidão material dos factos, da inexistência de erro
manifesto de apreciação e de desvio de poder.
- 65.
- A recorrente afirma que o facto de os produtores continentais não produzirem
vidro com as medidas britânicas os impede de concorrer eficazmente com a
Pilkington. A este respeito, deve observar-se que a Comissão, no n.° 15 da decisão
impugnada, analisou esta questão e chegou a uma conclusão oposta à da
recorrente. Com base nas informações fornecidas por nove importadores irlandeses,
a Comissão salientou que os grossistas não tinham uma preferência nítida peloformato britânico, e isto na medida em que são capazes de cortar - sem demasiado
desperdício - o vidro de formato continental para obter o formato britânico. No
processo no Tribunal de Primeira Instância, a recorrente limitou-se, a este respeito,
a afirmar que, tanto quanto era do seu conhecimento, a Pilkington era o único
fabricante de vidro float de 4 mm capaz de adaptar o vidro às dimensões britânicas
sem desperdício, que julgava saber que os restantes produtores utilizavam
«lehr-beds» que lhes permitiam fabricar somente placas de formatos diferentes e
que era provável que os grossistas não pudessem cortar as placas continentais sem
desperdício. Ora, não só a recorrente não oferece qualquer prova em apoio da sua
tese, mas também não apresenta qualquer elemento susceptível de infirmar a
apreciação feita pela Comissão sobre essa matéria, baseada nas informações
recolhidas directamente junto dos operadores no mercado.
- 66.
- A recorrente afirma também, no essencial, que, tendo em consideração a posição
de quase monopólio da Pilkington no sector do vidro de formato britânico de
4 mm, a mesma mantém relações comerciais privilegiadas com os importadores de
vidro. Por outro lado, afirma que o vidro de 4 mm não pode ser substituído por
vidro float de outras espessuras.
- 67.
- A este respeito, deve salientar-se que a recorrente não demonstrou que a eventual
preferência dos importadores pelos produtos da Pilkington não era a manifestação
do seu interesse económico ou do exercício, por aqueles, da sua liberdade
contratual. Consequentemente, essa preferência não pode ser interpretada como
indício de uma alteração da estrutura da oferta no mercado. É ainda de notar que
resulta dos dados constantes das respostas das sociedades irlandesas, não
contestados pela recorrente, que as vendas na Irlanda de vidro float de 4 mm de
formato britânico representam cerca de 27% do mercado. Ora, mesmo admitindo
que a Pilkington detém uma posição de quase-monopólio no sector do vidro de
4 mm de formato britânico, esta percentagem não é manifestamente suficiente, por
si só, para afirmar, como faz a recorrente, que a maior parte das compras de vidro
float de 4 mm na Irlanda é condicionada pela Pilkington. Efectivamente, cerca de
73% da procura deste produto é constituída por compras de vidro de formato
continental, que não podem ser influenciadas pela Pilkington.
- 68.
- Por último, no n.° 18 da decisão impugnada, a Comissão refere que a produção de
vidro de 4 mm é, do ponto de vista técnico, virtualmente idêntica à produção de
vidro de outras espessuras e que os fabricantes de vidro podem converter
rapidamente a sua produção sem custos excessivos. A este respeito, deve
observar-se que a circunstância de uma das quatro instalações de produção da
Pilkington ser especializada no fabrico de determinado tipo de vidro não significa
que os processos técnicos de fabrico do vidro sejam diferentes e não demonstra
que um operador económico que disponha apenas de uma única instalação de
produção não possa converter rapidamente a sua produção, pelo que também não
pode ser aceite o argumento da recorrente assente na falta de elasticidade da
oferta de vidro de 4 mm e de vidro de outras espessuras.
- 69.
- O Tribunal considera, por isso, que a recorrente não demonstrou que a posição da
Comissão expressa no n.° 19 da decisão impugnada, segundo a qual o mercado do
produto em causa é o do vidro de todas as espessuras, está viciada por erro
manifesto de apreciação. Daqui resulta que este argumento não pode ser aceite
pelo Tribunal.
- 70.
- O quarto fundamento deve, consequentemente, ser julgado improcedente.
Quanto ao quinto fundamento, assente em erro manifesto de apreciação do mercado
geográfico
Argumentos da recorrente
- 71.
- A recorrente salienta que, embora a Comissão admita que determinadas
características do mercado do vidro float na Irlanda o diferencia do mercado da
Europa continental (isto é, a ausência de instalações de produção e o facto de todo
o vidro float ser transportado por mar), no n.° 23 da decisão impugnada, a
Comissão considerou que a análise dos custos de transporte e do nível dos preços
do vidro nas diferentes partes da Comunidade levava à conclusão de que o
mercado geográfico em causa era a Comunidade, ou a parte norte da Comunidade.
A Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação na medida em que deveria
ter considerado que o mercado geográfico em causa era a Irlanda, ou a Irlanda e
o Reino Unido.
- 72.
- No essencial, a recorrente formula três críticas entra a definição do mercado
geográfico adoptada na decisão impugnada.
- Quanto à primeira crítica
- 73.
- O critério que a Comissão aplicou para definir o mercado geográfico em causa não
está em conformidade com o definido pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de
14 de Fevereiro de 1978, United Brands/Comissão (27/76, Recueil, p. 207; Colect.,
p. 77). Com efeito, em vez de determinar o mercado do vidro tomando apenas em
consideração os custos de transporte para a Irlanda, a Comissão deveria ter
determinado a zona em que outras condições objectivas de concorrência do
produto em causa são semelhantes para todos os operadores económicos: a
aplicação deste critério tê-la-ia levado a concluir que o mercado geográfico
relevante era a Irlanda (ou a Irlanda e o Reino Unido). A determinação da Irlanda
como mercado geográfico relevante tem apoio na circunstância de, neste país, os
exportadores do continente não terem qualquer peso concorrencial no que respeita
às vendas de vidro float de 4 mm, uma vez que a sua quota de mercado acumulada
é de cerca de 16%, enquanto a da Pilkington é de 84%.
- Quanto à segunda crítica
- 74.
- A Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação ao declarar que dois
produtores do norte da Europa tinham custos de transporte para a Irlanda
superiores em cerca de 7% a 8% aos da Pilkington, enquanto um produtor da
dessa parte da Europa suportava custos menos elevados do que os da Pilkington
para o mesmo transporte. A este respeito, resulta de uma análise contida na carta
que a recorrente enviou à Comissão em 24 de Maio de 1994 que os custos de
transporte marítimo e terrestre, para a Irlanda, dos produtores continentais são na
realidade bastante mais elevados do que os da Pilkington: o vidro fabricado por um
produtor continental tem uma distância maior a percorrer por estrada e por navio
e não beneficia de descontos importantes no transporte rodoviário e marítimo de
que a Pilkington pode beneficiar.
- 75.
- A este respeito, a abordagem que levou a esta análise está em conformidade com
a seguida pela Comissão em determinadas decisões [Decisão 94/359/CE da
Comissão, de 21 de Dezembro de 1993, que declara a compatibilidade de uma
operação de concentração com o mercado comum (processo n.° IV/M358 -
Pilkington-Techint/SIV) (JO 1994, L 158, p. 24, a seguir «decisão
Pilkington-Techint/SIV»), na qual considerou que o vidro float em bruto é um
produto volumoso e pesado, cujo transporte a longa distância é oneroso); Decisão
89/93/CEE da Comissão, de 7 de Dezembro de 1988, relativa a um processo de
aplicação dos artigos 85.° e 86.° do Tratado CEE (IV/31.906 - Vidro plano)
(JO 1989, L 33, p. 44, a seguir «decisão vidro plano»), na qual a situação
geográfica das instalações de produção foi considerada como um factor vital no que
respeita ao transporte do vidro plano; Decisão 89/22/CEE da Comissão, de 5 de
Dezembro de 1988, relativa a um processo de aplicação do artigo 86.° do
Tratado CEE (IV/31.900, BPB Industries PLC) (JO 1989, L 10, p. 50, a seguir
«decisão BPB»), na qual foi considerado impossível, devido aos custos de
transporte e aos benefícios que implica a instalação de unidades de produção na
proximidade dos mercados, abastecer em condições de rentabilidade os mercados
britânicos ou irlandês a partir do estrangeiro em grande escala e durante longos
períodos].
- 76.
- Além disso, a importância dos custos de transporte para a determinação do
mercado geográfico em causa é confirmada pelas respostas das sociedades
irlandesas, de onde resulta que as sociedades vidreiras com sede na região de
Dublim (próximo da fábrica da Pilkington) ou de localidades facilmente acessíveis
por estrada a partir de Dublim (Galway) se abastecem quase na totalidade junto
da Pilkington (98%), enquanto as sociedades mais afastadas (com sede emTipperary, Limerick e Wexford) adquirem àquela quantidades de vidro inferiores
(respectivamente 77%, 62% e 66%).
- Quanto à terceira crítica
- 77.
- Uma análise dos preços fob (preço franco a bordo) e cif (custo, seguro e frete) do
vidro float de 4 mm proveniente do Reino Unido para os outros Estados-Membros,
de 1990 a 1992, demonstra que o mercado irlandês não apresenta característicascomuns aos outros mercados europeus e que constitui um mercado autónomo;
segundo esta análise, a média dos preços cif, para o período considerado, com
destino à Irlanda, era de 470 ecus por tonelada; com destino aos países da Europa
do Norte (Alemanha, Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo), variava entre 500 ecus
e 540 ecus por tonelada e, com destino aos países da Europa do Sul (França, Itália,
Portugal, Espanha e Grécia), variava entre 330 ecus e 430 ecus por tonelada; por
outro lado, a média dos preços fob para o período considerado, com destino à
Irlanda, era de 370 ecus por tonelada, com destino aos países da Europa do Norte,
variava entre 300 ecus e 330 ecus por tonelada e, com destino aos países da
Europa do Sul, variava entre 300 ecus e 370 ecus por tonelada.
Argumentos da Comissão
- Quanto à primeira crítica
- 78.
- A Comissão nega não ter aplicado o critério definido pelo Tribunal de Justiça no
acórdão United Brands/Comissão, já referido, e recorda que, no n.° 24 da decisão
impugnada, afirmou que a zona com referência à qual deve ser determinada a
existência de uma posição dominante é aquela em que «as condições objectivas de
concorrência do produto em causa devem ser semelhantes para todos os
operadores económicos»: com base neste critério, concluiu que os custos de
transporte não isolavam a Irlanda do mercado continental.
- Quanto à segunda crítica
- 79.
- A Comissão reitera que as conclusões extraídas da sua análise sobre os custos de
transporte estão correctas; com base nas informações fornecidas em resposta às
suas cartas baseadas no artigo 11.°, do Regulamento n.° 17 pelos produtores em
causa, verificou que os custos de um produtor da Europa do Norte eram
ligeiramente inferiores aos da Pilkington enquanto que dois outros produtores
tinham de suportar custos, expressos em proporção do valor do carregamento, que
não ultrapassavam em 7% a 8%, no máximo, os da Pilkington. A própria Comissão
verificou que os produtores da Europa do Sul tinham de suportar custos
sensivelmente superiores ao valor do carregamento. Tendo em conta o facto de
que o excesso de custo tolerado por um fabricante para o transporte até aos limites
do seu mercado nacional era da ordem de 10% do valor do produto, concluiu que
os custos de transporte para a Irlanda dos produtores da Europa do Norte estavam
dentro dos limites que os mesmos toleravam nos respectivos mercados nacionais.
Além disso, verificando que a recorrente não apresentou qualquer elemento que
permita demonstrar que estavam erradas as informações obtidas em resposta à
carta enviada a determinado número de empresas neutras, nos termos do artigo
11.° do Regulamento n.° 17, declara não estar convencida da falta de fiabilidade
das informações que recebeu.
- Quanto à terceira crítica
- 80.
- A Comissão recorda que as informações sobre os preços, com base nas quais
adoptou a decisão impugnada, foram recolhidas directamente junto dos produtores,
enquanto os números indicados pela recorrente eram contestáveis: durante a
averiguação, obteve uma repartição pormenorizada dos preços da Pilkington e os
mesmos não tinham relação com os apresentados pela recorrente. Relativamente
ao período de 1990-1992, o preço médio praticado pela Pilkington na Irlanda era
muito próximo do praticado em cada um dos países da Europa do Norte.
Acrescenta que os preços fob e cif utilizados pela recorrente não representam um
indício fiável; o termo fob refere-se aos preços do produto carregado a bordo e não
inclui qualquer custo de transporte posterior, enquanto o vidro float é vendido com
base num preço «incluindo portes», no qual o custo do transporte é suportado pelo
produtor. Os números cif indicam apenas os preços reais do mercado, uma vez que
não têm em conta os descontos concedidos.
Apreciação do Tribunal de Primeira Instância
- Quanto à primeira crítica
- 81.
- No acórdão United Brands/Comissão, já referido, o Tribunal de Justiça afirmou
que as possibilidades de concorrência face ao disposto no artigo 86.° do Tratado
devem ser analisadas em função das características do produto em causa e por
referência a uma zona geográfica definida na qual é comercializado e onde as
condições de concorrência são suficientemente homogéneas para se poder apreciar
o efeito do poder económico da empresa em questão (n.° 11). Por outro lado, no
mesmo acórdão, o Tribunal de Justiça, para verificar se, no caso concreto, as
condições de concorrência eram suficientemente homogéneas, referiu-se
principalmente aos custos de transporte, considerando que, se esses custos não
constituírem um obstáculo à distribuição dos produtos, eles são, designadamente,
factores unificadores do mercado em causa (acórdão United Brands/Comissão, já
referido, n.os 55 e 56).
- 82.
- Daqui resulta que, no presente caso, a determinação do mercado geográfico em
causa, considerando, designadamente, os custos de transporte do vidro dos
produtores continentais, é justificada. Por outro lado, deve salientar-se que, para
determinar as condições de concorrência nos mercados europeus, a Comissão, na
decisão impugnada, não só analisou os custos acima mencionados, mas verificou
também que o volume exportado pelos produtores continentais para a Irlanda,
entre 1988 e 1994, foi de cerca de um terço do volume de vidro float procurado
nesse país, que as diferenças de preços do vidro praticadas na irlanda e em cinco
outros países europeus pelos cinco principais produtores continentais não
indiciavam a existência de mercados separados e que a existência de barreiras à
entrada no mercado irlandês, de natureza técnica ou normativa, podia ser excluída.
Por último, deve salientar-se que, embora a recorrente conteste a correcta
aplicação dos critérios que decorrem do acórdão United Brands/Comissão, já
referido, não indica de que modo deveriam os mesmos ser aplicados, para, pelocontrário, delimitar ela mesma o mercado geográfico considerando a incidência dos
preços do transporte sobre as condições de concorrência.
- 83.
- Resulta do que antecede que a primeira crítica deve ser julgada improcedente.
- Quanto à segunda crítica
- 84.
- No que se refere à crítica relativa à exactidão da análise dos custos de transporte
efectuada pela Comissão, deve salientar-se que a mesma tem em conta informações
fornecidas pelos operadores do sector por ocasião da investigação relativa à
concentração Pilkington-Techint/SIV e da decisão adoptada na sequência da
mesma investigação. Nessa decisão, a Comissão observou que: 1) cerca de 80% a
90% da produção de vidro de uma unidade é vendida num raio de 500 km; esta
distância é por vezes ultrapassada e pode ir até 1 000 km, além da qual o custo de
transporte se torna proibitivo, ou seja, não concorrencial; 2) uma empresa
produtora de vidro encontra-se em concorrência, na sua área natural de
fornecimento de um raio de 500 km, com as outras empresas cujas áreas de
fornecimento se sobrepõem à sua; 3) dado que cada uma destas empresas tem o
seu próprio raio de fornecimento ulterior, a concorrência de uma empresa em
relação às que se encontram no seu raio tende a alargar-se às áreas naturais de
fornecimento destas; 4) consequentemente, é adequado considerar a Comunidade
no seu todo como o mercado geográfico de referência.
- 85.
- Deve, desde logo, notar-se que a argumentação desenvolvida pela Comissão na
decisão impugnada para definir o mercado geográfico em causa não é
contraditória; com efeito, revelou-se na audiência que, em vários pontos da decisão
impugnada, a Comissão remetia para a sua decisão Pilkington-Techint/SIV, cujo
n.° 16 parece não ser coerente com o n.° 33 da decisão impugnada. A este respeito,
deve recordar-se que uma contradição na fundamentação de uma decisão constitui
uma violação da obrigação que decorre do artigo 190.° do Tratado, susceptível de
afectar a validade do acto em causa se se concluir que, devido a essa contradição,
o destinatário do acto não está em condições de conhecer os motivos reais da
decisão, no todo ou em parte, e que, por isso, o dispositivo do acto é, no todo ou
em pare, desprovido de qualquer base jurídica (v., designadamente, acórdão do
Tribunal de Primeira Instância de 24 de Janeiro de 1995, Tremblay e o./Comissão,
T-5/93, Colect., p. II-185, n.° 42).
- 86.
- No n.° 16 dos considerandos da decisão Pilkington-Techint/SIV, a Comissão afirma
que o vidro float em bruto é um produto volumoso e pesado, «o seu transporte a
longas distâncias oneroso, situando-se, por exemplo, o custo de transporte por
camião entre 7,5% e 10% do preço de venda num raio de 500 km». No n.° 33 da
decisão impugnada, a Comissão afirma que os custos de transporte até ao termo
da sua área natural de fornecimento («domestic market») ultrapassam
aproximadamente 10% do valor do produto dos suportados na proximidade da
fábrica.
- 87.
- Após análise atenta de ambas as decisões, deve observar-se que, em primeiro lugar,
a decisão impugnada remete para a decisão Pilkington-Techint/SIV sem se referir
especificamente às percentagens indicadas no n.° 16 dos considerandos desta, em
segundo lugar, as percentagens constantes do referido n.° 16 dos considerandos são
ali indicadas a título de exemplo e a sua importância é absorvida pelas conclusões
a que a Comissão chega na mesma decisão, em exacta correspondência com
aquelas a que chegou na decisão impugnada, concluindo que se mostra apropriado
considerar a Comunidade no seu conjunto como o mercado geográfico de
referência e, em terceiro lugar, o verdadeiro fundamento da determinação do
mercado geográfico de referência contido na decisão Pilkington-Techint/SIV
encontra-se no segundo parágrafo do n.° 16 dos seus considerandos, onde se
esclarece que «devido à dispersão das diferentes unidades de produção de vidro
float e à sobreposição variável das áreas naturais de fornecimento, podendo os
efeitos de um círculo repercutir-se a nível de um outro, afigura-se pertinente
considerar o mercado geográfico de referência como a Comunidade no seu
conjunto».
- 88.
- Deve observar-se que a Comissão de modo algum se contradiz na medida em que,
por um lado, na decisão Pilkington-Techint/SIV, delimitou o mercado geográfico
de referência baseando-se, no essencial, no conceito de área geográfica natural de
fornecimento para uma determinada instalação de produção de vidro float,
representada por círculos concêntricos cujo raio é determinado pelo custo relativo
do transporte e, por outro, chegou à mesma delimitação na decisão impugnada,
após verificar que os custos de transporte admissíveis para um produtor na área
natural de fornecimento da sua unidade de produção ultrapassam os que suporta
na área de proximidade da referida unidade em, aproximadamente, 10% do valor
do produto. Os conceitos de área de fornecimento natural e de área de
proximidade da unidade de produção, a partir dos quais a Comissão considerou
que os custos de transporte não ultrapassavam 10%, são, com efeito, coerentes.
Ambos os conceitos levam a que se determine o mercado geográfico de referência
para uma empresa com base no custo de transporte, avaliando este a partir não da
sua unidade de produção, mas de uma série de pontos que se encontram na
extremidade de um círculo ou de uma série de círculos à sua volta e que
determinam a sua área natural de fornecimento ou a área que se encontra em
relação a ela numa situação de proximidade.
- 89.
- Daqui resulta que, ao contrário do que parece resultar da audiência, a decisão
impugnada não está viciada por uma contradição na medida em que o seu n.° 33
se refere à decisão Pilkington-Techint/SIV.
- 90.
- Por seu lado, a recorrente não contesta, em si mesmos, os critérios que a Comissão
utilizou para definir a área natural de fornecimento («domestic market»), com base
nos quais foi fundada a decisão impugnada. Ao imputar à Comissão um erromanifesto de apreciação no que respeita à determinação do mercado geográfico
em causa, a recorrente apenas contesta a fiabilidade das respostas dos produtores
de vidro em que se baseou a referida apreciação.
- 91.
- A este respeito, o Tribunal de Primeira Instância recorda que as empresas terceiras
interrogadas nos termos do artigo 11.° do Regulamento n.° 17 podem ser
penalizadas em caso de informações incorrectas, pelo que, em princípio, se não
pode considerar que as mesmas não forneceram indicações precisas e fiáveis, salvo
prova em contrário. A recorrente não pode pretender negar todo e qualquer valor
aos dados fornecidos nessas respostas referindo-se simplesmente à análise dos
custos de transporte que propôs durante o procedimento administrativo, na sua
carta de 24 de Maio de 1994, e que não foi aceite pela Comissão na decisão
impugnada.
- 92.
- Efectivamente, na carta de 24 de Maio de 1994, a recorrente refere-se ao relatório
solicitado pela Dublin Port and Doks Board à Dublin City University Business
School (a seguir «Dublin Port Report») relativo aos custos de transporte no porto
de Dublim. No que respeita às vantagens nos custos de transporte, de que
beneficiaria a Pilkington, a recorrente baseia-se em dados que não se referem
especificamente à Pilkington mas apenas à presumida actividade comercial desta.
Por exemplo, na página 4 da sua carta, afirma: «[A Pilkington] não é obrigada a
recorrer a navios particulares e, consequentemente, utiliza os que oferecem
menores custos. Os livros do porto de Dublim (páginas 172-173) indicam que
podem ser concedidos descontos de 15% a 18% em função do volume ou das
unidades garantidas. Dado que a Pilkington importa grandes quantidades de vidro
com destino ao mercado irlandês (e tem escritórios em Dublim), pode obter os
descontos mais interessantes. Por outro lado, o desconto de 18% é concedido para
transportes de dia enquanto o de 15% constitui o máximo para os transportes de
noite. Devido à proximidade de Liverpool, a Pilkington tem a possibilidade de
beneficiar do melhor desconto, ou seja, o de 18%. Por último, a Kish considera que
a Pilkington pode enviar até cerca de 40 unidades por semana e beneficia de um
estatuto de cliente privilegiado pagando as tarifas mais baixas, designadamente se
o espaço for reservado em bloco.» Por outro lado, a recorrente, nessa carta, não
referiu números exactos relativos aos custos dos transportes continentais, e, ainda
na página 4 dessa carta, indica: «Os livros do porto de Dublim não referem a
percentagem dos 20 contentores abertos existentes, mas é certamente muito
escassa, uma vez que apenas duas linhas marítimas oferecem este tipo especial de
transporte...».
- 93.
- O argumento que a recorrente extrai da importância dos custos de transporte, que
resultaria das respostas das sociedades vidreiras irlandesas, não é suficiente para
demonstrar que o mercado geográfico em causa é constituído apenas pelo território
irlandês. O facto de as sociedades vidreiras com sede na região de Dublim e
Galway se abastecerem da quase totalidade de que necessitam junto da Pilkington
indica apenas que, tendo em consideração os custos de transporte, esta última tem
uma vantagem competitiva na área geográfica próxima da sua fábrica, mas essa
vantagem deve ser considerada como sendo comum à maior parte dos mercados.
Além disso, como a própria recorrente salienta, muitas outras sociedades irlandesas
adquirem quantidades significativas de vidro aos produtores continentais. A esterespeito, é de notar que a sociedade estabelecida em Limerick, que, em relação a
Dublim, se situa a uma distância análoga à de Galway, só adquire à Pilkington 62%
do vidro que necessita. É, por isso, evidente que os dados relativos às importações
de vidro, extraídos das respostas das sociedades irlandesas, não permitem deduzir,
como a recorrente fez, que o mercado irlandês é distinto do da Europa do Norte.
- 94.
- Por último, o Tribunal de Primeira Instância conclui que a argumentação da
recorrente não tem qualquer apoio nas decisões que invoca. Assim, e em primeiro
lugar, embora decorra do n.° 77 dos considerandos da decisão vidro plano que o
custo do transporte do vidro é um factor muito importante para a comercialização
além das fronteiras nacionais e que a parte da produção destinada à exportação
é limitada em relação às quantidades destinadas ao mercado interno, isso não
implica que a análise dos custos efectuada na decisão impugnada esteja errada. Em
segundo lugar, a situação do mercado de placas de estuque, no processo que deu
lugar à decisão BPB, era completamente diferente da do mercado do vidro float.
Efectivamente, na decisão em questão afigura-se que, ao contrário do presente
caso, a sociedade BPB Industries, acusada de abuso de posição dominante, possuía
uma fábrica na Irlanda que abastecia o mercado nacional e uma fábrica na
Grã-Bretanha que não exportava para a Irlanda. A este respeito, a Comissão
salientou que os preços da fábrica situada na Grã-Bretanha não eram
concorrenciais relativamente ao da Irlanda (v. n.° 21 dos considerandos da decisão
BPB). A Comissão concluiu que a Grã-Bretanha e a Irlanda constituíam o mercado
geográfico em causa, dado que estes países eram «as únicas regiões da
Comunidade em que a BPB [era] simultaneamente a única produtora e [detinha]
uma posição de quase-monopólio no fornecimento de placas de estuque»
(considerando 24 da decisão BPB). Determinou, assim, o mercado geográfico em
função de factores completamente diferentes dos invocados pela recorrente no
presente processo.
- 95.
- Resulta do que antecede que improcede a segunda crítica.
- Quanto à terceira crítica
- 96.
- Quanto à análise das diferenças de preços fob e cif do vidro float de 4 mm
proveniente do Reino Unido e vendido nos outros países da Comunidade, o
Tribunal de Primeira Instância considera que essa análise não é susceptível de
contrariar as conclusões que a Comissão das mesmas extraiu na decisão impugnada.
- 97.
- No que respeita aos preços fob, deve salientar-se que, como a Comissão realçou,
os mesmos correspondem ao preço do produto carregado a bordo e não incluem
os custos de transporte posteriores que, neste tipo de mercado, são normalmente
suportados pelos produtores; consequentemente, não se pode considerar que os
referidos preços fornecem indicações adequadas sobre os preços reais do mercado.
- 98.
- Em contrapartida, o preço cif, que abrange os custos de produção, de seguro e de
qualquer tipo de transporte, pode ser tido em conta para determinar os preçosreais de mercado. Contudo, deve salientar-se que os dados apresentados pela
recorrente não são susceptíveis de apoiar a tese da mesma, segundo a qual o
mercado geográfico em causa é a Irlanda. Efectivamente, resulta dos referidos
dados que a diferença entre a média dos preços praticados na Irlanda e a média
dos preços praticados nos Países Baixos (470/500; 30 ecus por tonelada) é inferior
à que existe entre a média dos preços praticados nos Países Baixos e a média dos
preços praticados na Alemanha, na Bélgica ou no Luxemburgo (500/540, 40 ecus
por tonelada). Considerando apenas este argumento, chegar-se-á à conclusão de
que a Irlanda pertence ao mesmo mercado geográfico a que pertencem os Países
Baixos, e não, como a recorrente afirma, que a Irlanda constitui um mercado
separado do resto da Europa do Norte.
- 99.
- Decorre do que antecede que improcede a terceira crítica.
- 100.
- Daqui resulta também que deve ser julgado improcedente o quinto fundamento.
- 101.
- Consequentemente, deve ser negado provimento ao recurso na totalidade.
Quanto às despesas
- 102.
- Nos termos do artigo 87.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de
Primeira Instância, a parte vencida é condenada nas despesas, se tal tiver sido
requerido. Tendo a recorrente sido vencida e a recorrida pedido a sua condenação,
há que condená-la nas despesas.
Pelos fundamentos expostos,
O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Quarta Secção)
decide:
1) É negado provimento ao recurso.
2) A recorrente é condenada nas despesas.
Moura RamosTiili
Mengozzi
|
Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 30 de Março de 2000.
O secretário
O presidente
H. Jung
V. Tiili