Language of document : ECLI:EU:C:2017:947

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

7 de dezembro de 2017 (*)

«Reenvio prejudicial — Dispositivos médicos — Diretiva 93/42/CEE — Âmbito de aplicação — Conceito de “dispositivo médico” — Marcação CE — Regulamentação nacional que submete os softwares de apoio à prescrição de medicamentos a um procedimento de certificação estabelecido por uma autoridade nacional»

No processo C‑329/16,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França), por decisão de 8 de junho de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de junho de 2016, no processo

Syndicat national de l'industrie des technologies médicales (Snitem),

Philips France

contra

Premier ministre,

Ministre des Affaires sociales et de la Santé,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: T. von Danwitz, presidente de secção, C. Vajda, E. Juhász (relator), K. Jürimäe e C. Lycourgos, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: V. Giacobbo‑Peyronnel, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 26 de abril de 2017,

considerando as observações apresentadas:

–        em representação do Syndicat national de l’industrie des technologies médicales (Snitem) e da Philips France, por B. Geneste e S. Ledda‑Noel, avocats,

–        em representação do Governo francês, por J. Traband, D. Colas e E. de Moustier, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por M. Russo, avvocato dello Stato,

–        em representação da Comissão Europeia, por P. Mihaylova e O. Beynet, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 28 de junho de 2017,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 1, e do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1993, relativa aos dispositivos médicos (JO 1993, L 169, p. 1), conforme alterada pela Diretiva 2007/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007 (JO 2007, L 247, p. 21) (a seguir «Diretiva 93/42»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o Syndicat national de l’industrie des technologies médicales (Snitem) e a Philips France ao Premier ministre (França) e ao ministre des Affaires sociales et de la Santé (França) a propósito da legalidade do artigo 1.o, n.o 3, e do artigo 2.o do décret n° 2014‑1359, du 14 novembre 2014, relatif à l’obligation de certification des logiciels d’aide à la prescription médicale et des logiciels d’aide à la dispensation prévue à l’article L. 161‑38 du code de la sécurité sociale [Decreto n.o 2014‑1359, de 14 de novembro de 2014, relativo à obrigação de certificação dos softwares de apoio à prescrição médica e dos softwares de apoio à venda de medicamentos, prevista no artigo L. 161‑38 do Código da Segurança Social (JORF de 15 de novembro de 2014, p. 19255, a seguir «Decreto n.o 2014‑1359»)].

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos segundo a quarto da Diretiva 93/42 enunciam:

«Considerando que as disposições legislativas, regulamentares e administrativas em vigor nos Estados‑Membros no tocante às características de segurança, de proteção da saúde e de nível de funcionamento dos dispositivos médicos variam no que respeita ao respetivo teor e âmbito; que os procedimentos de certificação e controlo desses dispositivos variam consoante os Estados‑Membros; que as referidas disparidades constituem entraves às trocas comerciais comunitárias;

Considerando que devem se harmonizadas as disposições nacionais que garantem a segurança e a proteção da saúde dos doentes, utilizadores, e, se aplicável, de outras pessoas, no que respeita à utilização dos dispositivos médicos, por forma a assegurar a livre circulação dos referidos dispositivos no mercado interno;

Considerando que as disposições harmonizadas devem ser diferenciadas das medidas tomadas pelos Estados‑Membros com o objetivo de gerir o financiamento dos sistemas de saúde pública e de seguro de doença respeitantes direta ou indiretamente a esses dispositivos; que, por conseguinte, essas disposições não afetam a faculdade de os Estados‑Membros aplicarem, no respeito pelo direito comunitário, as medidas acima referidas».

4        O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Definições e âmbito de aplicação», dispõe:

«1.      A presente diretiva aplica‑se aos dispositivos médicos e respetivos acessórios. Para efeitos da presente diretiva, os acessórios serão tratados como dispositivos médicos. Os dispositivos médicos e seus acessórios são adiante designados por “dispositivos”.

2.      Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

a)      Dispositivo médico: qualquer instrumento, aparelho, equipamento, software, material ou outro artigo, utilizado isoladamente ou em combinação, incluindo o software destinado pelo seu fabricante a ser utilizado especificamente para fins de diagnóstico e/ou terapêuticos e que seja necessário para o bom funcionamento do dispositivo médico, destinado pelo fabricante a ser utilizado em seres humanos para efeitos de:

–        diagnóstico, prevenção, controlo, tratamento ou atenuação de uma doença,

–        diagnóstico, controlo, tratamento, atenuação ou compensação de uma lesão ou de uma deficiência,

–        estudo, substituição ou alteração da anatomia ou de um processo fisiológico,

–        controlo da conceção,

cujo principal efeito pretendido no corpo humano não seja alcançado por meios farmacológicos, imunológicos ou metabólicos, embora a sua função possa ser apoiada por esses meios;

b)      Acessório: artigo que, embora não sendo um dispositivo, seja especificamente destinado pelo seu fabricante a ser utilizado em conjunto com um dispositivo, por forma a permitir a sua utilização de acordo com a utilização do dispositivo prevista pelo respetivo fabricante;

[…]

g)      Finalidade: a utilização a que o dispositivo médico se destina, de acordo com as indicações fornecidas pelo fabricante no rótulo, instruções e/ou material promocional;

[…]»

5        O artigo 4.o da referida diretiva, com a epígrafe «Livre circulação, dispositivos com finalidades específicas», dispõe, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros não obstarão à colocação no mercado e entrada em serviço no respetivo território de dispositivos com a marcação CE, prevista no artigo 17.o, que indica que esses dispositivos foram objeto de uma avaliação de conformidade de acordo com o disposto no artigo 11.o»

6        O artigo 5.o da mesma diretiva, intitulado «Remissão para normas», prevê, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros devem presumir que se encontram em conformidade com os requisitos essenciais referidos no artigo 3.o os dispositivos que estejam em conformidade com as normas nacionais pertinentes adotadas de acordo com as normas harmonizadas, cujas referências tenham sido publicadas no Jornal Oficial das Comunidades Europeias; os Estados‑Membros devem publicar as referências das referidas normas nacionais.»

7        O artigo 8.o da Diretiva 93/42, sob a epígrafe «Cláusula de salvaguarda», dispõe, no seu n.o 1:

«Sempre que um Estado‑Membro verificar que os dispositivos a que se referem os n.os 1 e 2, segundo travessão, do artigo 4.o, corretamente instalados, manutencionados e utilizados de acordo com a respetiva finalidade, podem comprometer a saúde e/ou a segurança dos doentes, dos utilizadores ou, eventualmente, de terceiros, tomará todas as medidas provisórias necessárias para retirar esses dispositivos do mercado, ou proibir ou restringir a sua colocação no mercado ou a sua entrada em serviço. O Estado‑Membro em questão informará imediatamente a Comissão dessa medida, fundamentando a sua decisão e indicando, em especial, se a não conformidade com a presente diretiva resulta:

a)      Da não observância dos requisitos essenciais referidos no artigo 3.o;

b)      De uma má aplicação das normas referidas no artigo 5.o caso se pretenda aplicar essas normas;

c)      De uma lacuna nessas próprias normas.»

8        O artigo 9.o desta diretiva, com a epígrafe «Classificação», enuncia, no seu n.o 1:

«Os dispositivos devem ser integrados nas classes I, IIa, IIb e III. A classificação deve‑se processar em conformidade com o anexo IX.»

9        O artigo 17.o da referida diretiva, com a epígrafe «Marcação CE», prevê, no seu n.o 1:

«Os dispositivos, com exceção dos feitos por medida e dos destinados a investigações clínicas, que se considere satisfazerem os requisitos essenciais referidos no artigo 3.o devem ostentar a marcação CE de conformidade aquando da sua colocação no mercado.»

10      O anexo IX da mesma diretiva, intitulado «Critérios de classificação», contém a seguinte passagem:

«I.      Definições

1.      Definições relativas às regras de classificação

[…]

1.4.      Dispositivo medicinal ativo

[…] O software, por si só, é considerado um dispositivo médico ativo.

[…]

II.      Regras de aplicação

2.      Regras de aplicação

[…]

2.1.      A aplicação das regras de classificação rege‑se pela finalidade dos dispositivos.

2.2.      Caso um dispositivo se destine a ser utilizado em conjunto com outro dispositivo, as regras de classificação serão aplicáveis a cada um dos dispositivos, separadamente. Os acessórios serão classificados por si mesmos, separadamente dos dispositivos com os quais são utilizados.

2.3.      Os suportes lógicos que comandam um dispositivo ou influenciam a sua utilização pertencem automaticamente à mesma categoria que esse dispositivo.

[…]»

11      O considerando 6 da Diretiva 2007/47, que tem como objetivo, nomeadamente, introduzir o software, por si só, na definição de «dispositivo médico» prevista no artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42, enuncia:

«É necessário esclarecer que o software, por si só, é um dispositivo médico quando especificamente destinado pelo fabricante a ser utilizado para uma ou várias finalidades médicas estabelecidas na definição de dispositivo médico. O software de uso geral, utilizado num contexto sanitário, não é um dispositivo médico.»

 Direito francês

12      O artigo L. 161‑38 do code de la sécurité social (Código da Segurança Social), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, dispõe:

«[…]

II.      [A Alta Autoridade da Saúde] estabelecerá […] o procedimento de certificação do software de apoio à prescrição médica que tenha respeitado um conjunto de normas de boas práticas. Zela para que as normas de boas práticas especifiquem que esse software integra as recomendações e pareceres médico‑económicos identificados pela Alta Autoridade da Saúde, permitam prescrever diretamente na denominação comum internacional, mostrar os preços dos produtos no momento da prescrição e o montante total da mesma, bem como indicar a pertença de um produto ao catálogo dos genéricos, e comportem uma informação relativa ao seu criador e à natureza do seu financiamento.

Este procedimento de certificação contribui para a melhoria das práticas de prescrição de medicamentos. Garante a conformidade do software com exigências mínimas em termos de segurança, de conformidade e de eficiência da prescrição.

[…]

IV.      As certificações previstas nos pontos I a III são elaboradas e emitidas pelos organismos certificadores acreditados pelo Comité Francês de Acreditação ou pelo organismo competente de outro Estado‑Membro da União Europeia justificando o respeito pelas regras de boas práticas elaboradas pela Alta Autoridade da Saúde.

Tais certificações serão obrigatórias para qualquer software com pelo menos uma funcionalidade que proponha apoio à edição das prescrições médicas ou à venda de medicamentos, nas condições previstas por decreto do Conseil d’État e o mais tardar em 1 de janeiro de 2015.»

13      O artigo 1.o, n.o 3, do Decreto n.o 2014‑1359 introduziu, no Código da Segurança Social, os artigos R. 161‑76‑1 a R. 161‑76‑9.

14      Nos termos do artigo R. 161‑76‑1 do referido código:

«Qualquer software cujo objeto seja propor a quem prescreve receitas médicas e exerce a sua atividade em consultório privado, em estabelecimento de saúde ou em estabelecimento médico‑social apoio à realização da prescrição de medicamentos está sujeito à obrigação de certificação prevista no artigo L. 161‑38, sem prejuízo do disposto nos artigos R. 5211‑1 e seguintes do Código da Saúde Pública. O software que inclui outras funcionalidades para além do apoio à prescrição médica está apenas sujeito a certificação relativamente a essa funcionalidade.»

15      O artigo R. 161‑76‑3 do mesmo código dispõe:

«O software de apoio à prescrição médica é certificado à luz de um referencial estabelecido pela Alta Autoridade de Saúde, que prevê:

1°      Requisitos mínimos de segurança, relativos, designadamente, à ausência de qualquer informação estranha à prescrição e de publicidade de qualquer natureza, bem como à sua qualidade ergonómica;

2°      Requisitos mínimos de conformidade da prescrição com as disposições regulamentares e com as normas de boas práticas da prescrição de medicamentos;

3°      Requisitos mínimos de eficiência que assegurem a diminuição do custo do tratamento com igual qualidade;

4°      A prescrição mediante a utilização de uma denominação comum, conforme definida no ponto 5 do artigo R. 5121‑1 do Código da Saúde Pública;

5°      Informação sobre o medicamento proveniente de uma base de dados de medicamentos que satisfaça as exigências de uma carta de qualidade elaborada pela Alta Autoridade da Saúde;

6°      Informações relativas ao criador do software e ao financiamento da sua elaboração.»

16      Nos termos do artigo 2.o do Decreto n.o 2014‑1359:

«As certificações previstas nos artigos R. 161‑76‑1 e R. 161‑76‑10 são obrigatórias a partir de 1 de janeiro de 2015.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

17      O Snitem agrupa empresas do setor dos dispositivos médicos, como a Philips France, que exercem as suas atividades no domínio dos cuidados de saúde e comercializam, nomeadamente, softwares de apoio à prescrição médica.

18      O Snitem e a Philips France interpuseram no Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França) um recurso de anulação do artigo 1.o, n.o 3, e do artigo 2.o do Decreto n.o 2014‑1359. Alegam que, na medida em que pelo menos certos softwares de apoio à prescrição médica se inserem no âmbito de aplicação da Diretiva 93/42, as disposições do artigo L. 161‑38 do Código da Segurança social e deste decreto, ao submeterem certos softwares a uma obrigação de certificação no plano nacional, apesar de estes ostentarem a marcação CE, violam os objetivos do artigo 4.o desta diretiva, que proíbe os Estados‑Membros de impedir ou restringir a colocação no mercado ou a entrada em serviço dos dispositivos com essa marcação CE.

19      Os recorrentes no processo principal invocam igualmente uma violação do artigo 8.o da Diretiva 93/42, porquanto a obrigação de certificação prevista pelo direito nacional não pode ser considerada uma medida de salvaguarda na aceção deste artigo. Apontam igualmente uma violação do artigo 34.o TFUE, na medida em que a obrigação de adaptar os softwares a normas técnicas constitui uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação que, consistindo numa duplicação em relação à obrigação de certificação dos dispositivos médicos prevista pela Diretiva 93/42, aplicável ao software, não corresponde às exigências de proporcionalidade e de necessidade.

20      Tendo em conta estes elementos, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve a [Diretiva 93/42] ser interpretada no sentido de que um [software], cujo objeto é propor a quem prescreve receitas médicas e exerce a sua atividade em consultório privado, em estabelecimento de saúde ou em estabelecimento médico social, um apoio na determinação da prescrição de medicamentos, de forma a melhorar a segurança da prescrição, facilitar o trabalho de quem prescreve receitas médicas, favorecer a conformidade da receita com as exigências regulamentares nacionais e diminuir o custo do tratamento mantendo igual qualidade, constitui um dispositivo médico na aceção da referida diretiva, quando o referido [software] apresenta pelo menos uma funcionalidade que permite a exploração de dados específicos de um paciente com vista a auxiliar o seu médico a determinar a sua prescrição, designadamente mediante a deteção de contraindicações, interações medicamentosas e posologias excessivas, apesar de não atuar no interior ou sobre o corpo humano?»

 Quanto à questão prejudicial

21      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 1, e n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42 deve ser interpretado no sentido de que um software de que uma das funcionalidades permita a exploração de dados específicos de um paciente, com vista nomeadamente à deteção de contraindicações, de interações medicamentosas e de posologias excessivas, constitui, no que respeita a esta finalidade, um dispositivo médico na aceção destas disposições, e isto apesar de esse software não atuar diretamente no corpo humano.

22      Resulta expressamente do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42 que um software constitui um dispositivo médico, para efeitos desta diretiva, quando satisfaz os dois requisitos cumulativos que deve reunir qualquer dispositivo desta natureza, relativos, respetivamente, à finalidade prosseguida e ao efeito produzido.

23      Em primeiro lugar, quanto à finalidade prosseguida, o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), desta diretiva prevê que um dispositivo médico deve ser destinado pelo fabricante a ser utilizado em seres humanos, para efeitos, nomeadamente, de diagnóstico, prevenção, controlo, tratamento ou atenuação de uma doença, bem como de diagnóstico, controlo, tratamento, atenuação ou compensação de uma lesão ou de uma deficiência.

24      A este respeito, há que sublinhar que a letra do referido artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42 foi alterada pelo artigo 2.o da Diretiva 2007/47, cujo considerando 6 sublinha que um software, por si só, é um dispositivo médico quando especificamente destinado pelo fabricante a ser utilizado para uma ou várias finalidades médicas abrangidas pela definição de dispositivo médico. Este considerando acrescenta que um software de uso geral, utilizado num contexto sanitário, não é um dispositivo médico. O legislador da União deixou claro, portanto, o facto de que, para que estes softwares estejam abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 93/42, não basta serem utilizados num contexto médico, sendo ainda necessário que a finalidade a que se destinam, definida pelo fabricante, seja especificamente médica (acórdão de 22 de novembro de 2012, Brain Products, C‑219/11, EU:C:2012:742, n.os 16 e 17). Um software que não cumpra este requisito só se pode inserir no âmbito de aplicação desta diretiva se constituir um acessório de um dispositivo médico, na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da referida diretiva. Esse software deveria então ser tratado, para efeitos da mesma diretiva, como um dispositivo médico, em conformidade com o seu artigo 1.o, n.o 1.

25      No caso em apreço, um software que procede ao cruzamento dos dados pessoais do paciente com os medicamentos que o médico tenciona prescrever, sendo, assim, suscetível de lhe fornecer, de forma automatizada, uma análise destinada a detetar, nomeadamente, as eventuais contraindicações, interações medicamentosas e posologias excessivas, é utilizado para efeitos de prevenção, de controlo, de tratamento ou atenuação de uma doença e prossegue, consequentemente, uma finalidade especificamente médica, tornando‑o um dispositivo médico na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42.

26      Em contrapartida, não é esse o caso de um software que, embora se destine a ser utilizado num contexto médico, tenha por única finalidade arquivar, reunir e transmitir os dados, como um software de armazenamento dos dados médicos do paciente, um software cuja função se limite a indicar ao médico assistente o nome do medicamento genérico associado àquele que tenciona prescrever ou ainda um software destinado a indicar as contraindicações mencionadas pelo fabricante deste medicamento nas suas instruções de utilização.

27      Em segundo lugar, quanto ao requisito relativo ao efeito produzido, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre a questão de saber se um software que não atua no corpo humano pode ser um dispositivo médico na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42.

28      A este respeito, há que salientar que, embora esta disposição preveja que o efeito principal do dispositivo médico «no corpo humano» não pode ser alcançado exclusivamente por meios farmacológicos, imunológicos ou metabólicos, não exige que esse dispositivo atue diretamente no corpo humano.

29      Conforme resulta do considerando 6 da Diretiva 2007/47 e do n.o 24 do presente acórdão, para qualificar um software como dispositivo médico, o legislador da União decidiu concentrar‑se na finalidade da sua utilização e não na maneira como é suscetível de se concretizar o efeito que o mesmo pode produzir no corpo humano.

30      Além disso, negar a qualidade de «dispositivo médico» a um dispositivo que não atua diretamente no corpo humano corresponderia, na prática, a excluir do âmbito de aplicação da Diretiva 93/42 os softwares especificamente destinados pelo fabricante a ser utilizados para uma ou várias finalidades médicas estabelecidas na definição de dispositivo médico, apesar de o legislador da União ter pretendido, através da Diretiva 2007/47, incluir esses softwares nesta definição, independentemente de estes atuarem ou não diretamente no corpo humano.

31      Por conseguinte, acrescentar esse requisito criaria o risco de privar o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), desta diretiva, em parte, do seu efeito útil.

32      Assim, para serem qualificados como dispositivos médicos, pouco importa que os softwares atuem ou não diretamente no corpo humano, sendo apenas essencial que a sua finalidade seja especificamente uma das previstas no n.o 24 do presente acórdão.

33      Esta interpretação é confirmada pelas Orientações da Comissão relativas à qualificação e classificação dos softwares, por si só, utilizados em medicina no âmbito regulamentar dos dispositivos médicos («Guidelines on the qualification and classification of stand alone software used in healthcare within the regulatory framework of medical devices», Meddev 2.1/6), as quais visam fomentar uma aplicação uniforme das disposições da Diretiva 93/42 dentro da União. Com efeito, tanto na edição publicada em janeiro de 2012 como na edição publicada em julho de 2016, estas orientações referem que constituem dispositivos médicos os softwares destinados pelo seu fabricante a prosseguir com a sua utilização uma das finalidades enumeradas no artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42 e que se destinem a criar ou alterar informações médicas, nomeadamente por intermédio de um processo de cálculo, de quantificação ou de comparação dos dados registados com determinadas referências, a fim de prestar informações relativas a um determinado paciente. As referidas orientações acrescentam que não devem ser considerados dispositivos médicos os softwares que não têm qualquer repercussão nos dados ou cuja repercussão se limite ao armazenamento, ao arquivo, à compressão sem perdas ou, por último, à pesquisa simples, ou seja, neste último caso, softwares que têm uma função de biblioteca digital e permitem encontrar informações provenientes de metadados, sem os alterar ou interpretar.

34      Daqui resulta que um software de que uma das funcionalidades permita a exploração de dados específicos de um paciente, com vista, nomeadamente, à deteção de contraindicações, de interações medicamentosas e de posologias excessivas, constitui, no que respeita a esta finalidade, um dispositivo médico, na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42, e isto mesmo que esse software não atue diretamente no corpo humano.

35      Por conseguinte, e na medida em que esse software constitui um dispositivo médico, deve, nos termos do artigo 17.o, n.o 1, desta diretiva, ostentar obrigatoriamente a marcação CE de conformidade, aquando da sua colocação no mercado. Uma vez obtida a marcação, este produto pode, no que respeita a essa funcionalidade, ser colocado no mercado e circular livremente na União, sem que deva ser objeto de qualquer outro procedimento adicional, como uma nova certificação (v., neste sentido, acórdão de 19 de novembro de 2009, Nordiska Dental, C‑288/08, EU:C:2009:718, n.o 21).

36      No caso de um software que contenha simultaneamente módulos que correspondam à definição do conceito de «dispositivo médico» e outros que não e que não sejam acessórios na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 93/42, só os primeiros estão abrangidos pelo âmbito de aplicação desta diretiva e devem ser objeto de uma marcação CE.

37      A este respeito, as orientações da Comissão mencionadas no n.o 33 do presente acórdão confirmam, em substância, no título 4, sob a epígrafe «Módulos», que quando um software é composto por módulos que correspondam à definição do conceito de «dispositivo médico» e outros que não, só os primeiros devem ser objeto de uma marcação CE, não estando os outros sujeitos às disposições desta diretiva. Estas orientações precisam que incumbe ao fabricante identificar os limites e os interfaces dos diferentes módulos, os quais devem, no que respeita a módulos sujeitos à Diretiva 93/42, ser claramente identificados pelo fabricante e basear‑se na utilização que será feita do produto.

38      Daqui resulta que o fabricante desse software é obrigado a identificar que módulos constituem dispositivos médicos, a fim de que a marcação CE possa ser aposta apenas nesses módulos.

39      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão prejudicial que o artigo 1.o, n.o 1, e n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42 deve ser interpretado no sentido de que um software de que uma das funcionalidades permita a exploração de dados específicos de um paciente, com vista, nomeadamente, à deteção de contraindicações, de interações medicamentosas e de posologias excessivas, constitui, no que respeita a esta finalidade, um dispositivo médico, na aceção destas disposições, e isto apesar de esse software não atuar diretamente no corpo humano.

 Quanto às despesas

40      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O artigo 1.o, n.o 1, e n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1993, relativa aos dispositivos médicos, conforme alterada pela Diretiva 2007/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, deve ser interpretado no sentido de que um software de que uma das funcionalidades permita a exploração de dados específicos de um paciente, com vista, nomeadamente, à deteção de contraindicações, de interações medicamentosas e de posologias excessivas, constitui, no que respeita a esta finalidade, um dispositivo médico, na aceção destas disposições, e isto apesar de esse software não atuar diretamente no corpo humano.

Assinaturas


*      Língua do processo: francês.