Language of document : ECLI:EU:C:2024:334

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

18 de abril de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Política de asilo — Determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional — Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Transferência do requerente de asilo para o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional — Artigo 17.o, n.o 1 — Cláusula discricionária — Artigo 27.o, n.os 1 e 3 e artigo 29.o, n.o 3 — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Vias de recurso — Efeito suspensivo»

No processo C‑359/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela High Court (Tribunal Superior, Irlanda), por Decisão de 28 de abril de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de junho de 2022, no processo

AHY

contra

Minister for Justice,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Prechal, presidente de secção, F. Biltgen, N. Wahl (relator), J. Passer e M. L. Arastey Sahún, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de AHY, por B. Burns, solicitor, E. Dornan, BL, e C. Power, SC,

–        em representação do Minister for Justice e da Irlanda, por M. Browne, Chief State Solicitor, A. Joyce, M. Tierney e G. Wells, na qualidade de agentes, assistidos por S‑J. Hillery, BL, e de D. Colan Smyth, SC,

–        em representação do Governo Helénico, por M. Michelogiannaki, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por L. Grønfeldt e J. Tomkin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de setembro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 17.o, n.o 1, e do artigo 27.o, n.os 1 e 3, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31, a seguir «Regulamento Dublim III»), e do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe AHY, um nacional somali, ao Minister for Justice (Ministro da Justiça, Irlanda, a seguir «ministro») a respeito da decisão deste último que recusa exercer o seu poder discricionário ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III para analisar o pedido de proteção internacional de AHY e que indica que este será transferido para a Suécia.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Nos termos dos considerandos 4, 5, 17 e 19 do Regulamento Dublim III:

«(4)      As conclusões [da reunião especial do Conselho Europeu, realizada em Tampere em 15 e 16 de outubro de 1999] precisaram igualmente que o [Sistema Europeu Comum de Asilo] deverá incluir, a curto prazo, um método claro e operacional para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de asilo.

(5)      Este método deverá basear‑se em critérios objetivos e equitativos, tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa. Deverá, permitir, nomeadamente, uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de concessão de proteção internacional e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional.

[…]

(17)      Os Estados‑Membros deverão ter a possibilidade de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade, em especial por razões humanitárias e compassivas, a fim de permitir reunir membros da família, familiares ou outros parentes, e de analisar um pedido de proteção internacional que lhes tenha sido apresentado, ou a outro Estado‑Membro, mesmo que tal análise não seja da sua responsabilidade nos termos dos critérios vinculativos previstos no presente regulamento.

[…]

(19)      A fim de garantir a proteção efetiva dos direitos das pessoas em causa, deverão ser previstas garantias legais e o direito efetivo de recurso contra as decisões de transferência para o Estado‑Membro responsável, nos termos, nomeadamente, do artigo 47.o da [Carta]. A fim de garantir o respeito do direito internacional, o direito efetivo de recurso contra essas decisões deverá abranger a análise da aplicação do presente regulamento e da situação jurídica e factual no Estado‑Membro para o qual o requerente é transferido.»

4        O artigo 3.o, n.o 1, deste regulamento dispõe:

«Os Estados‑Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado‑Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado‑Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável.»

5        O artigo 17.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Cláusulas discricionárias», faz parte do capítulo IV do mesmo regulamento e prevê, no seu n.o 1:

«Em derrogação do artigo 3.o, n.o 1, cada Estado‑Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.

O Estado‑Membro que tenha decidido analisar um pedido de proteção internacional nos termos do presente número torna‑se o Estado‑Membro responsável e assume as obrigações inerentes a essa responsabilidade. Se for caso disso, informa, por intermédio da rede de comunicação eletrónica “DubliNet”, criada pelo artigo 18.o do Regulamento (CE) n.o 1560/2003 [da Comissão, de 2 de setembro de 2003, relativo às modalidades de aplicação do Regulamento n.o 343/2003 (JO 2003, L 222, p. 3)], o Estado‑Membro anteriormente responsável, aquele que conduz o processo de determinação do Estado‑Membro responsável ou aquele que foi requerido para efeitos de tomada ou retomada a cargo.

O Estado‑Membro responsável por força do presente número deve indicar também imediatamente esse facto no Eurodac em conformidade com o Regulamento (UE) n.o 603/2013 [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativo à criação do sistema “Eurodac” de comparação de impressões digitais para efeitos da aplicação efetiva do Regulamento (UE) n.o 604/2013, e de pedidos de comparação com os dados Eurodac apresentados pelas autoridades responsáveis dos Estados‑Membros e pela Europol para fins de aplicação da lei e que altera o Regulamento (UE) n.o 1077/2011 que cria uma Agência europeia para a gestão operacional de sistemas informáticos de grande escala no espaço de liberdade, segurança e justiça (JO 2013, L 180, p. 1)] acrescentando a data em que foi tomada a decisão de analisar o pedido.»

6        O artigo 27.o do Regulamento Dublim III, com a epígrafe «Vias de recurso», tem a seguinte redação:

«1.      O requerente ou outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), tem direito a uma via de recurso efetiva, sob a forma de recurso ou de pedido de revisão, de facto e de direito, da decisão de transferência, para um órgão jurisdicional.

2.      Os Estados‑Membros devem prever um período de tempo razoável para a pessoa em causa poder exercer o seu direito de recurso nos termos do n.o 1.

3.      Para efeitos de recursos ou de pedidos de revisão de decisões de transferência, os Estados‑Membros devem prever na sua legislação nacional que:

a)      O recurso ou o pedido de revisão confira à pessoa em causa o direito de permanecer no Estado‑Membro em causa enquanto se aguarda o resultado do recurso ou da revisão; ou

b)      A transferência seja automaticamente suspensa e que essa suspensão termine após um período razoável, durante o qual um órgão jurisdicional, após exame minucioso e rigoroso, deve tomar uma decisão sobre o efeito suspensivo de um recurso ou de um pedido de revisão; ou

c)      A pessoa em causa tenha a possibilidade de dentro de um prazo razoável requerer junto do órgão jurisdicional a suspensão da execução da decisão de transferência enquanto [se] aguarda o resultado do recurso ou do pedido de revisão. Os Estados‑Membros devem garantir a possibilidade de uma via de recurso, suspendendo o processo de transferência até que seja adotada a decisão sobre o primeiro pedido de suspensão. A decisão sobre a suspensão ou não da execução da decisão de transferência deve ser tomada num prazo razoável, mas que não ponha em causa o exame minucioso e rigoroso do pedido de suspensão. As decisões de não suspensão da execução da decisão de transferência devem ser fundamentadas.

4.      Os Estados‑Membros podem prever que as autoridades competentes possam decidir, a título oficioso, suspender a execução da decisão de transferência enquanto se aguarda o resultado do recurso ou da revisão.

[…]»

7        O artigo 29.o deste regulamento dispõe:

«1.      A transferência do requerente ou de outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável efetua‑se em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro requerente, após concertação entre os Estados‑Membros envolvidos, logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3.

[…]

2.      Se a transferência não for executada no prazo de seis meses, o Estado‑Membro responsável fica isento da sua obrigação de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, e a responsabilidade é transferida para o Estado‑Membro requerente. Este prazo pode ser alargado para um ano, no máximo, se a transferência não tiver sido efetuada devido a retenção da pessoa em causa, ou para 18 meses, em caso de fuga.

[…]»

 Direito irlandês

8        O artigo 3.o do European Union (Dublin System) Regulations 2018 [Regulamento de 2018 relativo à União Europeia (Sistema de Dublim)] (S. I. n.o 62 de 2018), a seguir «Regulamento de 2018») confere aos agentes da proteção internacional, que fazem parte do International Protection Office (Serviço de Proteção Internacional, Irlanda, a seguir «IPO»), a competência para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional em conformidade com os critérios estabelecidos nas disposições do capítulo III do Regulamento Dublim III e para adotar as decisões de transferência.

9        O artigo 6.o do Regulamento de 2018 prevê que o International Protection Appeals (Tribunal de Recurso para a Proteção Internacional, Irlanda) é competente para apreciar um recurso de uma decisão de transferência.

10      O artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento de 2018 aplica o efeito suspensivo previsto no artigo 27.o, n.o 3, alínea a), do Regulamento Dublim III e prevê, em substância, que um requerente de proteção internacional que interponha recurso ao abrigo do artigo 6.o do Regulamento de 2018, tem o direito de permanecer na Irlanda enquanto aguarda o resultado do recurso.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

11      O recorrente no processo principal, AHY, é um nacional somali. Em 21 de janeiro de 2020, apresentou um pedido de proteção internacional na Irlanda, indicando ter sido vítima de um atentado bombista na Somália, que destruiu a sua loja, matou um dos seus empregados e lhe deixou cicatrizes nas mãos e num braço.

12      Uma pesquisa no Eurodac revelou que AHY já tinha apresentado dois pedidos de proteção internacional na Suécia, em 5 de novembro de 2012 e 2 de outubro de 2017, e que esses pedidos tinham sido indeferidos.

13      Por conseguinte, com base no artigo 18.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento Dublim III, as autoridades irlandesas enviaram ao Reino da Suécia um pedido de retomada a cargo, que este Estado‑Membro aceitou em 19 de fevereiro de 2020.

14      Em 23 de julho de 2020, AHY foi notificado de uma decisão de transferência para a Suécia. Em 5 de agosto de 2020impugnou essa decisão do IPO no International Protection Appeals Tribunal (Tribunal de Recurso para a Proteção Internacional), pedindo a aplicação da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III e alegando, nomeadamente, que sofria de depressão.

15      O International Protection Appeals Tribunal (Tribunal de Recurso para a Proteção Internacional) negou provimento a esse recurso em 5 de outubro de 2021 e confirmou a decisão de transferência.

16      Após ter sido informado de que devia apresentar‑se no Garda National Immigration Bureau (Serviço Nacional da Imigração, Irlanda) em 16 de dezembro do mesmo ano, a fim de preparar a sua transferência para a Suécia, que devia ser efetuada o mais tardar em 6 de abril de 2022, AHY submeteu, em 15 de novembro de 2021, um pedido ao ministro para que este exercesse o poder discricionário previsto no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III. Este pedido foi indeferido em 16 de fevereiro de 2022.

17      AHY interpôs recurso desta decisão do ministro no órgão jurisdicional de reenvio, a High Court (Tribunal Superior, Irlanda). Em apoio desse recurso alega, nomeadamente, que, por força do artigo 27.o do Regulamento Dublim III, os recursos das decisões em que é recusado fazer uso do poder discricionário previsto no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento têm efeito suspensivo automático.

18      Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, na Irlanda, a decisão de proceder, ou não, à transferência de um requerente de proteção internacional é da competência do IPO, ao passo que a decisão de exercer, ou não, o poder discricionário ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III é abrangida pelas prerrogativas do ministro. Além disso, os recursos das decisões de transferência, previstos no artigo 27.o deste regulamento, devem ser interpostos no International Protection Appeals Tribunal (Tribunal de Recurso para a Proteção Internacional) ao abrigo do artigo 6.o do Regulamento de 2018, ao passo que as decisões do ministro podem ser impugnadas na High Court (Tribunal Superior) no âmbito exclusivo do recurso de judicial review, que constitui um recurso judicial específico destinado a fiscalizar a legalidade da ação administrativa.

19      Este sistema origina numerosas dificuldades devido à falta de coordenação dos processos e dos prazos em que essas decisões e esses recursos devem ser interpostos. Assim, um requerente de proteção internacional objeto de uma decisão de transferência, como o recorrente no processo principal, pode pedir, após ser negado provimento ao seu recurso da decisão de transferência pelo International Protection Appeals Tribunal (Tribunal de Recurso para a Proteção Internacional), a aplicação da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III.

20      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre o efeito suspensivo que um recurso de uma decisão do ministro que recusa exercer o poder discricionário que lhe é conferido pelo artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III pode ter sobre uma decisão de transferência, nomeadamente quando esta decisão já foi objeto de um recurso ao abrigo do artigo 27.o desse regulamento. A este respeito, faz referência ao Acórdão de 23 de janeiro de 2019, M.A. e o. (C‑661/17, a seguir «Acórdão M.A. e o.», EU:C:2019:53), e precisa que, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça não parece ter decidido a questão de saber se as disposições relativas ao efeito suspensivo que constam no artigo 27.o do referido regulamento se aplicam quando é interposto recurso de uma decisão tomada ao abrigo do artigo 17.o desse mesmo regulamento.

21      Nestas circunstâncias, a High Court (Tribunal Superior) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O direito a uma via de recurso efetiva, sob a forma de recurso ou de pedido de revisão, de facto e de direito, da “decisão de transferência” nos termos do disposto no artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento [Dublim III], abrange também o direito a um recurso efetivo de uma decisão, tomada pelo Estado‑Membro nos termos do artigo 17.o, n.o 1 do Regulamento Dublim III, quanto ao exercício da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, relativa à questão de saber se deve ou não analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja, ao abrigo dos critérios definidos no Regulamento Dublim III, da sua competência?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão prejudicial:

a)      daí resulta que um Estado‑Membro requerente está impedido de executar uma decisão de transferência enquanto não houver uma decisão sobre o pedido do recorrente relativo ao exercício da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1 do Regulamento Dublim III?

b)      as disposições do artigo 27.o, n.o 3, [do Regulamento Dublim III], que impõem aos Estados‑Membros a obrigação de prever, na sua legislação nacional, uma das três formas de efeito suspensivo dos recursos ou pedidos de revisão de decisões de transferência, abrangem o recurso de uma decisão tomada nos termos do artigo 17.o, n.o 1, [deste regulamento] que recusa o exercício da faculdade de assumir a responsabilidade por um pedido de proteção internacional […]?

c)      quando nenhuma lei nacional específica prevê uma das três formas, previstas no artigo 27.o, n.o 3, [do Regulamento Dublim III] de efeito suspensivo dos recursos de uma decisão de recusa [tomada nos termos do artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento], são os órgãos jurisdicionais obrigados a reconhecer, ao abrigo da sua legislação nacional, um efeito suspensivo numa dessas três formas e, na afirmativa, qual delas?

d)      devem todas as vias de recurso suspensivas previstas no artigo 27.o, n.o 3, [do Regulamento Dublim III] ser interpretadas no sentido de que suspendem a execução de uma decisão de transferência nos termos do artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III?

3)      Em caso de resposta negativa à primeira questão prejudicial:

a)      o direito à ação ao abrigo do artigo 47.o da [Carta] opõe‑se a que um Estado‑Membro requerente execute uma decisão de transferência enquanto não houver uma decisão sobre o pedido do recorrente relativo ao exercício da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1 do Regulamento Dublim III?

b)      o direito à ação ao abrigo do artigo 47.o da [Carta] opõe‑se a que um Estado‑Membro requerente execute uma decisão de transferência enquanto não houver uma decisão sobre o recurso de fiscalização jurisdicional (judicial review), interposto ao abrigo do direito nacional, de uma decisão de recusa [tomada nos termos do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III]?

c)      a título subsidiário, deve um recurso de [judicial review] de uma decisão de recusa [tomada nos termos do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III] interposto ao abrigo das disposições do direito nacional, resultar na suspensão da execução de uma decisão de transferência por força do artigo 29.o, n.o 1, [deste] [r]egulamento ou ter efeito suspensivo sobre a decisão de transferência?»

 Tramitação processual no Tribunal de Justiça

22      O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o processo fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 23.o‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

23      Em 21 de junho de 2022, a Segunda Secção do Tribunal de Justiça decidiu, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, indeferir esse pedido.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

24      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que impõe aos Estados‑Membros que prevejam um recurso efetivo de uma decisão tomada ao abrigo da cláusula discricionária referida no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento.

25      A este respeito, o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III prevê que a pessoa objeto de uma decisão de transferência tem direito a uma via de recurso efetiva, sob a forma de recurso ou de pedido de revisão, de facto e de direito, da referida decisão, para um órgão jurisdicional.

26      O alcance desse recurso é precisado no considerando 19 deste regulamento, que indica que, a fim de garantir o respeito do direito internacional, o recurso efetivo instituído pelo referido regulamento contra as decisões de transferência deverá abranger, por um lado, a análise da aplicação do mesmo regulamento e, por outro, a análise da situação de facto e de direito no Estado‑Membro para o qual o requerente é transferido (Acórdão de 2 de abril de 2019, H. e R., C‑582/17 e C‑583/17, EU:C:2019:280, n.o 39 e jurisprudência referida).

27      Após ter salientado, no n.o 75 do Acórdão M.A. e o., que o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III não prevê expressamente o recurso de uma decisão de um Estado‑Membro de não fazer uso da faculdade prevista no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento, o Tribunal de Justiça declarou no n.o 4 do dispositivo desse acórdão que esta primeira disposição devia ser interpretada no sentido de que não impõe aos Estados‑Membros que prevejam esse recurso da decisão de não fazer uso da faculdade prevista no artigo 17.o, n.o 1, do referido regulamento, sem prejuízo da possibilidade de impugnar esta decisão no âmbito de um recurso da decisão de transferência.

28      Contudo, no caso em apreço, AHY alega perante o órgão jurisdicional de reenvio e nas suas observações escritas no Tribunal de Justiça, que o direito a um recurso efetivo de uma decisão de transferência, previsto no artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, deve também incluir o direito a um recurso efetivo de uma decisão tomada nos termos do artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento pelo facto de o Tribunal de Justiça ter igualmente afirmado, no n.o 64 do Acórdão M.A. e o., que o poder de apreciação conferido aos Estados‑Membros por esta última disposição faz parte integrante dos mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável por um pedido de proteção internacional previstos no referido regulamento.

29      As disposições do Regulamento Dublim III não podem ser interpretadas dessa forma.

30      É verdade que o Tribunal de Justiça já indicou que o recurso previsto no artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III não pode ser objeto de interpretação restritiva (v., neste sentido, Acórdão de 7 de junho de 2016, Ghezelbash, C‑63/15, EU:C:2016:409, n.o 53).

31      Assim, o Tribunal de Justiça já declarou que, atendendo nomeadamente à evolução geral ocorrida no sistema de determinação do Estado‑Membro responsável por um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros devido à adoção do Regulamento Dublim III e aos objetivos prosseguidos por este regulamento, o seu artigo 27.o, n.o 1, deve ser interpretado no sentido de que o recurso nele previsto contra uma decisão de transferência deve poder ter por objeto tanto o respeito das regras de atribuição da responsabilidade pela análise de um pedido de proteção internacional como as garantias processuais previstas pelo referido regulamento (Acórdão de 2 de abril de 2019, H. e R., C‑582/17 e C‑583/17, EU:C:2019:280, n.o 40 e jurisprudência referida).

32      Todavia, mesmo que se deva considerar que o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III faz parte integrante dos mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional previstos neste regulamento, esta disposição não pode, devido à sua natureza, ser equiparada aos outros critérios de determinação do Estado‑Membro responsável por um pedido de proteção internacional previstos no referido regulamento.

33      Com efeito, importa recordar que, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, um pedido de proteção internacional apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida no território de um dos Estados‑Membros, seja qual for, é, em princípio, analisado unicamente pelo Estado‑Membro que os critérios enunciados no capítulo III deste regulamento designarem como responsável.

34      O sistema de determinação do Estado‑Membro responsável elaborado pelo legislador da União, no qual se inscreve o referido regulamento, tem por objetivo, como decorre dos seus considerandos 4 e 5, permitir, em especial, a determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de concessão de proteção internacional e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional.

35      Neste contexto, um Estado‑Membro onde foi apresentado um pedido de proteção internacional é obrigado a seguir os procedimentos previstos no capítulo VI do mesmo regulamento para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise desse pedido, a requerer a esse Estado‑Membro que tome a cargo a pessoa em causa e, uma vez aceite esse pedido, a transferir essa pessoa para o referido Estado‑Membro.

36      Todavia, em derrogação deste artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, o artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento prevê que cada Estado‑Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força de tais critérios.

37      O objetivo desta disposição é preservar as prerrogativas dos Estados‑Membros no exercício do direito de conceder proteção internacional (Acórdão de 5 de julho de 2018, X, C‑213/17, EU:C:2018:538, n.o 61 e jurisprudência referida).

38      Além disso, resulta claramente da redação do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III que esta disposição é de natureza facultativa uma vez que deixa à discrição de cada Estado‑Membro a decisão de proceder à análise de um pedido de proteção internacional que lhe é apresentado, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios de determinação do Estado‑Membro responsável definidos nesse regulamento. O exercício desta faculdade não está, por outro lado, sujeito a nenhuma condição particular. A referida faculdade visa permitir a cada Estado‑Membro decidir soberanamente, em função de considerações políticas, humanitárias ou práticas, aceitar analisar um pedido de proteção internacional mesmo que não seja responsável em aplicação dos critérios definidos pelo referido regulamento [Acórdão de 30 de novembro de 2023, Ministero dell’Interno e o. (Panfleto comum — Repulsão indireta), C‑228/21, C‑254/21, C‑297/21, C‑315/21 e C‑328/21, EU:C:2023:934, n.o 146 e jurisprudência referida].

39      Tendo em conta o alcance do poder de apreciação assim conferido aos Estados‑Membros, cabe ao Estado‑Membro em causa determinar as circunstâncias nas quais pretende fazer uso da faculdade conferida pela cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III e aceitar analisar ele próprio um pedido de proteção internacional pelo qual não é responsável por força dos critérios definidos nesse regulamento [Acórdão de 30 de novembro de 2023, Ministero dell’Interno e o. (Panfleto comum — Repulsão indireta), C‑228/21, C‑254/21, C‑297/21, C‑315/21 e C‑328/21, EU:C:2023:934, n.o 147 e jurisprudência referida].

40      Neste contexto, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que nenhuma circunstância, ainda que se enquadre nos direitos fundamentais, pode obrigar um Estado‑Membro a fazer uso dessa cláusula e a analisar ele próprio um pedido que não lhe incumbe (v., por analogia, Acórdão de 14 de novembro de 2013, Puid, C‑4/11, EU:C:2013:740, n.o 37, e Acórdãos de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o., C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 97, e M. A. e o., n.os 61 e 72).

41      É certo que, como foi recordado no n.o 31 do presente acórdão, o Tribunal de Justiça declarou várias vezes que o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que o recurso aí previsto de uma decisão de transferência deve poder ter por objeto tanto o respeito das regras de atribuição da responsabilidade de analisar um pedido de proteção internacional como as garantias processuais previstas nesse regulamento. Todavia, como salientou o advogado‑geral nos n.os 62 e 63 das suas conclusões, esta jurisprudência, resultante, nomeadamente, dos Acórdãos de 7 de junho de 2016, Ghezelbash (C‑63/15, EU:C:2016:409), de 7 de junho de 2016, Karim (C‑155/15, EU:C:2016:410), e de 26 de julho de 2017, Mengesteab (C‑670/16, EU:C:2017:587), assenta na premissa de que cada uma das disposições deste regulamento em causa nesses acórdãos se inseria no quadro em que o processo de determinação do Estado‑Membro responsável deve ter lugar. Estas disposições, como o artigo 19.o, n.o 2, segundo parágrafo, deste regulamento, ou o artigo 21.o, n.o 1, do referido regulamento, enunciam, com efeito, regras que o Estado‑Membro em causa é obrigado a aplicar por força do mesmo regulamento e que, por conseguinte, conferem ao requerente de proteção internacional o direito a que esse Estado cumpra as suas obrigações nesse sentido.

42      Ora, como decorre do considerando 17 do Regulamento Dublim III, este regulamento estabelece, pelas disposições do seu capítulo III, os «critérios vinculativos» para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional, conferindo aos Estados‑Membros, no artigo 17.o do referido regulamento, que se insere no seu capítulo IV, a faculdade de afastar a aplicação desses critérios de responsabilidade e de analisar um pedido de proteção internacional que lhes tenha sido apresentado, ou a outro Estado‑Membro, mesmo que tal análise não seja da sua responsabilidade nos termos desses critérios vinculativos. Por conseguinte, a decisão de um Estado de exercer, ou não, o poder previsto no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III e de analisar, ou não, um pedido de proteção internacional é uma decisão discricionária que não se baseia nos critérios vinculativos que esse Estado‑Membro deve respeitar nos termos do referido regulamento.

43      Daqui resulta que uma decisão tomada ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III não pode ser equiparada a uma decisão de transferência, na aceção do artigo 27.o, n.o 1, deste regulamento, pelo que esta última disposição não impõe aos Estados‑Membros que prevejam um recurso efetivo dessa decisão discricionária.

44      Esta interpretação não pode ser posta em causa pelo facto de, no Acórdão M.A. e o., o Tribunal de Justiça ter declarado que o facto de o artigo 27.o, n.o 1, do referido regulamento não impor aos Estados‑Membros que prevejam esse recurso não impedia a pessoa em causa de impugnar essa decisão discricionária no âmbito de um recurso da decisão de transferência de que é objeto.

45      Com efeito, não resulta de modo nenhum desta mesma consideração que a possibilidade de impugnar essa recusa de fazer uso da cláusula discricionária no âmbito de um recurso da decisão de transferência tem o seu fundamento no direito da União.

46      Pelo contrário, uma vez que o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III não exige que os Estados‑Membros prevejam um recurso específico da decisão que recusa exercer o poder discricionário previsto no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento, a possibilidade de impugnar essa decisão num recurso da decisão de transferência só pode assentar no direito nacional.

47      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que não impõe aos Estados‑Membros que prevejam um recurso efetivo de uma decisão tomada ao abrigo da cláusula discricionária referida no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento.

 Quanto à segunda questão

48      A segunda questão é submetida para o caso de ser dada resposta afirmativa à primeira questão. Tendo em consideração a resposta dada à primeira, não há que responder à segunda.

 Quanto à terceira questão

49      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, e em caso de resposta negativa à primeira questão, se o artigo 47.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado‑Membro execute uma decisão de transferência enquanto não houver uma decisão sobre o pedido destinado a que esse Estado exerça o seu poder discricionário ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, ou sobre um recurso judicial específico, interposto nos termos das disposições do direito nacional, da resposta a esse pedido. A título subsidiário, pergunta se o artigo 29.o, n.o 1, deste regulamento deve ser interpretado no sentido de que o prazo de seis meses para proceder à transferência do requerente de proteção internacional previsto por esta disposição começa a correr a partir da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão de uma decisão de transferência, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3, do referido regulamento, e não a partir da data da decisão final relativa a um recurso interposto da decisão do Estado‑Membro requerente, tomada após a adoção da decisão de transferência, de não fazer uso da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, desse mesmo regulamento para analisar o pedido de proteção internacional.

50      No que respeita, em primeiro lugar, às interrogações do órgão jurisdicional de reenvio relativas ao artigo 47.o da Carta, estas visam determinar se esta disposição impõe um efeito suspensivo da execução da decisão de transferência quando o requerente de proteção internacional tenha solicitado a aplicação da cláusula discricionária referida no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III ou quando o requerente tenha interposto recurso da resposta dada a esse pedido.

51      A este respeito, há que constatar que, uma vez que, como recordado no n.o 32 do presente acórdão, se deve considerar que o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III faz parte integrante dos mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional previstos neste regulamento, a situação em causa no processo principal, uma vez que diz respeito ao exercício de um poder discricionário que a referida disposição confere aos Estados‑Membros, comporta uma «aplicação do direito da União», na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, pelo que, de modo geral, esta se aplica à referida situação (v., neste sentido, Acórdão de 19 de novembro de 2019, TSN e AKT, C‑609/17 e C‑610/17, EU:C:2019:981, n.o 50 e jurisprudência referida).

52      Todavia, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, o artigo 47.o da Carta só é aplicável se a pessoa que a invoca se baseia em direitos ou liberdades garantidos pelo direito da União ou se essa pessoa for objeto de procedimentos que constituem uma aplicação do direito da União [Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, RS (Efeito dos acórdãos de um Tribunal Constitucional), C‑430/21, EU:C:2022:99, n.o 34 e jurisprudência referida].

53      Ora, decorre da resposta dada à primeira questão que um Estado‑Membro não pode ser obrigado a fazer uso da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III.

54      Na falta dessa obrigação, um requerente de proteção internacional não dispõe de nenhum direito garantido pelo direito da União a que um Estado‑Membro faça uso dessa cláusula e do poder discricionário que a mesma lhe confere.

55      Uma vez que a situação em causa no processo principal não diz respeito àquela em que a pessoa que invoca o artigo 47.o da Carta invoca os direitos ou liberdades garantidos pelo direito da União nem, aliás, evidentemente, uma situação em que essa pessoa é objeto de procedimentos que constituem uma aplicação do direito da União, decorre da jurisprudência recordada no n.o 52 do presente acórdão que este artigo 47.o não é aplicável a uma situação como a que está em causa no processo principal. Por conseguinte, o artigo 47.o da Carta não se opõe a que um Estado‑Membro execute uma decisão de transferência antes de se ter pronunciado sobre um pedido apresentado ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III ou sobre um recurso da resposta a esse pedido.

56      No que respeita, em segundo lugar, às interrogações do órgão jurisdicional de reenvio formuladas a título subsidiário, estas visam determinar se o artigo 29.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que o prazo de seis meses previsto nesta disposição começa a correr a partir da data da decisão final relativa a um recurso interposto da decisão do Estado‑Membro requerente, tomada após a adoção da decisão de transferência, de não fazer uso da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento para analisar o pedido de proteção internacional.

57      Não se pode deixar de observar que a redação deste artigo 29.o, n.o 1, é clara e precisa a este respeito.

58      Com efeito, esta disposição prevê que o prazo de seis meses começa a contar a partir da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3, do Regulamento Dublim III.

59      Uma vez que a referida disposição não prevê que esse prazo comece a correr a partir da decisão final relativa a um recurso interposto da decisão do Estado‑Membro requerente, tomada após a adoção da decisão de transferência, de não fazer uso da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento para analisar o pedido de proteção internacional, não se pode considerar que esse recurso tem por efeito suspender o prazo de execução de uma decisão de transferência previsto no artigo 29.o, n.o 1, do referido regulamento ou qualquer outro efeito suspensivo sobre a decisão de transferência.

60      Por conseguinte, o prazo de seis meses para proceder à transferência do requerente de proteção internacional começa a correr, numa situação como a que está em causa no processo principal, a partir da data de indeferimento do recurso da decisão de transferência da pessoa em causa e não a partir da data da decisão final relativa a um recurso interposto da decisão do Estado‑Membro requerente, tomada após a adoção da decisão de transferência, de não fazer uso da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, desse mesmo regulamento para analisar o pedido de proteção internacional.

61      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à terceira questão da seguinte forma:

–        O artigo 47.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que não é aplicável a uma situação em que um requerente de proteção internacional objeto de uma decisão de transferência pediu ao Estado‑Membro que adotou essa decisão que exercesse o seu poder discricionário ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III ou interpôs recurso judicial da resposta dada a esse pedido, pelo que esta disposição da Carta não se opõe a fortiori a que um Estado‑Membro execute, nestas condições, uma decisão de transferência antes de ter sido proferida uma decisão sobre esse pedido ou sobre um recurso da resposta dada a esse pedido.

–        O artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que o prazo de seis meses para proceder à transferência do requerente de proteção internacional previsto por esta disposição começa a correr a partir da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão de uma decisão de transferência, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3, desse regulamento, e não a partir da data da decisão final relativa a um recurso interposto da decisão do Estado‑Membro requerente, tomada após a adoção da decisão de transferência, de não fazer uso da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, desse mesmo regulamento para analisar o pedido de proteção internacional.

 Quanto às despesas

62      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

1)      O artigo 27.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do EstadoMembro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos EstadosMembros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida,

deve ser interpretado no sentido de que:

não impõe aos EstadosMembros que prevejam um recurso efetivo de uma decisão tomada ao abrigo da cláusula discricionária referida no artigo 17.o, n.o 1, deste regulamento.

2)      O artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

deve ser interpretado no sentido de que:

não é aplicável a uma situação em que um requerente de proteção internacional objeto de uma decisão de transferência pediu ao EstadoMembro que adotou essa decisão que exercesse o seu poder discricionário ao abrigo do artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 604/2013 ou interpôs recurso judicial da resposta dada a esse pedido, pelo que esta disposição da Carta dos Direitos Fundamentais não se opõe a fortiori a que um EstadoMembro execute, nestas condições, uma decisão de transferência antes de ter sido proferida uma decisão sobre esse pedido ou sobre um recurso da resposta dada a esse pedido.

O artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 604/2013

deve ser interpretado no sentido de que:

o prazo de seis meses para proceder à transferência do requerente de proteção internacional previsto por esta disposição começa a correr a partir da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro EstadoMembro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão de uma decisão de transferência, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3, desse regulamento, e não a partir da data da decisão final relativa a um recurso interposto da decisão do EstadoMembro requerente, tomada após a adoção da decisão de transferência, de não fazer uso da cláusula discricionária prevista no artigo 17.o, n.o 1, desse mesmo regulamento para analisar o pedido de proteção internacional.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.