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CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 27 de junho de 2024 (1)

Processo C202/24 [Alchaster] (i) 

Minister for Justice and Equality

contra

MA

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda)]

«Reenvio prejudicial — Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e o Reino Unido — Entrega de pessoas — Artigo 49.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Princípio da legalidade dos delitos e das penas — Alteração do regime de liberdade condicional»






I.      Introdução

1.        O presente pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda) tem por objeto a interpretação, em primeiro lugar, do Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, por outro (a seguir «ACC») (2), e, em segundo lugar, do artigo 49.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2.        Este pedido foi apresentado no contexto da execução, na Irlanda, de um mandado de detenção de MA emitido pelas autoridades judiciárias do Reino Unido para efeitos de um procedimento penal. O órgão jurisdicional de reenvio pretende determinar as obrigações de uma autoridade judiciária que executa um mandado de detenção quando a pessoa procurada alega que os seus direitos fundamentais serão violados pelas autoridades do Estado de emissão.

3.        Nas presentes conclusões, defenderei que, embora as disposições do ACC relativas aos processos de entrega consagrem um elevado grau de confiança entre a União Europeia e o Reino Unido nos respetivos sistemas jurídicos e, em determinadas circunstâncias, a autoridade judiciária de execução possa recusar a execução de um mandado de detenção, não existe nenhuma razão para não executar o mandado de detenção no caso em apreço.

II.    Quadro jurídico

4.        O ACC é um acordo de associação baseado no artigo 217.o TFUE (3) e no artigo 101.o do Tratado que institui a Comunidade Europeia da Energia Atómica (4). Após um período inicial de aplicação provisória com início em 1 de janeiro de 2021 (5), este acordo entrou em vigor em 1 de maio de 2021, na sequência da sua ratificação pela União Europeia e pelo Reino Unido (6). O acordo é composto por sete partes (7).

5.        O artigo 5.o do ACC, com a epígrafe «Direitos particulares», que se insere na parte um (8), título II (9), do ACC, tem a seguinte redação:

«1.      Sem prejuízo do disposto no artigo SSC.67 do Protocolo relativo à coordenação da segurança social, e excetuando, no que respeita à União, a parte três do presente Acordo, nenhuma disposição do presente Acordo ou de qualquer acordo complementar é interpretada no sentido de conferir direitos ou impor obrigações a pessoas, além dos direitos e obrigações criados pelas Partes ao abrigo do direito internacional público, nem no sentido de permitir que o presente Acordo ou qualquer acordo complementar seja diretamente invocado nas ordens jurídicas internas das Partes.

2.      As Partes não preveem, nas respetivas ordens jurídicas, um direito de ação contra a outra Parte com fundamento no facto de a outra Parte ter violado o presente Acordo ou qualquer acordo complementar.»

6.        A parte três diz respeito à cooperação das autoridades policiais e judiciárias em matéria penal.

7.        O artigo 524.o do ACC, constante da parte três, título I (10), com a epígrafe «Defesa dos direitos humanos e das liberdades fundamentais», tem a seguinte redação:

«1.      A cooperação prevista na presente parte baseia‑se no respeito de longa data pelas Partes e pelos Estados‑Membros pela democracia, do Estado de direito e da defesa dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas, incluindo os consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, bem como na importância de aplicar internamente os direitos e liberdades consagrados nessa Convenção.

2.      Nenhuma disposição da presente parte pode ter por efeito alterar a obrigação de respeitar os direitos fundamentais e os princípios jurídicos consagrados, nomeadamente, na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e, no caso da União e dos Estados‑Membros, na [Carta].»

8.        O título VII da parte três (artigos 596.o a 632.o), com a epígrafe «Entrega», estabelece um regime de entrega entre os Estados‑Membros e o Reino Unido. Estas disposições são complementadas pelo anexo 43, que define as informações que devem constar de um mandado de detenção (11).

9.        O artigo 599.o, n.o 3, do ACC (12) tem a seguinte redação:

«Sem prejuízo do artigo 600.o, do artigo 601.o, n.o 1, alíneas b) a h), e dos artigos 602.o, 603.o e 604.o, nenhum Estado recusa a execução de um mandado de detenção emitido relativamente à conduta a seguir descrita, sempre que tal conduta seja punível com pena privativa de liberdade ou uma ordem de detenção de duração máxima de pelo menos 12 meses:

a)      A conduta de uma pessoa que contribua para a prática, por um grupo de pessoas que atue com objetivos comuns, de uma ou mais infrações no domínio do terrorismo referidas nos artigos 1.o e 2.o da Convenção Europeia para a Repressão do Terrorismo, celebrada em Estrasburgo em 27 de janeiro de 1977, ou em relação ao tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, ou homicídio voluntário, ofensas corporais graves, rapto, sequestro, tomada de reféns e violação, mesmo que essa pessoa não participe na prática efetiva da infração ou infrações em causa; o contributo da pessoa deve ser intencional e fundado no conhecimento de que a sua participação contribuirá para a realização das atividades criminosas do grupo; ou

b)      O terrorismo, tal como definido no anexo 45.»

10.      O artigo 604.o, alínea c), do ACC (13) dispõe que «[s]e houver motivos substanciais para crer que existe um risco real para a defesa dos direitos fundamentais da pessoa procurada, a autoridade judiciária de execução pode exigir, se for caso disso, garantias adicionais quanto ao tratamento da pessoa procurada após a sua entrega, antes de decidir se executa o mandado de detenção».

III. Processo principal e questão prejudicial

11.      Em 26 de novembro de 2021, o juiz da Magistrates’ Court (Tribunal de Magistrados) da Irlanda do Norte (Reino Unido) emitiu quatro mandados de detenção respeitantes a quatro crimes que envolviam terrorismo (14), alegadamente cometidos entre 18 e 20 de julho de 2020.

12.      Por Acórdão de 24 de outubro de 2022 e Despachos de 24 de outubro e 7 de novembro de 2022, a High Court (Tribunal Superior, Irlanda) ordenou a entrega de MA ao Reino Unido e indeferiu o seu pedido de interposição de recurso para a Court of Appeal (Tribunal de Recurso, Irlanda).

13.      Por Decisão de 17 de janeiro de 2023, o Supreme Court (Supremo Tribunal) concedeu a MA autorização para interpor recurso do acórdão e dos despachos da High Court (Tribunal Superior).

14.      MA alega que a sua entrega é incompatível com o princípio da legalidade dos delitos e das penas.

15.      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio observa que o ACC prevê a aplicação de mecanismos de entrega entre o Reino Unido e os Estados‑Membros. Considera que, nos termos da legislação irlandesa aplicável e da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho (15), o Reino Unido deve ser tratado como se fosse um Estado‑Membro.

16.      O órgão jurisdicional de reenvio afirma que, se MA fosse entregue ao Reino Unido e condenado a uma pena de prisão, o seu direito a liberdade condicional seria regulado por legislação britânica adotada após a alegada prática dos crimes que lhe são imputados e pelos quais é sujeito a processo penal.

17.      Com efeito, o regime que permite a liberdade condicional na Irlanda do Norte foi alterado com efeitos a partir de 30 de abril de 2021. Antes desta alteração, uma pessoa condenada pela prática de certos crimes de terrorismo tinha automaticamente direito a liberdade condicional após ter cumprido metade da pena. De acordo com o regime aplicável a partir daquela data, a liberdade condicional dessa pessoa terá de ser aprovada por uma autoridade especializada e só poderá ter lugar depois de a pessoa em causa ter cumprido dois terços da pena.

18.      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio recorda que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (a seguir «TEDH») rejeitou o argumento de que as alterações retroativas dos sistemas de remissão ou de libertação antecipada constituem uma violação do artigo 7.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH»). No entanto, o TEDH considerou, no Acórdão Del Río Prada c. Espanha (16), que as medidas tomadas durante a execução de uma pena poderão afetar o seu alcance. É pois indispensável, no entender do órgão jurisdicional de reenvio, determinar os efeitos exatos deste acórdão para decidir o litígio no processo principal.

19.      Os órgãos jurisdicionais do Reino Unido já se pronunciaram sobre a compatibilidade da legislação britânica em causa com a CEDH. Assim, no seu Acórdão de 19 de abril de 2023, o Supreme Court (Supremo Tribunal, Reino Unido) considerou que a aplicação do regime a crimes cometidos antes da sua entrada em vigor não era incompatível com o artigo 7.o da CEDH, na medida em que o regime apenas alterava o modo de cumprimento das penas privativas de liberdade das pessoas em causa, sem aumentar a duração dessas penas.

20.      Neste contexto, tendo em conta, nomeadamente, as garantias oferecidas pelo sistema judicial do Reino Unido no que respeita à aplicação da CEDH, dada a falta de indícios de uma falha sistémica que sugerisse uma violação provável e flagrante dos direitos garantidos pela CEDH em caso de entrega, e dada a possibilidade de MA recorrer ao TEDH, o órgão jurisdicional de reenvio rejeitou o argumento de MA de que existia um risco de violação dos referidos direitos.

21.      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à possibilidade de chegar a uma conclusão semelhante no que respeita ao risco de violação do artigo 49.o, n.o 1, da Carta.

22.      A este propósito, esse órgão jurisdicional refere que, uma vez que o artigo 49.o, n.o 1, da Carta corresponde ao artigo 7.o da CEDH, estas duas disposições devem, em princípio, ter o mesmo âmbito, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, da Carta. Por conseguinte, afigura‑se possível recorrer ao raciocínio adotado em relação ao artigo 7.o da CEDH sem proceder a um exame mais aprofundado. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio observa que o Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou sobre as implicações do artigo 49.o da Carta no contexto de uma alteração das disposições relativas à liberdade condicional.

23.      Além disso, uma vez que o Estado de execução está obrigado a entregar a pessoa procurada, o órgão jurisdicional de reenvio considera necessário determinar se esse Estado tem competência para se pronunciar sobre um argumento baseado na incompatibilidade do artigo 49.o, n.o 1, da Carta com disposições em matéria de penas suscetíveis de serem aplicadas no Estado de emissão, quando esse Estado não está obrigado a respeitar a Carta e o Tribunal de Justiça estabeleceu requisitos muito exigentes quanto à necessidade de ter em conta o risco de violação de direitos fundamentais no Estado‑Membro de emissão.

24.      O órgão jurisdicional de reenvio considera, portanto, que deve perguntar ao Tribunal de Justiça quais são os critérios que a autoridade judiciária de execução deve aplicar para apreciar o respeito, no Estado de emissão, do princípio da legalidade das penas e se existe um risco de violação deste princípio nos casos em que nem a Constituição nacional nem a CEDH se opõem à entrega.

25.      Nestas condições, por Despacho de 7 de março de 2024, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 14 de março de 2024, o Supreme Court (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Considerando que, em conformidade com o [ACC] (que incorpora as disposições da [Decisão‑Quadro 2002/584]), é solicitada a entrega de uma pessoa para efeitos de um procedimento penal pela prática de crimes terroristas e a pessoa em causa se opõe a tal entrega, alegando que a mesma constituiria uma violação do artigo 7.o da [CEDH] e do artigo 49.o, n.o 2, da [Carta], com base no facto de ter sido introduzida uma medida legislativa que altera a proporção da pena que teria de ser cumprida num estabelecimento prisional e as condições de concessão de liberdade condicional, a qual foi adotada após a data da alegada prática do crime a que diz respeito o pedido de entrega e, tendo em conta as seguintes considerações:

i)      O Estado requerente (neste caso, o Reino Unido) é parte na CEDH e dá‑lhe aplicação no seu direito interno através do Human Rights Act 1998 (Lei de 1998 relativa aos Direitos Humanos);

ii)      A aplicação das medidas em questão aos reclusos que já se encontram a cumprir uma pena imposta por um órgão jurisdicional foi considerada compatível com a CEDH pelos órgãos jurisdicionais do Reino Unido [incluindo o Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido)];

iii)      Qualquer pessoa, incluindo a pessoa em causa, caso seja entregue, continua a poder apresentar uma queixa no [TEDH];

iv)      Nada indica que o Estado requerente não daria cumprimento a uma decisão do TEDH;

v)      Por conseguinte, [o Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda)] entende que não foi provado que a entrega comporta um risco real de violação do artigo 7.o da CEDH ou da Constituição;

vi)      Não foi preconizado que o artigo 19.o da Carta obsta à entrega;

vii)      O artigo 49.o da Carta não se aplica ao processo de julgamento ou de determinação da pena;

viii)      Não foi alegado que existem motivos para crer que existe uma diferença considerável na aplicação do artigo 7.o da CEDH e do artigo 49.o da Carta;

Tendo em conta o artigo 52.o, n.o 3, da Carta e a obrigação de confiança entre os Estados‑Membros e aqueles que estão obrigados a proceder à entrega ao abrigo de um mandado de detenção europeu [e] em conformidade com o [ACC], pode um órgão jurisdicional, cuja decisão não é suscetível de recurso, na aceção do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, concluir que a pessoa procurada não fez prova de um risco real de que a sua entrega constituiria uma violação do artigo 49.o, n.o 2, da Carta ou está esse órgão jurisdicional obrigado a realizar um exame mais aprofundado e, em caso afirmativo, qual a natureza e o âmbito desse exame?»

IV.    Tramitação processual no Tribunal de Justiça

26.      Por Requerimento avulso de 25 de março de 2024, o Supreme Court (Supremo Tribunal) pediu que o presente processo fosse submetido à tramitação acelerada prevista no artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

27.      O artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo estabelece que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal pode, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, decidir submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada, quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos (17).

28.      Em 22 de abril de 2024, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de submeter o presente reenvio prejudicial a tramitação acelerada, em conformidade com o artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo. O presidente do Tribunal de Justiça baseou a sua decisão no facto de a questão prejudicial colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio ter sido suscitada num processo relativo a uma pessoa que se encontra detida, na aceção do artigo 267.o, quarto parágrafo, TFUE. Além disso, tendo em conta a natureza desta questão e as circunstâncias em que é colocada, a resposta à mesma é suscetível de afetar a manutenção da pessoa em causa em detenção (18).

29.      O presidente do Tribunal de Justiça fixou a data‑limite para a apresentação de observações escritas em 7 de maio de 2024. Em conformidade com o artigo 105.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a data da audiência foi marcada para 4 de junho de 2024.

30.      Foram apresentadas observações escritas pelas partes no processo principal, pelo Governo Húngaro, pela Comissão Europeia e pelo Governo do Reino Unido (19). Todas as partes, com exceção do Governo Húngaro, estiveram presentes na audiência, que se realizou em 4 de junho de 2024.

V.      Apreciação

31.      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, determinar se as autoridades judiciárias de um Estado‑Membro se podem recusar a executar um mandado de detenção emitido, para efeitos de um procedimento penal, por uma autoridade judiciária do Reino Unido ao abrigo do ACC, com fundamento na possibilidade de existir um risco de violação do artigo 49.o, n.o 1, da Carta, uma vez que, se for condenada, a pessoa procurada ficará sujeita a um regime de liberdade condicional mais severo do que aquele que estava em vigor à data da prática do alegado crime. O órgão jurisdicional de reenvio solicita igualmente orientações sobre a natureza e o âmbito do exame a efetuar antes de decidir, com esse fundamento, da recusa de execução do mandado de detenção em causa.

A.      Observações preliminares

1.      O ACC e a Carta como direito aplicável

32.      Para responder à questão, começarei por determinar quais as normas jurídicas que regem o caso em apreço e, fundamentalmente, qual o critério interpretativo e jurisprudencial a aplicar, antes de me debruçar sobre a questão de mérito, ou seja, as obrigações que essas normas impõem à autoridade judiciária de execução (20).

33.      Uma vez que os quatro mandados de detenção (21) foram emitidos após a entrada em vigor do ACC, as disposições deste acordo são aplicáveis ao caso em apreço. A este respeito, importa esclarecer que, contrariamente ao que afirma o órgão jurisdicional de reenvio, não é a Decisão‑Quadro 2002/584 que deve ser aplicada. Com efeito, esta decisão‑quadro i) era aplicável antes da saída do Reino Unido da União Europeia (22), ii) continuou a ser aplicável durante o período de transição subsequente (23) e iii) deixou de ser aplicável em relação ao Reino Unido após esse período.

34.      Além disso, a Carta é aplicável. O presente processo está abrangido pelo âmbito de aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, uma vez que diz respeito à interpretação do ACC. Na medida em que a questão prejudicial apresentada pelo órgão jurisdicional nacional se refere às obrigações de uma autoridade judiciária (de execução) de um Estado‑Membro da União Europeia, essa autoridade deve, quando atua no âmbito do direito da União, respeitar as exigências da Carta.

2.      Conciliação da confiança mútua com a proteção dos direitos fundamentais

a)      Considerações gerais

35.      Qualquer sistema de entrega transfronteiriça e de execução de mandados de detenção é confrontado com interesses aparentemente contraditórios que, para que o sistema funcione, têm de ser conciliados. Por um lado, há que ter em consideração a eficácia per se do sistema. Para que um processo de entrega funcione, é necessário que os mandados de detenção sejam executados. Tal exige e pressupõe um elevado nível de confiança mútua que se traduz juridicamente no chamado princípio do «reconhecimento mútuo». Este princípio implica a existência de uma ampla equivalência funcional entre os Estados participantes no que respeita aos respetivos sistemas jurídicos, em geral, e à salvaguarda dos direitos fundamentais dos interessados, em particular. Por outro lado, estes mesmos direitos fundamentais têm de ser respeitados. Esta obrigação aplica‑se tanto à autoridade judiciária de emissão como à autoridade judiciária de execução.

36.      Normalmente, são os direitos fundamentais da pessoa procurada que estão, antes de mais, em causa e os Estados têm a obrigação de os proteger. No entanto, a questão pode ser mais complexa. Podem existir situações em que os Estados (de emissão e de execução) tenham de salvaguardar vários direitos fundamentais que não estão necessariamente, mas que podem estar, em conflito, o que exige um delicado exercício de conciliação desses direitos fundamentais. Por exemplo, uma autoridade judiciária de execução tem, obviamente, a obrigação de zelar por que os direitos fundamentais da pessoa procurada sejam respeitados no Estado de emissão. Simultaneamente, consoante o caso, essa mesma autoridade judiciária de execução pode ter a obrigação de assegurar o que é conhecido como a vertente processual do direito à vida, consagrado no artigo 2.o da Carta (24), o que significa que tem de contribuir para a realização de uma investigação eficaz quando o direito à vida de uma pessoa tenha sido violado ou esteja em risco de o ser — o que justifica intrinsecamente uma entrega rápida ao Estado de emissão (25).

37.      Um sistema que imponha a execução de mandados de detenção nos casos em que essa execução resulte numa violação de direitos fundamentais não é concebível nem, à luz do direito da União, compatível com a Carta.

38.      A confiança mútua não é absoluta nem um conceito binário. Pelo contrário, constitui, em sentido figurado, uma escala progressiva, como afirmou a Comissão na audiência. Existem diferentes formas e permutações de confiança mútua. Por outras palavras, quanto maior for a confiança mútua entre as partes, menor será o grau de controlo, por uma autoridade judiciária que executa um mandado de detenção, quanto à questão de saber se, num caso concreto, a pessoa a entregar enfrenta problemas relacionados com os seus direitos fundamentais. No entanto, mesmo nessa situação, a confiança mútua não é sinónimo de confiança «cega» (26), o que nos leva à Decisão‑Quadro 2002/584.

b)      No âmbito da DecisãoQuadro 2002/584

39.      No que respeita a situações intra‑União, ou seja, situações entre Estados‑Membros, importa recordar que estas se regem, como o Tribunal de Justiça afirmou figurativamente no Parecer 2/13 (27), por «características essenciais do direito da União [que] dão origem a uma rede estruturada de princípios, de regras e de relações jurídicas mutuamente interdependentes, que vinculam, reciprocamente, a própria União [Europeia] e os seus Estados‑Membros, e estes entre si, os quais estão comprometidos desde então, como recordado no artigo 1.o, segundo parágrafo, TUE, num “processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa”» (28). Esta estrutura jurídica baseia‑se na premissa fundamental de que, como se afirma no artigo 2.o TUE, cada Estado‑Membro partilha, e reconhece que partilha, com todos os outros Estados‑Membros um conjunto de valores comuns em que se funda a União (29). Esta premissa implica e justifica a existência de confiança mútua entre os Estados‑Membros no reconhecimento desses valores e, portanto, no respeito do direito da União que os aplica (30).

40.      Por conseguinte, o nível mais elevado de confiança mútua em situações de entrega figura na Decisão‑Quadro 2002/584 relativa ao mandado de detenção europeu. Neste contexto, como recorda regularmente o Tribunal de Justiça (31), o considerando 6 da Decisão‑Quadro 2002/584 refere que o mandado de detenção europeu constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu (32) qualificou de «pedra angular» da cooperação judiciária.

41.      Tal significa que as condições para que uma autoridade judiciária de execução não execute um mandado de detenção por motivos relacionados com os direitos fundamentais são extremamente exigentes. Para o efeito, o Tribunal de Justiça tem sustentado reiteradamente que as autoridades judiciárias de execução só podem recusar a execução de um mandado de detenção europeu por motivos decorrentes da Decisão‑Quadro 2002/584, tal como interpretada pelo Tribunal de Justiça, e que, enquanto a execução do mandado de detenção europeu constitui o princípio, a recusa de execução é concebida como uma exceção que deve ser objeto de interpretação estrita (33).

42.      Não obstante, uma vez que resulta do artigo 1.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584 que esta não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais garantidos pela Carta, o Tribunal de Justiça concluiu que o risco de violação destes direitos pode permitir à autoridade judiciária de execução abster‑se, a título excecional e após um exame adequado, de executar um mandado de detenção europeu. Até à data, o Tribunal de Justiça tem considerado que esta conclusão se aplica ao direito de não ser submetido a tratos ou penas desumanos ou degradantes, consagrado no artigo 4.o da Carta (34), ao direito à ação, previsto no artigo 47.o da Carta (35), e ao direito ao respeito pela vida privada e familiar e à proteção do interesse superior da criança, garantidos, respetivamente, pelos artigos 7.o e 24.o da Carta (36).

43.      No que diz respeito à metodologia a aplicar pela autoridade judiciária de execução para avaliar esse risco, o Tribunal de Justiça exige habitualmente que a referida autoridade realize uma apreciação em duas fases. Tal apreciação implica uma análise com base em critérios diferentes, sendo que tais fases não se podem confundir e devem ser conduzidas sucessivamente (37). Para o efeito, a autoridade judiciária de execução deve, numa primeira fase, determinar se existem elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados que demonstrem a existência de um risco real de violação, no Estado‑Membro de emissão, dos direitos fundamentais. Estes elementos podem resultar, nomeadamente, de decisões judiciais internacionais, de decisões, de relatórios e de outros documentos elaborados pelos órgãos do Conselho da Europa ou no âmbito do sistema das Nações Unidas, bem como de informações identificadas na base de dados da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA) (38). Por exemplo, no caso de uma alegada violação dos artigos 7.o e 24.o da Carta, numa segunda fase, a autoridade judiciária de execução deve verificar, de forma concreta e precisa, em que medida as falhas identificadas na primeira fase da apreciação são suscetíveis de ter impacto nas condições de detenção da pessoa sobre a qual recai um mandado de detenção europeu ou de tomada a cargo dos seus filhos e se, considerando a sua situação pessoal, existem motivos sérios e comprovados para acreditar que essa pessoa ou os seus filhos correrão um risco real de violação dos referidos direitos fundamentais (39).

44.      Além disso, o Tribunal de Justiça esclareceu, relativamente ao artigo 47.o (40) e aos artigos 7.o e 24.o da Carta, que é necessário realizar uma apreciação em duas fases, mesmo que a pessoa em causa não invoque a existência de falhas sistémicas ou generalizadas (41). Em contrapartida, o Tribunal de Justiça considerou que uma autoridade judiciária de execução podia estar obrigada, por força do artigo 4.o da Carta, a recusar a execução de um mandado de detenção europeu emitido contra uma pessoa gravemente doente quando não pudesse excluir o risco de violação do referido artigo, sem ter de realizar a primeira fase da apreciação em duas fases (42).

c)      Fora do âmbito da DecisãoQuadro 2002/584

45.      No que respeita à relação entre os Estados‑Membros da União e países terceiros, o ponto de partida é o facto de, axiomaticamente, essa relação não assentar e não poder assentar no mesmo nível de confiança mútua. Com efeito, a relação jurídica geral entre as partes é, por definição, menos próxima.

1)      EstadosMembros — Islândia e Noruega

46.      A Islândia e a Noruega, enquanto dois dos três Estados que são membros do Espaço Económico Europeu, celebraram com a União Europeia um acordo que regula o processo de entrega (43). Como referido no preâmbulo do acordo e sublinhado pelo Tribunal de Justiça, as Partes contratantes expressaram a sua «confiança mútua» na estrutura e no funcionamento dos respetivos sistemas jurídicos e na sua capacidade de garantirem a equidade dos processos judiciais (44).

47.      Para dissipar possíveis dúvidas terminológicas, importa salientar que, tanto quanto sei, as expressões em língua inglesa «mutual trust» e «mutual confidence» são utilizadas indistintamente. Na verdade, na grande maioria das línguas oficiais da União, é apenas utilizada uma expressão. Consequentemente, uma vez que i) todas as línguas oficiais da União são línguas de redação autênticas e, ii) por conseguinte, em princípio, deve ser reconhecido o mesmo valor a todas as versões linguísticas de um ato da União (45), iii) uma interpretação de uma disposição do direito da União implica, assim, uma comparação das diferentes versões linguísticas (46) e iv) as diferentes versões linguísticas de um texto do direito da União devem ser interpretadas de modo uniforme (47), proponho ao Tribunal de Justiça que não procure distinguir entre os casos em que, nas versões inglesas, são utilizados os termos «mutual trust» ou «mutual confidence».

48.      Relativamente ao Acordo sobre os processos de entrega celebrado com a Islândia e a Noruega, o Tribunal de Justiça também concluiu que as disposições deste acordo são «muito semelhantes às disposições correspondentes da Decisão‑Quadro 2002/584» (48).

49.      Neste contexto, refira‑se que, na interpretação deste acordo, o Tribunal de Justiça se baseia na sua própria interpretação das disposições correspondentes da Decisão‑Quadro 2002/584 (49). Mesmo nos casos em que o acordo não contém uma disposição semelhante a uma disposição fundamental da Decisão‑Quadro 2002/584 (50), o Tribunal de Justiça considerou que, «não obstante não existir uma disposição expressa nesse sentido no Acordo sobre os processos de entrega, os Estados partes nesse acordo estão, em princípio, obrigados a dar seguimento a um mandado de detenção emitido por outro Estado parte no referido acordo e só podem recusar executar esse mandado por motivos resultantes do mesmo acordo» (51).

50.      Além disso, no contexto de uma entrega intra‑União que envolvia incidentalmente a Noruega, o Tribunal de Justiça descreveu as relações entre a União Europeia e a Noruega como «relações privilegiadas […] que ultrapassam o quadro de uma cooperação económica e comercial» (52). Com efeito, a Noruega «é parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, participa no sistema europeu comum de asilo, executa e aplica o acervo de Schengen e celebrou com a União o Acordo sobre os processos de entrega entre os Estados‑Membros da União Europeia e a Islândia e a Noruega» (53).

51.      Note‑se que o Tribunal de Justiça invoca, em apoio do seu argumento, a aplicação do acervo de Schengen pela Noruega.  A minha explicação é que tal se deve às características específicas dos casos em questão. Em todos eles, os factos envolviam tanto um Estado que é membro do Espaço Económico Europeu como uma situação intra‑União (54). O caso em apreço, por seu turno, é mais claro, uma vez que respeita apenas a um Estado‑Membro (a Irlanda) e a um Estado terceiro (o Reino Unido).

2)      EstadosMembros — Estados terceiros

52.      No processo que deu origem ao Acórdão Petruhhin (55),  uma das questões que se colocava era, numa situação abrangida pelo âmbito de aplicação da Carta por força do artigo 51.o, n.o 1, da mesma (56), quais os critérios que a autoridade judiciária de execução podia aplicar para executar um pedido de extradição proveniente de um Estado terceiro com o qual a União não tinha celebrado um acordo de extradição (57).

53.      Baseando‑se em jurisprudência pertinente do TEDH (58), o Tribunal de Justiça entendeu que a existência de declarações e a aceitação de tratados internacionais que garantem, em princípio, o respeito dos direitos fundamentais não são suficientes, só por si, para garantir uma proteção adequada contra o risco de maus‑tratos, quando fontes fidedignas dão conta de práticas das autoridades — ou por estas toleradas — manifestamente contrárias aos princípios da CEDH (59). O Tribunal de Justiça concluiu que, na medida em que a autoridade competente do Estado‑Membro requerido disponha de elementos que comprovem um risco real de trato desumano ou degradante das pessoas no Estado terceiro requerente, deve apreciar a existência desse risco no momento de decidir sobre a extradição de uma pessoa para esse Estado (60). Para este efeito, a autoridade competente do Estado‑Membro requerido deve basear‑se em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados. Estes elementos podem resultar, designadamente, de decisões judiciais internacionais, como acórdãos do TEDH, de decisões judiciais do Estado terceiro requerente e de decisões, de relatórios e de outros documentos elaborados pelos órgãos do Conselho da Europa ou pertencentes ao sistema das Nações Unidas (61).

54.      No meu entender, a apreciação exigida pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Petruhhin é menos rígida e rigorosa do que a apreciação em duas fases ao abrigo da Decisão‑Quadro 2002/584. São as circunstâncias específicas do caso, e não necessariamente eventuais deficiências do sistema jurídico do Estado de emissão em geral, que são determinantes.

B.      ACC

1.      Base jurídica, finalidade e sistemática geral

55.      Tal como brevemente exposto na secção das presentes conclusões relativa ao quadro jurídico, o ACC é um acordo de associação baseado no artigo 217.o TFUE (62). Foi adotado como um acordo exclusivamente da União e não como um acordo misto, o que significa que os Estados‑Membros não são Partes contratantes.

56.      Possivelmente, a questão crucial para as disposições de qualquer acordo internacional é saber se as suas disposições (ou algumas delas) têm efeito direto, o que significa que podem ser invocadas pelos particulares perante os órgãos jurisdicionais nacionais (da União). O Tribunal de Justiça normalmente respondeu a esta questão analisando o espírito, a sistemática geral e os termos das disposições do acordo internacional em causa (63). No que respeita às disposições relativas à «entrega» previstas na parte três, título VII, do ACC, creio que é possível responder a esta questão através da análise do artigo 5.o, n.o 1, do ACC e da aplicação de um raciocínio a contrario. Nos termos do artigo 5.o, n.o 1, do ACC, excetuando, no que respeita à União Europeia, a parte três do ACC (64), nenhuma disposição do ACC ou de qualquer acordo complementar é interpretada no sentido de conferir direitos ou impor obrigações a pessoas, além dos direitos e obrigações criados pelas Partes ao abrigo do direito internacional público, nem no sentido de permitir que o ACC ou qualquer acordo complementar seja diretamente invocado nas ordens jurídicas internas das Partes. Dado que a parte três do ACC é expressamente excluída, não há razão para pressupor que as suas disposições, desde que satisfaçam os critérios habituais do efeito direto, não têm efeito direto na ordem jurídica da União.

57.      Como resulta claramente do artigo 216.o, n.o 2, TFUE e da jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, enquanto acordo internacional celebrado pela União Europeia, o ACC vincula‑a e é parte integrante da ordem jurídica desta desde a sua entrada em vigor (65). Na interpretação dos acordos internacionais, o Tribunal de Justiça dá especial importância aos objetivos do acordo em causa. Por conseguinte, é jurisprudência assente que um tratado internacional deve ser interpretado não apenas em função dos termos em que está redigido, mas também à luz dos seus objetivos (66). Uma consequência crucial é que o facto de as disposições de um acordo terem uma redação idêntica às disposições correspondentes do direito da União não significa que devam necessariamente ser interpretadas de modo idêntico (67).

58.      A finalidade do ACC, definida no artigo 1.o, consiste em estabelecer a base para uma relação global entre a União Europeia e o Reino Unido, num espaço de prosperidade e boa vizinhança, caracterizado por relações estreitas e pacíficas baseadas na cooperação e no respeito pela autonomia e pela soberania das Partes. O artigo 3.o do ACC especifica, em seguida, que as Partes se respeitam e, de boa‑fé, se assistem mutuamente no cumprimento das missões decorrentes do acordo. As disposições deste acordo são, nos termos do seu artigo 4.o, n.o 1, interpretadas de boa‑fé, segundo a sua aceção comum no contexto em causa e atendendo ao objeto e à finalidade do acordo, em conformidade com as regras de interpretação consuetudinárias do direito internacional público, incluindo as constantes da Convenção sobre o Direito dos Tratados (68). Para maior clareza, nem o ACC nem qualquer acordo complementar estabelecem a obrigação de interpretar as suas disposições em conformidade com o direito nacional de qualquer uma das Partes (69). Do mesmo modo, a interpretação do ACC ou de qualquer acordo complementar feita pelos tribunais de uma das Partes não é vinculativa para os tribunais da outra Parte (70).

59.      Sem examinar em pormenor as disposições correspondentes do TUE e do TFUE, é imediatamente evidente que esta finalidade está, no que diz respeito à sua ambição e intenção, muito longe do que é enunciado no preâmbulo e nos primeiros artigos dos referidos tratados.

60.      No entanto, ao longo do texto do ACC e da leitura das suas disposições substantivas emerge um grau de ambição consideravelmente mais elevado do que o aludido nos seus artigos iniciais. Assim, a parte três relativa à cooperação das autoridades policiais e judiciárias em matéria penal (71), mais concretamente, o título VII da parte três relativo à entrega, contém um conjunto pormenorizado de regras que estabelecem direitos e obrigações recíprocos para a União Europeia e o Reino Unido.

61.      Em primeiro lugar, o artigo 524.o do ACC (72) dispõe, em relação à totalidade da parte três do ACC, que i) a cooperação prevista na parte três do ACC se baseia no respeito de longa data pelas Partes e pelos Estados‑Membros pela democracia, pelo Estado de direito e pela defesa dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas, incluindo os consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na CEDH, bem como na importância de aplicar internamente os direitos e liberdades consagrados nessa Convenção e ii) nenhuma disposição da parte três do ACC pode ter por efeito alterar a obrigação de respeitar os direitos fundamentais e os princípios jurídicos consagrados, nomeadamente, na CEDH e, no caso da União e dos Estados‑Membros, na Carta.

62.      Na medida em que tal qualificação seja permitida no contexto de um acordo internacional celebrado entre a União Europeia e um Estado terceiro, o artigo 524.o do TCA é uma disposição de importância constitucional. A cooperação das autoridades policiais e judiciárias em matéria penal é, por definição, um domínio do direito que envolve intrinsecamente os direitos fundamentais. O facto de a União Europeia e o Reino Unido afirmarem o seu compromisso mútuo para com a democracia, o Estado de direito e os direitos fundamentais constitui um forte indício da proximidade da cooperação abrangida pela parte três do ACC e funciona como uma referência interpretativa para toda esta parte.

2.      Mecanismo de entrega previsto no ACC

63.      O objetivo da parte três, título VII, do ACC é descrito no artigo 596.o deste acordo como sendo assegurar que o regime de extradição entre, por um lado, os Estados‑Membros e, por outro, o Reino Unido se baseie num mecanismo de entrega.

64.      Dado que esta disposição recorre aos termos «extradição» e «entrega», afigura‑se oportuno fazer uma breve observação de caráter terminológico. No direito da União, o termo «entrega» no contexto da Decisão‑Quadro 2002/584 refere‑se a uma situação entre dois Estados‑Membros, ao passo que o termo «extradição», em geral, se refere a uma situação entre um Estado‑Membro e um Estado terceiro (73). Porém, quando esses Estados terceiros mantêm uma relação estreita com a União Europeia, como os Estados que são membros do Espaço Económico Europeu, o termo utilizado é «processos de entrega» (74). O mesmo é válido para o ACC. O título VII utiliza repetidamente o termo «entrega» quando descreve uma situação entre os Estados‑Membros da e o Reino Unido e o termo «extradição» quando se refere a uma situação entre os Estados‑Membros ou o Reino Unido e um Estado terceiro (75). Por que razão, então, o artigo 596.o do ACC se refere tanto à extradição como à entrega? A minha explicação para este facto é que «extradição» é considerado o termo normalmente utilizado no direito internacional público, enquanto «entrega» se refere a situações que envolvem a União Europeia e alguns dos seus parceiros mais próximos, conforme acima descrito (76).

65.      O artigo 599.o do ACC define o âmbito de aplicação do mecanismo de entrega e especifica os casos em que pode ser emitido um mandado de detenção. Nos termos do artigo 599.o, n.o 1, do ACC, os mandados de detenção podem ser emitidos por factos puníveis pela lei do Estado de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver sido decretada uma pena ou aplicada uma medida de segurança, por penas ou ordens de detenção de duração não inferior a quatro meses. Além disso, como resulta do artigo 599.o, n.o 3, do ACC, sem prejuízo, nomeadamente, do artigo 600.o, do artigo 601.o, n.o 1, alíneas b) a h), e do artigo 604.o do ACC, nenhum Estado pode recusar a execução de um mandado de detenção emitido relativamente, entre outras condutas, a crimes de terrorismo, sempre que tal conduta seja punível com pena privativa de liberdade de, pelo menos, 12 meses.

66.      Os artigos 600.o e 601.o do ACC enunciam uma série de motivos obrigatórios (77) e facultativos (78) para a não execução de um mandado de detenção. À semelhança do que acontece nas disposições correspondentes da Decisão‑Quadro 2002/584 (79), nenhum destes motivos está diretamente relacionado com os direitos fundamentais, em geral, ou, obviamente, com o artigo 49.o, n.o 1, da Carta, em particular.

67.      Nos termos do artigo 604.o, alínea c), do ACC, a execução de um mandado de detenção pela autoridade judiciária de execução pode estar sujeita à condição de que, se houver motivos substanciais para crer que existe um risco real para a defesa dos direitos fundamentais da pessoa procurada, a autoridade judiciária de execução pode exigir, se for caso disso, garantias adicionais quanto ao tratamento da pessoa procurada após a sua entrega, antes de decidir se executa o mandado de detenção.

68.      O artigo 613.o do ACC regula as decisões de entrega. De acordo com o n.o 1 desta disposição, a autoridade judiciária de execução decide da entrega da pessoa, nos prazos e nas condições definidos no título VII e, em particular, em conformidade com o princípio da proporcionalidade estabelecido no artigo 597.o (80). Nos termos do artigo 613.o, n.o 2, do ACC, se a autoridade judiciária de execução considerar que as informações comunicadas pelo Estado de emissão são insuficientes para que possa decidir da entrega, solicita que lhe sejam comunicadas com urgência as informações complementares necessárias, especialmente as que digam respeito ao artigo 597.o, aos artigos 600.o a 602.o, ao artigo 604.o e ao artigo 606.o, podendo fixar um prazo para a sua receção, tendo em conta a necessidade de respeitar os prazos fixados no artigo 615.o

69.      Note‑se que não existe nenhuma disposição que corresponda diretamente ao artigo 1.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584 (81). No entanto, tal não altera o facto de que existe uma obrigação geral implícita de as autoridades executarem um mandado de detenção emitido com base no ACC. Entendo que todas as disposições da parte três, título VII, do ACC se baseiam nesta premissa.

70.      As disposições da parte três, título VII, do ACC caracterizam‑se por um elevado nível de confiança entre a União Europeia e o Reino Unido no que se refere ao compromisso para com a defesa dos direitos fundamentais. A confiança mútua de que os direitos fundamentais foram, são e serão protegidos no futuro permeia todo o texto (82).

71.      Desta recapitulação sucinta, e de modo nenhum exaustiva, de algumas das principais disposições da parte três, título VII, do ACC resulta que a União Europeia e o Reino Unido estabeleceram um sistema de entrega caracterizado por uma considerável proximidade e um elevado nível de confiança mútua. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio considera que as disposições da parte três, título VII, do ACC são «idênticas ao regime de [entrega] previsto na Decisão‑Quadro 2002/584» (83).

72.      Esta declaração do órgão jurisdicional de reenvio prende‑se com o ponto fulcral do presente processo e justifica, nesta fase, uma ressalva. Embora a maior parte das disposições da parte três, título VII, do ACC se assemelhem às da Decisão‑Quadro 2002/584, na medida em que estão redigidas de forma idêntica, há pontos em que os dois textos diferem (84), sendo um exemplo flagrante a questão das infrações políticas (85).

3.      Obrigações da autoridade judiciária de execução

73.      Chegamos assim à essência do presente processo, que é a questão das obrigações da autoridade judiciária de execução no que se refere ao respeito dos direitos fundamentais pelas autoridades do Estado de emissão. Impõem‑se aqui as seguintes observações.

74.      Em primeiro lugar, uma vez que a situação em causa está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União para efeitos do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, a autoridade judiciária de execução que decide sobre a execução de um mandado de detenção está vinculada pela Carta, no sentido de que tem de assegurar que a entrega da pessoa procurada não conduzirá a uma violação dos seus direitos ao abrigo da Carta.

75.      Em segundo lugar, a autoridade judiciária de execução só tem de proceder a esse exame quando a pessoa que é objeto do mandado de detenção alegar tal violação excecional dos direitos fundamentais.

76.      Em terceiro lugar, é, a meu ver, inútil tentar transpor à letra a apreciação em duas fases, aplicável desde o Acórdão Aranyosi e Căldăraru (86) a situações intra‑União, para o sistema instituído pelo ACC. Como acima explicado em pormenor, este critério estabelecido na jurisprudência baseia‑se no nível mais elevado possível de confiança mútua no âmbito da ordem jurídica da União, ou seja, o da confiança mútua entre os Estados‑Membros da União. O nível de confiança mútua entre a União Europeia e o Reino Unido é elevado, mas não tão elevado quanto o nível de confiança subjacente à Decisão‑Quadro 2002/584.

77.      Em quarto lugar, a confiança mútua não é um conceito binário, mas antes uma escala progressiva e, como já referido, as disposições pertinentes do ACC assentam num nível considerável de confiança mútua, que vai além da confiança existente entre um Estado‑Membro e a esmagadora maioria dos países não‑membros. Por conseguinte, a autoridade judiciária de execução deve, em princípio, executar o mandado de detenção e só poderá recusar fazê‑lo se existirem provas concretas de um risco real de violação de direitos fundamentais. A União Europeia e o Reino Unido, através das disposições pertinentes do ACC, manifestaram confiança de que a União Europeia e o Reino Unido honrarão ambos as suas obrigações em matéria de direitos fundamentais. Existe, portanto, uma presunção, ilidível, de que os direitos fundamentais foram protegidos até à data, são protegidos atualmente e serão igualmente protegidos no futuro pelas Partes contratantes.

78.      Neste contexto, proponho que o Tribunal de Justiça i) aplique, como ponto de partida, critérios comparáveis aos desenvolvidos no Acórdão Petruhhin (87), mas ii) que o faça no pressuposto de que a autoridade judiciária de execução procederá à sua própria apreciação dos direitos fundamentais invocados.

79.      No caso em apreço, se as autoridades irlandesas estiverem na posse de provas de um risco real de violação dos direitos fundamentais no Estado terceiro requerente, são obrigadas a avaliar esse risco quando são chamadas a decidir sobre a extradição de uma pessoa para esse Estado. Para o efeito, a autoridade judiciária de execução deve basear‑se em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados. Estes elementos podem resultar, designadamente, de decisões judiciais internacionais, como acórdãos do TEDH, de decisões judiciais do Estado terceiro requerente e de decisões, de relatórios e de outros documentos elaborados pelos órgãos do Conselho da Europa ou pertencentes ao sistema das Nações Unidas. A simples existência de declarações e a adesão a tratados internacionais que garantam o respeito dos direitos fundamentais não são, em princípio, suficientes.

80.      É fundamental sublinhar que não basta que a autoridade judiciária de execução se baseie apenas no facto de o Reino Unido, após a sua saída da União Europeia, continuar a ser membro da CEDH. Do mesmo modo, não basta remeter formalmente apenas para a jurisprudência dos órgãos jurisdicionais do Reino Unido para demonstrar que o processo de entrega é compatível com o direito fundamental em causa. Cabe à autoridade judiciária de execução realizar a sua própria apreciação para, figurativamente falando, determinar por si mesma se uma entrega é compatível com os direitos fundamentais. Assim sendo, a autoridade judiciária de execução não pode simplesmente tomar nota da existência de decisões pertinentes dos órgãos jurisdicionais do Reino Unido. Embora tais decisões possam constituir um indício de que os direitos fundamentais são respeitados, a autoridade judiciária de execução deve, ainda assim, proceder à sua própria apreciação e fazer a sua própria «subsunção» dos factos.

C.      Artigo 49.o, n.o 1, da Carta

81.      Embora esteja evidentemente consciente do facto de que cabe, em última análise, ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se, no caso vertente, existe um risco de violação do artigo 49.o, n.o 1, da Carta, creio que, com base nas informações de que dispõe, o Tribunal de Justiça está em condições de fornecer orientações ao órgão jurisdicional de reenvio nesta fase.

82.      Importa ter presente que o regime que permite a liberdade condicional na Irlanda do Norte foi alterado com efeitos a partir de 30 de abril de 2021. Antes desta alteração, uma pessoa condenada pela prática de certos crimes de terrorismo tinha automaticamente direito a liberdade condicional após ter cumprido metade da pena. De acordo com o regime aplicável a partir daquela data, a liberdade condicional dessa pessoa tem de ser aprovada por uma autoridade especializada e só pode ter lugar depois de a pessoa em causa ter cumprido dois terços da pena.

83.      A questão que se coloca é saber se esta alteração do regime de liberdade condicional é contrária ao princípio da não retroatividade, consagrado no artigo 49.o, n.o 1, segundo período, da Carta.

84.      Nos termos do artigo 49.o, n.o 1, da Carta, ninguém pode ser condenado por uma ação ou por uma omissão que, no momento da sua prática, não constituía infração perante o direito nacional ou o direito internacional. Igualmente, não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infração foi cometida. Se, posteriormente à infração, a lei previr uma pena mais leve, é essa a pena aplicada.

85.      O artigo 49.o da Carta enuncia, assim, os requisitos para a imposição de penas. Esta disposição não contém (meros) princípios na aceção do artigo 52.o, n.o 5, da Carta, estabelecendo antes direitos oponíveis (88).

86.      O Tribunal de Justiça já afirmou que o artigo 49.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que contém as mesmas prescrições que decorrem do artigo 7.o da CEDH (89), confirmando assim as indicações fornecidas nas anotações, não vinculativas mas, ainda assim, elucidativas (90), relativas à Carta (91). Aliás, a redação dos dois primeiros períodos do artigo 49.o, n.o 1, é idêntica à do artigo 7.o, n.o 1, da CEDH. Por conseguinte, é possível invocar a jurisprudência pertinente do TEDH (92).

87.      A este respeito, saliento que a garantia consagrada no artigo 7.o da CEDH, que constitui um elemento essencial do Estado de direito, ocupa um lugar de destaque no sistema de proteção instituído pela CEDH, como demonstra o facto de não ser permitida nenhuma derrogação à mesma ao abrigo do artigo 15.o da CEDH (93).

88.      Como o próprio órgão jurisdicional de reenvio sublinha, o TEDH rejeitou o argumento de que as alterações retroativas de regimes de remissão ou de libertação antecipada violam o artigo 7.o da CEDH, uma vez que tais medidas não fazem parte da «pena» para efeitos deste artigo.

89.      Embora o conceito de «pena» seja autónomo em termos do seu âmbito (94), o TEDH (95) estabelece na sua jurisprudência uma distinção entre uma medida que constitui, em si, uma pena e uma medida que diz respeito à execução ou aplicação da pena. Consequentemente, quando a natureza e a finalidade de uma medida estiverem relacionadas com a remissão de uma pena ou com a alteração de um regime de libertação antecipada, tal medida não faz parte da «pena» na aceção do artigo 7.o da CEDH (96).

90.      A este propósito, o órgão jurisdicional de reenvio recorda que o TEDH afirmou que, «na prática, a distinção entre uma medida que constitui uma “pena” e uma medida que diz respeito à “execução” ou “aplicação” da “pena” poderá nem sempre ser clara» e que uma medida tomada durante a execução de uma sentença, em vez de dizer respeito apenas ao modo de execução da mesma, poderá, pelo contrário, afetar o seu alcance. Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio remete para o Acórdão Del Río Prada c. Espanha. O órgão jurisdicional de reenvio questiona se e, em caso afirmativo, em que medida este acórdão constitui um desvio à jurisprudência anterior do TEDH.

91.      Não considero que a decisão do TEDH referida pelo órgão jurisdicional nacional constitua um desvio à jurisprudência de longa data daquele tribunal sobre o artigo 7.o, n.o 1, da CEDH.

92.      A passagem do Acórdão Del Río Prada c. Espanha citada remete para jurisprudência anterior constante daquele tribunal. Consequentemente, já antes da prolação desse acórdão, o TEDH tinha examinado atentamente a questão de saber se uma medida que aparentemente diz respeito à execução ou aplicação de uma pena afeta, de facto, o seu alcance. Por outras palavras, não vislumbro qualquer margem para afirmar, como faz MA, que o Acórdão Del Río Prada c. Espanha revela «uma abordagem mais flexível do TEDH no que diz respeito à aplicação do artigo 7.o [da CEDH] do que a adotada na sua jurisprudência anterior» (97).

93.      No Acórdão Del Río Prada c. Espanha, a requerente, Inés del Río Prada, tinha sido condenada, por crimes cometidos entre 1982 e 1987, a mais de 3 000 anos de prisão (98). Esta pena foi posteriormente reduzida de forma significativa ao abrigo do Código Penal espanhol de 1973, que previa um máximo de 30 anos de prisão efetiva. Nesse contexto, a requerente tinha direito a certas remissões da pena por trabalho e estudo na prisão. Posteriormente, ou seja, após a condenação da requerente e a sua libertação da prisão, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) introduziu uma nova doutrina jurídica (99), segundo a qual as remissões das penas devem ser aplicadas a cada pena individual e não à pena máxima de 30 anos. Esta doutrina resultou num aumento do tempo que muitos reclusos, incluindo Inés del Río Prada, passariam na prisão, o que levou o TEDH a concluir pela existência de uma violação do artigo 7.o da CEDH.

94.      Para chegar a esta conclusão, o TEDH considerou crucial que, à data da condenação da requerente e à data em que esta foi notificada da decisão de combinar as suas penas e de fixar uma pena máxima de prisão, não havia indícios do desenvolvimento de qualquer linha jurisprudencial percetível consentânea com o acórdão do Supremo Tribunal espanhol em questão (100).

95.      O carácter excecional do Acórdão Del Río Prada c. Espanha é confirmado pela decisão posterior do TEDH no processo Devriendt (101). Nesse processo, que dizia respeito a condenações a pena de prisão perpétua, uma lei belga tinha aumentado o período mínimo de elegibilidade para liberdade condicional de 10 para 15 anos (102). Esta alteração tinha sido introduzida entre o momento em que a pessoa em questão tinha cometido os crimes e a decisão (final) sobre a pena. O TEDH distinguiu explicitamente este processo do processo que deu origem ao Acórdão Del Río Prada c. Espanha e concluiu que não havia violação do artigo 7.o da CEDH. Sustentou, nomeadamente, que a liberdade condicional em causa era uma modalidade de execução de uma pena privativa de liberdade, segundo a qual a pessoa condenada cumpre a pena fora da prisão, sob reserva do cumprimento das condições impostas durante um período probatório determinado, e que este processo se distinguia, neste aspeto, do processo que deu origem ao Acórdão Del Río Prada c. Espanha, em que estava em causa uma redução da pena a cumprir e não uma simples redução ou adaptação das condições de execução da pena (103). Observou igualmente que, embora o novo regime tivesse o efeito de aumentar o período mínimo de elegibilidade para liberdade condicional, o que se traduzia, sem dúvida, numa situação mais grave para a detenção do requerente, contrariamente à situação no processo que deu origem ao Acórdão Del Río Prada c. Espanha, esse tratamento mais severo não impossibilitava a concessão de liberdade condicional (104).

96.      Para determinar se uma medida tomada durante a execução de uma pena diz apenas respeito ao modo de execução da mesma ou se, pelo contrário, afeta o seu alcance, importa examinar, em cada caso, o que a «pena» imposta implicava efetivamente ao abrigo do direito nacional em vigor à data dos factos ou, por outras palavras, qual era a sua natureza intrínseca. Para o efeito, há que ter em conta o direito nacional no seu conjunto e a forma como era aplicado à data dos factos (105).

97.      No caso em apreço, note‑se que não há indicação de que as penas aplicáveis aos factos alegados, nomeadamente prisão perpétua, tenham mudado entre a alegada data da prática dos actos e a presente data.

98.      Além disso, o facto de, ao abrigo do regime alterado que permite a liberdade condicional na Irlanda do Norte, uma pessoa condenada por certos crimes relacionados com o terrorismo já não ser elegível para liberdade condicional automática após ter cumprido metade da pena, devendo antes a liberdade condicional dessa pessoa ser aprovada por uma autoridade especializada e só poder ocorrer depois de a pessoa em causa ter cumprido dois terços da pena, não altera o facto de que, mesmo quando libertada condicionalmente, essa pessoa ainda estará a cumprir a pena.

99.      Em conclusão, pode afirmar‑se que o regime que permite a liberdade condicional não se enquadra no conceito de «pena» para efeitos do artigo 49.o, n.o 1, segundo período, da Carta e, portanto, não está abrangido por esta disposição.

100. Nos termos do artigo 52.o, n.o 3, da Carta, na medida em que a Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela CEDH, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por esta convenção. Tal não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.

101. Na medida em que tal suscita a questão de saber se o artigo 49.o, n.o 1, da Carta tem um âmbito de aplicação mais amplo ou impõe requisitos mais rigorosos do que o artigo 7.o, n.o 1, da CEDH, não vislumbro qualquer margem ou motivo para considerar que este possa ser o caso. Em especial, como sublinhou a Comissão, não existe uma tradição constitucional discernível comum aos Estados‑Membros que preconize que o âmbito de aplicação do artigo 49.o, n.o 1, da Carta é ou deveria ser mais amplo do que o do artigo 7.o, n.o 1, da CEDH.

VI.    Conclusão

102. Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda à questão submetida pelo Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda) do seguinte modo:

Quando um Estado‑Membro receba um pedido do Reino Unido, ao abrigo das disposições da parte três, título VII, do Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, por outro, com vista à entrega de uma pessoa procurada, e sejam apresentados argumentos e aduzidas provas no sentido de que a entrega da pessoa procurada violaria os seus direitos decorrentes do artigo 49.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, as autoridades judiciárias do Estado‑Membro

—        devem proceder à sua própria apreciação para determinar se a entrega violará os direitos referidos no artigo 49.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais;

—        devem, nesse contexto, basear‑se em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados;

—        podem recusar a entrega quando existam motivos sérios e comprovados para crer que a pessoa procurada seria exposta a um risco real de que os seus direitos fundamentais garantidos pelo artigo 49.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais seriam violados em caso de entrega.

O facto de a pessoa procurada ficar sujeita, no caso de condenação, a um regime de liberdade condicional mais severo do que o que estava em vigor no dia em que o alegado crime foi cometido não constitui, por si só, uma violação do artigo 49.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais.


1      Língua original: inglês.


i      O nome do presente processo é um nome fictício. Não corresponde ao nome verdadeiro de nenhuma das partes no processo.


2      JO 2021, L 149, p. 10.


3      Decisão (UE) 2021/689 do Conselho, de 29 de abril de 2021, relativa à celebração, em nome da União, do ACC e do Acordo entre a União Europeia e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte sobre os procedimentos de segurança para o intercâmbio e a proteção de informações classificadas (JO 2021, L 149, p. 2).


4      Decisão (Euratom) 2020/2253 do Conselho, de 29 de dezembro de 2020, que aprova a celebração, pela Comissão Europeia, do Acordo entre o Governo do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte e a Comunidade Europeia da Energia Atómica para a cooperação no domínio das utilizações seguras e pacíficas da energia nuclear, e a celebração, pela Comissão Europeia, em nome da Comunidade Europeia da Energia Atómica, do ACC (JO 2020, L 444, p. 11).


5      V. artigo 783.o, n.o 2, do ACC.


6      V. artigo 783.o, n.o 1, do ACC e a Informação relativa à entrada em vigor do ACC e do Acordo entre a União Europeia e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte sobre os procedimentos de segurança para o intercâmbio e a proteção de informações classificadas (JO 2021, L 149, p. 2540).


7      Sobre disposições comuns e institucionais (parte um), sobre comércio, transportes, pescas e outros acordos (parte dois), sobre cooperação das autoridades policiais e judiciárias em matéria penal (parte três), sobre cooperação temática (parte quatro), sobre participação em programas da União, boa gestão financeira e disposições financeiras (parte cinco), sobre resolução de litígios e disposições horizontais (parte seis) e sobre disposições finais (parte sete).


8      Disposições comuns e institucionais.


9      Princípios da interpretação e definições.


10      Disposições gerais.


11      Em conformidade com o artigo 778.o, n.o 2, alínea r), do ACC, o anexo 43 é parte integrante da parte três, título VII. V., também, artigo 606.o do ACC, relativo ao conteúdo e à forma do mandado de detenção.


12      O artigo 599.o do ACC tem por epígrafe «Âmbito de aplicação».


13      O artigo 604.o do ACC tem por epígrafe «Garantias que o Estado de emissão deve fornecer em casos especiais».


14      Os quatros crimes são a pertença a uma organização proibida, direção das atividades de uma organização envolvida na prática de atos terroristas, associação criminosa para efeitos de direção das atividades de uma organização envolvida na prática de atos terroristas e preparação para a prática de atos terroristas.


15      Decisão‑Quadro, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»).


16      Acórdão de 21 de outubro de 2013 (CE:ECHR:2013:1021JUD004275009; a seguir «Acórdão Del Río Prada c. Espanha»).


17      Além disso, quando um processo suscita graves incertezas que envolvem questões fundamentais de direito constitucional e de direito da União, pode ser necessário, tendo em conta as circunstâncias específicas desse processo, tratá‑lo em prazos curtos. V. Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 19 de outubro de 2018, Wightman e o. (C‑621/18, EU:C:2018:851, n.o 10 e jurisprudência referida).


18      V. Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 22 de abril de 2024, MA (C‑202/24, EU:C:2024:343, n.o 7).


19      O direito de intervenção e de participação do Reino Unido no processo é regulado pelo artigo 90.o, n.o 1, do Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (JO 2020, L 29, p. 1; a seguir «Acordo de Saída»), aprovado pelo Conselho da União Europeia, em nome da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica, através da Decisão (UE) 2020/135 do Conselho, de 30 de janeiro de 2020 (JO 2020, L 29, p. 1). Nos termos do artigo 90.o, n.o 1, do Acordo de Saída, enquanto os acórdãos e despachos do Tribunal de Justiça em todos os processos e pedidos de decisão prejudicial referidos no artigo 86.o (sobre os processos pendentes no Tribunal de Justiça) não tenham transitado em julgado, o Reino Unido pode intervir da mesma forma que um Estado‑Membro ou, nos processos instaurados no Tribunal de Justiça em conformidade com o artigo 267.o TFUE, pode participar no processo perante o Tribunal de Justiça da mesma forma que um Estado‑Membro. Durante esse período, o secretário do Tribunal de Justiça da União Europeia notifica ao Reino Unido, ao mesmo tempo e da mesma forma que aos Estados‑Membros, qualquer caso submetido à apreciação do Tribunal de Justiça, a título prejudicial, por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro. Dado que ainda existem processos pendentes para efeitos do artigo 86.o do Acordo de Saída, o Reino Unido tem o direito de intervir no presente processo.


20      Em conformidade com o artigo 598.o, alínea c), do ACC, entende‑se por «autoridade judiciária de execução» a autoridade judiciária do Estado de execução competente para executar o mandado de detenção nos termos do direito interno desse Estado.


21      Em conformidade com o artigo 598.o, alínea a), do ACC, entende‑se por «mandado de detenção» uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.


22      A saída do Reino Unido da União Europeia produziu efeitos em 31 de janeiro de 2020.


23      O período de transição terminou em 31 de dezembro de 2020. O artigo 127.o do Acordo de Saída estabelece que o direito da União é aplicável ao Reino Unido e no seu território durante o período de transição, salvo disposição em contrário neste acordo. Uma vez que o Acordo de Saída não prevê uma derrogação ao artigo 127.o quanto às disposições relativas ao mandado de detenção europeu, estas disposições continuaram a ser aplicáveis durante o período de transição.


24      E no correspondente artigo 2.o da CEDH.


25      V., relativamente a esta questão, a título de exemplo, TEDH, Acórdão de 9 de julho de 2019, Romeo Castaño c. Bélgica (CE:ECHR:2019:0709JUD000835117).


26      V., sobre este tema, Lenaerts, K., «La vie après l’avis: exploring the principle of mutual (yet not blind) trust», Common Market Law Review, vol. 54, 2017, pp. 805 a 840, na p. 806, e Bay Larsen, L., «Some reflections on mutual recognition in the area of freedom, security and justice» in Cardonnel, P., Rosas, A. e Wahl, N. (ed.), Constitutionalising the EU Judicial System: Essays in Honour of Pernilla Lindh, Hart Publishing, Londres, 2012, pp. 139‑152, na p. 140.


27      Parecer 2/13 (Adesão da União Europeia à CEDH) de 18 de dezembro de 2014 (EU:C:2014:2454).


28      V. Parecer 2/13 (Adesão da União Europeia à CEDH) de 18 de dezembro de 2014 (EU:C:2014:2454, n.o 167).


29      O artigo 2.o TUE não constitui uma simples enunciação de orientações ou intenções de natureza política, mas contém valores que se enquadram na própria identidade da União Europeia enquanto ordem jurídica comum, valores que são concretizados em princípios que contêm obrigações juridicamente vinculativas para os Estados‑Membros. V. Acórdão de 16 de fevereiro de 2022, Hungria/Parlamento e Conselho (C‑156/21, EU:C:2022:97, n.o 232). Para uma análise recente do artigo 2.o TUE na doutrina, v. Nettesheim, M., «Die föderale Homogenitätsklausel des Art. 2 EUV», in Europarecht, 2024, pp. 269‑299, na p. 273, que apelidou a referida disposição de «cláusula de homogeneidade federal».


30      Parecer 2/13 (Adesão da União Europeia à CEDH) de 18 de dezembro de 2014 (EU:C:2014:2454, n.o 168). V., igualmente, as minhas Conclusões no processo República da Moldávia (C‑741/19, EU:C:2021:164, n.o 87).


31      V., a título de exemplo, Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 43 e jurisprudência referida).


32      O Conselho Europeu de Tampere de 15 e 16 de outubro de 1999.


33      V. Acórdão de 18 de abril de 2023, E.D.L. (Motivo de recusa baseado em doença) (C‑699/21, EU:C:2023:295, n.o 34 e jurisprudência referida).


34      V. Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198).


35      V. Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586).


36      V. Acórdão de 21 de dezembro de 2023, GN (Motivo de recusa baseado no interesse superior da criança) (C‑261/22, EU:C:2023:1017).


37      V. Acórdão de 21 de dezembro de 2023, GN (Motivo de recusa baseado no interesse superior da criança) (C‑261/22, EU:C:2023:1017, n.o 46 e jurisprudência referida).


38      V. Acórdão de 21 de dezembro de 2023 (Motivo de recusa baseado no interesse superior da criança) (C‑261/22, EU:C:2023:1017, n.o 47 e jurisprudência referida).


39      V. Acórdão de 21 de dezembro de 2023, GN (Motivo de recusa baseado no interesse superior da criança (C‑261/22, EU:C:2023:1017, n.o 48 e jurisprudência referida).


40      V. Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o. (C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 111).


41      V. Acórdão de 21 de dezembro de 2023, GN (Motivo de recusa baseado no interesse superior da criança (C‑261/22, EU:C:2023:1017).


42      V. Acórdão de 18 de abril de 2023, E.D.L. (Motivo de recusa baseado em doença) (C‑699/21, EU:C:2023:295, n.o 55).


43      V. Acordo entre a União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega sobre os processos de entrega entre os Estados‑Membros da União Europeia e a Islândia e a Noruega (JO 2006, L 292, p. 2). Este acordo foi aprovado em nome da União Europeia, primeiro, pela Decisão 2006/697/EC do Conselho, de 27 de junho de 2006 (JO 2006, L 292, p. 1), e, na sequência da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, que tornou necessária uma nova aprovação, pela Decisão 2014/835/UE do Conselho, de 27 de novembro de 2014 (JO 2014, L 343, p. 1). Está em vigor desde 1 de novembro de 2019 (v. aviso correspondente publicado no Jornal Oficial da União Europeia, JO 2019, L 230, p. 1).


44      V. Acórdão de 2 de abril de 2020, Ruska Federacija (C‑897/19 PPU, EU:C:2020:262, n.o 73).


45      V., a título de exemplo, Acórdão de 25 de junho de 2020, A e o. (Turbinas eólicas em Aalter e Nevele) (C‑24/19, EU:C:2020:503, n.o 39 e jurisprudência referida).


46      V. Acórdão de 6 de outubro de 1982, Cilfit e o. (283/81, EU:C:1982:335, n.o 18).


47      V., a título de exemplo, Acórdão de 30 de maio de 2013, Genil 48 e Comercial Hostelera de Grandes Vinos (C‑604/11, EU:C:2013:344, n.o 38 e jurisprudência referida).


48      V. Acórdãos de 2 de abril de 2020, Ruska Federacija (C‑897/19 PPU, EU:C:2020:262, n.o 73), e de 14 de setembro de 2023, Sofiyska gradska prokuratura (C‑71/21, EU:C:2023:668, n.o 30).


49      V. Acórdão de 14 de setembro de 2023, Sofiyska gradska prokuratura (C‑71/21, EU:C:2023:668, n.os 33 a 43 e 45 a 61).


50      Como a disposição crucial do artigo 1.o, n.o 2, da decisão‑quadro, nos termos da qual os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na mesma decisão‑quadro.


51      V. Acórdão de 14 de setembro de 2023, Sofiyska gradska prokuratura e o. (C‑71/21, EU:C:2023:668, n.o 48).


52      V. Acórdão de 17 de março de 2021, JR (Condenação num Estado terceiro, membro do EEE)  (C‑488/19, EU:C:2021:206, n.o 60).


53      Ibid. V., também, Acórdão de 2 de abril de 2020, Ruska Federacija (C‑897/19 PPU, EU:C:2020:262, n.o 44).


54      No seu Acórdão de 17 de março de 2021, JR (Condenação num Estado terceiro, membro do EEE) (C‑488/19, EU:C:2021:206), o Tribunal de Justiça, no essencial, tinha de responder ao órgão jurisdicional de reenvio do Estado de execução (Irlanda) e determinar se podia ser emitido um mandado de detenção europeu ao abrigo da Decisão‑Quadro 2002/584 para executar uma pena de prisão aplicada pelo órgão jurisdicional de um Estado terceiro (Noruega) e reconhecida no Estado de emissão (Lituânia).


55      V. Acórdão de 6 de setembro de 2016 (C‑182/15, EU:C:2016:630).


56      V. Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 52).


57      In casu, o Estado terceiro era a Rússia.


58      V. TEDH, Acórdão de 28 de fevereiro de 2008, Saadi c. Itália (CE:ECHR:2008:0228JUD003720106, § 147).


59      V. Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 57).


60      V. Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 58).


61      V. Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 59).


62      E no artigo 101.o do Tratado que institui a Comunidade Europeia da Energia Atómica.


63      Trata‑se de jurisprudência constante desde o Acórdão de 12 de dezembro de 1972, International Fruit Company e o. (21/72 a 24/72, EU:C:1972:115, n.o 20). V., também, Acórdãos de 9 de setembro de 2008, FIAMM e o./Conselho e Comissão (C‑120/06 P e C‑121/06 P, EU:C:2008:476, n.o 108), e de 13 de janeiro de 2015, Conselho e Comissão/Stichting Natuur en Milieu e Pesticide Action Network Europe (C‑404/12 P e C‑405/12 P, EU:C:2015:5, n.o 45).


64      Cooperação das autoridades policiais e judiciárias em matéria penal.


65      Trata‑se de jurisprudência constante desde o Acórdão de 30 de abril de 1974, Haegeman (181/73, EU:C:1974:41, n.o 5). V., também, Acórdãos de 1 de agosto de 2022, Sea Watch (C‑14/21 e C‑15/21, EU:C:2022:604, n.o 94), e de 27 de fevereiro de 2024, EUIPO/The KaiKai Company Jaeger Wichmann (C‑382/21 P, EU:C:2024:172, n.o 57).


66      V. Parecer 1/91 (Acordo EEE ‑ I) de 14 de dezembro de 1991 (EU:C:1991:490, n.o 14), e Acórdão de 24 de novembro de 2016, SECIL (C‑464/14, EU:C:2016:896, n.o 94).


67      V. Parecer 1/91 (Acordo EEE ‑ I) de 14 de dezembro de 1991 (EU:C:1991:490, n.o 14).


68      Celebrada em Viena, em 23 de maio de 1969.


69      V. artigo 4.o, n.o 2, do ACC.


70      V. artigo 4.o, n.o 3, do ACC.


71      Artigos 522.o a 701.o do ACC.


72      Esta disposição figura na parte três, título I («Disposições gerais»), do ACC.


73      V., também, as minhas Conclusões no processo R O (C‑327/18 PPU, EU:C:2018:644, n.o 68 e nota de rodapé 61).


74      V. terminologia usada no Acordo entre a União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega sobre os processos de entrega entre os Estados‑Membros da União Europeia e a Islândia e a Noruega.


75      V. artigo 614.o, n.o 3, artigo 623.o, n.o 6, e artigo 626.o do ACC.


76      Esta interpretação é, aliás, corroborada pela redação do artigo 629.o do ACC e pela terminologia utilizada na Convenção Europeia de Extradição, do Conselho da Europa, celebrada em Paris em 13 de dezembro de 1957 (STCE n.o 24, disponível em https://www.coe.int/en/web/conventions/full‑list/‑/conventions/treaty/024).


77      No caso do artigo 600.o do ACC.


78      No caso do artigo 601.o do ACC.


79      Artigo 3.o e seguintes da Decisão‑Quadro 2002/584.


80      Esta disposição está redigida de forma quase idêntica à do artigo 15.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, sendo a única diferença substancial o facto de o artigo 613.o, n.o 1, do ACC fazer também referência ao princípio da proporcionalidade.


81      Nos termos desta disposição, os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na Decisão‑Quadro 2002/584.


82      Nas suas observações escritas e alegações orais, a Comissão salientou, em especial, que o facto de o Reino Unido não ser um país do espaço Schengen constitui um critério decisivo nesta matéria. Com o devido respeito, discordo de tal afirmação. Quando o Reino Unido era um Estado‑Membro da União Europeia, também não era membro do espaço Schengen. Atualmente, a Irlanda (ou Chipre) também não é. À data em que o Tribunal de Justiça proferiu o seu Acórdão seminal de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198), a Roménia não fazia parte do espaço Schengen e, mesmo presentemente, não é membro de pleno direito (a Roménia e a Bulgária são atualmente Estados‑Membros do espaço Schengen apenas no que diz respeito às fronteiras aéreas e marítimas internas). Schengen não é, por conseguinte, um critério decisivo.


83      V. n.o 3 do pedido de decisão prejudicial.


84      V. Peers, S., «So close, yet so far: the EU/UK Trade and Cooperation Agreement», Common Market Law Review, vol. 59, 2022, pp. 49 a 80, na p. 68. V., também, em pormenor, Grange, E., Keith, B. e Kerridge, S., «Extradition under the EU‑UK Trade and Cooperation Agreement», New Journal of European Criminal Law, vol. 12, 2021, pp. 213 a 221, nas pp. 217 e 218.


85      V. artigo 602.o do ACC. Não existe uma disposição correspondente na Decisão‑Quadro 2002/584.


86      Acórdão de 5 de abril de 2016 (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198).


87      Isto é, uma situação abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, mas que envolve uma extradição para um país terceiro.


88      V. Lemke, S., in von der Groeben, H., Schwarze, J., e Hatje, A. (EE.), Europäisches Unionsrecht (Kommentar), Band 1, 7.a ed., Nomos, Baden‑Baden, 2015, art. 49 GRC, ponto 2.


89      V. Acórdão de 10 de novembro de 2022, DELTA STROY 2003 (C‑203/21, EU:C:2022:865, n.o 46).


90      Em conformidade com o artigo 6.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TUE e com o artigo 52.o, n.o 7, da Carta, as anotações foram elaboradas com o objetivo de fornecer orientações para a interpretação da Carta e devem ser tidas em devida conta tanto pelos órgãos jurisdicionais da União Europeia como pelos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros.


91      V. Anotação ad artigo 52.o — Âmbito e interpretação dos direitos e princípios, constante das Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17).


92      V., também, Szwarc, M., in Wróbel, A., Karta Praw Podstawowych Unii europejskiej. Komentarz, C.H.Beck, Varsóvia, 2020, p. 1221.


93      V. TEDH, Acórdãos de 22 de novembro de 1995, C.R. c. Reino Unido (CE:ECHR:1995:1122JUD002019092, § 32); de 22 de novembro de 1995, S.W. c. Reino Unido (CE:ECHR:1995:1122JUD002016692, § 34); e de 12 de fevereiro de 2008, Kafkaris c. Chipre (CE:ECHR:2008:0212JUD002190604, § 137).


94      No entanto, é de salientar que, como ponto de partida, depois de examinar se a medida em questão é imposta na sequência de uma condenação por uma «infração penal», o TEDH pode ter em conta outros fatores, tais como a natureza e a finalidade da medida em questão, a sua caraterização ao abrigo do direito nacional, os procedimentos envolvidos na elaboração e aplicação da medida e a gravidade da mesma. V., neste sentido, TEDH, Acórdãos de 9 de fevereiro de 1995, Welch c. Reino Unido (CE:ECHR:1995:0209JUD001744090, § 28); de 8 de junho de 1995, Jamil c. França (CE:ECHR:1995:0608JUD001591789, § 31); e de 12 de fevereiro de 2008, Kafkaris c. Chipre (CE: ECHR:2008:0212JUD002190604, § 142).


95      E a anterior Comissão Europeia dos Direitos Humanos, antes da entrada em vigor, em 1 de novembro de 1998, do Protocolo n.o 11 à CEDH, que reestruturou o mecanismo de controlo por estabelecido por esta Convenção.


96      V. Decisões da Comissão Europeia dos Direitos Humanos de 3 de março de 1986, Hogben c. Reino Unido (CE:ECHR:1986:0303DEC001165385), e de 28 de fevereiro de 1996, Hosein c. Reino Unido (CE:ECHR:1996:0228DEC002629395). V., também, TEDH, Decisão de 29 de novembro de 2005, Uttle c. Reino Unido (CE:ECHR:2005:1129DEC003694603), e TEDH, Acórdão de 12 de fevereiro de 2008, Kafkaris c. Chipre (CE:ECHR:2008:0212JUD002190604, § 142).


97      V. Despacho de reenvio prejudicial do órgão jurisdicional de reenvio, n.o 12.


98      V. Acórdão Del Río Prada c. Espanha, § 12.


99      Conhecida como a «doutrina Parot».


100      V. Acórdão Del Río Prada c. Espanha, § 117.


101      V. TEDH, Decisão de 31 de agosto de 2021, Devriendt c. Bélgica (CE:ECHR:2021:0831DEC003556719).


102      Em 26 de setembro de 2006, o requerente foi condenado a pena de prisão perpétua pelo Cour d’assises de Brabant (Tribunal de Júri de Brabante, Bélgica) por um homicídio cometido na noite de 24 para 25 de agosto de 2003. Àquela data, o período mínimo de elegibilidade para liberdade condicional era de 10 anos para as penas de prisão perpétua. Em 30 de janeiro de 2007, o Cour de cassation (Tribunal de Cassação, Bélgica) negou provimento ao recurso do requerente. Em 17 de fevereiro de 2015, o TEDH concluiu pela existência de uma violação do artigo 6.o, n.o 1, da CEDH, devido à falta de fundamentação da decisão do júri. Consequentemente, em 16 de junho de 2015, o Cour de cassation (Tribunal de Cassação) reabriu o processo, anulou a sua decisão anterior e reenviou o processo para o Cour d’assises de Brabant (Tribunal de Júri de Brabante) para reapreciação. Em 29 de junho de 2016, o Tribunal de Júri condenou o requerente a pena de prisão perpétua à revelia. Na sequência da oposição deduzida pelo requerente, este foi novamente condenado a pena de prisão perpétua em 28 de abril de 2017, e o Cour de cassation (Tribunal de Cassação) negou provimento ao seu recurso em 24 de outubro de 2017. Entretanto, uma lei aprovada em 17 de março de 2013 aumentou o período mínimo de elegibilidade para liberdade condicional de 10 para 15 anos no caso das penas de prisão perpétua. Em 16 de agosto de 2018, o requerente apresentou um pedido de liberdade condicional, alegando que tinha cumprido o período mínimo de 10 anos. Contudo, em 25 de fevereiro de 2019, o tribunal de l’application des peines de Gent (Tribunal de Execução das Penas de Gent, Bélgica) declarou o pedido inadmissível, uma vez que o requerente ainda não tinha cumprido os 15 anos exigidos. Em 26 de março de 2019, o Cour de cassation (Tribunal de Cassação) negou provimento ao recurso do requerente, esclarecendo que não estavam perante um aumento da duração da pena, mas sim de uma alteração das condições da sua execução, pelo que não existia uma violação do artigo 7.o da CEDH.


103      V. TEDH, Decisão de 31 de agosto de 2021, Devriendt c. Bélgica (CE:ECHR:2021:0831DEC003556719, § 26).


104      V. TEDH, Decisão de 31 de agosto de 2021, Devriendt c. Bélgica (CE:ECHR:2021:0831DEC003556719, § 28).


105      V. TEDH, Acórdãos de 12 de fevereiro de 2008, Kafkaris c. Chipre (CE:ECHR:2008:0212JUD002190604, § 145) e Del Río Prada c. Espanha (§ 90).