Language of document : ECLI:EU:T:2008:537

Processos apensos T-254/00, T-270/00 e T-277/00

Hotel Cipriani SpA e o.

contra

Comissão das Comunidades Europeias

«Auxílios de Estados – Reduções de encargos sociais a favor das empresas instaladas no território de Veneza e de Chioggia – Decisão que declara o regime de auxílio incompatível com o mercado comum e impõe a recuperação dos auxílios pagos – Admissibilidade – Conexão individual – Mérito – Condições relativas à afectação das trocas intracomunitárias e à incidência na concorrência – Derrogações nos termos do artigo 87.°, n.° 3, alíneas b) a e), CE e do artigo 87.°, n.° 2, alínea b), CE – Qualificação de auxílio novo ou auxílio existente – Princípios da segurança jurídica, da protecção da confiança legítima, da igualdade de tratamento e da proporcionalidade – Dever de fundamentação»

Sumário do acórdão

1.      Recurso de anulação – Pessoas singulares ou colectivas – Actos que lhes dizem directa e individualmente respeito – Possibilidade de ser individualmente afectado por uma decisão de carácter geral

(Artigo 230.°, quarto parágrafo, CE)

2.      Auxílios concedidos pelos Estados – Violação da concorrência – Medidas estatais destinadas a aproximar as condições de concorrência, num determinado sector económico, das existentes noutros Estados‑Membros – Exclusão da qualificação de auxílio – Requisitos

(Artigo 87.°, n.° 1, CE)

3.      Auxílios concedidos pelos Estados – Exame pela Comissão – Exame de um regime de auxílios considerado na sua globalidade – Admissibilidade

(Artigo 88.° CE)

4.      Auxílios concedidos pelos Estados – Decisão da Comissão que declara a incompatibilidade de um regime de auxílios com o mercado comum – Dever de fundamentação – Limites

(Artigo 87.° CE e 88, n.° 2, CE)

5.      Auxílios concedidos pelos Estados – Proibição – Derrogações – Auxílios que podem ser considerados compatíveis com o mercado comum

[Artigo 87.°, n.° 3, alínea c), CE e 88.° CE]

6.      Auxílios concedidos pelos Estados – Auxílios existentes e auxílios novos – Qualificação de auxílio novo

(Artigo 87.° CE)

1.      Uma decisão da Comissão relativa a um regime de auxílios de Estado ilegal e que impõe a recuperação dos auxílios pagos reveste, um alcance geral relativamente aos beneficiários efectivos desse regime, na medida em que se aplica a situações determinadas objectivamente e comporta efeitos jurídicos relativamente aos beneficiários do referido regime considerados de forma geral e abstracta. Com efeito, o simples facto de os beneficiários efectivos desse regime serem identificáveis não implica qualquer obrigação de a Comissão tomar em consideração a sua situação individual. Por conseguinte, uma decisão relativa a um regime de auxílios baseia‑se em princípio numa fiscalização geral e abstracta do regime de auxílios em causa, que constitui ele próprio um acto de alcance geral.

Por outro lado, não se exclui que, em determinadas circunstâncias, as disposições de um acto de alcance geral possam dizer individualmente respeito a determinadas pessoas singulares ou colectivas, na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, quando estas sejam individualmente afectadas em razão de determinadas qualidades que lhes são específicas ou de uma situação de facto que as caracteriza relativamente a qualquer outra pessoa.

Assim, quando a Comissão declara a incompatibilidade com o mercado comum de um regime de auxílios ilegal e impõe a restituição dos auxílios pagos, essa decisão da Comissão diz individualmente respeito a todos os beneficiários efectivos desse regime. O facto de pertencer ao círculo fechado dos beneficiários efectivos de um regime de auxílios, especialmente afectados pela obrigação de recuperação dos auxílios pagos imposta pela Comissão ao Estado‑Membro em causa, é suficiente para caracterizar esses beneficiários relativamente a qualquer outra pessoa, nos termos da jurisprudência. A individualização resulta no presente caso da afectação específica causada pela ordem de recuperação aos interesses dos membros perfeitamente identificáveis desse círculo fechado.

(cf. n.os 73, 74, 77, 84)

2.      A circunstância de um Estado‑Membro procurar aproximar, através de medidas unilaterais, as condições de concorrência existentes num determinado sector económico das existentes noutros Estados‑Membros não retira a estas medidas a natureza de auxílios.

Todo o direito comunitário da concorrência, as regras do Tratado relativas aos auxílios de Estado visam assegurar não uma concorrência perfeita mas uma concorrência efectiva ou eficaz.

Nestas condições, a compensação de desvantagens estruturais permite apenas afastar a qualificação de auxílio em determinadas situações específicas. Assim, uma vantagem conferida a uma empresa para corrigir uma situação concorrencial desfavorável não constitui um auxílio de Estado na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE quando seja justificada por motivos económicos e quando não introduza uma discriminação entre os operadores económicos estabelecidos nos vários Estados‑Membros. Neste tipo de situações, o órgão jurisdicional comunitário aplica na realidade o critério do operador privado numa economia de mercado. De igual modo, não constitui um auxílio de Estado, na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE, uma vantagem concedida a uma empresa que torna mais leves os encargos que oneram normalmente o seu orçamento, quando essa vantagem visa remediar o facto de a empresa beneficiária estar sujeita a encargos suplementares decorrentes de um regime derrogatório, aos quais escapam as empresas concorrentes sujeitas ao direito comum nas condições normais do mercado.

(cf. n.os 182,184-186)

3.      No caso de um regime de auxílios, a Comissão não é, em princípio, obrigada a efectuar uma análise dos auxílios atribuídos em casos individuais. Pode limitar‑se a estudar as características gerais do regime em causa, sem ser obrigada a examinar cada caso de aplicação concreta.

No entanto, a Comissão deve, no interesse de uma boa administração das regras fundamentais do Tratado relativas aos auxílios de Estado, proceder no âmbito do artigo 88.° CE a um exame diligente e imparcial da medida de auxílio em causa. Em especial, num procedimento formal de exame, o princípio da boa administração, que faz parte dos princípios gerais do Estado de direito comuns às tradições constitucionais dos Estados‑Membros, impõe à Comissão que respeite o princípio da igualdade de tratamento entre os interessados.

Neste quadro jurídico, o eventual reconhecimento de uma obrigação da Comissão de apreciar individualmente a situação de determinados beneficiários, quando do exame de um regime de auxílios, está relacionado, por um lado, com a observância das obrigações processuais que recaem respectivamente sobre a Comissão e sobre o Estado‑Membro em causa e, por outro, com o conteúdo das informações específicas que dizem respeito aos referidos beneficiários comunicadas pelas autoridades nacionais ou por terceiros interessados à Comissão.

(cf. n.os 209-211)

4.      As exigências relativas à fundamentação e à análise por parte da Comissão da incidência de uma medida de auxílio de Estado nas trocas entre os Estados‑Membros e na concorrência variam muito logicamente em função da natureza, individual ou geral, dessa medida.

No que se refere aos regimes de auxílios multisectoriais, a Comissão se pode limitar a estudar as características do programa em causa para apreciar se, devido aos montantes ou às percentagens elevados dos auxílios, às características dos investimentos suportados ou a outras modalidades que esse programa prevê, o mesmo assegura uma vantagem sensível aos beneficiários relativamente aos seus concorrentes e é susceptível de beneficiar essencialmente empresas que participam nas trocas entre Estados‑Membros.

A este respeito, cabe ao Estado‑Membro em causa, por força do seu dever de cooperação com a Comissão, e aos terceiros interessados devidamente convidados a apresentar as suas observações nos termos do artigo 88.°, n.° 2, CE invocarem os seus argumentos e fornecerem à Comissão todas e quaisquer informações susceptíveis de esclarecer todos os dados do processo.

Em face de um regime de auxílios multisectorial, a Comissão só está obrigada a fiscalizar, com base em elementos concretos, se, em sectores determinados, a medida em causa preenche as duas condições para aplicação do artigo 87.°, n.° 1, CE, a saber, se é susceptível de afectar as trocas intracomunitárias e de ter incidência na concorrência, quando lhe tenham sido fornecidas para esse efeito informações pertinentes suficientes durante o procedimento administrativo.

Daqui resulta que o âmbito do dever de fundamentação que recai sobre a Comissão, quando se esteja perante um regime de auxílios multisectorial, depende, no que se refere concretamente ao impacto desse regime nas trocas intracomunitárias e na concorrência, dos dados e dos elementos comunicados a esta instituição no contexto do procedimento administrativo.

(cf. n.os 227, 230, 231, 233, 235, 237)

5.      A Comissão goza, na aplicação do artigo 87.°, n.° 3, alínea c), CE, de um vasto poder de apreciação cujo exercício implica apreciações complexas de ordem económica e social que devem ser efectuadas num contexto comunitário.

Resulta da própria redacção do artigo 87.°, n.° 3, alínea c), CE, e do artigo 88.° CE, que a Comissão «pode» considerar compatíveis com o mercado comum os auxílios referidos pela primeira destas duas disposições. Assim, mesmo que a Comissão deva sempre pronunciar‑se sobre a compatibilidade com o mercado comum dos auxílios de Estado sobre os quais exerce a sua fiscalização, apesar de estes não lhe terem sido notificados, a Comissão não é obrigada a declarar tais auxílios compatíveis com o mercado comum.

A Comissão pode impor a si mesma orientações para o exercício dos seus poderes de apreciação através de actos como os enquadramentos, as comunicações ou as orientações, na medida em que esses actos contenham regras indicativas sobre a orientação a seguir pela mesma instituição e não se afastem das normas do Tratado. A adopção pela Comissão desses actos, destinados a precisar, respeitando o Tratado, os critérios que conta aplicar no âmbito do exercício do seu poder de apreciação, dá origem a uma autolimitação desse poder na medida em que tem de se conformar com as regras indicativas que impôs a si mesma. Neste contexto, cabe ao juiz comunitário verificar se essas regras foram respeitadas pela Comissão.

(cf. n.os 290-292)

6.      Há que recordar previamente que as medidas tendentes a instituir ou a alterar auxílios de Estado constituem auxílios. Em especial, quando a alteração afecta o regime inicial na sua essência, esse regime transforma‑se num regime de auxílios novo. Pelo contrário, quando a alteração não é essencial, só a própria alteração poderá ser qualificada como um auxílio novo.

Assim, a extensão, às empresas instaladas no território, das isenções de encargos sociais previstas para outro território institui um regime novo. Mesmo que um novo regime se limite a alargar um regime de auxílios existente a novos beneficiários, sem introduzir nenhuma alteração substancial ao regime existente, esse alargamento, destacável do regime inicial, constitui um auxílio novo, sujeito ao dever de notificação.

(cf. n.os 358, 359, 362)