Language of document : ECLI:EU:T:1998:183

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Quarta Secção Alargada)

17 de Julho de 1998 (1)

«Concorrência - Recurso de anulação - Rejeição de uma queixa - Artigo 86.° do Tratado CE - Abuso de posição dominante - Acções judiciais nos órgãos jurisdicionais nacionais - Direito de acesso à justiça - Pedido de execução de um acordo - Erro manifesto de apreciação - Dever de análise - Erro de qualificação - Fundamentação insuficiente»

No processo T-111/96,

ITT Promedia NV, sociedade de direito belga, com sede em Anvers (Bélgica), representada por Ivo Van Bael, Peter L'Ecluse e Kris Van Hove, advogados no foro de Bruxelas, com domicílio escolhido no Luxemburgo no escritório dos advogados Loesch et Wolter, 11, rue Goethe,

recorrente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por Wouter Wils, membro do Serviço Jurídico, assistido por Rosemary Caudwell, funcionária nacional destacada na Comissão no âmbito de um regime de troca de funcionários, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de Carlos Gómez de la Cruz, membro do Serviço Jurídico, Centre Wagner, Kirchberg,

recorrida,

apoiada pela

Belgacom SA, sociedade de direito belga, com sede em Bruxelas (Bélgica), representada inicialmente por Jules Stuyck e seguidamente por Herman De Bauw e Paul Maeyaert, advogados no foro de Bruxelas, com domicílio escolhido no Luxemburgo no escritório dos advogados Arendt et Medernach, 8-10, rue Mathias Hardt,

interveniente,

que tem por objecto um pedido de anulação de uma decisão da Comissão que rejeita definitivamente parte de uma denúncia apresentada pela recorrente, segundo a qual a Belgacom SA tinha intentado contra a recorrente acções judiciais nos tribunais belgas com intuito vexatório e tinha solicitado à recorrente que abandonasse o seu saber-fazer industrial e comercial por força de compromissos contratuais que vinculam as duas partes, actos que constituem pretensamente violações do artigo 86.° do Tratado CE.

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Quarta Secção Alargada),

composto por: P. Lindh, presidente, R. García-Valdecasas, K. Lenaerts, J. D. Cooke e M. Jaeger, juízes,

secretário: A. Mair, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 3 de Dezembro de 1997,

profere o presente

Acórdão

Contexto jurídico e factual do litígio

1.
    A recorrente, ITT Promedia NV, anteriormente NV Promedia, é uma sociedade de direito belga cujas actividades principais são dirigidas para a edição de listas telefónicas comerciais na Bélgica. É uma filial pertencente em 99,95% à ITT World Directories Inc., sociedade de direito americano, que tem por actividade principal a publicação de listas telefónicas comerciais a nível mundial. A ITT World Directories Inc. é uma filial pertencente em 80% à ITT World Directories Enterprises Inc. que, por sua vez, é uma filial pertencente em 100% à ITT Corporation, sendo as duas últimas sociedades de direito americano.

Quadro regulamentar nacional

2.
    A Lei belga de 13 de Outubro de 1930, que coordena as diferentes disposições legislativas relativas ao telégrafo e ao telefone sem fio, concedeu, a uma empresa pública, a Régie des télégraphes et téléphones (a seguir «RTT») o direito exclusivo de gestão das telecomunicações, incluindo a publicação e a distribuição de listas telefónicas, na Bélgica. Nos termos dessa lei, a RTT tinha igualmente o direito de autorizar terceiros a publicar listas.

3.
    Pela Lei de 21 de Março de 1991, relativa à reforma de certas empresas públicas económicas, a RTT, numa primeira fase, foi transformada numa empresa pública autónoma, a Belgacom. Em seguida, pela Lei de 12 de Dezembro de 1994, que alterou a Lei de 21 de Março de 1991, a Belgacom foi transformada numa sociedade anónima de direito público, a Belgacom SA (a seguir «Belgacom»). O accionista maioritário desta última é o Estado belga. Até 1 de Janeiro de 1998, a Belgacom teve o monopólio legal sobre os serviços de telefone vocal na Bélgica.

4.
    O direito exclusivo da Belgacom editar listas foi abolido, a partir de 10 de Janeiro de 1994, pelo artigo 45.° da Lei de 24 de Dezembro de 1993, que alterou o artigo 113.°, n.° 2, da Lei de 21 de Março de 1991. Resulta desta disposição após as alterações introduzidas (a seguir «artigo 113.°, n.° 2, da lei de 1991»), que não apenas a Belgacom mas igualmente outras pessoas, habilitadas pelo Institut belge des services postaux et des télécommunications (a seguir «IBPT»), têm o direito de editar listas, segundo as condições e modalidades a definir pelo Rei.

5.
    As condições e modalidades de concessão dessa autorização foram determinadas pelo Decreto real de 15 de Julho de 1994, que entrou em vigor em 26 de Agosto de 1994, relativo à reforma de certas empresas públicas económicas, no que diz respeito às listas dos assinantes dos serviços de telecomunicações reservados explorados pela Belgacom (a seguir «Decreto real de 15 de Julho de 1994»). Resulta do artigo 1.°, n.° 2, e do artigo 3.°, n.° 1, do referido decreto que a autorização tem a forma de uma declaração de conformidade com o decreto, emitida pelo IBPT, do texto definitivo de uma convenção de fornecimento dos dados necessários à confecção, à venda ou à distribuição de uma lista, que define o conjunto dos direitos e obrigações técnicas, financeiras e comerciais da Belgacom e da pessoa que pretende ser autorizada. A convenção deve, antes de ser assinada, ser notificada conjuntamente pela Belgacom e pela pessoa interessada. Nos termos do artigo 2.° do referido decreto «qualquer pessoa autorizada terá [...] acesso aos dados necessários à confecção, à venda ou à distribuição de uma lista em condições comerciais, financeiras e técnicas equitativas, razoáveis e não discriminatórias». Estas condições são fixadas pela Belgacom e por ela publicadas no Moniteur belge. O artigo 3.°, n.° 2, impõe à Belgacom que transmita ao IBPT, a pedido deste, qualquer informação necessária à verificação do carácter equitativo, razoável e não discriminatório das referidas condições. O artigo 9.° precisa que as autorizações são concedidas para a edição de listas a partir de 1 de Janeiro de 1995.

Factos na origem do litígio

6.
    Através de um primeiro acordo celebrado em 1969, a RTT concedeu à NV Promedia o direito exclusivo de publicar listas com base em dados que ela lhe forneceria. Esta concessão foi renovada por um segundo acordo de 9 de Maio de 1984 (a seguir «acordo de 9 de Maio de 1984»), que concedia à NV Promedia, durante um período de 10 anos, com início em 1 de Janeiro de 1985 e terminando com a publicação da décima edição completa das listas telefónicas oficiais, o direito exclusivo de publicar e de distribuir a lista telefónica oficial, em nome da RTT, e listas comerciais, em seu próprio nome. Em execução destes dois acordos, dos quais o último chegou ao seu termo em 15 de Fevereiro de 1995, a recorrente publicou listas comerciais sob a marca «Gouden Gids/Pages d'Or».

7.
    Desde 1993, a Belgacom e a recorrente negociaram a celebração de um novo acordo. Em Setembro de 1993, depois de ter interrompido as negociações e apresentado um concurso para a publicação de listas telefónicas depois de 1 de Janeiro de 1995, a Belgacom decidiu, em 22 de Dezembro de 1993, reiniciar as negociações com a recorrente. Não tendo as duas partes chegado a um acordo, a Belgacom decidiu, em 12 de Julho de 1994, pôr termo à sua cooperação com a recorrente e procurar um novo parceiro para a publicação de listas telefónicas a partir de 1 de Janeiro de 1995.

8.
    Entretanto, em 29 de Junho de 1994, a recorrente interpôs na Cour d'arbitrage belga um recurso de anulação do artigo 45.° da lei de 24 de Dezembro de 1993. Esse recurso foi seguido, em 25 de Outubro de 1994, pela apresentação no Conseil d'État belga de um pedido de suspensão do Decreto real de 15 de Julho de 1994. Foi negado provimento aos dois recursos.

9.
    Em 13 de Julho de 1994, a recorrente anunciou, por comunicado de imprensa, que tinha decidido continuar a publicação dos seus «Gouden Gids/Pages d'Or». Ao mesmo tempo intensificou as suas actividades de angariação e de venda de anúncios publicitários para a preparação da edição de 1995 e das suas listas.

10.
    No mesmo dia, a Belgacom informou os seus clientes, por comunicado de imprensa, que qualquer actividade de angariação ou de venda por parte da recorrente relativamente à edição de 1995 das suas listas telefónicas, era efectuada sem autorização da Belgacom e fora de qualquer relação contratual. A Belgacom informou igualmente os seus clientes da sua decisão de publicar ela própria as páginas brancas e amarelas da sua lista telefónica oficial, em cooperação com um parceiro especializado na matéria. Assinalou-lhes nessa altura que os consultores comerciais da Belgacom, munidos das necessárias autorizações, os contactariam reiteradamente para os informar das modalidades de publicação dos anúncios na próxima edição das páginas brancas e amarelas da lista telefónica oficial.

11.
    Em 22 de Julho de 1994, a recorrente intentou uma acção contra a Belgacom para cessação do comportamento no Tribunal de commerce de Bruxelas composto como num processo de medidas provisórias, pedindo-lhe que declarasse que a Belgacom tinha violado as leis belgas relativas às práticas comerciais e à concorrência, bem como o artigo 86.° do Tratado e que fosse ordenado a esta última que pusesse termo à difusão de informações falsas, enganosas e indelicadas que lhe dissessem respeito. No âmbito da referida acção, a Belgacom apresentou um pedido reconvencional (a seguir «primeiro pedido reconvencional» ou «primeira acção da Belgacom»), convidando o presidente do Tribunal de commerce a declarar que, não havendo uma autorização do IBPT, tal como é exigida pelo artigo 113.°, n.° 2, da Lei de 1991, qualquer actividade de angariação ou de venda de espaços publicitários pela recorrente, para a edição de 1995 das suas listas, violava as leis belgas relativas às práticas comerciais e à concorrência, bem como o artigo 86.° do Tratado. Pediu igualmente que a recorrente pusesse termo a toda a angariação ou venda até à obtenção da referida autorização.

12.
    Por decisão de 5 de Outubro de 1994, o presidente do Tribunal de commerce de Bruxelas deu provimento ao pedido da recorrente, baseando-se nas leis belgas relativas às práticas comerciais e à concorrência, bem como no artigo 86.° do Tratado, e pelos mesmos fundamentos negou provimento ao primeiro pedido reconvencional da Belgacom por falta de fundamentação. Por acórdão de 19 de Outubro de 1995, a Cour d'appel de Bruxelas confirmou essa decisão, declarando que o comportamento da Belgacom era contrário à lei belga relativa às práticas comerciais. Também negou provimento ao pedido reconvencional da Belgacom porque a legislação nacional invocada pela Belgacom em apoio do seu pedido reconvencional - em especial o artigo 113.°, n.° 2, da Lei de 1991 e do Decreto real de 15 de Julho de 1994 - era contrária aos artigos 86.° e 90.°, n.° 1, do Tratado e não podia, assim, ser aplicada no caso em apreço.

13.
    Depois de ter pedido à Belgacom, por cartas de 10 de Maio, 1 de Julho e 27 de Julho de 1994, que lhe apresentasse uma proposta equitativa, razoável e não discriminatória para o fornecimento dos dados relativos aos assinantes (a seguir «dados-assinantes»), a recorrente intentou nova acção contra a Belgacom para cessação do comportamento, em 16 de Agosto de 1994, no Tribunal de commerce de Bruxelas composto como nos processos de medidas provisórias. Pediu-lhe que declarasse que a recusa da Belgacom de lhe fornecer os dados-assinantes em condições equitativas, razoáveis e não discriminatórias constituía uma prática de comércio desleal, contrária às leis belgas relativas às práticas comerciais e à concorrência, bem como ao artigo 86.° do Tratado, e que ordenasse à Belgacom que pusesse termo a essa prática e lhe fornecesse os referidos dados em condições equitativas, razoáveis e não discriminatórias. A Belgacom apresentou um pedido reconvencional contra essa nova acção da recorrente (a seguir «segundo pedido reconvencional» ou «segunda acção judicial da Belgacom»), destinado a que o pedido da recorrente de aceder aos dados-assinantes, tal como formulado nas cartas da recorrente de 10 de Maio, 1 de Julho e 27 de Julho de 1994, fosse declarado constituir uma prática contrária à legislação belga relativa às práticas comerciais e à concorrência económica, bem como ao artigo 86.° do Tratado.

14.
    Tendo encarregado um perito de fixar de um preço equitativo, razoável e não discriminatório para os dados em causa, o presidente do Tribunal de commerce de Bruxelas, por decisão de 11 de Junho de 1996, deu provimento ao pedido da recorrente e declarou que o preço devia ser fixado em conformidade com as conclusões do perito, sem prejuízo de uma adaptação automática desse preço ao preço inferior que fosse eventualmente fixado pela Comissão na decisão que adoptasse na sequência de uma queixa apresentada pela recorrente (v. infra n.os 22 e 23). Pelos mesmos fundamentos negou provimento ao segundo pedido reconvencional da Belgacom. O presidente negou também provimento a um pedido de indemnização, apresentado pela recorrente, que pretendia que o segundo pedido reconvencional era temerário e vexatório, considerando que não tinha sido provado que a Belgacom tinha abusado do seu direito de intentar acções judiciais.

15.
    Nos termos do artigo 2.° do Decreto real de 15 de Julho de 1994, a Belgacom publicou no Moniteur belge, em 24 de Setembro de 1994, um comunicado relativo às condições comerciais, financeiras e técnicas de acesso aos dados necessários à confecção, à venda, e à distribuição das listas dos assinantes dos serviços das telecomunicações reservados explorados pela Belgacom. O artigo 3.°, n.° 1, do comunicado fixava uma taxa anual de 200 BFR por dado-assinante mais 34% do volume de negócios relativo aos lucros publicitários auferidos pela pessoa autorizada. Em 20 de Abril de 1995, o IBPT, considerando que essa taxa não era equitativa, razoável e não discriminatória, recomendou à Belgacom que a alterasse fixando-a em 67 BFR por dado-assinante mais 16% do volume de negócios relativo aos lucros publicitários auferidos pela pessoa autorizada. O artigo 3.°, n.° 1, do referido comunicado foi alterado pelo comunicado publicado no Moniteur belge em 20 de Junho de 1995, no qual a taxa foi fixada em conformidade com a recomendação do IBPT.

16.
    Em 21 de Outubro de 1994, a Belgacom e a GTE Information Services Inc., sociedade de direito americano, criaram uma empresa comum, a Belgacom Directory Services SA (a seguir «BDS»), possuindo as duas sócias respectivamente 80% e 20% do capital, para a edição de listas telefónicas na Bélgica. A BDS, sociedade de direito belga, iniciou as suas actividades em 1995.

17.
    Em 16 de Março de 1995, a Belgacom e a recorrente celebraram uma convenção relativa ao fornecimento dos dados-assinantes. Por carta de 24 de Março de 1995, o IBPT, depois de ter recebido uma cópia dessa convenção, informou a recorrente da concessão de uma autorização provisória. A carta indicava que a autorização podia tornar-se definitiva desde que as condições financeiras da convenção fossem alteradas de modo a corresponder às condições equitativas, razoáveis e não discriminatórias a determinar pelo IBPT.

18.
    Por carta de 18 de Março de 1995, a Belgacom notificou a recorrente para que respeitasse as obrigações contratuais decorrentes do artigo XVI, n.° 2, do acordo de 9 de Maio de 1984. Essa notificação era acompanhada de uma lista de elementos que a Belgacom reclamava à recorrente nos termos do referido artigo. Em 7 de Abril de 1995, a recorrente apresentou essa notificação à Comissão.

19.
    O artigo XVI, n.° 2, do acordo de 9 de Maio de 1984 dispunha:

«Ten einde de Regie in staat te stellen de continuiteit van de uitgaven te verzekeren, dient de contractant:

a)    ten laatste één maand na de uitreikingsperiode van elk boekdeel van de 10 de uitgave alle abonneebestanden, tekeningen, specificaties en andere gegevens die nodig zijn voor de publikatie en de uitreiking van de OTG en de HBG zonder enige vergoeding aan de Regie af te staan;

b)    uiterlijk één maand na het uitreiken van het laatste boekdeel van de 10de uitgave zonder enige vergoeding bovendien af te staan: de licenties, voortvloeiend uit octrooien of uit soortgelijke wettelijke vormen van bescherming, naar aanleiding van werken uitgevoerd of in verband met onderhavige overeenkomst alsmede de know how nodig voor de uitgave en de uitreiking van de OTG en de HBG.»

(«A fim de permitir à Régie assegurar a continuidade da publicação, a parte contratante é obrigada a:

a)    transferir gratuitamente para a Régie, o mais tardar um mês após o período de distribuição de cada volume da décima edição, todos os ficheiros de assinantes, desenhos, especificações e outras informações necessárias para a publicação e a distribuição da lista telefónica oficial e da lista comercial;

b)    transferir igualmente a título gratuito para a Régie, o mais tardar um mês após a distribuição do último volume da décima edição: as licenças, resultantes de patentes ou de formas jurídicas similares de protecção, após trabalhos realizados ou efectuados no âmbito do presente acordo, bem como o saber-fazer necessário para a edição e a distribuição da lista telefónica oficial e da lista comercial.»)

20.
    Este pedido de execução do acordo de 9 de Maio de 1984 deu origem a um terceiro processo contencioso entre a Belgacom e a recorrente (a seguir «terceira acção judicial da Belgacom»). Em 14 de Abril de 1995, a Belgacom apresentou um pedido de medidas provisórias contra a recorrente no Tribunal de commerce de Bruxelas a fim de obrigar a recorrente, nos termos do artigo 16.°, n.° 2, do acordo de 9 de Maio de 1984, a transferir para a Belgacom um certo número de dados, o saber-fazer comercial e os direitos de autor. Por decisão de 19 de Junho de 1995, o presidente do Tribunal de commerce de Bruxelas declarou que o processo não preenchia os requisitos exigidos para os processos de medidas provisórias e negou-lhe provimento por falta de fundamentação.

21.
    Após o processo de medidas provisórias, a Belgacom e a BDS, em 7 de Agosto de 1995, propuseram uma acção contra a recorrente no Tribunal de commerce de Bruxelas, pedindo que fosse condenada no pagamento das indemnizações previstas no artigo XVI, n.° 3, do acordo de 9 de Maio de 1984, por não execução do n.° 2 do mesmo artigo. Por decisão de 11 de Dezembro de 1996, o presidente do Tribunal de commerce de Bruxelas declarou que a cláusula de exclusividade prevista no acordo de 9 de Maio de 1984 violava o artigo 85.°, n.° 1, do Tratado e que, sendo essa cláusula a própria essência do acordo, este último era nulo na sua integralidade, por força do artigo 85.°, n.° 2, do Tratado. Assim, negou provimento à acção por falta de fundamentação. Considerando que não tinha sido demonstrado que a propositura da acção devia ser considerada como temerária e vexatória, também negou provimento ao pedido reconvencional apresentado pela recorrente. Declarou que o facto de não ter apreciado correctamente um acordo não constituía, em si mesmo, um facto suficientemente grave para que possa ser considerada um prova de má fé.

O processo administrativo na Comissão

22.
    Em 20 de Outubro de 1984, a recorrente apresentou uma queixa à Comissão, por um lado, contra o comportamento da Belgacom, por força do artigo 3.° do Regulamento n.° 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, primeiro regulamento de execução dos artigos 85.° e 86.° do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22, a seguir «Regulamento n.° 17»), por violação do artigo 86.° do Tratado e, por outro, contra a legislação belga por incompatibilidade com os artigos 86.° e 90.°, n.° 1, do Tratado. A Comissão dividiu essa queixa em duas partes: a queixa contra o comportamento da Belgacom foi registada sob o n.° IV/35.238 (a seguir «queixa IV/35.268») e a queixa contra a regulamentação belga sob o n.° 94/5103 SG(94) A/23203.

23.
    Na queixa IV/35.268, a recorrente afirmava que a Belgacom tinha abusado da sua posição dominante, em violação do artigo 86.° do Tratado:

a)    ao comunicar aos clientes actuais ou potenciais da recorrente informações falsas, enganadoras e difamatórias a seu respeito,

b)    ao recusar fornecer à recorrente em condições equitativas, razoáveis e não discriminatórias os dados-assinantes necessários à confecção de listas,

c)    ao impor preços excessivos e/ou discriminatórios para a venda dos referidos dados-assinantes,

d)    ao intentar contra a recorrente processos contenciosos nos órgãos jurisdicionais belgas com objectivos vexatórios,

e)    ao solicitar à recorrente que lhe transmitisse o seu saber-fazer industrial e comercial em virtude dos compromissos contratuais que vinculam as duas partes.

24.
    Por carta de 7 de Março de 1995, a Comissão informou a recorrente da sua tomada de posição preliminar relativamente aos cinco fundamentos da queixa IV/35.268 e convidou-a a comunicar-lhe as suas observações. A recorrente respondeu a esse convite por cartas de 6, 18, 25, 27 de Abril e de 16 de Junho de 1995.

25.
    Em 6 de Dezembro de 1995, a recorrente apresentou uma nova queixa à Comissão, registada sob o número 96/4067 SG(95) A/19911/2, contra a regulamentação belga relativa às listas telefónicas, invocando a sua incompatibilidade com os artigos 59.° e 90.° do Tratado.

26.
    Em 20 de Dezembro de 1995, a Comissão enviou a comunicação das acusações à Belgacom relativa ao terceiro fundamento da queixa IV/35.268, isto é, o preço de venda dos dados-assinantes (a seguir «comunicação das acusações de 20 de Dezembro de 1995»). Esta comunicação das acusações foi seguida de uma audição em 10 de Abril de 1996. Em Abril de 1997, a Comissão chegou a um acordo com a Belgacom quanto às condições de acesso aos dados-assinantes, após o qual a recorrente retirou esse fundamento da sua queixa (v. comunicado de imprensa da Comissão de 11 de Abril de 1997).

27.
    Por carta de 21 de Dezembro de 1995 (a seguir «carta de 21 de Dezembro de 1995»), a Comissão notificou à recorrente a rejeição definitiva do primeiro e segundo fundamentos da queixa IV/35.268 (v. n.° 23). A rejeição destes fundamentos da queixa não foi objecto de recurso para o Tribunal. Comunicou-lhe igualmente o envio de uma comunicação das acusações à Belgacom (v. n.° 26), bem como a sua tomada de posição preliminar nos termos do artigo 6.° do Regulamento n.° 99/63/CEE da Comissão, de 25 de Julho de 1963, relativo às audições referidas nos n.os 1 e 2 do artigo 19.° do Regulamento n.° 17 do Conselho (JO 127, de 1963, p. 2268; EE 08 F1 p. 62), relativamente ao quarto e quinto fundamentos da queixa IV/35.268 (v. n.° 23).

28.
    Por carta de 9 de Fevereiro de 1996, a recorrente apresentou as suas observações à Comissão sobre a sua tomada de posição preliminar relativa aos dois últimos fundamentos da queixa IV/35.268 (a seguir «carta de 9 de Fevereiro de 1996»).

A decisão recorrida

29.
    Por decisão de 21 de Maio de 1996, comunicada à recorrente por correio do mesmo dia, a Comissão rejeitou definitivamente o quarto e quinto fundamentos da queixa IV/35.268 (v. n.° 23), relativos aos processos contenciosos pretensamente vexatórios da Belgacom e ao pedido de execução do artigo XVI, n.° 2, do acordo de 9 de Maio de 1984, que acarreta a transferência para a Belgacom do seu saber-fazer industrial e comercial (a seguir «decisão recorrida»).

Processos contenciosos

30.
    A Comissão refere que, em princípio, considera que «o facto de intentar uma acção judicial, expressão do direito fundamental de acesso à justiça, não pode ser qualificado de abuso», salvo «se uma empresa em posição dominante intenta acções judiciais que (i) não podem ser razoavelmente consideradas como destinadas a invocar os seus direitos, e possam apenas servir para perseguir a parte contrária, e (ii) são concebidas no âmbito de um plano que tem por objectivo eliminar a concorrência» (ponto 11 da decisão recorrida).

31.
    Quanto ao primeiro pedido reconvencional apresentado pela Belgacom, a Comissão afirma ter referido na carta de 21 de Dezembro de 1995 que esse pedido «constituía uma defesa face a uma acusação [da recorrente], e tinha efectivamente por objectivo invocar o que a Belgacom [considerava] como um direito, derivando da situação [da recorrente] antes da obtenção da autorização legalmente exigida». A recorrente opôs dois argumentos na sua carta de 9 de Fevereiro de 1996 (pontos 14 e 15 da decisão recorrida).

32.
    O primeiro argumento, relativo ao facto da impossibilidade de a recorrente obter uma autorização do IBPT derivar das práticas tarifárias da Belgacom que são objecto da comunicação das acusações da Comissão de 20 de Dezembro de 1995, levou a Comissão a precisar que «a comunicação das acusações é relativa aos preços excessivos e discriminatórias que continuam a ser praticados, quando a [recorrente] entretanto obteve uma autorização. Daqui decorre que a pretensa impossibilidade de a [recorrente] obter uma autorização não resulta das práticas que são objecto da comunicação das acusações da Comissão à Belgacom» (n.os 15 e 16 da decisão recorrida).

33.
    O segundo argumento, relativo ao facto de a Comissão não ter examinado a compatibilidade com o Tratado, e nomeadamente dos artigos 59.°, 86.° e 90.°, com a legislação em que a acção da Belgacom se insere, conduziu a Comissão a observar que este argumento diz respeito aos actos do Estado belga e não a práticas da Belgacom, de modo que, enquanto a referida legislação não for anulada por um órgão jurisdicional competente, a Belgacom pode legitimamente fazer-lhe referência nas suas acções judiciais (n.os 15 e 17 da decisão recorrida).

34.
    Além disso, a Comissão afirma que, se a acção judicial da Belgacom se inscrevia realmente no âmbito de uma estratégia deliberada de eliminação da concorrência, a Belgacom não teria esperado por uma acção judicial da recorrente para apresentar o seu pedido sob a forma de um pedido reconvencional. Teria directamente apresentado uma queixa contra a recorrente (n.° 18 da decisão recorrida).

35.
    Quanto ao segundo pedido reconvencional da Belgacom, a Comissão assinala novamente ter referido na carta de 21 de Dezembro de 1995 que o pedido constituía um meio de defesa utilizado para contrariar a acusação da recorrente e tinha por objectivo invocar o que a Belgacom considerava como um direito, derivando desta vez da situação legal que prevalecia na Bélgica antes da adopção do Decreto real de 15 de Julho de 1994. Na sua carta de 9 de Fevereiro de 1996, a recorrente opôs dois argumentos a esta explicação (n.° 19 da decisão recorrida).

36.
    O primeiro argumento, relativo ao facto de que o artigo 86.° do Tratado obrigava a Belgacom a fornecer os dados-assinantes, leva a Comissão a sublinhar que o artigo 86.° do Tratado considerado isoladamente podia unicamente obrigar uma empresa em posição dominante a fornecer dados a uma outra empresa se esta última pudesse efectivamente utilizar esses dados no âmbito de uma actividade económica. Na falta de um decreto de aplicação precisando as condições de exercício da actividade de editor de listas, a recorrente não poderia utilizar os dados solicitados, mesmo que eles tivessem sido fornecidos pela Belgacom, sem infringir a lei belga. Mesmo que a impossibilidade de exercer como editor decorresse de uma omissão do Estado belga, que não teria adoptado atempadamente o decreto regulando o exercício dessa actividade, a Belgacom podia legitimamente fazer-lhe referência nas suas acções judiciais, enquanto a inexistência do decreto de aplicação não tivesse sido condenada por um órgão jurisdicional competente (n.os 20 e 21 da decisão recorrida).

37.
    O segundo argumento, relativo ao facto de que a recusa de fornecer os dados não podia corresponder a uma preocupação da Belgacom defender os seus direitos, não afectando o fornecimento desses dados o seu direito de exercer a actividade de editor de listas nos termos do artigo 113.° da Lei de 21 de Março de 1991, leva a Comissão a afirmar que, mesmo que o fornecimento pela Belgacom de dados à recorrente não tivesse colocado em causa o seu direito de exercer a referida actividade, «a Belgacom podia legitimamente temer [que a recorrente] utilizasse esses dados para angariar clientes no mercado da publicidade através das listas telefónicas, o que afectaria o monopólio legal da Belgacom no mercado» (n.os 20 e 22 da decisão recorrida).

38.
    A Comissão reitera, além disso, no n.° 23 da decisão recorrida, a constatação efectuada no n.° 18 da mesma (v. n.° 34).

39.
    Quanto à terceira acção judicial da Belgacom, que tem por objecto a não aplicação pela recorrente do artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984, a Comissão explica ter referido na carta de 21 de Dezembro de 1995 que a acção da Belgacom tinha por objectivo defender o que a Belgacom considerava um direito, oriundo de compromissos contratuais assumidos pela recorrente (n.° 24 da decisão recorrida).

40.
    Na carta de 9 de Fevereiro de 1996, a recorrente alegou que a acção, destinada a dar execução a pedidos que ultrapassavam o quadro dos compromissos contratuais que vinculam as duas partes, ia ela própria além do que constituiu a defesa legítima de um direito adquirido pela Belgacom com base nesses compromissos. A Comissão considerou que a recorrente não tinha apresentado qualquer elemento de facto ou de direito indicando em que medida os pedidos da Belgacom ultrapassavam o que estava previsto pelo acordo de 9 de Maio de 1984 (n.os 25 e 26 da decisão recorrida).

41.
    Como conclusão, a Comissão declara que, as três acções judiciais da Belgacom podendo razoavelmente ser consideradas ter sido intentadas tendo em vista fazer valer os seus direitos, não são constitutivas de um abuso na acepção do artigo 86.° do Tratado (n.° 27 da decisão recorrida).

42.
    Além disso, a Comissão sublinha que, sendo as duas primeiras acções judiciais da Belgacom pedidos reconvencionais permitindo-lhe defender os seus direitos, e não acções autónomas destinadas a perseguir a recorrente, não poderiam ter sido concebidas no âmbito de um plano tendo por objectivo eliminar a concorrência. Assim, não poderiam constituir um abuso na acepção do artigo 86.° do Tratado (n.° 28 da decisão recorrida).

Pedido de execução de um contrato

43.
    A Comissão declara que o pedido da Belgacom relativo ao artigo XVI, n.° 2, do acordo de 9 de Maio de 1984, é relativo à execução de um contrato e não à sua celebração. Declara ter indicado na carta de 21 de Dezembro de 1995 que o pedido de execução de um contrato não pode, em si mesmo, ser constitutivo de um abuso na acepção do artigo 86.° do Tratado. A recorrente opôs três argumentos na sua carta de 9 de Fevereiro de 1996 (n.os 30 a 32 da decisão recorrida).

44.
    O primeiro argumento, segundo o qual a distinção entre a celebração e a execução de uma cláusula contratual não é justificada no âmbito de uma aplicação do artigo 86.° do Tratado, conduz a Comissão a explicar que o conceito de abuso, na acepção do referido artigo, é um conceito objectivo, que implica, nomeadamente, comportamentos que prejudiquem a estrutura da concorrência. Ora, o pedido de execução de um contrato não acrescenta nada aos efeitos que decorrem da sua celebração, implicando esta última a sua execução pelos signatários, ou na falta dela, um pedido de execução pela parte que procura defender os seus direitos. Seria diferente se esse pedido ultrapassasse o âmbito do contrato e fosse susceptível de ter um efeito específico na estrutura da concorrência. A Comissão declara que a recorrente não apresentou nenhum elemento de facto ou de direito demonstrando que o pedido da Belgacom tinha um efeito específico na estrutura da concorrência, ultrapassando os efeitos que as partes podiam esperar do acordo de 9 de Maio de 1984 (n.os 32 a 34 da decisão recorrida).

45.
    O segundo argumento, relativo ao facto de que o objectivo do pedido da Belgacom era excluir a recorrente do mercado das listas telefónicas, leva a Comissão a declarar que a recorrente não apresenta nenhum elemento de facto ou de direito indicando em que medida o pedido da Belgacom não teria por objectivo defender os direitos que adquiriu aquando da assinatura do acordo de 9 de Maio de 1984. O facto de que, se fosse procedente, o pedido teria os efeitos descritos pela recorrente sobre a concorrência no mercado das listas, seria uma consequência das circunstâncias em que o contrato foi celebrado, numa altura em que a emissão de listas era uma actividade que era objecto de direitos exclusivos reservados à Belgacom (n.os 32 e 35 da decisão recorrida).

46.
    O terceiro argumento, segundo o qual a Comissão violou o artigo 89.° do Tratado ao abster-se de levar a cabo um inquérito sobre a compatibilidade do acordo de 9 de Maio de 1984 com os artigos 85.° e 86.° do Tratado, conduziu a Comissão a salientar não ter em lado algum indicado qual era a sua posição sobre a compatibilidade desse acordo com os artigos 85.° e 86.° do Tratado. Precisa que a decisão recorrida não prejudica em nada o eventual início de um processo a este respeito, nem a possibilidade de a recorrente apresentar uma queixa sobre este aspecto contra o referido acordo, em conformidade com o artigo 3.° do Regulamento n.° 17 (v. n.os 32 a 36 da decisão recorrida).

Tramitação processual

47.
    Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 22 de Julho de 1996, a recorrente interpôs o presente recurso.

48.
    Em 6 de Dezembro de 1996, a Belgacom fez um pedido de intervenção em apoio dos pedidos da Comissão. Esse pedido foi deferido por despacho do presidente da Quarta Secção Alargada do Tribunal, de 19 de Fevereiro de 1997.

Pedidos das partes

49.
    A recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    anular a decisão recorrida;

-    condenar a Comissão nas despesas.

50.
    A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    negar provimento ao recurso;

-    condenar a recorrente nas despesas.

51.
    A Belgacom, parte interveniente em apoio dos pedidos da Comissão, conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    negar provimento ao recurso;

-    condenar a recorrente nas despesas.

Quanto ao mérito

52.
    A recorrente invoca sete fundamentos em apoio do seu recurso. O primeiro fundamento é relativo a um erro manifesto de apreciação das práticas tarifárias da Belgacom, que se traduzem por uma fundamentação insuficiente da decisão recorrida. O segundo fundamento é relativo a um erro manifesto de apreciação da legislação belga que regulamenta a edição de listas telefónicas. O terceiro fundamento é relativo a um erro de qualificação dos direitos da Belgacom. O quarto fundamento é relativo a um erro manifesto na apreciação da recusa da Belgacom de fornecer os dados-assinantes. O quinto fundamento é relativo a um erro manifesto de apreciação da estratégia da Belgacom para afastar a recorrente. O sexto fundamento é relativo à violação do artigo 190.° do Tratado, no respeitante à rejeição da parte da queixa IV/35.268 relativa à terceira acção judicial da Belgacom. O sétimo fundamento é relativo à violação do artigo 86.° do Tratado, devido à qualificação do pedido de execução do artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984.

53.
    Os cinco primeiros fundamentos são relativos aos dois pedidos reconvencionais da Belgacom, o sexto fundamento à terceira acção judicial da Belgacom e o sétimo fundamento ao pedido de execução do artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984.

54.
    Assim, os seis primeiros fundamentos colocam a questão de saber se o facto de uma empresa que ocupa uma posição dominante num determinado mercado intentar uma acção judicial contra uma empresa concorrente no mercado pode constituir um abuso na acepção do artigo 86.° do Tratado.

55.
    Ora, por um lado, a Comissão explica assim que, para poder determinar os casos em que tal acção judicial é abusiva, estabeleceu dois critérios cumulativos na decisão recorrida: é necessário que a acção, em primeiro lugar, não possa ser razoavelmente considerada tendo por objectivo fazer valer os direitos da empresa interessada, e só possa, deste modo, servir para perseguir a outra parte, e, em segundo lugar, que seja concebida no âmbito de um plano que tenha por objectivo eliminar a concorrência (a seguir «dois critérios cumulativos da Comissão» ou «dois critérios cumulativos»).

56.
    O primeiro dos dois critérios significa, segundo a Comissão, que a acção judicial deve ser, numa perspectiva objectiva, manifestamente desprovida de qualquer fundamento. O segundo refere que a acção judicial deve ter por objectivo eliminar a concorrência. Os dois critérios devem estar reunidos para se concluir pela existência de um abuso. O facto de intentar uma acção mal fundamentada não pode, por si só, constituir uma infracção ao artigo 86.° do Tratado, excepto se essa acção prosseguir um fim anticoncorrencial. Do mesmo modo, uma acção que pode razoavelmente ser considerada como uma tentativa de fazer valer direitos em relação a concorrentes não pode ser constitutiva de um abuso, independentemente do facto de poder inserir-se num plano destinado a eliminar a concorrência.

57.
    Por outro lado, resulta dos autos que a recorrente critica a aplicação no caso em apreço dos dois critérios cumulativos, sem todavia pôr em causa a compatibilidade destes critérios enquanto tais com o artigo 86.° do Tratado.

58.
    Assim, sem que seja necessário pronunciar-se sobre o mérito da escolha dos critérios efectuada pela Comissão na decisão recorrida, compete ao Tribunal, no caso concreto, verificar se a Comissão aplicou correctamente os dois critérios cumulativos.

59.
    A este respeito, há que reconhecer que, através dos quatro primeiros fundamentos do seu recurso, a recorrente pretende demonstrar que o primeiro dos dois critérios cumulativos estava preenchido e, através do quinto fundamento do seu recurso, que o segundo desses critérios também estava preenchido. Tendo em conta o carácter cumulativo dos dois critérios, só será necessário examinar o quinto fundamento se a análise pelo Tribunal dos primeiros quatro fundamentos o conduzir à conclusão que o primeiro critério estava efectivamente preenchido.

60.
    Antes de iniciar a análise dos diferentes fundamentos, há que salientar três elementos. Em primeiro lugar, é necessário sublinhar, como o fez justamente a Comissão, que o facto de poder invocar os seus direitos por via jurisdicional e o controlo jurisdicional que ele implica, é a expressão de um princípio geral de direito que está na base das tradições constitucionais comuns dos Estados-Membros e que foi igualmente consagrado pelos artigos 6.° e 13.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950 (v. acórdão do Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 1986, Johnston, 222/84, Colect., p. 1651, n.os 17 e 18). Sendo o acesso à justiça um direito fundamental e um princípio geral que garante o respeito do direito, é apenas em circunstâncias completamente excepcionais que o facto de intentar uma acção judicial é susceptível de constituir um abuso de posição dominante na acepção do artigo 86.° do Tratado.

61.
    Seguidamente, há que salientar que, constituindo uma excepção ao princípio geral de acesso à justiça, que garante o respeito do direito, os dois critérios cumulativos devem ser interpretados e aplicados restritivamente, de modo a não pôr em causa a aplicação do princípio geral (v., nomeadamente, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 5 de Março de 1997, WWF UK/Comissão, T-105/95, Colect., p. II-313, n.° 56).

62.
    Por último, é jurisprudência constante que, quando a Comissão adoptou uma decisão de arquivamento de uma queixa apresentada nos termos do artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17, sem proceder a instrução, o controlo da legalidade a que o Tribunal deve proceder tem por objectivo verificar se a decisão controvertida não assenta em factos materialmente inexactos, não está ferida de qualquer erro de direito nem de qualquer erro manifesto de apreciação ou de desvio de poder (v. acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 18 de Maio de 1994, BEUC e NCC/Comissão, T-37/92, Colect., p. II-285, n.° 45).

Quanto ao primeiro fundamento, relativo a um erro manifesto de apreciação das práticas tarifárias da Belgacom, que se traduzem por uma fundamentação insuficiente da decisão recorrida

Argumentos das partes

63.
    A recorrente observa que, na queixa IV/35.268, sustentou que a Belgacom tinha procurado pôr termo às suas actividades comerciais solicitando ao Tribunal de commerce de Bruxelas, com base na legislação belga que regulamenta a edição de listas telefónicas, aliás incompatível com o direito comunitário, que ordenasse à recorrente que cessasse as suas actividades de angariação e de venda relativas à edição de 1995/1996 das suas listas comerciais, censurando-lhe não ter obtido do IBPT a autorização de publicar listas exigida pelo artigo 113.°, n.° 2, da Lei de 1991. Na carta de 21 de Dezembro de 1995, a Comissão respondeu que o primeiro pedido reconvencional da Belgacom não constituía um abuso, uma vez que esta última tinha simplesmente invocado um direito «que deriva da situação [da recorrente] antes da obtenção da autorização legalmente exigida». A recorrente pretende ter respondido, na sua carta de 9 de Fevereiro de 1996, que tal tomada de posição ignora completamente o facto de que as práticas tarifárias da Belgacom impediram inicialmente a recorrente de obter uma autorização e que essas práticas foram objecto de um exame minucioso na comunicação das acusações de 20 de Dezembro de 1995.

64.
    A resposta dada pela Comissão ao n.° 16 da decisão recorrida (v. n.° 32) seria fundamentada numa apreciação inexacta dos factos. Por um lado, a recorrente salienta que as práticas tarifárias iniciais que a levaram a não celebrar um acordo com a Belgacom para o fornecimento de dados-assinantes, isto é 200 BFR por dado-assinante mais 34% do volume de negócios relativo aos lucros publicitários auferidos pela pessoa autorizada, já não estavam em vigor aquando da adopção da decisão recorrida e também não estavam em vigor as que eram objecto da convenção celebrada em 16 de Março de 1995 pela Belgacom e a recorrente, a qual lhe permitiria obter uma autorização do IBPT. Por outro lado, a recorrente sustenta que, na comunicação das acusações de 20 de Dezembro de 1995, a Comissão considerou as práticas tarifárias iniciais da Belgacom excessivamente elevadas e abusivas. Tendo essas práticas, precisamente, impedido a recorrente de obter uma autorização do IBPT, a recorrente deduziu desse facto que a Comissão, injustificadamente, concluiu, no n.° 16 da decisão recorrida, que as práticas tarifárias da Belgacom que foram objecto da comunicação das acusações de 20 de Dezembro de 1995, não tinham qualquer relação com a impossibilidade de a recorrente obter essa autorização.

65.
    Essa apreciação errada dos factos teria impedido a recorrente de tomar conhecimento das razões que levaram a Comissão a rejeitar o seu principal argumento, segundo o qual as práticas tarifárias da Belgacom a impediram de obter uma autorização e, consequentemente, permitiram à Belgacom pedir ao Tribunal de commerce de Bruxelas que impedisse a recorrente de retomar as suas actividades de edição de listas, invocando que ela se tinha dedicado a actividades ilegais de angariação e de venda. A apreciação factualmente inexacta deste argumento afectaria também assim a fundamentação da decisão recorrida. Noutros termos, a Belgacom teria procurado obrigar a recorrente, por via judicial, a interromper as suas actividades explorando a sua recusa de pagar um preço excessivo pelos dados-assinantes. A atitude da Comissão seria, por outro lado, contraditória, na medida em que censurou as práticas tarifárias abusivas da Belgacom, sem, no entanto, contestar o processo abusivo e vexatório que lhes estava associado.

66.
    A Comissão sustenta que, na decisão recorrida, expôs claramente os fundamentos da rejeição da queixa IV/35.268. Assim assinalou que, no n.° 11 da decisão recorrida, definiu dois critérios cumulativos que devem estar preenchidos para que uma acção judicial intentada por uma empresa em posição dominante seja considerada abusiva. No n.° 14, indicou as razões pelas quais, no caso em apreço, o primeiro critério não estava preenchido e, no n.° 17, as razões pelas quais o segundo critério não estava preenchido.

67.
    Na decisão recorrida, a Comissão teria igualmente salientado que o facto de a Belgacom invocar, no primeiro pedido reconvencional, a falta de autorização da recorrente podia razoavelmente ser considerada como uma tentativa da Belgacom para fazer valer os seus direitos e que, deste modo, o primeiro critério que permite estabelecer uma infracção ao artigo 86.° do Tratado não estava preenchido. As razões pelas quais a recorrente não dispunha dessa autorização constituem um problema diferente. De qualquer modo, a Comissão pretende ter expressamente respondido à acusação de contradição, observando que as práticas tarifárias que são objecto da comunicação de acusações de 20 de Dezembro de 1995 estavam em vigor aquando da adopção da decisão recorrida, o que não tinha impedido a recorrente de obter uma autorização do IBPT. A alegação da recorrente segundo a qual só tinha podido celebrar um acordo com a Belgacom com base nas práticas tarifárias revistas não está relacionada com o argumento invocado pela Comissão. Essas práticas tarifárias seriam sempre o objecto de uma comunicação de acusações no momento em que a decisão recorrida foi adoptada e seriam constitutivas de um abuso.

Apreciação do Tribunal

68.
    O primeiro fundamento compõe-se na realidade de duas partes, sendo a primeira relativa à existência de um erro manifesto de apreciação e a segunda a uma insuficiente fundamentação.

69.
    Na primeira parte, a recorrente sustenta essencialmente que o n.° 16 da decisão recorrida é fundamentado num erro manifesto de apreciação. A este respeito, em primeiro lugar, há que rejeitar o argumento da recorrente segundo o qual a Comissão, injustificadamente, teria concluído que as práticas tarifárias que são objecto da comunicação de acusações, de 20 de Dezembro de 1995, não estavam relacionadas com a impossibilidade de a recorrente obter uma autorização.

70.
    Com efeito, as práticas tarifárias que são objecto da comunicação de acusações de 20 de Dezembro de 1995 eram efectivamente as publicadas no Moniteur belge de 24 de Setembro de 1994, isto é, 200 BFR por dado-assinante mais 34% do volume de negócios relativo aos lucros publicitários auferidos pela pessoa autorizada, como também as publicadas o Moniteur belge de 20 de Junho de 1995, isto é 67 BFR por dado-assinante mais 16% do volume de negócios relativo aos lucros publicitários auferidos pela pessoa autorizada (v. n.° 15). A recorrente celebrou uma convenção com a Belgacom em 16 de Março de 1995 e o IBPT informou a recorrente, por carta de 24 de Março de 1995, que dispunha de uma autorização provisória (v. n.° 17). Conclui-se que as práticas de preços que são objecto da comunicação de acusações de 20 de Dezembro de 1995 não impediram a recorrente de obter uma autorização permitindo-lhe editar listas.

71.
    Em segundo lugar, o argumento da recorrente segundo o qual a Comissão não teria tomado em conta o facto de que a falta de autorização da recorrente era precisamente devida às práticas tarifárias abusivas da Belgacom, não pode ser acolhido.

72.
    Com efeito, segundo o primeiro dos dois critérios cumulativos mencionados pela Comissão na decisão recorrida, uma acção judicial só pode ser qualificada de abusiva, na acepção do artigo 86.° do Tratado, se não puder ser razoavelmente considerada como destinada a fazer valer os direitos da empresa interessada e só possa, deste modo, servir para perseguir a outra parte. Assim, é a situação existente no momento em que a acção em questão é intentada que deve ser tomada em consideração para determinar se este critério está preenchido.

73.
    Além disso, na aplicação do referido critério, não se trata de determinar se os direitos que a empresa interessada invocava no momento em que intentou a acção judicial existiam efectivamente, ou se ela tinha razão, mas de determinar se essa acção tinha por objectivo invocar o que a empresa, nesse momento podia razoavelmente considerar como sendo os seus direitos. Resulta da última parte da formulação desse critério que ele está apenas preenchido quando a acção intentada não tinha esse objectivo, no que diz respeito ao único caso em que é permitido concluir que tal acção só servia para perseguir a parte contrária.

74.
    Ora, nos termos do artigo 113.°, n.° 2, da Lei de 1991, apenas a Belgacom e as pessoas autorizadas pelo IBPT tinham o direito de editar listas. Segundo o Decreto real de 15 de Julho de 1994, essa autorização tinha a forma de uma declaração de conformidade com o decreto, emitida pelo IBPT, do texto definitivo de uma convenção celebrada entre a Belgacom e o interessado relativa ao fornecimento dos dados-assinantes. Competia à Belgacom fixar as condições de acesso aos dados-assinantes, que deviam ser equitativas, razoáveis e não discriminatórias, e publicá-las no Moniteur belge (v., n.os 4 e 5).

75.
    A este respeito, há que recordar, no caso em apreço, que a Belgacom publicou no Moniteur belge de 24 de Setembro de 1994 um comunicado relativo às condições de acesso aos dados-assinantes fixando uma taxa anual de 200 BFR por dado-assinante mais 34% do volume de negócios relativo aos lucros publicitários auferidos pela pessoa autorizada, que o IBPT recomendou à Belgacom que alterasse a referida taxa apenas em 20 de Abril de 1995, fixando-a em 67 BFR por dado-assinante mais 16% do volume de negócios relativo aos lucros publicitários auferidos pela pessoa autorizada, o que a Belgacom fez por comunicado publicado no Moniteur belge em 20 de Junho de 1995 e que o primeiro pedido reconvencional da Belgacom foi indeferido por decisão do Tribunal de commerce de Bruxelas de 5 de Outubro de 1994.

76.
    Nessas circunstâncias, o exame da questão de saber se a falta de autorização da recorrente era devida às práticas tarifárias da Belgacom, não poderia demonstrar que a primeira acção judicial da Belgacom não tinha por objectivo invocar o que esta, no momento em que intentou essa acção, podia razoavelmente considerar como sendo os seus direitos e que a referida acção apenas servia, desse modo, para perseguir a recorrente. Deste modo, esta questão não era relevante para determinar se o primeiro critério estava preenchido. Portanto, relevava do exame do mérito, que era da competência do juiz nacional a quem foi submetida a primeira acção judicial da recorrente.

77.
    Não tendo a recorrente provado o erro manifesto de apreciação que alega, a primeira parte deste fundamento deve ser rejeitada.

78.
    No âmbito da segunda parte do seu primeiro fundamento, a recorrente alega que a decisão recorrida está insuficientemente fundamentada.

79.
    Resulta da jurisprudência constante que a fundamentação de uma decisão individual deve permitir, por um lado, ao seu destinatário conhecer as justificações da medida tomada, a fim de poder defender os seus direitos, se for caso disso, e verificar se a decisão é ou não fundada e, por outro, ao juiz comunitário exercer a sua fiscalização. A este respeito a Comissão não está obrigada, na fundamentação das decisões que é levada a adoptar para garantir a aplicação das regras de concorrência, a tomar posição sobre todos os argumentos que os interessados invocam em apoio do seu pedido, mas basta que exponha os factos e as considerações jurídicas que revestem uma importância essencial na economia da decisão. (v. acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 18 de Setembro de 1996, Asia Motor France/Comissão, T-387/94, Colect., p. II-961, n.os 103 e 104).

80.
    Ora, há que reconhecer que, na decisão recorrida, a Comissão definiu os dois critérios cumulativos que permitem determinar o carácter abusivo do comportamento de uma empresa em posição dominante no âmbito de uma acção judicial (ponto 11), que referiu que ela considerava que o primeiro dos dois critérios cumulativos não estava preenchido, na medida em que a primeira acção judicial da Belgacom «tinha efectivamente por objectivo o que a Belgacom considera como um direito, derivando da situação [da recorrente] antes da obtenção da autorização legalmente exigida (ponto 14)» e que ela respondeu ao argumento da recorrente relativo ao pretenso carácter contraditório da posição adoptada na carta de 21 de Dezembro de 1995 (ponto 16).

81.
    A decisão recorrida indica, assim, os elementos nos quais é fundamentada a tomada de posição da Comissão, permitindo assim à recorrente contestar o mérito dessa parte da decisão recorrida e ao Tribunal exercer o seu controlo de legalidade. Esta parte do fundamento também não pode ser acolhida.

82.
    Conclui-se que o primeiro fundamento deve ser rejeitado.

Quanto ao segundo fundamento, relativo a um erro manifesto de apreciação da legislação belga que regulamenta a edição de listas telefónicas

Argumentos das partes

83.
    A recorrente afirma que a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação fundamentando-se numa conclusão que só poderia ser extraída no fim de uma análise aprofundada das queixas da recorrente contra a legislação belga que regulamenta o exercício da actividade de editor de listas telefónicas.

84.
    Assim, assinala que nos pontos 17 e 21 da decisão recorrida, a Comissão concluiu que, no âmbito das suas acções judiciais, a Belgacom podia legitimamente apoiar-se na legislação belga, mesmo de forma incompleta, enquanto essa legislação não fosse anulada por uma autoridade competente. Todavia, a Comissão não instruiu seguidamente as queixas registadas sob os números 94/5103 SG(94) A/23203 e 96/4067 SG(95) A/19911/2 apresentadas pela recorrente contra a referida legislação (v. n.os 22 e 25), apesar de a recorrente ter claramente indicado na queixa e na sua carta de 9 de Fevereiro de 1996 que essa instrução demonstraria que a Belgacom não podia fundamentar nenhum dos seus pedidos nessa legislação.

85.
    A recorrente prossegue declarando que a Comissão não podia concluir que o quadro regulamentar belga criava direitos em relação à Belgacom que esta podia invocar judicialmente, enquanto não tivesse examinado a referida legislação a fim de se assegurar que deixava transparecer, pelo menos, esses direitos. Ao proceder desta maneira, a Comissão não cumpriu a sua obrigação de examinar atentamente todos os elementos de facto e de direito levados ao seu conhecimento pela recorrente (v. acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 18 de Setembro de 1992, Automec/Comissão, T-24/90, Colect., p. II-2223, n.° 79, e de 29 de Junho de 1993, Asia Motor France e o./Comissão, T-7/92, Colect., p. II-669, n.° 34). Este princípio foi aplicado pelo Tribunal de Primeira Instância no seu acórdão de 18 de Setembro de 1995, Ladbroke Racing/Comissão (T-548/93, Colect., p. II-2565, n.° 50) em que decidiu que a questão de saber se um acto legislativo nacional é compatível com o direito comunitário pode constituir um elemento pertinente do processo.

86.
    Ora, a recorrente sustenta que o elemento central do abuso subjacente aos dois pedidos reconvencionais da Belgacom reside no facto de a legislação belga não fornecer qualquer fundamento aos pedidos da Belgacom. Por um lado, esta não teria o direito de impor preços excessivos e discriminatórios, mas podia fazê-lo devido às lacunas da legislação e, por outro, não teria o direito de recusar fornecer os seus dados-assinantes, mas teria tentado abrigar-se na ausência de Decreto real de aplicação para proteger os seus direitos monopolísticos em matéria de actividades ligadas às listas, direitos que o artigo 45.° da Lei de 24 de Dezembro de 1993 aboliu. A atitude abusiva e anticoncorrencial da Belgacom teria sido reforçada pela entrada em vigor do Decreto real de 15 de Julho de 1994 quase nove meses depois da publicação da Lei de 24 de Dezembro de 1993. A incompatibilidade da legislação belga com o direito comunitário constitui, assim, um elemento pertinente da queixa IV/35.268 que a Comissão, em conformidade com a jurisprudência, deveria ter em conta.

87.
    No que diz respeito mais particularmente ao segundo pedido reconvencional, resulta claramente do ponto 21 da decisão recorrida que a Comissão não examinou totalmente as implicações da adopção do Decreto real de 15 de Julho de 1994 ou a ausência temporária desse decreto. A Comissão teria reconhecido sem ambiguidade que a recorrente tinha sido impedida de desenvolver efectivamente as suas actividades, não porque a legislação belga tinha concedido um direito exclusivo à Belgacom, mas porque a referida legislação era imperfeita. Apesar disso, concluiu que a Belgacom podia legitimamente invocar essa lacuna regulamentar nas suas acções judiciais.

88.
    A recorrente observa que a Comissão sustenta que a determinação do carácter abusivo de uma acção judicial não depende da questão de saber se o pedido é juridicamente correcto ou não. Assim, fundamenta a sua recusa de examinar a compatibilidade da legislação belga com o direito comunitário, no âmbito da sua análise da natureza abusiva do pedido da Belgacom, invocando o exame do mérito da acção pelos órgãos jurisdicionais nacionais. A recorrente daqui deduz que, segundo a Comissão, isso significa que, para que a incompatibilidade do direito nacional em causa com o direito comunitário possa servir de indício do carácter abusivo de uma acção judicial, é necessário previamente apreciar o mérito dessa acção. Essa conclusão é fundamentada numa aplicação incorrecta dos critérios que a Comissão impôs para determinar a natureza abusiva, na acepção do artigo 86.° do Tratado, de uma acção judicial. Enquanto uma decisão quanto ao mérito dessa acção é relativa à questão de saber se a legislação nacional em causa confere o direito reivindicado, uma decisão quanto ao carácter abusivo de tal acção seria relativo à questão de saber se a referida legislação deixa transparecer a existência do direito reivindicado. Todos os elementos de direito ou de facto, incluindo a compatibilidade do direito nacional com o direito comunitário, poderiam ser pertinentes para determinar a existência ou não de um direito ou de uma aparência de direito.

89.
    A Comissão responde que, na decisão recorrida, não considerou que a determinação do carácter abusivo da acção judicial intentada por uma empresa que ocupa uma posição dominante dependia da questão de saber se o pedido era juridicamente correcto ou não, mas o de saber se os dois critérios referidos no ponto 11 da decisão recorrida estavam preenchidos ou não. Além disso, observou que a afirmação da recorrente segundo a qual a legislação na qual se inseria a acção judicial da Belgacom não tinha sido examinada, era relativa a actos adoptados pelo Governo belga e não às práticas da Belgacom. Afirmou que a invocação pela Belgacom nos seus pedidos reconvencionais de uma disposição nacional que não tinha sido anulada podia ser razoavelmente considerada uma tentativa de fazer valer os seus direitos e não fazia parte de um plano destinado a eliminar um concorrente.

90.
    Não cometeu um erro manifesto de apreciação ao adoptar essa posição sem examinar ela própria a compatibilidade da legislação belga com o direito comunitário. A primeira acção judicial da recorrente foi intentada num tribunal nacional que era um órgão jurisdicional competente para examinar a compatibilidade do direito nacional com o Tratado CE (v. acórdãos do Tribunal de Justiça de 28 de Fevereiro de 1991, Delimitis, C-234/89, Colect., p. I-935, n.° 45, e do Tribunal de Primeira Instância de 18 de Setembro de 1996, Postbank/Comissão, T-353/94, Colect., p. II-921, n.os 65 a 67). A Comissão sublinha, por outro lado, que a Cour d'appel de Bruxelas considerou que a legislação belga era contrária aos artigos 86.° e 90.° do Tratado e negou provimento ao pedido reconvencional da Belgacom.

91.
    A Belgacom pretende, por seu turno, que a Comissão não era obrigada a declarar que a legislação belga não fornecia sequer elementos a favor de uma aparência dos direitos reivindicados pela Belgacom, sob pena de pronunciar-se necessariamente sobre o mérito e a interpretação de disposições de direito nacional cuja existência não é contestada pela recorrente. Além disso, se a Comissão tivesse considerado um comportamento abusivo da Belgacom, isso implicaria que fizesse uma apreciação sobre a maneira como o Governo belga tinha implementado um acto do Parlamento belga, apreciação que a Comissão pode unicamente efectuar no âmbito do artigo 90.°, n.° 1, do Tratado, no decurso de um processo intentado contra o Reino da Bélgica nos termos do artigo 90.°, n.° 3, do Tratado.

Apreciação do Tribunal

92.
    No caso em apreço, em conformidade com o artigo 113.°, n.° 2, da Lei de 1991, além da Belgacom, só as pessoas autorizadas pelo IBPT têm o direito de editar listas telefónicas, segundos os critérios e modalidades definidos pelo Rei. Não é contestado que essa autorização não podia ser concedida antes de o acto que determina os referidos critérios e modalidades ter entrado em vigor. Esse acto, o Decreto real de 15 de Julho de 1994, entrou em vigor em 26 de Agosto de 1994 (v. n.os 4 e 5). Antes desta data, a legislação belga implicava, assim, que ninguém podia obter a autorização necessária para editar listas telefónicas e, portanto, que a Belgacom, por força da lei, era a única a dispor do direito de editar essas listas.

93.
    Assim, as duas primeiras acções judiciais da Belgacom devem ser consideradas como destinadas a invocar o que esta última, no momento em que intentou essas duas acções judiciais, podia razoavelmente considerar como direitos, com base na legislação belga que regulamenta a edição de listas telefónicas. Por conseguinte, o primeiro dos dois critérios cumulativos da Comissão não estava preenchido.

94.
    Nessas circunstâncias, uma análise da questão de saber se a legislação belga que regulamenta a edição das listas telefónicas era compatível com o direito comunitário, não poderia demonstrar que as duas primeiras acções judiciais da Belgacom não tinham por objectivo invocar o que esta, no momento em que as intentou, podia razoavelmente considerar como sendo os seus direitos, facultado pela referida legislação, e que as duas acções só serviam, desse modo, a perseguir a recorrente. Assim, esta questão relevava do exame do mérito, que era da competência do juiz nacional a quem foram submetidas as duas acções judiciais da Belgacom.

95.
    A este propósito, há que rejeitar o argumento da recorrente segundo o qual a Comissão deveria examinar se a legislação belga era, pelo menos, aparentemente, compatível com o direito comunitário. Com efeito, essa interpretação do primeiro dos dois critérios cumulativos tornaria praticamente impossível o acesso à justiça das empresas em posição dominante, que, para não correrem o risco de se tornarem culpadas de uma violação do artigo 86.° do Tratado apenas pelo facto de terem intentado uma acção judicial, deveriam assegurar-se, antes da propositura dessa acção, que a legislação na qual fundamentam os seus direitos era compatível com o direito comunitário.

96.
    De resto, há que salientar que, de acordo com a jurisprudência, a compatibilidade de uma legislação nacional com as regras de concorrência do Tratado não pode ser considerada determinante no âmbito do exame da aplicabilidade dos artigos 85.° e 86.° do Tratado aos comportamentos de empresas que são abrangidas pela referida legislação. No âmbito dessa análise pela Comissão, a apreciação prévia de uma legislação nacional que tenha incidência sobre os comportamentos das empresas, só incide sobre a questão de saber se a referida legislação deixa subsistir a possibilidade de concorrência susceptível de ser entravada, limitada ou falseada por comportamentos autónomos por parte das empresas. Se tal não for o caso, os artigos 85.° e 86.° do Tratado não são aplicáveis (v. acórdão do Tribunal de Justiça de 11 de Novembro de 1997, Comissão e França/Ladbroke Racing, C-359/95 P e C-379/95 P, Colect., p. I-6265, n.os 31, 33 e 35).

97.
    Por outro lado, na medida em que, através do presente fundamento, a recorrente visa a omissão por parte da Comissão de instruir as queixas registadas sob os números 94/5103 SG(94) A/23203 e 96/4067 SG(95) A/19911/2 contra a legislação belga, e, deste modo, contra actos do Estado belga, há que recordar que, segundo a jurisprudência, o exercício do poder de apreciação da compatibilidade das medidas estatais com as normas do Tratado conferido pelo artigo 90.°, n.° 3, não está ligado a uma obrigação de intervenção por parte da Comissão e que, por conseguinte, as pessoas singulares ou colectivas que pedem à Comissão para intervir nos termos do artigo 90.°, n.° 3, não gozam do direito de recorrer da decisão da Comissão de não fazer uso das prerrogativas de que goza a esse título. (v. acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 9 de Janeiro de 1996, Koelman/Comissão, T-575/93, Colect., p. II-1, n.° 71). Assim, a recorrente, de qualquer modo, não podia exigir uma intervenção da Comissão sob a forma de uma directiva ou de uma decisão, nos termos do artigo 90.°, n.° 3, do Tratado.

98.
    Deste modo, foi a justo título que, no âmbito da aplicação do primeiro dos seus dois critérios cumulativos, a Comissão declarou nos pontos 17 e 21 da decisão recorrida, sem ter previamente examinado a questão de saber se a legislação belga era compatível com o direito comunitário, que, no que diz respeito à primeira acção judicial da Belgacom, enquanto a referida legislação não tivesse sido anulada e, no que diz respeito à segunda acção, enquanto a falta do decreto de aplicação não tivesse sido aprovado, a Belgacom podia legitimamente fazer-lhe referência nessas duas acções judiciais.

99.
    Resulta de todas as considerações precedentes que o presente fundamento deve ser rejeitado.

Quanto ao terceiro fundamento, relativo a um erro de qualificação dos direitos da Belgacom

Argumentos das partes

100.
    A recorrente denuncia a conclusão da Comissão que figura no n.° 22 da decisão recorrida, na medida em que seria fundamentada num erro de qualificação. Com efeito, tendo o artigo 45.° da Lei de 24 de Dezembro de 1993 abolido todos os direitos exclusivos da Belgacom em matéria de actividades ligadas às listas a partir de 10 de Janeiro de 1994, o direito ligado ao monopólio já não poderia ser invocado para justificar a recusa de fornecer os dados-assinantes. A Comissão não teve em conta, deste modo, o primeiro dos seus dois critérios que permitem determinar se uma acção judicial destinada a fazer valer um direito, noutros termos, um título reconhecido ou protegido pela lei, uma vez que os direitos exclusivos da Belgacom tendo sido abolidos a partir de 10 de Janeiro de 1994, a sua acção judicial posterior, destinada a impedir a recorrente de angariar ou de vender espaços publicitários, não poderia, por definição, ter por objectivo fazer valer um título legítimo de exclusividade que seria protegido ou reconhecido pelo direito belga ou pelo direito comunitário.

101.
    A Comissão assinala que, nos termos do artigo 113.°, n.° 2, da Lei de 1991, na sua versão inicial, só a Belgacom ou outras pessoas autorizadas a colaborar nas suas actividades tinham o direito de editar listas telefónicas e que o artigo 45.° da Lei de 24 de Dezembro de 1993 previa que essa actividade seria permitida a outras pessoas autorizadas pelo IBPT, sob certas condições a fixar por decreto real. A Comissão teria salientado no n.° 19 da decisão recorrida que podia ser considerado que a Belgacom invocava um direito que ela pensava decorrer da situação jurídica que prevalecia na Bélgica antes da adopção do Decreto real de 15 de Julho de 1994. Assim, esta poderia legitimamente temer que a recorrente fizesse dos dados solicitados uma utilização susceptível de afectar a posição jurídica que ela pensava ter antes da adopção desse decreto.

102.
    Por seu turno, a Belgacom sustenta que ela podia não apenas legitimamente temer que a recorrente utilizasse os dados-assinantes de modo a afectar a posição jurídica que ela pensava ter antes da adopção do Decreto real de 15 de Julho de 1994, mas, além disso, que, enquanto empresa pública não tinha outra escolha senão agir em conformidade com as disposições legais que estavam em vigor e cuja invalidade não tinha sido declarada por uma decisão judicial transitada em julgado. A Belgacom considera que, enquanto o decreto real não tivesse sido adoptado, era obrigada a recusar fornecer os dados-assinantes à recorrente.

Apreciação do Tribunal

103.
    No n.° 19 da decisão recorrida, a Comissão afirma que a segunda acção judicial da Belgacom era destinada a fazer valer o que esta considerava como um direito, derivando da legislação que prevalecia na Bélgica antes da adopção do Decreto real de 15 de Julho de 1994.

104.
    É à luz desta afirmação que é necessário interpretar o ponto 22 da decisão recorrida, onde a Comissão salienta que a Belgacom podia legitimamente temer que a recorrente utilizasse os dados da Belgacom para angariar clientes no mercado da publicidade através das listas telefónicas, «o que afectaria o monopólio legal da Belgacom nesse mercado».

105.
    Com efeito, embora o artigo 45.° da Lei de 24 de Dezembro de 1993, que altera o artigo 113.°, n.° 2, da Lei de 1991, tenha abolido os direitos exclusivos da Belgacom de editar listas telefónicas a partir de 10 de Janeiro de 1994, também é um facto que, segundo esse mesmo artigo, além da Belgacom, só as pessoas autorizadas pelo IBPT dispunham do direito de editar listas, segundo as condições e modalidades definidas pelo Rei (v. n.° 4). Por conseguinte, enquanto alguém não tivesse obtido essa autorização, e não é contestado que nenhuma autorização podia ser dada antes de o Rei definir as suas condições e modalidades, a Belgacom era, nos termos da legislação belga, a única a dispor do direito de editar listas. A posição jurídica da Belgacom é de tal ordem que beneficiava, de facto, de um monopólio no mercado da edição das listas telefónicas na Bélgica.

106.
    Assim, resulta da leitura conjugada dos pontos 19 e 22 da decisão recorrida que a expressão «o monopólio legal da Belgacom nesse mercado» deve ser interpretada no sentido de que a posição jurídica da Belgacom no mercado das listas telefónicas, que resulta directamente do artigo 113.°, n.° 2, da Lei de 1991 e da ausência de decreto real definindo as condições e modalidades da concessão de autorizações, era, de facto, a de um monopólio.

107.
    De qualquer modo, o presente fundamento é inoperante. Com efeito, mesmo pressupondo que a Comissão tenha cometido um erro de apreciação ao qualificar a posição da Belgacom no mercado belga das listas telefónicas como um monopólio legal, também é um facto que resulta das considerações precedentes que a Belgacom detinha, de facto, um monopólio nesse mercado, resultante da legislação belga. Ora, resulta do ponto 19 da decisão recorrida que se trata do elemento que levou a Comissão a concluir que a segunda acção judicial da Belgacom não preenchia o primeiro dos dois critérios cumulativos.

108.
    Não sendo a decisão recorrida fundamentada num erro de qualificação denunciado pela recorrente, o terceiro fundamento deve ser rejeitado.

Quanto ao quarto fundamento, relativo a um erro manifesto de apreciação da recusa da Belgacom de fornecer os dados-assinantes

Argumentos das partes

109.
    A recorrente afirma que o artigo 86.° do Tratado proíbe às empresas que ocupam uma posição dominante recusar fornecer um produto ou um serviço, excepto se essa recusa for objectivamente justificada. No caso em apreço, a recusa da Belgacom fornecer à recorrente os dados-assinantes solicitados teria afectado de modo essencial a capacidade desta última de preparar as suas actividades de edição de listas. Em contrapartida, as actividades de edição de listas da Belgacom não teriam sido afectadas por uma decisão de fornecer ou não os referidos dados. Assim, a recusa da Belgacom não seria justificada. Essa recusa não teria outro objectivo senão proteger o monopólio da Belgacom (v. ponto 22 da decisão recorrida), monopólio que foi abolido pela Lei de 24 de Dezembro de 1993. A Comissão, assim, teria cometido um erro manifesto de apreciação da recusa da Belgacom fornecer os dados-assinantes solicitados. Contrariamente ao que sustenta a Comissão, a legislação belga não poderia justificar essa recusa.

110.
    A recorrente acrescenta que, ao declarar que não pode examinar se um pedido judicial é fundamentado, a Comissão não aplica correctamente os seus próprios critérios para determinar o carácter abusivo de uma acção judicial intentada por uma empresa que ocupa uma posição dominante. Com efeito, seguindo o raciocínio exposto nos pontos 19 a 23 da decisão recorrida, a Comissão nunca poderia concluir pelo carácter abusivo de uma acção judicial de natureza vexatória, sob pena de substituir a apreciação dos órgãos jurisdicionais nacionais pela sua própria apreciação. Ora, a recorrente salienta que, na decisão recorrida, a Comissão afirmou que a segunda acção judicial da Belgacom não era abusiva, uma vez que a sua recusa de fornecer os dados-assinantes era justificada nos termos da legislação belga. A recorrente daí deduziu que a Comissão deveria igualmente estar em situação de declarar o contrário.

111.
    A Comissão responde que não se preocupou com a questão de saber se o pedido reconvencional da Belgacom ia finalmente resultar. Efectivamente seria inaceitável permitir às empresas que ocupam uma posição dominante aceder aos órgãos jurisdicionais nacionais apenas nos casos em que o fundamento das suas acções fosse, no entender da Comissão, juridicamente correcto. Essa tese equivaleria a privar essas empresas de direitos fundamentais que só deveriam ser negados quando fosse feita uma utilização abusiva deles. Além disso, ao emitir considerações a respeito do mérito de uma acção dos órgãos jurisdicionais nacionais, a Comissão substituiria, de facto, a opinião do juiz nacional pela sua opinião, simultaneamente sobre as questões que relevam do direito nacional e sobre as que relevam do direito comunitário, o que conduziria a negar a competência conjunta da Comissão e dos órgãos jurisdicionais para a aplicação do artigo 86.° do Tratado (v. acórdãos do Tribunal de Justiça, Delimitis, já referido, e do Tribunal de Primeira Instância, Postbank/Comissão, já referido). A Comissão pretende, assim, ter considerado justamente, na decisão recorrida, que se poderia razoavelmente considerar que a Belgacom tinha apresentado o segundo pedido reconvencional prevalecendo-se de um direito que pensava possuir antes da adopção do Decreto real de 15 de Julho de 1994.

112.
    Por seu turno, a Belgacom alega que a Comissão não verificou, e não era obrigada a verificar, se a sua recusa de fornecer os dados-assinantes à recorrente era justificada. Ela limitou-se a verificar se o seu segundo pedido reconvencional era abusivo. A Belgacom refutou o argumento da recorrente segundo o qual, se a Comissão está em situação de determinar que um recurso não é abusivo, também está em situação de determinar que é abusivo. Os critérios definidos pela Comissão para efeitos de determinar se uma acção judicial proposta por uma empresa que ocupa uma posição dominante constitui um abuso, implicariam necessariamente que a Comissão exerça apenas um controlo marginal, que consiste em verificar se a acção é abusiva. Se assim não for, a Comissão abster-se-ia de proceder a uma análise completa do mérito da acção. Essa análise seria da competência dos órgãos jurisdicionais a quem foram submetidas as acções.

Apreciação do Tribunal

113.
    Como a recorrente o confirmou na audiência, o quarto fundamento deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito da aplicação do primeiro dos dois critérios cumulativos à segunda acção judicial da Belgacom, a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação no ponto 22 da decisão recorrida ao não ter em consideração o facto de que a recusa da Belgacom fornecer os dados-assinantes era contrária ao artigo 86.° do Tratado.

114.
    Ora, afigura-se que, antes da entrada em vigor do Decreto real de 15 de Julho de 1994, as especificidades da legislação belga implicavam que ninguém estava em condições de obter a autorização necessária para editar listas telefónicas e que, portanto, a Belgacom, por força da lei, era a única a ter o direito de editar essas listas.

115.
    Assim, foi justamente que, no ponto 22 da decisão recorrida, a Comissão considerou, no âmbito da aplicação do primeiro dos dois critérios cumulativos, que a Belgacom podia legitimamente temer que a recorrente utilizasse os dados-assinantes para angariar clientes no mercado da publicidade através das listas telefónicas, o que afectaria a posição jurídica de que beneficiava a Belgacom nesse mercado nos termos da legislação belga (v. n.° 104).

116.
    Do mesmo modo, tanto a primeira como a segunda acção judicial da Belgacom devem ser consideradas como tendo por objectivo fazer valer o que esta última podia razoavelmente considerar como seus direitos, ao abrigo da legislação belga (v., n.° 93), de modo que o primeiro dos critérios cumulativos definidos pela Comissão na decisão recorrida não estava preenchido.

117.
    Esta conclusão não pode ser infirmada pela resposta à questão de saber se a recusa da Belgacom fornecer os dados-assinantes era ou não contrária ao artigo 86.° do Tratado. Com efeito, uma análise da referida questão não poderia demonstrar que a segunda acção judicial da Belgacom não tinha por objectivo fazer valer o que esta, no momento em que intentou essa acção, podia razoavelmente considerar como sendo seus direitos, e que a referida acção servia apenas para perseguir a recorrente. Essa questão releva, assim, efectivamente da análise do mérito, que era da competência do juiz nacional a quem foi submetida a segunda acção judicial.

118.
    Conclui-se que o quarto fundamento deve ser rejeitado.

119.
    Tendo sido rejeitados os quatro primeiros fundamentos da recorrida, relativos à aplicação do primeiro critério definido pela Comissão às duas primeiras acções judiciais da Belgacom e sendo os dois critérios cumulativos (v. n.° 59), o quinto fundamento relativo à aplicação do segundo critério às mesmas acções judiciais, torna-se irrelevante. Portanto, não é necessário que o Tribunal examine o referido fundamento.

Quanto ao sexto fundamento, relativo à violação do artigo 190.° do Tratado, no respeitante à rejeição da parte da queixa IV/35.268 relativa à terceira acção judicial da Belgacom

Argumentos das partes

120.
    A recorrente sustenta que, ao limitar-se a indicar no ponto 26 da decisão recorrida que a recorrente não apresentou elementos de facto ou de direito que demonstrem que os pedidos da Belgacom relativos ao artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984 eram excessivos, a Comissão violou o artigo 190.° do Tratado.

121.
    Na sua queixa, a recorrente teria referido que a Belgacom procurava, na realidade, apropriar-se das suas actividades sob o falso pretexto de se limitar a exercer direitos resultantes do artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984. Ora, a recorrente recorda que esse acordo foi celebrado numa altura em que a Belgacom detinha ainda o monopólio legal sobre a edição de listas. Na sua carta de 21 de Dezembro de 1995, a Comissão teria referido que a terceira acção da Belgacom tinha sido intentada «com o objectivo de defender o que a Belgacom [considerava] como um direito, derivado de compromissos contratuais assumidos pela [recorrente]». A recorrente sublinha que, na sua carta de 9 de Fevereiro de 1996, respondeu à Comissão explicando-lhe que a longa lista de elementos solicitados pela Belgacom não podia ter fundamento no texto do acordo de 9 de Maio de 1984. A título de exemplo revelador, mencionou o pedido de transferência da marca «Gouden Gids/Pages d'Or», que não podia ser justificado com base no artigo XVI do acordo, mas que, se fosse provido, se revelaria catastrófico para a sobrevivência da recorrente. A recorrente acrescenta que o artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984 não faz a menor alusão às marcas. A intenção anticoncorrencial que está subjacente à reivindicação de uma licença seria manifesta, uma vez que a obrigação de a recorrente conceder a licença da sua marca seria devastadora para as suas actividades, quando essa licença não reforçaria os seus concorrentes de outra maneira senão pelo enfraquecimento da sua posição concorrencial. Com efeito, na sequência dessa operação, a marca perderia a sua razão de ser, nomeadamente o seu carácter distintivo.

122.
    Além disso, na sua queixa, a recorrente pretende ter indicado que a Belgacom reivindicava marcas da propriedade da sociedade-irmã da recorrente, a ITT World Directories Netherlands, que não era sequer parte no acordo de 9 de Maio de 1984. A recorrente sublinha que, uma vez que o artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984 não faz mesmo alusão às marcas e que de qualquer modo ela não poderia comprometer-se a transferir marcas de que não é proprietária mas possui na qualidade de licenciada, o pedido da Belgacom saía de novo manifestamente do âmbito desse acordo. Se o pedido fosse deferido, o efeito seria devastador para as actividades da recorrente.

123.
    Além disso, a recorrente recorda que, em 7 de Abril de 1995, enviou à Comissão a carta de interpelação da Belgacom de 29 de Março de 1995 que contém a lista de elementos por ela solicitados com base no artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984. Por outro lado, na sua carta de 9 de Fevereiro de 1996, a recorrente sustenta ter sublinhado que a confissão feita pela Belgacom nas suas observações relativas à queixa, segundo a qual dava um sentido novo ao artigo XVI do referido acordo à luz da alteração da legislação belga, testemunhava a natureza abusiva do seu pedido. Com efeito, o novo sentido dado pela Belgacom ao referido artigo ocasionaria virtualmente a confiscação sem indemnização das actividades da recorrente em benefício da sua própria concorrente, isto é a BDS.

124.
    Todas estas provas do carácter abusivo do pedido da Belgacom teriam sido comunicadas à Comissão, mas esta escolheu ignorá-las.

125.
    A Comissão considera que os fundamentos de rejeição da queixa a esse respeito aparecem claramente nos pontos 24 a 26 da decisão recorrida, onde teria indicado que a acção judicial intentada pela Belgacom para obter a execução do acordo de 9 de Maio de 1984 não preenchia o primeiro dos dois critérios enunciados no n.° 11 da decisão recorrida, na medida em que essa acção podia razoavelmente ser considerada como tendo por objectivo exercer um direito que a Belgacom possuía nos termos do referido acordo.

126.
    Quanto à resposta da recorrente na sua carta de 9 de Fevereiro de 1996, a Comissão afirma que, segundo a jurisprudência constante, compete ao queixoso levar ao conhecimento da Comissão os elementos de facto e de direito nos quais fundamenta a sua queixa (v. acórdãos Automec/Comissão, já referido, n.° 79, e de 24 de Setembro de 1996, NALOO/Comissão, T-57/91, Colect., p. II-1019, n.° 258). O órgão jurisdicional belga onde foi intentada a acção da Belgacom seria competente para analisar os argumentos apresentados pela recorrente, na sua petição inicial, relativos à interpretação do artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984. A recorrente não transmitiu à Comissão nenhum elemento de facto ou de direito que demonstre que a acção judicial da Belgacom ia além do que esta última podia legitimamente considerar como sendo os seus direitos nos termos do acordo, de modo que a sua acção destinada a obter a execução do artigo XVI do acordo não constituía um abuso de posição dominante.

127.
    Por seu turno a Belgacom observa que, segundo a jurisprudência, o alcance da obrigação de fundamentar as decisões deve ser apreciado à luz do contexto do processo (v., nomeadamente, acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 9 de Novembro de 1994, Scottish Football/Comissão, T-46/92, Colect., p. II-1039, de 11 de Dezembro de 1996, Van Megen Sports/Comissão, T-49/95, Colect., p. II-1799, e de 12 de Dezembro de 1996, Rendo e o./Comissão, T-16/91 RV, Colect., p. II-1827). Do mesmo modo, quando a Comissão no âmbito de uma queixa apresentada nos termos do Regulamento n.° 17, é chamada a verificar se uma acção intentada num órgão jurisdicional nacional constitui um abuso de posição dominante, não é obrigada a examinar todos os elementos de facto e de direito que o queixoso invocou perante o órgão jurisdicional nacional e que comunicou à Comissão.

Apreciação do Tribunal

128.
    Segundo jurisprudência constante, a fundamentação de uma decisão individual deve permitir, por um lado, ao seu destinatário conhecer as justificações da medida tomada, a fim de poder defender os seus direitos, se for caso disso, e verificar se a decisão é ou não fundada, e por outro, ao juiz comunitário exercer a sua fiscalização, precisando-se que o alcance dessa obrigação depende da natureza do acto em causa e do contexto em que foi adoptado. Constituindo uma decisão um todo, cada uma das suas partes deve ser interpretada à luz das outras (v. acórdãos de 18 de Setembro de 1996, Asia Motor France e o./Comissão, já referido, n.° 103, e Van Megen Sports/Comissão, já referido, n.° 51).

129.
    No caso em apreço, a decisão recorrida refere que a Comissão considerava que a terceira acção judicial da Belgacom devia ser considerada como tendo por objectivo defender o que a Belgacom considerava como um direito derivado de compromissos contratuais assumidos pela recorrente (ponto 24). Depois de ter precisado que a recorrente, na sua carta de 9 de Fevereiro de 1996, tinha indicado que a terceira acção judicial da Belgacom tinha por objectivo executar pedidos que ultrapassavam o âmbito dos compromissos contratuais entre as duas partes (ponto 25), a decisão recorrida expõe que a recorrente não apresenta qualquer elemento de facto ou de direito precisando as razões pelas quais os pedidos da Belgacom ultrapassavam o que estava previsto pelo referido contrato (ponto 26). Resulta igualmente da decisão recorrida que a Comissão considera que a terceira acção judicial da Belgacom não preenchia o primeiro dos dois critérios cumulativos definidos no n.° 11 (ponto 27).

130.
    A decisão recorrida menciona, assim, os elementos em que é fundamentada a tomada de posição da Comissão no que diz respeito à aplicação dos dois critérios cumulativos à terceira acção judicial da Belgacom.

131.
    Quanto ao argumento segundo o qual a Comissão teria ignorado as provas apresentadas pela recorrente para demonstrar o carácter abusivo do pedido da Belgacom de executar o artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984, a decisão recorrida precisa que a Comissão considerou, no âmbito da aplicação do primeiro critério, que os elementos de facto e de direito apresentados pela recorrente não demonstravam que os pedidos da Belgacom ultrapassavam o que estava previsto pelo acordo (ponto 26). A este respeito, há que recordar que a Comissão não está obrigada, na fundamentação das decisões que é levada a adoptar para garantir a aplicação das regras de concorrência, a tomar posição sobre todos os argumentos que os interessados invocam em apoio do seu pedido, mas basta que exponha os factos e as considerações jurídicas que revestem uma importância essencial na economia da decisão (v. acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 18 de Setembro de 1996, Asia Motor France e o./Comissão, já referido, n.° 104).

132.
    Conclui-se que a Comissão fundamentou suficientemente a decisão recorrida no que diz respeito à terceira acção judicial da Belgacom. Por conseguinte o sexto fundamento deve ser rejeitado.

Quanto ao sétimo fundamento, relativo à violação do artigo 86.° do Tratado devido à qualificação dos pedidos de execução do artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984 escolhida pela Comissão

Argumentos das partes

133.
    Em primeiro lugar, a recorrente alega que, ao declarar nos pontos 33 e 34 da decisão recorrida que o pedido de execução do artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984 não era abusivo na medida em que não criava efeitos anticoncorrenciais na estrutura do mercado indo além dos efeitos que as partes podiam esperar do contrato, a Comissão violou o artigo 86.° do Tratado.

134.
    A recorrente recorda ter referido, na sua carta de 9 de Fevereiro de 1996, que, em conformidade com a jurisprudência, o abuso na acepção do artigo 86.° do Tratado é um conceito objectivo. Trata-se de um comportamento destinado a falsear, ou tendo por efeito falsear, uma estrutura de mercado realmente concorrencial. Também na mesma carta teria claramente demonstrado como o pedido extensivo da Belgacom, formulado nos termos do artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984, era susceptível de afectar a estrutura do mercado na sequência da eliminação da recorrente enquanto concorrente. A execução do artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984 teria, assim, falseado profundamente a estrutura efectiva do mercado, ao passo que, na ausência de execução desse artigo, a sua estipulação não teria qualquer efeito.

135.
    Além disso, a recorrente recorda que, para efeitos da aplicação do artigo 86.° do Tratado, a jurisprudência não faz qualquer distinção entre a celebração e a execução de um acordo. Qualquer comportamento de uma empresa que ocupa uma posição dominante poderia, assim, ser qualificado de abusivo, incluindo a execução de termos especiais de um acordo. A título de exemplo, a recorrente cita o acórdão do Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 1989, Ahmed Saeed Flugreisen e Silver Line Reiseburo (66/86, Colect., p. 803, n.os 34 e segs.), no qual o Tribunal decidiu que a aplicação de tarifas resultantes de uma acção concertada abrangida pelo âmbito de proibição do artigo 85.° do Tratado podia ser qualificada de abuso na acepção do artigo 86.° do Tratado [v. igualmente a Decisão 92/262/CEE da Comissão, de 1 de Abril de 1992, relativa a um processo de aplicação dos artigos 85.° e 86.° do Tratado CEE (IV/32.450 - Comités de armadores franco-oeste-africanos) (JO L 134, p. 1)].

136.
    Em segundo lugar, a recorrente sustenta que a Comissão violou o artigo 86.° do Tratado ao pretender, no ponto 35 da decisão recorrida, ter considerado como justificação para os efeitos anticoncorrenciais da execução pela Belgacom do artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984 o facto da sua estipulação remontar à época em que a Belgacom detinha um monopólio legal. Com efeito, contrariamente a uma infracção ao artigo 85.° do Tratado, uma infracção ao artigo 86.° do Tratado não poderia ser isenta nem justificada. A tese da Comissão carece, assim, de base jurídica e, além disso, não tem em conta de modo nenhum a evolução que sofreu a legislação belga desde a celebração do acordo em 9 de Maio de 1984.

137.
    A Comissão responde que a queixa IV/35.268 tinha unicamente por objectivo o pedido da Belgacom destinado a obter a execução do acordo de 9 de Maio de 1984. Em contrapartida, não teria sido convidada a pronunciar-se sobre a compatibilidade do acordo com o direito comunitário. Assim, a recorrente teria compreendido mal a decisão recorrida, cujo ponto 31 precisava que o pedido de execução de um acordo não constitui só por si um abuso na acepção do artigo 86.° do Tratado. No ponto 36 da decisão recorrida, teria expressamente indicado que não prejudicava em nada a possibilidade de dar início a um processo relativo à violação das regras do Tratado pelo referido acordo, nem a possibilidade de a recorrente apresentar uma queixa contra as cláusulas do acordo. A este respeito, a Comissão salienta, por outro lado, que a recorrente posteriormente apresentou uma queixa, nos termos do artigo 3.° do Regulamento n.° 17, relativa à legalidade do acordo de 9 de Maio de 1984 propriamente dito.

Apreciação do Tribunal

138.
    Segundo a jurisprudência, o conceito de exploração abusiva, tal como está inserido no artigo 86.° do Tratado, é um conceito objectivo que visa os comportamentos de uma empresa em posição dominante susceptíveis de influenciar a estrutura de um mercado, no qual, precisamente em consequência da presença da empresa em questão, o grau de concorrência é afectado, e que têm por efeito, através do recurso a mecanismos diferentes dos que regulam a concorrência normal de produtos ou de serviços com base nas prestações dos operadores económicos, criar obstáculos à manutenção do grau de concorrência ainda existente no mercado ou ao desenvolvimento dessa concorrência (v. acórdão do Tribunal de Justiça de 13 de Fevereiro de 1979, Hoffmann-La Roche/Comissão, 85/76, Recueil, p. 461, n.° 91).

139.
    Resulta da natureza das obrigações impostas pelo artigo 86.° do Tratado que, em circunstâncias específicas, as empresas em posição dominante podem ser privadas do direito de adoptar comportamentos ou cometer actos, que não são em si mesmo abusivos e que seriam mesmo não condenáveis se fossem adoptados, ou efectuados, por empresas não dominantes (v. no mesmo sentido, o acórdão do Tribunal de Justiça de 9 de Novembro de 1983, Michelin/Comissão, 322/81, Recueil, p. 3461, n.° 57). Assim a celebração de um contrato ou a aquisição de um direito podem ser constitutivas de um abuso na acepção do artigo 86.° do Tratado, se forem efectuadas por uma empresa em posição dominante (v., neste sentido, o acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 10 de Julho de 1990, T-51/89, Tetra Pak/Comissão, Colect., p. II-309, n.° 23).

140.
    Pode igualmente constituir de um abuso na acepção do artigo 86.° do Tratado, o pedido de execução de uma cláusula de um contrato, se, nomeadamente, esse pedido ultrapassar o que as partes podiam razoavelmente esperar do contrato ou se as circunstâncias aplicáveis aquando da celebração do contrato foram entretanto modificadas.

141.
    No caso em apreço, há que reconhecer que a recorrente não apresentou qualquer elemento susceptível de demonstrar que essas circunstâncias estavam reunidas.

142.
    Por um lado, quanto à questão de saber se o pedido da Belgacom ultrapassava o que as partes podiam esperar do contrato, resulta da argumentação desenvolvida pela recorrente no âmbito do seu sexto fundamento, que ela invoca, essencialmente, três argumentos distintos. Em primeiro lugar, pretende que o pedido da Belgacom para lhe transferir a marca «Gouden Gids/Pages d'Or», sai do âmbito do artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984, que não faz a menor alusão às marcas. Seguidamente, acusa a Belgacom de reivindicar marcas que são propriedade da ITT World Directories Netherlands, que nem sequer era parte no referido acordo. Por último, sustenta que a Belgacom confessou nas suas observações relativas à queixa que dava um sentido novo ao artigo XVI do acordo.

143.
    Ora, importa em primeiro lugar salientar que o artigo XVI, n.° 2, alínea b), do acordo de 9 de Maio de 1984, prevê que, «a fim de permitir à Régie assegurar a continuidade da publicação» a recorrente transferir-lhe-á a título gratuito as «licenças, resultantes de patentes ou de formas jurídicas similares de protecção, após trabalhos realizados ou efectuados no âmbito do presente acordo». Assim, não pode ser excluído da formulação desta passagem, interpretada à luz do resto do acordo, que ela abrange igualmente as marcas. Resulta seguidamente dos autos que a Belgacom solicitou unicamente a transferência das marcas registadas nos países do Benelux pela recorrente ou pelo seu legítimo predecessor. Por último, afigura-se que a recorrente limita-se a afirmar que a Belgacom teria confessado ter dado um sentido novo ao artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984, sem, no entanto, apoiar essa afirmação. Com efeito, a «confissão» que teria feito a Belgacom nas suas observações relativas à queixa é apenas uma explicação precisando as razões pelas quais, segundo a Belgacom, a abertura do mercado da edição de listas não afecta a necessidade de a Belgacom assegurar a continuidade da publicação de listas.

144.
    Por outro lado, a recorrente também não demonstra em que medida o facto de o direito exclusivo de editar listas de que dispunha a Belgacom no momento em que o acordo de 9 de Maio de 1984 foi celebrado, incluindo o direito de autorizar terceiros a fazê-lo, isto é a partir de 10 de Janeiro de 1994 a favor da Belgacom e das empresas autorizadas pelo IBPT, teve por efeito fazer do pedido de execução do artigo XVI do referido acordo um acto constitutivo de um abuso na acepção do artigo 86.° do Tratado.

145.
    Neste contexto, há que salientar, de resto, que a recorrente pôde, ao abrigo de toda a concorrência, adquirir uma experiência única, desenvolver as suas actividades e valorizar as suas marcas durante 25 anos, graças aos direitos exclusivos da Belgacom.

146.
    Assim, o argumento da recorrente, segundo o qual as conclusões da Comissão nos pontos 33 e 34 da decisão recorrida seriam contrárias ao artigo 86.°do Tratado, não pode ser acolhido.

147.
    Há que salientar que resulta dos autos que, em 25 de Julho de 1996, a recorrente apresentou uma queixa contra a Belgacom alegando que esta última tinha violado os artigos 85.°, n.° 1, e 86.° do Tratado, ao concluir e ao procurar obter a execução do acordo de 9 de Maio de 1984. Aquando da audiência o representante da Comissão enviou ao Tribunal uma cópia da decisão da Comissão, de 29 de Abril de 1997 que rejeitou a referida queixa por falta de interesse comunitário. Essa decisão não foi objecto de recurso para o Tribunal.

148.
    Por outro lado, o argumento da recorrente segundo o qual a Comissão teria justificado os efeitos anticoncorrenciais do pedido de execução do artigo XVI do acordo de 9 de Maio de 1984 pelo facto da sua celebração remontar à época em que a Belgacom usufruía de um monopólio legal, assenta numa interpretação errada da segunda frase do ponto 35 da decisão recorrida. Com efeito, no ponto 35 da decisão recorrida, a Comissão limita-se a responder ao argumento da recorrente segundo o qual o objectivo do pedido da Belgacom era excluir a recorrente do mercado das listas telefónicas. A Comissão salienta aí que a recorrente não apresenta qualquer elemento de direito ou de facto que indique em que medida o referido pedido não tinha por objectivo defender os direitos da Belgacom no termo do acordo de 9 de Maio de 1984, e precisa, na segunda frase, que os pretensos efeitos sobre a concorrência que teria o pedido da Belgacom, se fosse provido, decorreriam da celebração desse acordo numa altura em que a edição de listas era uma actividade objecto de direitos exclusivos reservados à Belgacom. Assim, não se trata de uma justificação, mas de uma simples constatação precisando que, de facto, não era o pedido da Belgacom que estava na origem dos efeitos em causa, mas a celebração do acordo.

149.
    Resulta das considerações precedentes que o presente fundamento deve igualmente ser rejeitado.

150.
    Resulta da globalidade das considerações precedentes que deve ser negado provimento ao recurso na totalidade.

Quanto às despesas

151.
    Nos termos do artigo 87.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se tal tiver sido requerido. Tendo a recorrente sido vencida e tendo a Comissão e a Belgacom, parte interveniente em apoio dos pedidos desta última, requerido nesse sentido, há que condenar a recorrente nas despesas por elas efectuadas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Quarta Secção Alargada),

decide:

1.
    É negado provimento ao recurso.

2.
    A recorrente suportará as suas despesas, bem como as despesas efectuadas pela Comissão e pela interveniente Belgacom.

Lindh
García-Valdecasas
Lenaerts

        Cooke                            Jaeger

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 17 de Julho de 1998.

O secretário

O presidente

H. Jung

P. Lindh


1: Língua do processo: inglês.