Language of document : ECLI:EU:C:2024:560

Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 27 de junho de 2024 (1)

Processo C236/23

Mutuelle assurance des travailleurs mutualistes (Matmut)

contra

TN,

Société MAAF assurances,

Fonds de garantie des assurances obligatoires de dommages (FGAO),

PQ

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França)]

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2009/103/CE — Seguro de responsabilidade civil automóvel — Alcance da garantia a favor de terceiros prestada pelo seguro obrigatório — Legislação nacional que prevê a oponibilidade ao passageiro lesado da nulidade do contrato de seguro com base nas falsas declarações prestadas por este no momento da celebração do contrato»






I.      Introdução

1.        O reenvio prejudicial no presente processo inscreve‑se na esteira do Acórdão Fidelidade‑Companhia de Seguros (2), no qual o Tribunal de Justiça explicou que as diretivas em matéria de seguro de responsabilidade civil de veículos automóveis se opõem a uma legislação nacional que tem por efeito que seja oponível aos terceiros vítimas a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade esta que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo interveniente num acidente de viação.

2.        No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a mesma interpretação deve ser adotada na situação em que o passageiro lesado, contra quem é arguida a nulidade do contrato de seguro, é, enquanto tomador do seguro, o autor dessas falsas declarações iniciais. Em caso afirmativo, coloca‑se também a questão de saber se, apesar da inoponibilidade da nulidade do contrato a um terceiro vítima, a seguradora pode intentar uma ação contra este para obter o reembolso das quantias pagas ao abrigo do contrato de seguro.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

3.        O artigo 1.°, n.° 2, da Diretiva 2009/103/CE (3) define «pessoa lesada» como «qualquer pessoa que tenha direito a uma indemnização por danos causados por veículos».

4.        O artigo 3.° desta diretiva dispõe:

«Cada Estado‑Membro, sem prejuízo do artigo 5.°, adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.

As medidas referidas no primeiro parágrafo devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.

[...]

O seguro referido no primeiro parágrafo deve, obrigatoriamente, cobrir danos materiais e pessoais.»

5.        O artigo 12.°, n.° 1, da referida diretiva prevê:

«Sem prejuízo do segundo parágrafo do n.° 1 do artigo 13.°, o seguro referido no artigo 3.° cobre a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, exceto o condutor, resultantes da circulação de um veículo.»

6.        Nos termos do artigo 13.° da mesma diretiva:

«1.      Cada Estado‑Membro toma todas as medidas adequadas para que, por aplicação do artigo 3.°, seja considerada sem efeito, no que se refere a ações de terceiros vítimas de um sinistro qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro, emitida em conformidade com o artigo 3.° e que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos por:

a)      Pessoas que não estejam expressa ou implicitamente autorizadas para o fazer;

b)      Pessoas que não sejam titulares de uma carta de condução que lhes permita conduzir o veículo em causa;

c)      Pessoas que não cumpram as obrigações legais de caráter técnico relativamente ao estado e condições de segurança do veículo em causa.

Todavia, a disposição ou a cláusula a que se refere a alínea a) do primeiro parágrafo pode ser oponível às pessoas que, por sua livre vontade se encontrassem no veículo causador do sinistro, sempre que a seguradora possa provar que elas tinham conhecimento de que o veículo tinha sido furtado.

Os Estados‑Membros têm a faculdade — relativamente aos sinistros ocorridos no seu território — de não aplicar o disposto no primeiro parágrafo no caso de, e na medida em que, a vítima possa obter a indemnização pelo seu prejuízo através de um organismo de segurança social.

2.      No caso de veículos furtados ou obtidos por meios violentos, os Estados‑Membros podem estabelecer que o organismo previsto no n.° 1 do artigo 10.° intervém em substituição da seguradora nas condições estabelecidas no n.° 1 do presente artigo. Se o veículo tiver o seu estacionamento habitual num outro Estado‑Membro, este organismo não tem direito de regresso contra qualquer organismo desse Estado‑Membro.

Os Estados‑Membros que, no caso de veículos furtados ou obtidos por meios violentos, prevejam a intervenção do organismo referido no n.° 1 do artigo 10.° podem fixar uma franquia para os danos materiais oponível à vítima não superior a 250 EUR.

3.      Cada Estado‑Membro toma as medidas adequadas para que qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro que exclua os passageiros dessa cobertura pelo facto de terem conhecimento ou deverem ter tido conhecimento de que o condutor do veículo estava sob a influência do álcool ou de qualquer outra substância tóxica no momento do acidente seja considerada nula no que se refere a esses passageiros.»

B.      Direito francês

7.        Nos termos do artigo L. 113‑8 do code des assurances (Código dos Seguros), o contrato de seguro é nulo em caso de ocultação ou falsidade de declarações por parte do segurado, se a ocultação ou a falsidade alterar o objeto do risco ou levar a que a seguradora o subvalorize, mesmo que o risco omitido ou falseado pelo segurado não se tenha repercutido no sinistro.

III. Factos do litígio no processo principal, questão prejudicial e tramitação processual no Tribunal de Justiça

8.        Em 5 de outubro de 2012, PQ subscreveu uma apólice de seguro automóvel junto da sociedade Mutuelle assurance des travailleurs mutualistes (a seguir «Matmut»). Quando celebrou este contrato, PQ declarou ser o único condutor do veículo segurado.

9.        Em 28 de setembro de 2013, este veículo, conduzido por TN, que estava embriagado, foi interveniente num acidente de viação com outro veículo segurado pela Mutuelle d’assurance des artisans de France (MAAF). PQ, que era passageiro do primeiro veículo, ficou ferido neste acidente.

10.      TN foi condenado num processo que correu termos no tribunal correctionnel (Tribunal Correcional, França), nomeadamente, pela prática de ofensa à integridade física por negligência enquanto condutor de veículo terrestre a motor em estado de embriaguez, em resultado da qual PQ ficou com incapacidade por mais de três meses.

11.      PQ apresentou pedidos de indemnização civil. Na audiência penal, no que respeita a estes pedidos, a Matmut arguiu a exceção de nulidade do contrato de seguro com base em falsas declarações prestadas por PQ sobre a identidade do condutor habitual do veículo em causa. A Matmut pediu para ser absolvida e que a indemnização de PQ fosse assumida pelo Fonds de garantie des assurances obligatoires de dommages (FGAO) [Fundo de garantia dos seguros obrigatórios de responsabilidade civil, a seguir «FGAO»)], que é o organismo responsável por ressarcir, designadamente, os lesados de acidentes de viação nos casos em que o responsável não tem seguro.

12.      Por Sentença de 17 de dezembro de 2018, o tribunal correctionnel (Tribunal Correcional) declarou o contrato nulo com fundamento nas falsas declarações prestadas pelo segurado. Absolveu a sociedade Matmut, condenou TN a reparar os danos sofridos pelos lesados e declarou que a sentença era oponível ao FGAO (4).

13.      TN, o FGAO e a MAAF interpuseram recurso desta sentença para a cour d’appel (Tribunal de Recurso), que a confirmou na parte em que é declarada a nulidade do contrato de seguro celebrado entre PQ e a Matmut.

14.      A cour d’appel (Tribunal de Recurso, França) considerou que, quando PQ subscreveu o contrato de seguro, TN era o proprietário do veículo em causa e o seu condutor habitual. Considerou que PQ tinha prestado falsas declarações sobre a identidade do condutor habitual, que influíram manifestamente na avaliação do risco pela seguradora, uma vez que TN tinha sido anteriormente condenado por condução em estado de embriaguez.

15.      No entanto, contrariamente ao tribunal correctionnel (Tribunal Correcional), a cour d’appel (Tribunal de Recurso) considerou que a Matmut podia ser responsabilizada e, consequentemente, absolveu o FGAO. Segundo este tribunal, por força do primado do direito da União sobre o direito nacional, a nulidade do contrato de seguro por falsas declarações, prevista no artigo L. 113‑8 du code des assurances (Código dos Seguros), não pode ser invocada contra os lesados de um acidente de viação ou seus sucessores. O facto de o lesado ser o passageiro do veículo que provocou o acidente, o tomador do seguro ou o proprietário do veículo não permite que lhe seja negada a qualidade de «terceir[o] vítim[a]».

16.      A Matmut interpôs recurso, na chambre criminelle da Cour de cassation (Secção Criminal do Tribunal de Cassação, França), do acórdão da cour d’appel (Tribunal de Recurso), com o fundamento de que, em violação dos artigos L. 113‑8 e R. 211‑13 do code des assurances (Código dos Seguros)(5), esta última tinha declarado erradamente que a nulidade do contrato de seguro não era oponível a PQ.

17.      Por considerar que a análise deste recurso exigia o parecer da secção especializada em direito dos seguros, a chambre criminelle (Secção Criminal) questionou‑a sobre a oponibilidade da nulidade do contrato de seguro decorrente da prestação de falsas declarações a um lesado que é simultaneamente o passageiro do veículo que causou o acidente e o tomador do seguro.

18.      Tendo‑lhe sido submetida esta questão, a deuxième chambre civile da Cour de cassation (Segunda Secção Cível do Tribunal de Cassação), que é o órgão jurisdicional de reenvio, explica pormenorizadamente a posição da lei francesa no que respeita à oponibilidade da nulidade do contrato de seguro às pessoas lesadas num acidente pelo qual possa ser responsabilizada uma seguradora. Resulta, assim, da jurisprudência da Cour de cassation (Tribunal de Cassação) que a má‑fé do tomador do seguro, sancionada pela nulidade do contrato de seguro, caracteriza‑se pela intenção de enganar a seguradora. A repercussão dessa falsa declaração sobre o sinistro é irrelevante. Além disso, a nulidade afeta retroativamente o contrato de seguro, pelo que é considerado como nunca tendo existido.

19.      A Cour de cassation (Tribunal de Cassação) entendia, regra geral, que a nulidade do contrato decorrente das falsas declarações prestadas pelo segurado podia ser invocada contra o lesado, desde que a seguradora que recusava pagar a indemnização tivesse acionado devidamente o FGAO.

20.      Com o seu Acórdão de 29 de agosto de 2019 (6), esse órgão jurisdicional considera que a nulidade do contrato de seguro prevista nas disposições do code des assurances (Código dos Seguros) não é oponível às vítimas de acidente de viação ou aos seus sucessores e que, nesses casos, o FGAO não pode ser condenado a ressarcir os lesados. Esta inversão da jurisprudência resultou da interpretação dessas disposições à luz das diretivas em matéria de seguros.

21.      O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que o legislador francês introduziu posteriormente o artigo L. 211‑7‑1 no code des assurances (Código dos Seguros) para o tornar conforme com o direito da União. Explica que, por força desta disposição, a nulidade de um contrato de seguro automóvel não é oponível às vítimas de um acidente de viação ou aos seus sucessores e que a seguradora que assume a responsabilidade civil decorrente do veículo interveniente é obrigada a ressarci‑los. A referida disposição especifica que a seguradora fica sub‑rogada nos direitos do credor da indemnização contra o responsável pelo acidente até ao montante das quantias que pagou.

22.      A mesma disposição, atualmente em vigor, não parece ser aplicável ratione temporis aos factos do litígio no processo principal, a saber, a celebração do contrato e o acidente, que ocorreram, respetivamente, em 2012 e 2013.

23.      Dito isto, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, desde a evolução da sua jurisprudência resultante do Acórdão de 29 de agosto de 2019 e da entrada em vigor do artigo L. 211‑7‑1 do code des assurances (Código dos Seguros), a Cour de cassation (Tribunal de Cassação) nunca se pronunciou sobre a questão de saber se a nulidade do contrato de seguro é inoponível ao lesado, passageiro do veículo, quando esta pessoa é também o tomador do seguro, autor das falsas declarações que determinaram a nulidade desse contrato. O órgão jurisdicional de reenvio indica que nenhum dos acórdãos do Tribunal de Justiça diz respeito a uma situação como a que está em causa no processo principal.

24.      Foi nestas circunstâncias que a Cour de cassation (Tribunal de Cassação), por Decisão de 30 de março de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 7 de abril de 2023, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem os artigos 3.° e 13.° da Diretiva 2009/103 [...] ser interpretados no sentido de que se opõem a que a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel seja declarada oponível ao passageiro lesado quando este seja simultaneamente o tomador do seguro, cujas falsas declarações, prestadas no momento da celebração do contrato, estão na origem dessa nulidade?»

25.      A Matmut, TN, a MAAF, o FGAO, PQ, o Governo Francês e a Comissão apresentaram observações escritas no Tribunal de Justiça. O Tribunal de Justiça decidiu não realizar audiência de alegações no presente processo.

IV.    Análise

A.      Âmbito da questão prejudicial e sua reformulação

26.      Com a sua única questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o direito da União se opõe a que a nulidade de um contrato de seguro seja oponível ao passageiro lesado, quando este é igualmente o tomador do seguro cujas erradas declarações estão na origem dessa nulidade.

27.      No entanto, decorre do presente pedido de decisão prejudicial que esse órgão jurisdicional também tem dúvidas, no caso de a nulidade do contrato de seguro ser declarada inoponível ao lesado tomador do seguro, quanto à possibilidade de a seguradora intentar uma ação contra este com fundamento no ato doloso que cometeu no momento da celebração do contrato para obter o reembolso da totalidade dos montantes pagos ao abrigo desse contrato.

28.      Saliento que o pedido de decisão prejudicial não especifica se a Matmut intentou tal ação no âmbito do processo principal nem mesmo se a sua propositura é possível no âmbito de um processo como o processo principal.

29.      A este respeito, há que recordar, num primeiro momento, que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido de decisão prejudicial apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (7).

30.      Num segundo momento, de acordo com jurisprudência constante (8), no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.° TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas. O facto de um órgão jurisdicional nacional ter, num plano formal, formulado uma questão prejudicial fazendo referência a certas disposições do direito da União não obsta a que o Tribunal de Justiça forneça a este órgão jurisdicional todos os elementos de interpretação que possam ser úteis à decisão do processo que lhe foi submetido, quer lhes tenha feito ou não referência no enunciado das suas questões. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do direito da União que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio.

31.      Assim, no exercício da sua função em matéria prejudicial, o Tribunal de Justiça pode ser levado a reformular as questões prejudiciais que, mesmo após a sua reformulação efetuada em conformidade com a jurisprudência recordada no n.° 29 das presentes conclusões, continuam a beneficiar da presunção de pertinência (9).

32.      No caso em apreço, apesar da falta de informações no pedido de decisão prejudicial quanto à possibilidade de uma seguradora intentar uma ação contra um lesado tomador do seguro, não é manifesto que a problemática da conformidade da propositura de tal ação com o direito da União não tenha relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal ou diga respeito a um problema hipotético. Com efeito, embora o processo principal tenha por objeto a responsabilidade penal do autor de um acidente, os pedidos de indemnização civil são, no entanto, examinados no âmbito deste processo. Por outro lado, como mostram as observações escritas das partes, nas quais esta problemática é amplamente discutida, o presente reenvio prejudicial contém todos os elementos necessários para responder utilmente à questão relativa à conformidade de tal ação.

33.      Nestas circunstâncias, proponho que o Tribunal de Justiça reformule a questão prejudicial no sentido de que, através desta, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, num primeiro momento, se os artigos 3.° e 13.° da Diretiva 2009/103 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que permita opor ao passageiro lesado, quando este é também o tomador do seguro, a nulidade do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel decorrente das falsas declarações prestadas por esse tomador do seguro sobre o condutor habitual do veículo em causa.

34.      De acordo com a minha proposta de reformulação, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em caso de resposta afirmativa a esta questão, num segundo momento, se estas disposições devem ser interpretadas no sentido de que também se opõem a uma legislação nacional que autorize a seguradora a intentar uma ação contra o passageiro lesado, quando este é também o tomador do seguro, com fundamento nas falsas declarações que este prestou sobre o condutor habitual do veículo em causa, para obter o reembolso da totalidade dos montantes pagos a este passageiro lesado ao abrigo desse contrato.

B.      Oponibilidade da nulidade de um contrato de seguro

35.      Os requisitos legais de validade de um contrato de seguro não são regidos pelo direito da União, mas pelo direito dos Estados‑Membros (10). No entanto, estes últimos são obrigados a garantir que o seguro automóvel obrigatório permita que todos os passageiros vítimas de um acidente causado por um veículo sejam indemnizados pelos danos que tenham sofrido. Decorre igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os Estados‑Membros devem exercer as suas competências neste domínio no respeito do direito da União e que as disposições nacionais que regulam a indemnização devida por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar a Diretiva 2009/103 do seu efeito útil (11).

36.      Assim, para responder à primeira parte da questão prejudicial, há que determinar, num primeiro momento, se um passageiro lesado, que é também o tomador do seguro e o autor das falsas declarações prestadas no momento da celebração do contrato de seguro, está incluído entre as pessoas que a Diretiva 2009/103 visa proteger. Com efeito, só na afirmativa a oponibilidade da nulidade do contrato de seguro a esse passageiro lesado seria suscetível de o privar do seu direito de indemnização e, assim, de comprometer o efeito útil desta diretiva. Assim, sendo o caso, examinarei, num segundo momento, se a oponibilidade desta nulidade à pessoa em causa viola a referida diretiva e prejudica o seu efeito útil.

1.      Quanto à proteção dos terceiros vítimas

a)      Regra geral sobre a proteção das vítimas

37.      A Diretiva 2009/103 visa garantir, nomeadamente, que as vítimas dos acidentes causados por veículos beneficiem de um tratamento comparável, independentemente do lugar do território da União em que tenha ocorrido o acidente, bem como assegurar assim a proteção das vítimas de acidentes provocados por veículos automóveis (12). Com efeito, as disposições desta diretiva são o resultado da evolução da regulamentação da União em matéria de seguro obrigatório, que prosseguiu e reforçou constantemente o objetivo de proteção das vítimas de acidentes causados por esses veículos (13).

38.      A este respeito, como resulta do seu considerando 1, a Diretiva 2009/103 procedeu à codificação das diretivas anteriores relativas à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, sem lhes introduzir alterações substanciais. A jurisprudência relativa a essas diretivas anteriores é, por conseguinte, transponível para a interpretação das disposições equivalentes da Diretiva 2009/103 (14).

39.      Para alcançar o objetivo da proteção «comparável» das vítimas na União, a Diretiva 2009/103 estabelece a regra geral segundo a qual as pessoas lesadas têm o direito de ser indemnizadas pela seguradora, bem como as exceções a esta regra. Nessa ótica, estas exceções têm caráter exaustivo e devem ser objeto de interpretação estrita (15).

40.      A este respeito, resulta de uma leitura conjugada do artigo 1.°, ponto 2, e do artigo 3.°, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103, que a proteção que deve ser assegurada nos termos desta diretiva é alargada a qualquer pessoa que tenha direito, ao abrigo do direito nacional da responsabilidade civil, à indemnização do dano causado por veículos automóveis (16).

41.      Mais concretamente, o artigo 3.° da Diretiva 2009/103 impõe aos Estados‑Membros que assegurem que a responsabilidade civil relativa à circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro e especifica, nomeadamente, os tipos de danos e os terceiros vítimas que esse seguro deve cobrir. No que respeita aos direitos reconhecidos aos terceiros vítimas, o artigo 3.°, primeiro parágrafo, desta diretiva opõe‑se a que a companhia de seguros da responsabilidade civil automóvel possa invocar disposições legais ou cláusulas contratuais para recusar indemnizar os terceiros vítimas de um acidente causado por um veículo segurado. O artigo 13.°, n.° 1, da referida diretiva mais não faz do que recordar esta obrigação no que respeita a certos casos específicos mencionados nesta disposição (17).

42.      É à luz destas observações que importa determinar se, no caso em apreço, o passageiro lesado, que é igualmente o tomador do seguro e o autor das falsas declarações, está incluído entre os «terceiros vítimas» que a Diretiva 2009/103 visa proteger.

b)      O passageiro enquanto pessoa lesada

43.      O seguro obrigatório de responsabilidade civil relativa à circulação de veículos, regulado pela Diretiva 2009/13, cobre, nomeadamente, como exige o artigo 12.°, n.° 1, desta diretiva, os danos pessoais de todos os passageiros, exceto o condutor, resultantes da circulação de um veículo.

44.      O Tribunal de Justiça já esclareceu que o objetivo das disposições das diretivas anteriores correspondentes às da Diretiva 2009/103 era garantir que, sob reserva das exceções previstas nestas diretivas, o seguro automóvel obrigatório permita que todos os passageiros vítimas de um acidente causado por um veículo sejam indemnizados pelos danos que tenham sofrido (18).

45.      É certo que uma exceção suscetível de afetar a situação dos passageiros, que não o condutor, está prevista no artigo 13.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2009/103. Com efeito, ao abrigo desta disposição, um Estado‑Membro pode decidir tornar uma cláusula de exclusão (contratual ou legislativa) oponível às pessoas que por sua livre vontade se encontrassem no veículo, quando a seguradora possa provar que elas tinham conhecimento de que o veículo tinha sido furtado. Ora, é facto assente que não foi o que sucedeu no presente caso.

46.      Assim, no que respeita ao seguro obrigatório regulado pela Diretiva 2009/103, o facto de um lesado ser passageiro de um veículo que lhe causou danos não é suscetível de privar esta pessoa do seu direito a ser indemnizada pelos danos causados num acidente de viação.

c)      O tomador do seguro enquanto pessoa lesada

47.      No caso em apreço, é uma das partes do contrato de seguro, ou seja, o tomador do seguro, que invoca a qualidade de «vítima de um sinistro» para obter uma indemnização da companhia de seguros.

48.      A este respeito, como observei (19), para determinar os beneficiários da proteção resultante do direito da União, tanto a Diretiva 2009/103 como a jurisprudência do Tribunal de Justiça utilizam o conceito de «terceiros vítimas». A utilização deste conceito pode levar a pensar que a proteção conferida por esta diretiva se aplica apenas às pessoas que não estão contratualmente vinculadas («terceiros») à seguradora cuja responsabilidade possa ser invocada.

49.      Todavia, em primeiro lugar, o conceito de «terceiros vítimas» figura apenas no artigo 13.° da Diretiva 2009/103. Esta disposição, epigrafada «Cláusulas de exclusão», obriga os Estados‑Membros a tomarem todas as medidas adequadas para que, «por aplicação do artigo 3.°» desta diretiva, seja considerada sem efeito, no que se refere a ações de terceiros vítimas de um sinistro, qualquer disposição legal ou cláusula contratual que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos em certas situações específicas e pormenorizadas nesta primeira disposição.

50.      O considerando 15 da Diretiva 2009/103 esclarece o objetivo do artigo 13.° desta diretiva e enuncia que, no interesse das vítimas, os efeitos de certas cláusulas de exclusão devem ser limitados às relações entre a seguradora e o responsável pelo acidente. A contrario, de acordo com este considerando, por força do artigo 13.° da referida diretiva e sem prejuízo das exceções nela previstas, tais cláusulas de exclusão (legislativas e contratuais) não produzem, portanto, efeitos no que respeita às relações entre a seguradora e qualquer pessoa lesada, exceto o responsável pelo acidente. Em consequência, segundo o referido considerando, a referência a «terceiros vítimas de um sinistro» constante desta disposição deve ser entendida no sentido de que esta expressão abrange as vítimas de um acidente de viação, exceto o seu autor. Assim, de forma mais geral, o conceito de «terceiros vítimas», na aceção da referida disposição, também pode abranger as pessoas contratualmente vinculadas à seguradora.

51.      Em segundo lugar, esta leitura da Diretiva 2009/103 corresponde à do advogado‑geral P. Mengozzi que, nas suas Conclusões no processo Churchill Insurance Company Limited e Evans, propôs que, em caso de acidente, devem ser efetivamente consideradas «terceiros» todas as pessoas, exceto o condutor que provocou o acidente (20).

52.      Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça já referiu que o facto de a pessoa lesada num acidente de viação ser o tomador do seguro não permite excluir esta pessoa do conceito de «terceiro vítima», na aceção das disposições anteriores à Diretiva 2009/103, que correspondem ao artigo 12.°, n.° 3, e ao artigo 13.°, n.° 1, desta diretiva (21).

53.      Assim, o facto de o passageiro vítima ser o tomador do seguro também não permite excluí‑lo da proteção que a Diretiva 2009/103 concede às vítimas dos acidentes de viação.

d)      O autor das falsas declarações enquanto pessoa lesada

54.      A particularidade do presente processo reside no facto de a pessoa em causa ser não só o passageiro vítima do acidente de viação, contratualmente vinculado à seguradora cuja responsabilidade está em causa, mas também o autor das falsas declarações que determinaram a nulidade do contrato de seguro.

55.      Como já observei (22), a Diretiva 2009/103 contém uma exceção que permite não indemnizar as vítimas devido à situação que elas próprias criaram, a saber, as pessoas que, por sua livre vontade se encontrassem no veículo causador do sinistro, sempre que a seguradora possa provar que tinham conhecimento de que o veículo tinha sido furtado. Em contrapartida, esta diretiva não prevê tal exceção quando o contrato de seguro tenha sido celebrado com base em falsas declarações prestadas pelo tomador do seguro.

56.      Por conseguinte, conforme declarou o Tribunal de Justiça (23), a circunstância de a companhia de seguros ter celebrado esse contrato com base em omissões ou em falsas declarações do tomador do seguro não é suscetível de lhe permitir invocar disposições legais sobre a nulidade do contrato e de a opor ao terceiro vítima para se exonerar da sua obrigação de o indemnizar por um acidente causado pelo veículo segurado. Por outras palavras, do ponto de vista da Diretiva 2009/103, o facto de o passageiro lesado ser o tomador do seguro que prestou essas falsas declarações no momento da celebração do contrato de seguro em nada altera a sua qualidade de «terceiro vítima», na aceção desta diretiva, e a proteção concedida às pessoas que têm esta qualidade.

57.      Importa agora verificar se esta conclusão não é posta em causa pelo argumento baseado no princípio da proibição da fraude e do abuso. Com efeito, nas suas observações escritas, a Matmut alega que, por força deste princípio, não se pode aceitar que o autor das falsas declarações possa valer‑se do seguro e tirar assim proveito da sua fraude.

e)      O princípio da proibição da fraude e do abuso

1)      Exposição do problema

58.      A Diretiva 2009/103 não regula a questão do abuso, pelo tomador do seguro, dos direitos que esta diretiva lhe confere. No entanto, existe, no direito da União, um princípio geral segundo o qual a aplicação da regulamentação deste direito não pode ser alargada ao ponto de cobrir operações abusivas ou fraudulentas. Além disso, parece‑me que a aplicação deste princípio no contexto da oponibilidade da nulidade de um contrato de seguro foi contemplada pelo Tribunal de Justiça no recente Despacho Liberty Seguros.

59.      A questão prejudicial analisada pelo Tribunal de Justiça neste despacho teve origem no recurso da seguradora para que fosse declarada a nulidade do contrato de seguro devido a falsas declarações do tomador do seguro quanto à atividade exercida com o veículo em causa. O órgão jurisdicional no qual foi interposto esse recurso devia decidir se essa nulidade podia ser oposta aos terceiros vítimas de um acidente de viação.

60.      O Tribunal de Justiça respondeu pela negativa e considerou, nomeadamente, que não se pode sustentar que, numa situação em que o tomador do seguro tivesse ocultado a atividade real que pretendia exercer com o veículo em causa e em que os passageiros não pudessem ignorar o caráter ilegal do serviço prestado pelo tomador do seguro, o direito da União está a ser invocado com o objetivo de contornar o direito interno para dele tirar uma vantagem que conflitua com as finalidades do direito da União (24).

61.      Neste trecho, o Tribunal de Justiça parece querer indicar que a situação em causa não correspondia aos dois casos principais em que o conceito de abuso pode ser analisado, a saber, quando o direito da União é invocado para contornar o direito nacional e quando as disposições do direito da União são invocadas para delas tirar vantagens de forma contrária às finalidades e aos objetivos destas mesmas disposições (25).

62.      Ora, se, tendo em conta o contexto em que se inscreve, a minha leitura do referido trecho está correta, a situação analisada pelo Tribunal de Justiça corresponde ao segundo caso, a saber, a situação em que o direito da União era invocado pelos lesados de um acidente de viação que pretendiam invocar a qualidade de «terceiros vítimas» para não serem privados, devido à nulidade do contrato de seguro decorrente das falsas declarações do tomador do seguro, do seu direito a indemnização.

63.      Em contrapartida, no caso em apreço, se seguirmos o raciocínio da Matmut, é o tomador do seguro que pretende invocar a qualidade de «terceiro vítima» para alcançar o mesmo objetivo. Em tal situação, o direito da União e, mais precisamente, os artigos 3.° e 13.° da Diretiva 2009/103 seriam invocados para contornar a aplicação de uma disposição nacional relativa à nulidade de um contrato de seguro que, de outro modo, seria oponível ao autor das falsas declarações.

64.      Nestas circunstâncias, cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar, de acordo com as regras de prova do direito nacional e desde que a eficácia do direito da União não seja posta em causa, se os elementos constitutivos de uma prática abusiva ou fraudulenta estão reunidos no litígio no processo principal (26). O Tribunal de Justiça, decidindo a título prejudicial, pode, sendo caso disso, fornecer indícios aos órgãos jurisdicionais nacionais, para os guiar na apreciação dos casos concretos que devem apreciar (27). Assim, formularei algumas observações sobre a aplicação do princípio da proibição da fraude e do abuso no caso de o Tribunal de Justiça decidir fornecer tais indícios ao órgão jurisdicional de reenvio.

2)      Observações sobre a aplicação do princípio da proibição da fraude e do abuso

65.      A declaração da existência de uma prática abusiva exige a reunião de um elemento objetivo e de um elemento subjetivo.

66.      Em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça (28), a prova de uma prática abusiva requer, por um lado, um conjunto de circunstâncias objetivas das quais resulte que, apesar do preenchimento formal dos requisitos previstos na regulamentação da União, o objetivo prosseguido por essa regulamentação não foi alcançado e, por outro, um elemento subjetivo que consiste na vontade de obter uma vantagem resultante da regulamentação da União, através da criação artificial dos requisitos exigidos para a sua obtenção.

67.      A meu ver, uma vez que, no caso em apreço, o objetivo prosseguido pela regulamentação da União se mostra a priori alcançado, parece‑me oportuno começar a análise não pelo elemento objetivo, mas pelo elemento subjetivo para determinar qual era a intenção da pessoa em causa e verificar se esta intenção é constitutiva de um abuso e se, eventualmente, o resultado pretendido é suscetível de comprometer o objetivo do direito da União (29).

68.      Com efeito, o objetivo prosseguido pelos artigos 3.° e 13.° da Diretiva 2009/103 é assegurar que, sem prejuízo das exceções previstas nesta diretiva, qualquer pessoa lesada num acidente de viação tenha o direito de ser indemnizada e de afastar a aplicação das disposições nacionais e das cláusulas contratuais suscetíveis de limitar este direito.

69.      É facto assente que PQ ficou ferido no acidente em causa no processo principal e que, segundo a lei aplicável, tem direito a indemnização pelos danos sofridos. Além disso, nada indica que este acidente tenha ocorrido em circunstâncias artificialmente criadas ou que, atendendo ao facto de o condutor estar excluído das pessoas cobertas pelo seguro (30), em vez de conduzir ele próprio o veículo, PQ tenha ocupado o lugar do passageiro para poder ser indemnizado pela seguradora em caso de acidente.

70.      Além disso, importa ainda ter presente que, através do seu argumento, a Matmut não sustenta que TN conduzia o veículo em causa no momento do acidente, mas sim que não foi identificado como condutor habitual deste veículo aquando da celebração do contrato de seguro. A este respeito, se PQ fosse o condutor habitual do veículo e TN o conduzisse ocasionalmente, não se colocaria a questão da nulidade do contrato de seguro. Com efeito, a Diretiva 2009/13 opõe‑se a que a obrigação da seguradora de indemnizar uma vítima de um acidente de viação que envolve um veículo segurado esteja excluída quando esse acidente foi causado por uma pessoa que não é a que consta na apólice de seguro (31).

71.      Assim, o argumento da Matmut prende‑se com o facto de PQ ter prestado falsas declarações no momento da celebração do contrato de seguro e de procurar afastar, não em proveito de qualquer vítima mas em seu proveito pessoal, uma disposição nacional por força da qual este contrato de seguro está ferido de nulidade devido às falsas declarações.

72.      A este respeito, devo observar que o Tribunal de Justiça utiliza formulações diferentes para descrever o elemento subjetivo de uma prática abusiva ou fraudulenta.

73.      Com efeito, em alguns dos seus acórdãos, o Tribunal de Justiça indica que o elemento subjetivo consiste na vontade de obter uma vantagem resultante da regulamentação da União, através da criação artificial dos requisitos exigidos para a sua obtenção (32), enquanto noutros sublinha que este elemento só existe se a finalidade essencial das práticas em causa se limitar à obtenção dessa vantagem (33).

74.      De qualquer modo, não se pode deixar de observar que, no que respeita a contornar o direito nacional através do direito derivado, a proibição de tais práticas não é relevante quando as operações em causa possam ter uma justificação diferente da simples obtenção de uma vantagem indevida (34).

75.      Assim, há que examinar se a finalidade essencial da prática em causa de PQ se limitava a contornar as disposições nacionais de outro modo aplicáveis. A este respeito, a verificação da existência de uma prática abusiva exige que o órgão jurisdicional de reenvio tenha em conta todos os factos e circunstâncias do caso concreto, incluindo os anteriores e posteriores à operação cujo caráter abusivo é alegado (35).

76.      Na minha compreensão do reenvio prejudicial, foram prestadas falsas declarações por PQ a fim de cumprir a obrigação de segurar o veículo em causa e de beneficiar de um prémio de seguro mais vantajoso do que aquele que seria devido se a identidade do condutor habitual desse veículo fosse conhecida pela seguradora. Com efeito, parece resultar da decisão de reenvio que o motivo das falsas declarações era não indicar TN como condutor habitual do referido veículo devido ao facto de ter sido anteriormente condenado por condução em estado de embriaguez. Ora, esta circunstância alterou manifestamente a avaliação do risco pela seguradora.

77.      Por conseguinte, sem prejuízo das verificações a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio, não se pode considerar que PQ prestou falsas declarações com a finalidade essencial de invocar ele próprio os artigos 3.° e 13.° da Diretiva 2009/103 e de contornar uma disposição nacional relativa aos requisitos legais de nulidade dos contratos de seguro. Tendo em conta o que precede, à luz das disposições desta diretiva, PQ deve ser considerado um «terceiro vítima» de um sinistro.

78.      Quanto a essas verificações, importa acrescentar que a pessoa acusada de recorrer a práticas fraudulentas ou abusivas deve ter a possibilidade de refutar os elementos em que se baseia esta alegação, no respeito das garantias associadas ao direito a um processo equitativo (36).

79.      Por uma questão de exaustividade, poder‑se‑á perguntar se o artigo L. 113‑8 do code des assurances (Código dos Seguros) não deve ser considerado uma disposição nacional através da qual o legislador francês procura remediar as práticas fraudulentas e abusivas dos tomadores de seguro. No entanto, a aplicação de tal disposição nacional só é possível numa situação em que o comportamento do interessado seja, de qualquer modo, por força do princípio geral do direito da União da proibição da fraude e do abuso, considerado fraudulento ou abusivo (37). Com efeito, a aplicação dessa disposição nacional não pode afetar a plena eficácia e a aplicação uniforme dos artigos 3.° e 13.° da Diretiva 2009/13 (38). Não pode, portanto, alterar o alcance destas disposições (39), o que seria o caso se o tomador do seguro e o autor das falsas declarações fosse privado da qualidade de «terceiro vítima», na aceção das referidas disposições.

80.      Nestas circunstâncias, resta determinar se o efeito útil dos artigos 3.° e 13.° da Diretiva 2009/103 se opõe a que a nulidade do contrato de seguro seja invocada contra um terceiro vítima que é o tomador do seguro e o autor das falsas declarações prestadas aquando da celebração desse contrato.

2.      Quanto ao efeito útil dos artigos 3 e 13 da Diretiva 2009/103

a)      A oponibilidade da nulidade do contrato a um terceiro vítima

81.      No caso em apreço, coloca‑se a questão de saber se a recusa do direito a indemnização por uma companhia de seguros pode resultar da oponibilidade ao tomador do seguro da nulidade do contrato de seguro decorrente das falsas declarações por ele prestadas.

82.      Como já referi (40), a Diretiva 2009/103 não visa harmonizar os requisitos legais de validade dos contratos de seguro. Embora continuem livres de determinar estes requisitos, os Estados‑Membros devem exercer as suas competências no respeito do direito da União e as disposições nacionais que regulam a indemnização dos sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar esta diretiva do seu efeito útil.

83.      Assim, embora a Diretiva 2009/103 não se oponha a uma disposição nacional que preveja a nulidade do contrato de seguro quando celebrado com base em falsas declarações do tomador do seguro, esta diretiva circunscreve os efeitos da nulidade, caso esta possa comprometer o efeito útil deste ato do direito da União.

84.      A este respeito, a oponibilidade da nulidade de um contrato de seguro ao passageiro lesado que é o tomador do seguro implicaria a não indemnização desta pessoa e, consequentemente, prejudicaria o efeito útil da Diretiva 2009/103. Esta interpretação não é posta em causa pela possibilidade dessa pessoa ser indemnizada pelo FGAO.

b)      A intervenção do organismo responsável pela indemnização dos lesados

85.      O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à questão de saber se o facto de o FGAO ser obrigado a indemnizar o lesado, no caso de a nulidade do contrato lhe ser declarada oponível, é suscetível de influir na interpretação a adotar.

86.      A este respeito, segundo o artigo 10.° da Diretiva 2009/103, cada Estado‑Membro tem a obrigação de «criar ou autorizar a criação de um organismo que tenha por função reparar, pelo menos dentro dos limites da obrigação de seguro, os danos materiais e pessoais causados por veículos não identificados ou relativamente aos quais não tiver sido satisfeita a obrigação de seguro referida no artigo 3.°»

87.      No entanto, como referiu o Tribunal de Justiça (41), a constatação de que uma disposição nacional pode resultar na não indemnização de terceiros lesados e, consequentemente, prejudicar o efeito útil da Diretiva 2009/103 não é posto em causa pela possibilidade de pagamento de uma indemnização ao lesado por um organismo criado em conformidade com o artigo 10.° desta diretiva.

88.      Com efeito, a intervenção desse organismo foi prevista como medida de último recurso, unicamente para o caso de os danos serem causados por um veículo relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de seguro. O seguro de responsabilidade civil relativa à circulação de veículos automóveis é obrigatório e cabe aos Estados‑Membros assegurarem que, sem prejuízo das derrogações previstas na Diretiva 2009/103, todos os proprietários ou detentores de um veículo com estacionamento habitual no seu território celebrem um contrato com uma companhia de seguros. O não cumprimento por um Estado‑Membro desta obrigação de vigilância não deve prejudicar as vítimas de acidentes de viação e, se for o caso, é o organismo criado ou autorizado pelo Estado‑Membro que deve indemnizar os lesados. Em contrapartida, a intervenção de um organismo autorizado não pode ser invocada para eximir a seguradora da sua responsabilidade quando a obrigação de celebrar o contrato de seguro tiver sido cumprida.

3.      Conclusão sobre a primeira parte da questão prejudicial

89.      Após a análise efetuada, considero, antes de mais, que o facto de o passageiro lesado ser o tomador do seguro que prestou as falsas declarações sobre a identidade do condutor habitual aquando da celebração do contrato de seguro em nada altera a sua qualidade de «terceiro vítima», na aceção da Diretiva 2009/103, e a proteção concedida às pessoas que têm esta qualidade (42). Em seguida, nas circunstâncias do caso em apreço, não se pode considerar que a aplicação do princípio da proibição da fraude e do abuso permita que lhe seja recusada esta proteção (43). Por último, a referida diretiva seria privada do seu efeito útil se a seguradora recusasse a essa pessoa o direito a ser indemnizada devido à oponibilidade da nulidade do contrato de seguro decorrente das falsas declarações (44).

90.      Nestas circunstâncias, há que responder à primeira parte da questão prejudicial que os artigos 3.° e 13.° da Diretiva 2009/103 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que permita opor ao passageiro lesado, quando este é também o tomador do seguro, a nulidade do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel decorrente das falsas declarações prestadas por esse tomador do seguro sobre o condutor habitual do veículo em causa.

C.      O direito de intentar uma ação de regresso

91.      Importa recordar que a segunda parte da questão prejudicial versa sobre se os artigos 3.° e 13.° da Diretiva 2009/103 devem ser interpretados no sentido de que se opõem igualmente a uma legislação nacional que autorize a seguradora a intentar uma ação contra o passageiro lesado, quando este é também o tomador do seguro, com fundamento nas falsas declarações que este prestou sobre o condutor habitual do veículo em causa, para obter o reembolso da totalidade dos montantes pagos a esse passageiro lesado ao abrigo do contrato de seguro.

92.      Para responder à segunda parte da questão prejudicial, examinarei, primeiro, se os requisitos da imputação da responsabilidade ao tomador do seguro por falsas declarações iniciais são regulados pelo direito da União. Se não for o caso, examinarei, em seguida, se este direito se opõe, no entanto, a que a responsabilidade deste tomador de seguro seja imputada por via de uma ação de regresso intentada pela seguradora.

1.      Os requisitos da responsabilidade do tomador do seguro

93.      Embora o Tribunal de Justiça ainda não tenha tido a oportunidade de se pronunciar sobre a conformidade com o direito da União do direito de a seguradora intentar uma ação de regresso contra o passageiro lesado, quando este é também o tomador do seguro e o autor das falsas declarações prestadas no momento da celebração do contrato de seguro, podem ser retirados da jurisprudência ensinamentos úteis a este respeito (45).

94.      No Acórdão Churchill Insurance Company Limited e Evans (46), estava em causa uma ação de regresso contra um lesado devido a um sinistro.

95.      Este acórdão dizia respeito a uma disposição do direito nacional que permitia à seguradora recuperar junto do segurado o montante pago a título da sua responsabilidade resultante do contrato de seguros. A leitura do referido acórdão revela que esta disposição podia estar sujeita a duas interpretações diferentes e que estas tinham sido objeto de debate entre as partes.

96.      Com efeito, de acordo com a primeira interpretação, a disposição nacional em causa previa uma ação de regresso contra o segurado para recuperar a indemnização, quando este tivesse causado ou permitido a utilização do veículo pelo condutor que esteve na origem do acidente (47). De acordo com a segunda interpretação, esta disposição tinha por efeito excluir automaticamente da garantia do seguro um passageiro vítima de um acidente de viação que estava segurado e que tinha dado a um condutor não segurado autorização para conduzir (48). O órgão jurisdicional de reenvio adotou esta segunda interpretação que, consequentemente, se repercutiu no acórdão do Tribunal de Justiça.

97.      Mais importante ainda, a leitura deste acórdão pode sugerir que uma disposição que exclui de forma automática o benefício da indemnização eventualmente devida ao segurado (segunda interpretação) está abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/103, ao passo que uma disposição que confere a uma seguradora o direito de imputar a responsabilidade civil ao seu contratante por via de uma ação de regresso (primeira interpretação) não está abrangida pelo âmbito de aplicação desta diretiva.

98.      Com efeito, após ter indicado que deve ter em conta a interpretação do direito nacional adotada pelo órgão jurisdicional de reenvio, a saber, a segunda interpretação, o Tribunal de Justiça declarou que as questões prejudicais «não diz[iam] respeito à compatibilidade com o direito da União de uma norma que regula a responsabilidade civil, mas à compatibilidade com este direito de uma disposição que, segundo a interpretação do órgão jurisdicional de reenvio, ao excluir de forma automática o benefício da indemnização eventualmente devida ao segurado, limita o âmbito da cobertura da responsabilidade civil» (49). O Tribunal de Justiça considerou, assim, que as questões submetidas eram abrangidas, por isso, pelo âmbito de aplicação da regulamentação da União nesta matéria.

99.      Esta leitura do Acórdão Churchill Insurance Company Limited e Evans (50) é corroborada pelo Despacho BUL INS (51), no qual o Tribunal de Justiça indicou que o artigo 13.° da Diretiva 2009/103 diz respeito às eventuais limitações da cobertura do seguro de responsabilidade civil para os terceiros vítimas de um sinistro, e não às ações de regresso intentadas pela seguradora após a concessão de uma indemnização ao lesado.

100. Assim, os requisitos relativos à imputação da responsabilidade ao tomador do seguro relativamente aos montantes pagos pela seguradora devido a um sinistro não são regulados pelo direito da União. Resta determinar se os requisitos da imputação desta responsabilidade, a que se refere a segunda parte da questão prejudicial, são, no entanto, suscetíveis de prejudicar o efeito útil da Diretiva 2009/103.

2.      O efeito útil da Diretiva 2009/103 e a ação de regresso

101. O órgão jurisdicional de reenvio questiona se a seguradora pode intentar uma ação de regresso contra o tomador do seguro para obter o reembolso da totalidade dos montantes que lhe foram pagos ao abrigo do contrato de seguro.

102. Embora os requisitos da imputação da responsabilidade ao tomador do seguro sejam da competência dos Estados‑Membros, estes devem exercer a sua competência neste domínio no respeito do direito da União, sem prejudicar o efeito útil deste direito.

103. A este respeito, na sua jurisprudência sobre o efeito útil da Diretiva 2009/103, o Tribunal de Justiça faz uma distinção entre, por um lado, as disposições em matéria de seguro que limitem a cobertura da responsabilidade civil da seguradora na relação entre o terceiro vítima e a seguradora e, por outro, as disposições do regime nacional de responsabilidade civil que determinam a responsabilidade do segurado para com esse terceiro vítima (52). Em princípio, são sobretudo estas primeiras disposições que podem prejudicar o efeito útil desta diretiva (53). Com efeito, a responsabilidade da seguradora é, regra geral, derivada da responsabilidade civil que incumbe ao segurado e a referida diretiva não visa harmonizar os regimes desta responsabilidade civil nos Estados‑Membros.

104. Além disso, segundo a mesma jurisprudência, a fim de garantir o efeito útil das disposições do direito da União relativas ao seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, estas disposições devem ser interpretadas no sentido de que se opõem às regras nacionais que prejudiquem esse efeito útil, pelo facto de estas, ao excluírem oficiosamente ou limitarem de forma desproporcionada o direito da vítima a obter uma indemnização através do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, comprometerem a concretização do objetivo de proteção das vítimas de acidentes de viação, constantemente prosseguido e reforçado pelo legislador da União (54).

105. À luz desta jurisprudência, há que constatar que uma legislação nacional que autorize a seguradora a intentar uma ação contra o passageiro lesado, quando este é também o tomador do seguro e o autor das falsas declarações prestadas no momento da celebração do contrato de seguro, para obter o reembolso da totalidade das quantias pagas a esse passageiro lesado ao abrigo do contrato de seguro, é suscetível de prejudicar o direito deste indivíduo a ser indemnizado pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e, consequentemente, o efeito útil da Diretiva 2009/103.

106. Com efeito, tal legislação nacional tem por efeito influenciar a relação entre o terceiro vítima e a seguradora, sem influenciar na responsabilidade civil do segurado diretamente responsável pelo acidente de viação. O facto de essa legislação nacional pretender sancionar as falsas declarações prestadas pelo tomador do seguro aquando da celebração do contrato de seguro não põe em causa esta consideração. Com efeito, o facto de o passageiro lesado ser o tomador do seguro que prestou as falsas declarações sobre a identidade do condutor habitual aquando da celebração do contrato de seguro em nada altera a sua qualidade de «terceir[o] vítim[a]», na aceção da Diretiva 2009/103 (55).

107. A este respeito, é certo que, no Acórdão Ruiz Bernáldez (56), o Tribunal de Justiça considerou que «o contrato de seguro obrigatório pode prever que, em tais situações, a seguradora dispõe de direito de regresso contra o segurado». No entanto, este acórdão não pode ser entendido no sentido de que o direito da União não se opõe a que a seguradora possa intentar uma ação de regresso contra a pessoa com quem celebrou o contrato de seguro, quando esta é igualmente o terceiro vítima, na aceção da Diretiva 2009/103.

108. Com efeito, como sublinha o Governo Francês, no Acórdão Ruiz Bernáldez (57), o segurado era o condutor do veículo e o autor do dano, pelo que não se colocava a questão do risco de uma violação do direito a indemnização da vítima por causa de tal ação. Por outro lado, as considerações do Tribunal de Justiça diziam respeito, mais especificamente, a uma cláusula do contrato de seguro que permitia à seguradora intentar uma ação de regresso contra o segurado com vista a recuperar os montantes pagos à vítima de um acidente de viação provocado por um condutor em estado de embriaguez (58). Em contrapartida, nada neste acórdão sugere que essa ação de regresso possa ser intentada, sem nenhuma restrição do direito da União, contra a pessoa indemnizada pela seguradora. Pelo contrário, o Tribunal de Justiça declarou que «o contrato de seguro obrigatório não pode prever que, em certos casos, em especial quando o condutor do veículo se encontre em estado de embriaguez, a seguradora não é obrigada a indemnizar os danos emergentes de lesões corporais e os danos patrimoniais causados a terceiros por um veículo segurado» (59).

109. Mais importante ainda, uma ação de regresso como a referida na segunda parte da questão prejudicial ignora a necessidade de assegurar a proporcionalidade de uma medida destinada a privar a vítima do direito a obter uma indemnização por parte da seguradora.

110. Com efeito, como decorre da decisão de reenvio, a nulidade do contrato resulta das falsas declarações que alteraram a avaliação do risco pela seguradora e, portanto, o custo do seguro, sem ter nenhuma repercussão no sinistro e na extensão do dano. Ora, se for intentada uma ação para obter o reembolso da totalidade dos montantes pagos à pessoa em causa a título de indemnização pelos danos sofridos num acidente de viação, a pretexto de sancionar as falsas declarações do tomador do seguro sobre a identidade do condutor habitual do veículo em causa, a referida ação tem, na prática, por resultado privar esta pessoa, definitivamente e de forma desproporcionada, da proteção que a Diretiva 2009/103 confere às vítimas desses acidentes.

111. Nestas circunstâncias, há que responder à segunda parte da questão prejudicial que os artigos 3.° e 13.° da Diretiva 2009/103 devem ser interpretados no sentido de que também se opõem a uma legislação nacional que autorize a seguradora a intentar uma ação contra o passageiro lesado, quando este é também o tomador do seguro, com fundamento nas falsas declarações que este prestou sobre o condutor habitual do veículo em causa, para obter o reembolso da totalidade dos montantes pagos a este passageiro lesado ao abrigo do contrato de seguro.

V.      Conclusão

112. Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França) do seguinte modo:

Os artigos 3.° e 13.° da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade

devem ser interpretados no sentido de que:

–        se opõem a uma legislação nacional que permita opor ao passageiro lesado, quando este é também o tomador do seguro, a nulidade do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel decorrente das falsas declarações prestadas por este tomador do seguro sobre o condutor habitual do veículo em causa;

–        também se opõem a uma legislação nacional que autorize a seguradora a intentar uma ação contra o passageiro lesado, quando este é também o tomador do seguro, com fundamento nas falsas declarações que este prestou sobre o condutor habitual do veículo em causa, para obter o reembolso da totalidade dos montantes pagos a esse passageiro lesado ao abrigo do contrato de seguro.


1      Língua original: francês.


2      Acórdão de 20 de julho de 2017 (C‑287/16, EU:C:2017:575).


3      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO 2009, L 263, p. 11).


4      Há que observar que a identidade das pessoas abrangidas pela categoria de lesados, além de PQ, não é claramente indicada na decisão de reenvio. É possível considerar que, nas circunstâncias do processo principal, a MAAF está abrangida por esta categoria dado que decorre do reenvio prejudicial que esta sociedade forneceu uma cobertura de seguro ao segundo veículo interveniente no acidente de 5 de outubro de 2012 (v. ponto 2 da decisão de reenvio, segundo o qual o «acidente [...] envolveu igualmente um veículo segurado pela [MAAF]»). Se a MAAF indemnizou uma pessoa lesada neste acidente, a sua participação no processo explica‑se pelo facto de a ter sub‑rogado nos seus direitos e de os poder invocar contra o autor do referido acidente.


5      Embora o artigo R. 211‑13 do code des assurances (Código dos Seguros) não esteja reproduzido no pedido de decisão prejudicial, consta, porém, das observações escritas da Comissão Europeia. Em substância, este artigo menciona vários instrumentos do direito dos seguros que têm por objetivo limitar a responsabilidade da seguradora, como a franquia, que não são oponíveis aos lesados ou aos seus sucessores. Além disso, o referido artigo prevê que, nos casos relativos a estes instrumentos não oponíveis a essas pessoas, «a seguradora procede ao pagamento da indemnização por conta do responsável» e que «[a seguradora] pode intentar contra [o responsável] uma ação para o reembolso de todas as quantias que tenha assim pago ou reservado em seu lugar».


6      Acórdão da Cour de cassation (Tribunal de Cassação) de 29 de agosto de 2019, 2e chambre civile (2.ª Secção Cível), Recurso n.º 18‑14.768.


7      V., nomeadamente, Acórdão de 16 de dezembro de 2008, Cartesio (C‑210/06, EU:C:2008:723, n.º 67).


8      V., recentemente, Despacho de 13 de outubro de 2021, Liberty Seguros (C‑375/20, a seguir «Despacho Liberty Seguros», EU:C:2021:861, n.º 51 e jurisprudência referida).


9      V., a título de exemplo, Acórdão de 14 de dezembro de 2023, Sparkasse Südpfalz (C‑206/22, EU:C:2023:984, n.os 19 a 24).


10      V., neste sentido, Acórdão de 20 de julho de 2017, Fidelidade‑Companhia de Seguros (C‑287/16, EU:C:2017:575, n.º 31), e Despacho Liberty Seguros (n.º 64).


11      V., neste sentido, Acórdão de 20 de julho de 2017, Fidelidade‑Companhia de Seguros (C‑287/16, EU:C:2017:575, n.º 32), e Despacho Liberty Seguros (n.º 65).


12      V., recentemente, Acórdão de 12 de outubro de 2023, KBC Verzekeringen (C‑286/22, EU:C:2023:767, n.º 39 e jurisprudência referida).


13      V., recentemente, Despacho Liberty Seguros (n.º 56). V., igualmente, Acórdão do Tribunal da EFTA de 14 de junho de 2001, Helgadóttir (E‑7/00, EFTA Court Report 2000‑2001, n.º 30).


14      V., neste sentido, Acórdão de 10 de junho de 2021, Van Ameyde España (C‑923/19, EU:C:2021:475, n.º 23).


15      V., neste sentido, Despacho Liberty Seguros (n.º 62).


16      V., neste sentido, Acórdãos de 24 de outubro de 2013, Drozdovs (C‑277/12, EU:C:2013:685, n.º 42); de 15 de dezembro de 2022, HUK‑COBURG‑Allgemeine Versicherung (C‑577/21, EU:C:2022:992, n.º 41); e de 10 de junho de 2021, Van Ameyde España (C‑923/19, EU:C:2021:475, n.º 42).


17      V., neste sentido, Despacho Liberty Seguros (n.º 59 e jurisprudência referida).


18      V. Acórdão de 30 de junho de 2005, Candolin e o. (C‑537/03, EU:C:2005:417, n.os 27, 32 e 33).


19      V. n.º 41 das presentes conclusões.


20      V. Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo Churchill Insurance Company Limited e Evans (C‑442/10, EU:C:2011:548, n.º 23).


21      V. Acórdão de 14 de setembro de 2017, Delgado Mendes (C‑503/16, EU:C:2017:681, n.º 44).


22      V. n.º 45 das presentes conclusões.


23      V., neste sentido, Acórdão de 20 de julho de 2017, Fidelidade‑Companhia de Seguros (C‑287/16, EU:C:2017:575, n.º 27).


24      V. Despacho Liberty Seguros (n.º 70).


25      Quanto a esta distinção, descrita em termos quase idênticos aos utilizados neste trecho, v. Conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro no processo Halifax e o. (C‑255/02, EU:C:2005:200, n.º 63).


26      V., neste sentido, Acórdão de 28 de julho de 2016, Kratzer (C‑423/15, EU:C:2016:604, n.º 42).


27      V. Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, N Luxembourg 1 e o. (C‑115/16, C‑118/16, C‑119/16 e C‑299/16, EU:C:2019:134, n.º 126).


28      V., recentemente, Acórdão de 21 de dezembro de 2023, BMW Bank e o. (C‑38/21, C‑47/21 e C‑232/21, EU:C:2023:1014, n.º 285).


29      V., neste sentido, Butler, G., e Sørensen, K.E., «The prohibition of abuse of EU law: a special general principle», em Ziegler, K.S., Neuvonen, P. J., Moreno‑Lax, V., Research Handbook on General Principles in EU law, Edward Elgar Publishing, Cheltenham Northampton 2022, p. 415.


30      V. n.º 43 das presentes conclusões.


31      V., neste sentido, Acórdão de 15 de novembro de 2018, BTA Baltic Insurance Company (C‑648/17, EU:C:2018:917, n.º 46).


32      V., recentemente, Acórdão de 21 de dezembro de 2023, BMW Bank e o. (C‑38/21, C‑47/21 e C‑232/21, EU:C:2023:1014, n.º 285).


33      V., neste sentido, Acórdão de 28 de julho de 2016, Kratzer (C‑423/15, EU:C:2016:604, n.º 40).


34      V., neste sentido, Acórdãos de 6 de abril de 2006, Agip Petroli (C‑456/04, EU:C:2006:241, n.º 23), e de 8 de junho de 2017, Vinyls Italia (C‑54/16, EU:C:2017:433, n.º 52).


35      V., neste sentido, Acórdão de 13 de março de 2014, SICES e o. (C‑155/13, EU:C:2014:145, n.º 34).


36      V., neste sentido, Acórdãos de 6 de fevereiro de 2018, Altun e o. (C‑359/16, EU:C:2018:63, n.º 56), e de 26 de fevereiro de 2019, T Danmark e Y Denmark (C‑116/16 e C‑117/16, EU:C:2019:135, n.º 99).


37      V. Szpunar, M., «Quelques remarques générales sur le concept de l’abus de droit en droit de l’Union», La Cour de justice de l’Union européenne sous la présidence de Vassilios Skouris (2003‑2015): liber amicorum Vassilios Skouris, Bruylant, Bruxelas, 2015, pp. 623 a 632.


38      V., neste sentido, Acórdão de 23 de março de 2000, Diamantis (C‑373/97, EU:C:2000:150, n.º 34).


39      V., neste sentido, Acórdão de 12 de maio de 1998, Kefalas e o. (C‑367/96, EU:C:1998:222, n.º 22),


40      V. n.º 35 das presentes conclusões.


41      V., neste sentido, Acórdão de 20 de julho de 2017, Fidelidade‑Companhia de Seguros (C‑287/16, EU:C:2017:575, n.º 35), e Despacho Liberty Seguros (n.º 69).


42      V. n.º 56 das presentes conclusões.


43      V. n.º 77 das presentes conclusões.


44      V. n.º 84 das presentes conclusões.


45      V., igualmente, neste sentido, Pokrzywniak, J., «How far shall the protection of a traffic accident victim go under motor third party liability insurance?», Wiadomości Ubezpieczeniowe, 2024, n.º 1, p. 31.


46      Acórdão de 1 de dezembro de 2011 (C‑442/10, EU:C:2011:799).


47      V. Acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans (C‑442/10, EU:C:2011:799, n.º 21).


48      V. Acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans (C‑442/10, EU:C:2011:799, n.os 20 e 23).


49      V. Acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans (C‑442/10, EU:C:2011:799, n.º 24).


50      Acórdão de 1 de dezembro de 2011 (C‑442/10, EU:C:2011:799).


51      Despacho de 9 de janeiro de 2024 (C‑387/23, EU:C:2024:2, n.º 24).


52      V., neste sentido, Acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida (C‑300/10, EU:C:2012:656, n.º 34).


53      No entanto, não se pode excluir que, em certos casos excecionais, as disposições do regime nacional de responsabilidade civil sejam igualmente suscetíveis de prejudicar o efeito útil da Diretiva 2009/103. Com efeito, o Tribunal de Justiça parece também examinar essas disposições nacionais do ponto de vista da sua conformidade com o efeito útil desta diretiva. V., a título de exemplo, Acórdão de 15 de dezembro de 2022, HUK‑COBURG‑Allgemeine Versicherung (C‑577/21, EU:C:2022:992, n.os 45 a 49). V., igualmente, Acórdão do Tribunal da EFTA de 14 de junho de 2001, Helgadóttir (E‑7/00, EFTA Court Report 2000‑2001, n.º 31).


54      V. Acórdão de 10 de junho de 2021, Van Ameyde España (C‑923/19, EU:C:2021:475, n.º 44).


55      V. n.º 89 das presentes conclusões.


56      Acórdão de 28 de março de 1996 (C‑129/94, EU:C:1996:143, n.º 24).


57      Acórdão de 28 de março de 1996 (C‑129/94, EU:C:1996:143).


58      V. Acórdão de 28 de março de 1996, Ruiz Bernáldez (C‑129/94, EU:C:1996:143, n.º 23).


59      V. Acórdão de 28 de março de 1996, Ruiz Bernáldez (C‑129/94, EU:C:1996:143, n.º 24).