Language of document : ECLI:EU:C:2003:71

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

DÁMASO RUIZ-JARABO COLOMER

apresentadas em 6 de Fevereiro de 2003 (1)

Processos C-463/00 e C-98/01

Comissão das Comunidades Europeias

contra

Reino de Espanha

Comissão das Comunidades Europeias

contra

Reino Unido de Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte

«Privatização de empresas estratégicas - Restrições à participação e à intervenção na gestão - Acções e faculdades específicas do Estado (‘golden shares’)»

I - Introdução

1.
    Nas presentes acções por infracção ao Tratado, questiona-se a compatibilidade com o ordenamento comunitário de regimes que submetem a autorização ou a aprovação administrativa prévias determinadas classes de actuações com incidência na existência, no objecto social ou na estrutura accionista de empresas privatizadas inseridas no âmbito da economia estratégica. Apesar da sua natureza jurídica, estas faculdades do poder público costumam denominar-se vulgarmente «acções específicas» («golden shares»).

2.
    A matéria foi tratada recentemente pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos de 4 de Junho de 2002, Comissão/Portugal, Comissão/França e Comissão/Bélgica (2), em que o Tribunal admitiu que um regime com tais características pode estar em conformidade com as exigências do direito comunitário, sempre que forneça determinadas garantias.

II - Quadro jurídico e antecedentes de facto

Processo C-463/00, Comissão/Espanha

3.
    Em Espanha, a Lei 5/1995, de 23 de Março, relativa ao regime jurídico da alienação de participações públicas em determinadas empresas (BOE n.° 72), estabelece os requisitos para a privatização de diversas empresas do sector público.

4.
    A lei prevê:

«Artigo 1.° Âmbito subjectivo.

Estão compreendidas no âmbito desta lei:

1.    As entidades de natureza comercial que, na data da entrada em vigor desta lei, tenham uma participação directa ou indirecta do Estado no seu capital social superior a 25% deste e sejam controladas pelo sócio estatal através de qualquer dos meios estabelecidos na legislação comercial que seja aplicável, sempre que, na actividade desenvolvida pela entidade, por si própria ou através da participação noutras sociedades, se verifique alguma das circunstâncias seguintes:

a)    Prestar serviços essenciais ou serviços públicos formalmente declarados como tais.

b)    Desenvolver actividades sujeitas por lei e por razões de interesse público a um específico regime administrativo de controlo, especialmente dos sujeitos que as desempenhem.

c)    Estar isenta total ou parcialmente da livre concorrência nos termos do artigo 90.° do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia.

2.    As entidades de natureza comercial que façam parte de um grupo, determinado em conformidade com o artigo 4.° da Lei 24/1988, de 28 de Julho de 1988, relativa ao mercado de valores, em que qualquer das entidades referidas no n.° 1 anterior tenha uma posição dominante, sempre que se encontrem em qualquer das circunstâncias a que se referem as alíneas a), b) e c) do referido número.

Artigo 2.° Pressupostos de aplicação

O regime de autorização administrativa prévia definido nos artigos 3.° e seguintes da presente lei será aplicável quando a participação pública do sócio Estado nas entidades a que se refere o artigo anterior preencha alguma das condições seguintes:

1.    Quando, num acto único ou em actos sucessivos, seja objecto de alienação, de forma a ser reduzida numa percentagem igual ou superior a 10% do capital social e sempre que a participação directa ou indirecta do Estado nesse capital fique abaixo de 50%.

2.    Quando, como consequência directa ou indirecta de qualquer acto ou negócio, fique reduzida a uma percentagem inferior a 15% do capital social.

Artigo 3.° Autorização administrativa prévia.

1.    Quando se verifique algum dos pressupostos de aplicação a que se refere o artigo anterior e assim seja determinado no real decreto a que se refere o artigo 4.° da presente lei, poderão ser sujeitos à autorização administrativa prévia os seguintes acordos celebrados pelos órgãos sociais das entidades comerciais indicadas no artigo 1.° da presente lei:

a)    A dissolução voluntária, a cisão ou a fusão da entidade.

b)    A alienação ou afectação, por qualquer forma e a qualquer título, dos activos ou participações sociais necessários ao cumprimento do objecto social da empresa e que para tal efeito se determinem.

c)    A substituição do objecto social.

2.    Também quando se verifique algum dos pressupostos de aplicação definidos no artigo 2.° da presente lei, nos prazos fixados pelo real decreto a que se refere o artigo seguinte, poderão ficar sujeitos a autorização administrativa prévia:

a)    As operações consistentes em actos de disposição do capital social que determinem, num acto único ou em vários actos sucessivos, a redução da participação social pública, de uma empresa sujeita ao regime especial previsto nesta lei, numa percentagem igual ou superior a 10%.

b)    A aquisição directa ou indirecta, incluindo através de terceiros fiduciários ou interpostos, de participações sociais e outros valores que podem dar direito, directa ou indirectamente, à subscrição ou aquisição daquelas, quando tenha por consequência a movimentação de, pelo menos, 10% do capital social.

[...]

Artigo 4.° Regime de autorização administrativa.

1.    O regime de autorização administrativa prévia será fixado através de real decreto aprovado em Conselho de Ministros sob proposta do ministro competente em razão da matéria e com prévia audição do Conselho de Estado.

2.    O real decreto que fixa o regime a que se refere este artigo deverá estar em vigor anteriormente à realização dos actos de disposição referidos no artigo 2.° e determinará:

a)    Seu âmbito subjectivo.

b)    Os actos de disposição concretos, de entre os referidos no artigo 3.°, que ficam sujeitos a prévia aprovação administrativa.

c)    O órgão competente para outorgar a autorização.

d)    O prazo de vigência do regime da autorização administrativa.

3.    Excepto no caso referido no n.° 2, alínea d), acima, o regime de autorização administrativa será alterado ou suprimido com as mesmas formalidades fixadas no n.° 1 do presente artigo.»

5.
    Resulta dos autos que, desde 1996, o procedimento de autorização administrativa prévia instaurado pela Lei 5/1995 foi aplicado através de diversos reais decretos. As críticas da Comissão referem-se aos seguintes processos de privatização:

-    Real Decreto 3/1996, de 15 de Janeiro, relativo à Repsol (petróleo e energia).

-    Real Decreto 8/1997, de 10 de Janeiro, relativo à Telefónica de España (telecomunicações).

-    Real Decreto 40/1998, de 16 de Janeiro, relativo à Corporación Bancaria de España (Argentaria) (banca).

-    Real Decreto 562/1998, de 2 de Abril, relativo à Tabacalera (tabaco).

-    Real Decreto 929/1998, de 14 de Maio, relativo à Endesa (electricidade).

Processo C-98/01, Comissão/Reino Unido

6.
    De acordo com o Airports Act 1986 (lei dos aeroportos), de 8 de Julho de 1986, foi privatizada a entidade pública que possuía e explorava os aeroportos internacionais do Reino Unido (British Airports Authority), sendo os seus activos transferidos para a sociedade privada BAA plc (a seguir «BAA»).

De acordo com os seus estatutos, de 7 de Julho de 1987, foi criada uma acção específica de uma libra esterlina a favor do Ministro dos Transportes.

7.
    O artigo 10.° dos estatutos da BAA define o conteúdo da acção específica. O seu titular deve ser um membro ou um representante do governo (n.° 1). Em conformidade com o n.° 2, é necessária a sua autorização por escrito, nomeadamente, em caso de:

-    qualquer alteração dos estatutos que modifique as faculdades especiais de que dispõem os poderes públicos no seio da sociedade (entre outras, as contidas no próprio artigo 10.° e no artigo 40.°);

-    a cessão do controlo de uma filial que administre um dos aeroportos designados (Gatwick, Heathrow e Stansted);

-    a dissolução ou liquidação da sociedade ou de uma das suas filiais que administre um aeroporto designado, salvo em caso de reestruturação;

-    a alienação total ou parcial de um aeroporto designado ou da sua gestão.

8.
    O accionista específico tem direito a ser convocado para todas as assembleias gerais ou reuniões de natureza similar, mas não tem direito de voto nem qualquer outro direito distinto da faculdade de conceder a sua autorização nos termos acima expressos.

9.
    Segundo o artigo 40.°, n.° 1, dos estatutos:

«A finalidade deste artigo é impedir que qualquer pessoa, com excepção de uma pessoa autorizada, adquira, efectiva ou presumidamente, ou que assim pareça aos administradores, qualquer título sobre acções da sociedade que dê direito (ou que possa dá-lo em determinadas circunstâncias de acordo com as condições de emissão aplicáveis) a mais de 15% dos votos que possam ser emitidos para a adopção de qualquer acordo ou de qualquer assembleia geral da sociedade (ainda que esses votos não possam emitir-se em relação a todos os acordos de todas as assembleias gerais).»

Seguidamente, os estatutos detalham a maneira como os administradores devem garantir que ninguém possua mais de 15% do capital social com direito a voto, outorgando-lhes a possibilidade de exigir aos titulares afectados que alienem a sua participação em excesso e, eventualmente, de determinar a sua alienação oficiosamente.

III - Procedimento administrativo pré-contencioso

Processo C-463/00, Comissão/Espanha

10.
    Por carta de 26 de Outubro de 1999, a Comissão informou o Governo espanhol de que o regime de autorização administrativa prévia estabelecido pela Lei 5/1995 e pelos seus reais decretos de aplicação podia infringir as disposições do Tratado CE relativas à livre circulação de capitais e à liberdade de estabelecimento, convidando-o a apresentar as suas observações num prazo de dois meses.

11.
    O Governo espanhol respondeu, em 27 de Janeiro de 1999, alegando que as medidas controvertidas estavam em conformidade com o direito comunitário. Numa nova carta de 18 de Março de 1999, este governo precisou o seu ponto de vista.

12.
    Não considerando satisfatórias as razões apresentadas, a Comissão dirigiu-lhe, em 2 de Agosto de 1999, um parecer fundamentado, convidando-o a dar-lhe cumprimento num prazo de dois meses.

13.
    O Governo espanhol respondeu, em 3 de Novembro de 1999, explicando detalhadamente o sistema de privatização de determinadas empresas que operam no sector público e reiterando a sua opinião de que as medidas controvertidas são compatíveis com o direito comunitário, em particular com os artigos 43.° CE, 56.° CE e 295.° CE.

14.
    Insatisfeita com estas explicações, a Comissão intentou a presente acção no Tribunal de Justiça.

Processo C-98/01, Comissão/Reino Unido

15.
    Em documento de 3 de Fevereiro de 1999, a Comissão informou o Governo do Reino Unido de que as faculdades especiais do Estado estabelecidas nos estatutos da BAA podiam infringir as disposições do Tratado CE relativas à livre circulação de capitais e à liberdade de estabelecimento, dando-lhe um prazo de dois meses para que este governo lhe comunicasse as suas observações.

16.
    O Governo do Reino Unido não deu resposta a este pedido, pelo que a Comissão lhe enviou, em 6 de Agosto de 1999, um parecer fundamentado, pedindo-lhe que lhe desse cumprimento num prazo de dois meses.

17.
    O Governo do Reino Unido reagiu, em 5 de Novembro de 1999, sustentando que os Estados-Membros têm competência para definir, no âmbito do direito interno das sociedades, as características essenciais das acções das entidades privadas disponíveis no mercado e que uma medida semelhante não obstrui o acesso ao mercado dessas acções. Quanto ao resto, alegou que, no decurso de um processo de privatização, podia ser indispensável adoptar medidas especiais para salvaguardar o interesse geral.

18.
    Pouco convencida com esta resposta, a Comissão intentou a presente acção no Tribunal de Justiça.

IV - Processo no Tribunal de Justiça

Processo C-463/00, Comissão/Espanha

19.
    O pedido da Comissão deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 21 de Dezembro de 2000. Decorrida a fase escrita do processo, foi decidido manter o processo em tribunal plenário e iniciar a fase oral. Além das partes, apresentou-se como interveniente, em apoio da demandada, o Governo do Reino Unido.

20.
    A Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

1)    Declarar a incompatibilidade com os artigos 43.° CE (ex-artigo 52.° do Tratado CE) e 56.° CE (ex-artigo 73.°-B do Tratado CE) dos artigos 2.° e 3.°, n.os 1 e 2, da Lei 5/1995, de 23 de Março, relativa ao regime jurídico da alienação de participações públicas em determinadas empresas, conjugados com o artigo 1.° da mesma lei, e dos reais decretos de aplicação promulgados em conformidade com o artigo 4.° da referida lei (Reales Decretos 3/1996, de 15 de Janeiro, relativo à Repsol; 8/1997, de 10 de Janeiro, relativo à Telefónica de España; 40/1998, de 16 de Janeiro, relativo à Argentaria; 562/1998, de 2 de Abril, relativo a Tabacalera; 929/1998, de 14 de Maio, relativo à Endesa), na medida em que determinam a aplicação de um regime de autorização administrativa prévia

-    não justificado de acordo com requisitos imperativos de interesse geral,

-    sem fixar critérios objectivos, estáveis ao longo do tempo e que tenham sido tornados públicos,

-    e sem se ajustar ao princípio da proporcionalidade.

2)    Condenar o Reino da Espanha nas despesas.

21.
    O Governo espanhol pede que seja negado provimento à acção e que a Comissão seja condenada nas despesas.

Processo C-98/01, Comissão/Reino Unido

22.
    O pedido da Comissão deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 27 de Fevereiro de 2001. Finda a fase escrita do processo, o Tribunal decidiu manter o processo no tribunal plenário e dar início à fase oral.

23.
    A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

1)    Declarar a incompatibilidade com os artigos 43.° CE e 56.° CE das disposições que limitam a possibilidade de adquirir acções com direito a voto da sociedade BAA (artigo 40.° dos estatutos), bem como o processo de autorização para os projectos de cessão de activos da sociedade, o controlo das suas filiais e a liquidação (artigo 10.° dos estatutos).

2)    A condenação do Reino Unido nas despesas.

24.
    O Governo do Reino Unido pede que seja negado provimento à acção e que a Comissão seja condenadas nas despesas.

V - Análise da acção

Questões de admissibilidade

25.
    O Governo de Espanha contesta a admissibilidade do pedido contra si dirigido.

Em concreto, o recurso, em seu entender, é inadmissível no que se refere aos Reales Decretos 40/1998 (Argentaria) e 562/1998 (Tabacalera), por ter expirado, respectivamente, em 17 de Fevereiro de 2001 e em 5 de Outubro de 2000 (3), o regime de faculdades específicas previstas em cada caso e, no que toca aos Reales Decretos 3/1996 (Repsol), 8/1997 (Telefónica) e 929/1998 (Endesa), por incongruência entre as disposições legais controvertidas e o petitum da acção. Nestes três últimos casos, o regime de autorização prévia tinha sido estabelecido nos termos do n.° 2 do artigo 1.° da Lei 5/1995, por se tratar de grupos de empresas, enquanto a Comissão faz referência, na notificação de incumprimento, no parecer fundamentado e na própria acção, ao n.° 1 do mesmo artigo.

26.
    Há que ter em conta, por um lado, que, de acordo com uma jurisprudência reiterada, a situação que deve apreciar-se para efeito de comprovar o incumprimento de Estado é a que existia no momento do termo do prazo concedido pela Comissão no seu parecer fundamentado, no caso dos autos, em 2 de Outubro de 1999. As duas datas invocadas pelo governo demandado são posteriores a esse momento.

27.
    Por outro lado, no que se refere à alegada incongruência e sem que seja necessário pronunciar-se sobre se ela existe na realidade, basta comprovar, mediante a simples leitura dos autos, que o governo demandado conhecia com precisão suficiente a natureza das infracções que lhe eram imputadas, pelo que não pode aceitar-se a sua alegação.

28.
    Proponho, pois, que a acção contra a Espanha seja declarada admissível na sua totalidade.

A doutrina estabelecida pelos acórdãos de 4 de Junho de 2002

29.
    Parece duvidoso que, nesta ocasião, o Tribunal de Justiça tenha seguido os conselhos que D. Quixote deu a Sancho Pança antes de este ir governar a ilha de Baratária: «Nunca interpretes arbitrariamente a lei [...] Achem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, mas não mais justiça do que as queixas dos ricos. Procura descobrir a verdade [...] Quando se puder atender à equidade, não carregues com todo o rigor da lei [...] que não é melhor a fama do juiz rigoroso que a do compassivo» (tradução dos Viscondes de Castilho e de Azevedo, Edição Celedis) (4).

30.
    Dos acórdãos de 4 de Junho de 2002, já referidos, pode-se extrair uma determinada doutrina sobre o modo de apreciação do Tribunal de Justiça:

a)    O exame das diferentes normas nacionais de intervenção leva-se a cabo, essencialmente, à luz dos princípios relativos à livre circulação de capitais, de cuja inobservância resulta, como consequência acessória, uma possível infracção à liberdade de estabelecimento.

b)    Na medida em que podem impedir a aquisição de acções das empresas afectadas e dissuadir os investidores de outros Estados-Membros, essas normas constituem restrições à liberdade de circulação de capitais.

c)    O artigo 295.° CE não tem qualquer virtualidade prática neste âmbito.

d)    A livre circulação de capitais só pode ser legitimamente restringida através de medidas que, sem fazerem qualquer discriminação quanto à nacionalidade, resultem de razões imperiosas de interesse geral e sejam adequadas e proporcionais ao fim que se prossegue. Essas medidas, que devem ser adoptadas a posteriori, devem basear-se em critérios objectivos, de antemão conhecidos dos interessados e serem susceptíveis de impugnação contenciosa.

31.
    Em aplicação desta doutrina, o Tribunal de Justiça condenou a legislação portuguesa que proibia os investidores de um Estado-Membro de adquirirem acções em determinadas empresas acima de um certo limite. Este regime tinha um claro carácter discriminatório, sem que o compromisso meramente político do Governo português de não accionar a restrição relativamente a operadores comunitários bastasse para eliminar a infracção (5).

32.
    Do mesmo modo, com base na mesma doutrina, o Tribunal de Justiça declarou existir incumprimento em relação aos regimes de aplicação indistinta, ou seja, os regimes português e francês, que submetiam a autorização administrativa prévia à aquisição de uma participação superior a certos limites no capital de algumas empresas, bem como a legislação francesa que concedia aos representantes do Estado a faculdade de se oporem a acordos sociais de alienação ou de qualquer afectação a título de garantia de activos de várias sociedades.

O Governo português tinha alegado, em sua defesa, a necessidade de prosseguir objectivos de política económica, tais como a escolha de um parceiro estratégico, o reforço da estrutura competitiva do mercado, a modernização e o reforço da eficácia dos meios de produção.

O Governo francês, por seu lado, tinha invocado o interesse público em garantir a segurança do abastecimento de produtos petrolíferos em caso de crise.

O Tribunal de Justiça decidiu, no primeiro caso, que razões de natureza económica não podem servir de justificação a obstáculos proibidos pelo Tratado e, no segundo, que a legislação não se ajustava a critérios suficientemente objectivos e precisos, indo, portanto, para além do que é necessário para alcançar a finalidade indicada.

33.
    Distinto tratamento mereceu, não obstante, o regime belga que estabelecia o direito desse Estado de opor-se a toda e qualquer cessão, afectação a título de garantia ou alteração do destino de canalizações de produtos energéticos e de alguns outros activos estratégicos, bem como a certas decisões de gestão consideradas contrárias às linhas directrizes da política energética do país.

O Tribunal de Justiça teve em conta o carácter de controlo a posteriori e os estritos prazos para o exercer próprios do regime belga, o carácter limitado das intervenções possíveis (veto de decisões sobre activos estratégicos e sobre questões específicas de gestão) que, além disso, só são permitidas quando estejam em perigo os objectivos da política energética, devem ser formalmente fundamentados e são susceptíveis de controlo contencioso efectivo.

34.
    A função do advogado-geral, tal como definida pelo artigo 222.° CE, é de apresentar publicamente, com toda a imparcialidade e independência, conclusões fundamentadas sobre as causas submetidas ao Tribunal de Justiça, para assistir este último no desempenho das suas funções. O seu primeiro dever é propor ao Tribunal de Justiça uma solução que, sendo adequada ao direito, respeite os postulados dialécticos do discurso fundamentado e a coerência, sem cujo concurso as resoluções judiciais seriam percebidas como meros exercícios arbitrários e ficariam desprovidas de carácter persuasivo.

35.
    Em cumprimento desta alta função, devo indicar ao Tribunal de Justiça os aspectos frágeis da fundamentação acolhida nos acórdãos de 4 de Junho de 2002, consciente dos riscos resultantes de contemplar a sua jurisprudência com o olhar exclusivo da beatitude, sob uma luz irreal que, ao não projectar sombras, a priva finalmente de todo e qualquer relevo (6). Esses aspectos são, essencialmente, três; abordá-los-ei com extremo cuidado e de modo breve.

36.
    Em primeiro lugar, continuo a ser de opinião de que o âmbito natural e idóneo para o exame das várias restrições que resultam do que se costuma designar, muito imprecisamente, como «acções específicas», é o da liberdade de estabelecimento. O que, em cada caso, o Estado-Membro em causa pretende controlar, utilizando faculdades de intervenção na formação da estrutura accionista, na cessão de activos ou em determinados actos de gestão, é a formação da vontade social das entidades privatizadas (quer seja mediante a intervenção na composição accionista ou em relação a actos concretos de administração), aspecto que pouco tem a ver com o livre fluxo de capitais a que se refere o artigo 56.° CE. Essas faculdades podem incidir no direito de livre estabelecimento, tornando-o menos interessante, tanto de modo directo, quando incidem no acesso ao capital social, como indirecto, quando reduzem o seu atractivo, ao restringirem a capacidade de disposição ou de gestão dos órgãos sociais. Contrariamente ao que declarou o Tribunal de Justiça (7), a restrição resultante da liberdade de circulação de capitais tem um carácter subsidiário, não necessário. Se isto é certo no que se refere às medidas que incidem na configuração do conjunto dos accionistas, é-o muito mais quanto às que limitam a adopção de acordos sociais (mudança de objecto social, alienação de activos). Nestes últimos casos, o vínculo com a livre circulação de capitais é hipotético ou muito ténue.

Além disso, para dotar de conteúdo o conceito de movimentos de capitais e de pagamentos, o Tribunal de Justiça deve recorrer às técnicas consagradas de interpretação. Afigura-se-me particularmente inadequado servir-se de actos de direito derivado para inquirir o significado de uma das liberdades fundamentais previstas no Tratado (8). Tão-pouco tem qualquer relevância, para efeitos de qualificação jurídica de uma restrição, que o Estado demandado (ou uma parte interveniente) a aceite ou a rejeite (9).

Não me alongo mais no que considero uma incorrecta qualificação jurídica da hipótese de infracção alegada, que não tem maiores consequências, pois o Tribunal de Justiça aplica um exame semelhante a ambas as liberdades comunitárias (10).

37.
    Em segundo lugar, os acórdãos de 4 de Junho de 2002, apesar da importância primordial que lhe atribui o texto em que se funda a Comunidade, parecem negar efeito prático ao artigo 295.° CE, segundo o qual o Tratado «em nada prejudica o regime da propriedade nos Estados-Membros». Segundo os acórdãos, este preceito não pode ser invocado para justificar obstáculos às liberdades previstas pelo Tratado. Reiterando uma jurisprudência assente em factos bem diversos (11), o Tribunal de Justiça recordou que «o referido artigo não tem por efeito eximir esse regime [da propriedade imobiliária [...] de cada Estado-Membro] às regras fundamentais do Tratado».

A minha principal dificuldade ao abordar as acções específicas era, e continua a ser, o reconhecimento pacífico de que a participação accionista e a titularidade públicas das empresas nos Estados-Membros está em conformidade, sem mais, com o direito comunitário. Este princípio assenta, tal como admitiu a Comissão no âmbito dos três litígios hoje decididos, no postulado de neutralidade retirado do artigo 295.° CE. Não há dúvida, no entanto, de que a titularidade pública de empresas pressupõe, para os operadores económicos dos demais Estados-Membros, uma clara restrição à liberdade de estabelecimento (ou, se se preferir, da livre circulação de capitais). Restrições semelhantes podem resultar da simples participação de entidades públicas, independentemente do seu valor relativo, no capital social de empresas privadas. Outras restrições seriam consequência, nesta última hipótese, da influência dos poderes públicos, através dos seus representantes, na adopção de determinados acordos sociais, pelos quais, por exemplo, se impede o acesso de sócios estrangeiros ou, de qualquer outra forma, se torna menos atractivo um investimento directo transfronteiriço.

Pois bem, embora o artigo 295.° CE não permita amortecer, em relação aos regimes da propriedade existentes nos Estados-Membros, o rigor na aplicação das normas fundamentais do Tratado, criando uma presunção de legalidade, há que justificar em cada caso a participação estatal nas empresas, nos termos da jurisprudência tradicional do Tribunal de Justiça, a mesma que aplicou nos três litígios decididos. Quer dizer, invocando uma razão imperiosa de interesse geral e demonstrando que a presença estatal se ajusta ao fim prosseguido. Os acórdãos de 4 de Junho de 2002 pressupõem, assim, a quebra da livre intervenção pública nas empresas, tal como se tem entendido até agora. Não estou seguro de que o Tribunal de Justiça tenha querido esse resultado, mas a consequência lógica da sua doutrina não permite evitá-lo.

Em todo o caso, os acórdãos deixam de lado, sem fundamentação alguma, a aplicação e o alcance do referido artigo 295.° CE, o que não pode acontecer impunemente, nem sequer em nome das liberdades fundamentais, pois, na economia do Tratado, aquele reveste-se de tanta importância como estas.

38.
    A terceira crítica importante tem a ver com a ressalva realizada pelo Tribunal de Justiça no caso belga. Para dar à minha exposição maior clareza, centrar-me-ei nas faculdades que os artigos 3.° dos Reales Decretos de 10 e 16 de Junho de 1994 concedem ao ministro para se opor à cessão, afectação a título de garantia ou mudança de destino dos activos estratégicos.

A cuidada redacção do acórdão que decidiu este caso não logra ocultar a falta de diferenças pertinentes com o regime francês de oposição à alienação ou à afectação a título de garantia de activos das filiais estrangeiras da sociedade nacional Elf-Aquitaine. Este regime foi condenado pelo Tribunal de Justiça porque, na falta de «critérios objectivos e precisos na estrutura do regime instituído, a regulamentação em causa vai além do necessário para se atingir o objectivo indicado» (12). No entanto, nos termos da referida legislação permite-se que o titular da acção específica se oponha à alienação ou à afectação a título de garantia de activos susceptíveis de causar prejuízo aos interesses nacionais (13). A regulamentação belga, que permite que o ministro se oponha a operações de disposição de activos estratégicos quando considere que podem atentar contra os interesses nacionais no âmbito da energia (14), é apenas mais precisa.

39.
    Tão-pouco as diferenças processuais entre as leis são reveladoras. Ambas prevêem um controlo posterior, com obrigação de notificação prévia. Esta afirmação tem que ser matizada. Não se trata, em absoluto, de um controlo posterior puro, como os que incidem na validade de um acto, por si só, eficaz. Depreende-se, pelo contrário, da economia dos textos legais nacionais que, enquanto o ministro ou autoridade competente não se tiver pronunciado, dentro do prazo máximo de que dispõe, a operação de cessão ou o acordo de alienação, ainda que juridicamente perfeitos, não produzem quaisquer efeitos. De outro modo, poder-se-ia eludir o controlo administrativo, procedendo rapidamente a uma nova venda a um terceiro, em relação ao qual já não seriam oponíveis as faculdades especiais. Vista assim, a situação equipara-se à de um regime que sujeita os mesmos actos à autorização administrativa prévia, que se considera concedida decorrido um certo prazo (silêncio administrativo positivo).

Ambas as faculdades estão sujeitas a prazos relativamente breves (21 dias no caso belga; 1 mês, prorrogável por 15 dias, no francês). Finalmente, o Tribunal de Justiça tomou em consideração a alegação do Governo belga, apoiada na lei administrativa geral, de que as intervenções do ministro devem ser formalmente fundamentadas e são susceptíveis de controlo contencioso efectivo. Custa-me a crer que o regime francês não disponha de garantias similares.

40.
    À vista destes elementos, a única diferença relevante entre estas leis nacionais é a natureza distinta dos activos que são objecto potencial da oposição administrativa ou, se se preferir, o seu âmbito material: do lado belga, as canalizações que constituam grandes infra-estruturas de transporte interno de produtos energéticos; no francês, a maioria do capital de filiais da Elf-Aquitaine. Mesmo admitindo que esta diferença tenha incidência na apreciação da restrição, é manifesto que de modo algum afecta a objectividade e precisão dos critérios.

Aplicação concreta desta doutrina aos presentes processos

Processo C-463/00, Comissão/Espanha

41.
    No que se refere ao processo C-463/00, Comissão/Espanha, à luz dos pressupostos examinados pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos de 4 de Junho de 2002, nos pedidos dirigidos contra Portugal e França, o regime constituído pela Lei 5/1995 e pelos diferentes reais decretos de aplicação pode não ser compatível com as exigências do direito comunitário. A autorização administrativa prévia, instituída, tanto para a adopção de acordos que afectem a prossecução do objecto social (dissolução, cisão ou fusão da sociedade; alienação ou afectação de determinados activos essenciais; mudança de objecto social) (15), como para as operações que impliquem certa alteração na estrutura accionista (redução da participação social pública ou actos de disposição significativa do capital social) (16), não está sujeita a qualquer condição, com excepção de uma referência à garantia da continuidade empresarial na prestação do serviço, formulada de modo geral na fundamentação da Lei 5/1995. Por conseguinte, é duvidoso que os particulares possam conhecer com suficiente precisão o alcance dos seus direitos, pelo que o regime é contrário à certeza jurídica.

42.
    O resultado não é necessariamente o mesmo se se tomar como fasquia de adequação ao direito comunitário o regime belga de oposição à cessão de activos. Como indiquei anteriormente, o Tribunal de Justiça, para negar provimento à acção por infracção, sublinhou diversos aspectos: carácter a posteriori da intervenção, sujeição a prazos estritos, limitação das decisões que podem ser afectadas, bem como dos motivos susceptíveis de serem invocados para opor o veto, fundamentação formal da resolução e controlo contencioso efectivo.

43.
    Já no momento próprio (17) expliquei que, visto de perto, o regime belga não estabelece um controlo a posteriori, uma vez que a medida não produz efeitos jurídicos práticos antes de decorrido o prazo de que o ministro dispõe para manifestar a sua oposição ou até que renuncie prematuramente a fazê-lo. Neste sentido, não é tão diferente do regime espanhol que, como argumenta o governo demandado, está sujeito ao silêncio administrativo positivo.

A diferença de prazo para fazer valer a oposição também não tem carácter decisivo: 21 dias no caso belga; 1 mês, prorrogável excepcionalmente por mais 15 dias, no espanhol.

Além disso, como alegou o Governo espanhol na audiência sem que a Comissão o tenha contestado (18), também a recusa de autorização, como acto administrativo, deve ser fundamentada e está sujeita, a esse mesmo título, a controlo contencioso efectivo. Não há razão para pensar que esse controlo seja menos efectivo na Espanha do que na Bélgica.

Contrariamente ao que sustenta a Comissão, não existe motivo suficiente para duvidar de que o regime espanhol de autorização prévia tenha sido estabelecido a fim de garantir, no âmbito de um processo de privatização, «a continuidade empresarial que a prestação do serviço cumprido pela empresa exige», tal como se refere, com perfeita clareza, na fundamentação da Lei 5/1995. Se, segundo alega o governo demandado, por essa continuidade se entende a preocupação pela segurança do abastecimento, a solidariedade económica e social e a protecção dos interesses dos consumidores, é manifesto que o regime prossegue uma razão imperativa de interesse geral, distinta de qualquer finalidade unicamente económica. Quanto ao resto, não creio que tenha mais imprecisão que a mera invocação dos «interesses nacionais no âmbito da energia», que existia no caso belga (19).

Em definitivo, mais uma vez a única diferença relevante entre as leis belga e espanhola é a diversa natureza das operações para que é exigida a autorização. Uma vez mais, é necessário afirmar que, pese embora o facto de o regime espanhol ter um âmbito material mais amplo, já que se destina, além de a diversos acordos de mudança social ou de alienação de activos, à aquisição de 10% de capital social, tais diferenças de alcance não afectam de modo algum a objectividade e precisão dos critérios a que a autorização está subordinada. O maior número de pressupostos de autorização explica-se pela diversidade do fim prosseguido.

44.
    A lei espanhola apresenta, além disso, uma característica singular que a destaca das dos demais casos similares tratados pelo Tribunal de Justiça, a saber, o seu carácter expressamente transitório. Assim, cada um dos reais decretos prevê um prazo de caducidade (geralmente de 10 anos após ocorrido o acontecimento que lhe deu origem). Esta limitação temporal dos seus efeitos confirma que se trata de um regime excepcional, concebido para acompanhar um processo de privatização. Parece estar em sintonia com o objectivo de obter mercados mais abertos, sem abandonar completamente as prerrogativas dos poderes públicos em áreas que pertencem à economia estratégica. Como declarou o Tribunal de Justiça, «não se podem negar as preocupações que podem, consoante as circunstâncias, justificar que os Estados-Membros conservem uma determinada influência nas empresas inicialmente públicas e posteriormente privatizadas, quando essas empresas actuam nos domínios dos serviços de interesse geral ou estratégicos» (20). Acrescentaria que estas preocupações são tanto mais compreensíveis quanto são limitadas com precisão no tempo e servem para prevenir os riscos do que constitui um transtorno fundamental do estatuto empresarial em sectores sensíveis da economia.

45.
    Tida em conta a novidade representada pela privatização de empresas cuja titularidade ou cujo controlo públicos tinham parecido legítimos durante muitos anos, justifica-se a diversidade das medidas submetidas a autorização, bem como a relativa imprecisão do fim que se pretende: a continuidade empresarial na prestação do serviço. Perante a imprevisibilidade das dificuldades eventuais, compreende-se que os poderes públicos não renunciem a uma certa margem de poder discricionário. Além disso, se se tiver em conta a limitação temporal que a acompanha, o regime espanhol não excede o limite do que é necessário para alcançar o objectivo prosseguido.

46.
    Por este conjunto de considerações, apreciadas à luz dos acórdãos de 4 de Junho de 2002 e do princípio geral da neutralidade do direito comunitário face à iniciativa empresarial pública, consagrado no artigo 295.° CE, a que dediquei o essencial das minhas conclusões de 3 de Julho de 2001, penso que as possíveis restrições à livre circulação de capitais estão justificadas e são adequadas e proporcionadas ao objectivo prosseguido, pelo que convém negar provimento à acção intentada pela Comissão contra o Reino de Espanha. Idêntica solução se impõe em relação à liberdade de estabelecimento (21).

Processo C-98/01, Comissão/Reino Unido

47.
    A situação jurídica reflectida no processo C-98/01, Comissão/Reino Unido, não parece adequar-se, em caso algum, aos postulados da jurisprudência recém-reiterada neste novo âmbito.

48.
    Em primeiro lugar, carece de importância a circunstância de as faculdades de intervenção que os poderes públicos podem exercer resultarem dos estatutos da sociedade (e não de um acto normativo) e de a figura das acções sem voto dotadas de poderes especiais estar contemplada no direito interno. Sendo certo que esta situação se inscreve plenamente na categoria clássica de «regimes da propriedade», não é menos certo que estes últimos não ficam subtraídos a aplicação das normas fundamentais do Tratado, sem que o Tribunal de Justiça tenha feito - nem convenha fazer - distinção alguma em função da natureza exacta de um regime determinado. Para efeitos da qualificação da restrição, são decisivas as consequências económicas do regime e não as particularidades técnicas de cada texto legal. Se assim não fosse, bastaria que, posteriormente, os Estados-Membros convertessem todo o tipo de prerrogativas de direito público em poderes estatutários para que ficassem fora do alcance do Tratado.

49.
    Em segundo lugar, o Reino Unido alegou, de forma muito convincente, que as faculdades de que dispõe por força dos artigos 10.° e 40.° dos estatutos da BAA não constituem restrições proibidas, porque não limitam o acesso ao seu capital social nem são susceptíveis de aplicação discriminatória em função da nacionalidade. Por não constituírem obstáculos às liberdades fundamentais, não é necessário justificá-las nem sujeitar o seu exercício a critérios objectivos e precisos.

Apesar das aparências, a lei britânica não se distingue essencialmente da francesa.

50.
    Nos termos do artigo 10.° dos estatutos da BAA, o titular (público) da acção específica pode opor-se à dissolução da sociedade, à dissolução ou à cessão de uma filial que possua um dos aeroportos designados e à alienação total ou parcial do aeroporto ou da sua gestão. Este direito não está sujeito a qualquer condição nem tão-pouco a controlo contencioso, por se tratar de um acto de disposição ordinária do titular de uma acção. Pois bem, a lei francesa (artigo 2.°, n.° 3, do Decreto n.° 93-1298) previa a possibilidade de vetar acordos de alienação ou de afectação a título de garantia de activos e o Tribunal de Justiça considerou que um poder discricionário dessa amplitude «conjugado com o controlo da identidade dos titulares» era incompatível com o Tratado. O Governo do Reino Unido alegou que não interpreta o artigo 10.° no sentido de que este lhe permite recusar a autorização consoante a identidade do adquirente ou do cessionário, mas apenas de acordo com a oportunidade de realizar a operação de alienação. Esta alegação carece de eficácia, já que não consta dos textos legais, nem sequer é acompanhada das necessárias medidas para garantir a sua observância.

51.
    O artigo 40.° dos estatutos da BAA limita, na prática, a participação de toda e qualquer pessoa ou empresa na sociedade a 15% do seu capital com direito a voto. Esta proporção permite ao governo demandado afirmar que não são colocados obstáculos ao acesso ao mercado. No caso francês (artigo 2.°, n.° 1, do Decreto n.° 93-1298), a autorização era necessária desde o momento em que diminuia a décima, a quinta ou a terceira parte do capital social ou dos direitos de voto. Não creio que a diferença de um mínimo de 5% entre ambas as leis conduza a apreciações distintas. Além disso, embora seja certo que, no Reino Unido, se aplica, em princípio, de maneira automática e nunca intuitu personae, também é certo que o titular da acção específica pode, em qualquer momento, renunciar a ela ou aceitar uma alteração dos estatutos que permita a um determinado investidor o acesso ao capital em maior proporção, sem que esta operação seja controlável contenciosamente.

52.
    Uma vez que o regime britânico não apresenta nenhuma das garantias que o Tribunal de Justiça teve em conta ao examinar a lei belga, em particular a sujeição a critérios objectivos controláveis pelos órgãos jurisdicionais, não há que aplicar-lhe por analogia a solução adoptada no acórdão Comissão/Bélgica.

53.
    Nestas condições, o regime estabelecido nos artigos 10.° e 40.° dos estatutos da BAA deve ser considerado, em conformidade com os acórdãos de 4 de Junho de 2002, contrário à liberdade de circulação de capitais, sem que seja necessário examinar separadamente as medidas controvertidas à luz dos preceitos relativos à liberdade de estabelecimento (22).

A solução que respeita o postulado do artigo 295.° CE

54.
    Não obstante, pelas razões que expus nas minhas conclusões de 3 de Julho de 2001, e que convido o Tribunal de Justiça a reconsiderar, continuo convencido de que um regime com estas características está, em todo o caso, coberto pelo princípio da neutralidade do artigo 295.° CE. Apenas a correcta ponderação desta disposição permite salvar a incoerência que pressupõe, por um lado, condenar um Estado-Membro que, mantendo determinadas prerrogativas no seu seio, tenha acedido a desprender-se da sua participação social nalgumas empresas estratégicas, facilitando a interpenetração dos mercados nacionais querida pelos Tratados, e tolerar, por outro lado, sem a menor justificação, que outro Estado impeça ou restrinja essa integração através da propriedade pública das mesmas empresas.

55.
    Os acórdãos de 4 de Junho de 2002 declaram que o artigo 295.° CE, que determina rotundamente que o Tratado CE «em nada prejudica o regime da propriedade nos Estados-Membros», não o subtrai à aplicação das normas fundamentais do Tratado. A doutrina assim reiterada sem mais precisão equipara-se a uma petitio principii, cujo resultado prático é de perda de eficácia de uma disposição de importância primordial, que os redactores do Tratado se tinham preocupado em sublinhar (23).

56.
    Da análise histórica e teleológica resulta que a expressão «regimes da propriedade» do artigo 295.° CE não remete para o ordenamento civil das relações patrimoniais, mas para o conjunto ideal de normas de todo o tipo, quer de origem jurídico-privada, quer de direito público, capazes de outorgar a titularidade económica de uma empresa, isto é, que permitem a quem possui esta titularidade exercer uma influência decisiva na definição e na execução de todos ou de alguns dos objectivos económicos dessa mesma empresa. Paralelamente, deduz-se da interpretação finalista que a distinção entre empresas públicas e privadas, para efeitos do Tratado, não pode assentar na mera composição da respectiva massa de accionistas, antes dependendo da possibilidade de o Estado impor determinados objectivos de política económica, distintos da obtenção do máximo rendimento, que caracteriza a actividade privada.

57.
    Em definitivo, o respeito, por parte do Tratado, do regime da propriedade nos Estados-Membros, consagrado no artigo 295.° CE, deve estender-se a qualquer medida que, através da intervenção no sector público, entendido em sentido económico, permita ao Estado contribuir para a configuração da actividade económica da nação. Pressupõe que não há que considerar essas medidas incompatíveis per se com o Tratado; pois estão baseadas na presunção de validade que lhe é conferida pela legitimidade do artigo 295.° CE.

Para estes efeitos, é particularmente esclarecedor que a reserva do artigo 295.° CE se formule como uma proibição de «prejudica[r]». Se o Tratado «em nada prejudica», quer dizer, no mínimo, que uma medida nacional que afecte o regime de adopção de decisões do sector público tem que se considerar compatível com o Tratado, salvo se se provar o contrário. E prejudicar é precisamente supor que uma medida que por si não é discriminatória seja utilizada de um modo discriminatório não justificado.

58.
    Com base nestes elementos, chego, no que se refere à acção intentada contra a Espanha, à mesma solução de negação de provimento para que parece apontar a aplicação dos acórdãos de 4 de Junho de 2002.

Também a legislação britânica poderia beneficiar desta presunção de legalidade se existisse a obrigação, para o Governo do Reino Unido, de adoptar decisões fundamentadas no uso das faculdades que lhe são outorgadas pela acção específica e que essas decisões pudessem ser objecto de controlo contencioso. Por falta destas garantias, o regime estabelecido na BAA não está em conformidade com as exigências do Tratado.

VI - Despesas

59.
    No processo C-463/00, Comissão/Espanha, a demandante deve ser condenada nas despesas, nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo.

60.
    No processo C-98/01, Comissão/Reino Unido, deve o Estado-Membro demandado ser condenado nas despesas, segundo os critérios usados na jurisprudência.

61.
    A interveniente suportará as suas próprias despesas, em conformidade com o artigo 69.°, n.° 4, do Regulamento de Processo.

VII - Conclusão

62.
    À luz das considerações precedentes, sugiro que o Tribunal de Justiça:

-    Negue provimento à acção intentada contra o Reino de Espanha, no processo C-463/00, com a condenação da Comissão nas despesas. O Reino Unido, interveniente, suportará as suas próprias despesas.

-    Dê provimento à acção intentada contra o Reino Unido, no processo C-98/01, condenando o Estado demandado nas despesas.


1: -     Língua original: espanhol.


2: -     Respectivamente, processos C-367/98 (Colect. 2002, p. I-4731), C-483/99 (Colect. 2002, p. I-4781) e C-503/99 (Colect. 2002, p. I-4809).


3: -     Após a alteração operada pelo Real Decreto 67/2000, de 21 de Janeiro de 2000.


4: -     Cervantes, M. de: El ingenioso caballero Don Quijote de la Mancha, 2.² parte, capítulo XLII, edição de Martín de Riquer, ed. Planeta, Barcelona, 1994, p. 935.


5: -     N.os 40 a 42 do acórdão Comissão/Portugal.


6: -     Boulois, J.: «Nouvelles réflexions à propos du caractère préjudicielle de la compétence de la Cour de justice des Communautés européennes statuant sur renvoi des juridictions nationales», in Études de droit des Communautés européennes - Mélanges offerts à Pierre-Henri Teitgen, ed. A. Pedone, Paris, 1984, p. 25.


7: -     N.os 56 dos acórdãos Comissão/Portugal e Comissão/França, já referidos.


8: -     Como assinala o Governo espanhol, é significativo que a proposta de directiva sobre as ofertas públicas de aquisição se baseie exclusivamente na disposição do Tratado que reconhece a liberdade de estabelecimento.


9: -     Assim sucede nos n.os 40 e 41 do acórdão Comissão/Bélgica. Para examinar se a legislação belga podia constituir uma restrição ao livre movimento de capitais, o Tribunal de Justiça contenta-se em aludir, para efeitos «indicativos», à Directiva 88/361 e a comprovar que o governo demandado não se opõe, em princípio, enquanto o Governo do Reino Unido, interveniente, o admite «até certo ponto». Estes elementos de apreciação são apenas pertinentes e, em caso algum, suficientes para sustentar uma apreciação desta natureza.


10: -     É acertado abordar o conjunto das liberdades fundamentais numa perspectiva uniforme. Precisamente, por esta razão, teria sido desejável que, no âmbito dos regimes das empresas privatizadas, o Tribunal de Justiça tivesse suavizado o rigor com que aplica a sua doutrina relativa às restrições indistintamente aplicáveis, como já tinha feito, quanto à liberdade de circulação de mercadorias, no seu acórdão de 24 de Novembro de 1993, Keck e Mithouard (C-267/91 e C-268/91, Colect., p. I-6097).


11: -     A saber, o acórdão de 1 de Junho de 1999, Konle (C-302/97, Colect., p. I-3099, n.° 38).


12: -     N.° 53 do acórdão Comissão/França, já referido.


13: -     Artigo 1.° do Decreto n.° 93-1296, para o qual remete o artigo 2.°, n.° 2, do Decreto n.° 93-1298.


14: -     Curiosamente, no n.° 51 do acórdão Comissão/Bélgica diz-se que «as intervenções do ministro previstas nos artigos 3.° e 4.° dos Decretos reais de 10 e de 16 de Junho de 1994 só podem ter lugar no caso de os objectivos da política energética serem postos em causa». Esta formulação, mais estrita, não tem apoio nos textos legais. Como resulta dos n.os 9 e 10 do mesmo acórdão, os referidos decretos reais prevêem, no artigo 3.°, que o ministro se oponha à cessão ou à afectação a título de garantia de certos activos se considerar que «essa operação prejudica os interesses nacionais no domínio da energia» e, apenas no artigo 4.°, que os representantes do governo podem impugnar qualquer decisão do conselho de administração «que considerem contrária às linhas directrizes da política de energia do país, incluindo os objectivos do governo relativos ao aprovisionamento do país em energia».


15: -     Artigo 3.°, n.° 1, da Lei 5/1995.


16: -     Artigo 3.°, n.° 2, da Lei 5/1995.


17: -     V. n.° 40, supra.


18: -     Parafraseio assim a fórmula usada no n.° 51 do acórdão Comissão/Bélgica, já referido, ainda que não esteja convencido de que, para demonstrar o conteúdo do direito nacional, baste o mero acordo das partes ou a aquiescência da parte contrária.


19: -     Insisto em que, apesar da redacção do n.° 51 do acórdão Comissão/Bélgica, que se refere a casos em que «os objectos da política energética (sejam) postos em causa», a realidade que resulta dos textos jurídicos é que o ministro pode opor-se à cessão, à afectação a título de garantia ou à mudança de destino de determinados activos estratégicos, se essa operação «prejudica[r] os interesses nacionais no domínio da energia» (artigo 3.°, n.° 1, do Real Decreto de 10 de Junho de 1994). Noutro âmbito, recorde-se que também a Comissão recorre a conceitos jurídicos indeterminados para restringir direitos. Assim, por exemplo, invoca a «falta de interesse comunitário» para eludir a instrução de uma queixa relativa ao direito da concorrência e limitar, desta forma, o acesso dos particulares ao controlo administrativo e, eventualmente, contencioso.


20: -     V. acórdãos Comissão/Portugal, já referido, n.° 47; Comissão/França, já referido, n.° 43; e Comissão/Bélgica, já referido, n.° 43.


21: -     V., por analogia, o n.° 59 do acórdão Comissão/Bélgica.


22: -     N.os 56 dos acórdãos Comissão/Portugal e Comissão/França, já referidos.


23: -     Mediante a sua posição sistemática, o carácter contundente e incondicional do seu teor e o facto de retirar a sua autoridade directamente da declaração Schuman, de 9 de Maio de 1950, como demonstrei nas minhas conclusões de 3 de Julho de 2001.