Language of document : ECLI:EU:C:2024:492

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

13 de junho de 2024 (*)

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílios de Estado — Lei que proíbe a utilização de carvão na produção de eletricidade — Encerramento antecipado de uma central elétrica a carvão — Concessão de uma indemnização — Decisão que declara a medida compatível com o mercado interno sem se pronunciar sobre a existência de um auxílio de Estado — Exercício da competência da Comissão Europeia»

No processo C‑40/23 P,

que tem por objeto um recurso de uma decisão do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interposto em 26 de janeiro de 2023,

Comissão Europeia, representada por I. Georgiopoulos, B. Stromsky e H. van Vliet, na qualidade de agentes,

recorrente,

sendo a outra parte no processo:

Reino dos Países Baixos, representado por M. K. Bulterman, A. Hanje, e J. Langer, na qualidade de agentes,

recorrente em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Prechal, presidente de secção, F. Biltgen, N. Wahl, J. Passer (relator) e M. L. Arastey Sahún, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 22 de fevereiro de 2024,

profere o presente

Acórdão

1        Com o presente recurso, a Comissão Europeia pede a anulação do acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 16 de novembro de 2022, Países Baixos/Comissão (T‑469/20, a seguir «acórdão recorrido», EU:T:2022:713), que deu provimento ao recurso do Reino dos Países Baixos destinado à anulação da Decisão C(2020) 2998 final da Comissão, de 12 de maio de 2020, relativa ao auxílio de Estado SA.54537 (2020/NN) — Países Baixos, Proibição de utilização de carvão na produção de eletricidade nos Países Baixos (JO 2020, C 220, p. 2, a seguir «decisão controvertida»).

 Quadro jurídico

2        O artigo 107.o, n.o 1 e n.o 3, alínea c), TFUE prevê:

«1.      Salvo disposição em contrário dos Tratados, são incompatíveis com o mercado interno, na medida em que afetem as trocas comerciais entre os Estados‑Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções.

[…]

3.      Podem ser considerados compatíveis com o mercado interno:

[…]

c)      Os auxílios destinados a facilitar o desenvolvimento de certas atividades ou regiões económicas, quando não alterem as condições das trocas comerciais de maneira que contrariem o interesse comum.»

3        O artigo 108.o, n.os 2 e 3, TFUE prevê:

«2.      Se a Comissão, depois de ter notificado os interessados para apresentarem as suas observações, verificar que um auxílio concedido por um Estado ou proveniente de recursos estatais não é compatível com o mercado interno nos termos do artigo 107.o, ou que esse auxílio está a ser aplicado de forma abusiva, decidirá que o Estado em causa deve suprimir ou modificar esse auxílio no prazo que ela fixar.

[…]

3.      Para que possa apresentar as suas observações, deve a Comissão ser informada atempadamente dos projetos relativos à instituição ou alteração de quaisquer auxílios. Se a Comissão considerar que determinado projeto de auxílio não é compatível com o mercado interno nos termos do artigo 107.o, deve sem demora dar início ao procedimento previsto no número anterior. O Estado‑Membro em causa não pode pôr em execução as medidas projetadas antes de tal procedimento haver sido objeto de uma decisão final.»

4        O considerando 7 do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho, de 13 de julho de 2015, que estabelece as regras de execução do artigo 108.o [TFUE] (JO 2015, L 248, p. 9), que está redigido nos mesmos termos, em substância, que o considerando 7 do Regulamento (CE) n.o 659/1999 do Conselho, de 22 de março de 1999, que estabelece as regras de execução do artigo 93.o [CE] (JO 1999, L 83, p. 1), enuncia:

«O prazo em que a Comissão deve concluir a análise preliminar de um auxílio notificado deve ser fixado em dois meses a contar da data de receção de uma notificação completa ou de uma declaração devidamente fundamentada do Estado‑Membro em causa, nos termos da qual este considera completa a notificação pelo facto de as informações adicionais solicitadas pela Comissão não estarem disponíveis ou já terem sido prestadas. Por razões de segurança jurídica, esta análise deve ser encerrada mediante decisão.»

5        O artigo 4.o do Regulamento 2015/1589, que está redigido nos mesmos termos, em substância, que o artigo 4.o do Regulamento n.o 659/1999, dispõe:

«1.      A Comissão procederá à análise da notificação imediatamente após a sua receção. Sem prejuízo do disposto no artigo 10.o, a Comissão tomará uma decisão nos termos dos n.os 2, 3 ou 4, do presente artigo.

2.      Quando, após uma análise preliminar, a Comissão considerar que a medida notificada não constitui um auxílio, fará constar esse facto por via de decisão.

3.      Quando, após uma análise preliminar, a Comissão considerar que não há dúvidas quanto à compatibilidade da medida notificada com o mercado interno, na medida em que está abrangida pelo artigo 107.o, n.o 1, [TFUE], decidirá que essa medida é compatível com o mercado interno (“decisão de não levantar objeções”). A decisão referirá expressamente a derrogação do [Tratado FUE] que foi aplicada.

4.      Quando, após uma análise preliminar, a Comissão considerar que a medida notificada suscita dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado interno, decidirá dar início ao procedimento formal de investigação nos termos do artigo 108.o, n.o 2, [TFUE] (“decisão de início de um procedimento formal de investigação”).

5.      As decisões previstas nos n.os 2, 3 e 4 do presente artigo devem ser tomadas no prazo de dois meses. Esse prazo começa a correr no dia seguinte ao da receção de uma notificação completa. A notificação considerar‑se‑á completa se, no prazo de dois meses a contar da sua receção ou da receção da qualquer informação adicional, a Comissão não solicitar mais nenhuma informação. O prazo pode ser alargado com o acordo da Comissão e do Estado‑Membro em causa. Se for caso disso, a Comissão poderá fixar prazos mais curtos.

6.      Quando a Comissão não tomar uma decisão nos termos dos n.os 2, 3 ou 4 no prazo fixado no n.o 5, considerar‑se‑á que o auxílio foi autorizado pela Comissão. O Estado‑Membro em causa pode então executar as medidas em questão após informação prévia à Comissão, exceto se esta tomar uma decisão nos termos do presente artigo no prazo de 15 dias úteis a contar da receção da informação.»

6        O artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento 2015/1589 dispõe:

«A decisão de dar início a um procedimento formal de investigação resumirá os elementos pertinentes em matéria de facto e de direito, incluirá uma apreciação preliminar da Comissão quanto à natureza de auxílio da medida proposta e indicará os elementos que suscitam dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado interno. A decisão incluirá um convite ao Estado‑Membro em causa e a outras partes interessadas para apresentarem as suas observações num prazo fixado, normalmente não superior a um mês. A Comissão pode prorrogar esse prazo em casos devidamente justificados.»

 Antecedentes do litígio

7        Os antecedentes do litígio estão expostos nos n.os 2 a 18 do acórdão recorrido e podem ser resumidos da seguinte forma.

8        Em 27 de março de 2019, as autoridades neerlandesas notificaram à Comissão um projeto da Lei relativa à Proibição da Utilização de Carvão na Produção de Eletricidade, em conformidade com a Diretiva (UE) 2015/1535 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de setembro de 2015, relativa a um procedimento de informação no domínio das regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (JO 2015, L 241, p. 1). Este projeto de lei, que visava a redução das emissões de dióxido de carbono (CO2) nos Países Baixos e que previa a compensação pelos danos causados a uma central elétrica a carvão que, em relação às outras centrais do mesmo tipo, seria desproporcionadamente afetada pela proibição de utilização de carvão na produção de eletricidade, não foi notificado à Comissão nos termos do artigo 108.o, n.o 3, TFUE.

9        Na sequência da notificação do projeto de lei em aplicação da Diretiva 2015/1535, a Comissão deu início, por sua própria iniciativa, à análise das informações relativas a um alegado auxílio.

10      Em 11 de dezembro de 2019, o Reino dos Países Baixos adotou a Wet verbod op kolen bij elektriciteitsproductie (Lei relativa à Proibição da Utilização de Carvão na Produção de Eletricidade, Stb. 2019, n.o 493). O artigo 4.o desta lei previa a possibilidade de conceder uma indemnização a uma central que, relativamente às outras centrais, era, de forma desproporcionada, afetada pela proibição de utilização de carvão na produção de eletricidade. A este título, a sociedade Vattenfall NV, gestora de uma das cinco centrais elétricas a carvão existentes nos Países Baixos, a saber, a central Hemweg 8, beneficiou de uma indemnização do Estado neerlandês no montante de 52,5 milhões de euros (a seguir «medida em causa»). Com efeito, devido à mediocridade das suas características técnicas ambientais, esta central foi privada, contrariamente às quatro outras centrais elétricas a carvão existentes nos Países Baixos, do benefício do período de transição previsto pela referida lei e, por conseguinte, foi obrigada a encerrar antecipadamente.

11      Em 12 de maio de 2020, a Comissão adotou a decisão controvertida. Quanto à existência de um auxílio de Estado, considerou, no n.o 48 da referida decisão, que, «tendo em conta as informações fornecidas pelas autoridades neerlandesas, não pod[ia] concluir‑se, com suficiente grau de certeza, que nesse processo [havia] direito a indemnização num montante de 52,5 milhões de euros». A Comissão deduziu daí que «não pod[ia] ser excluído que a medida em [causa] [conferiu] um auxílio de Estado à empresa em questão». Todavia, a Comissão entendeu, no n.o 49 da referida decisão, que «não [havia], no entanto, que retirar uma conclusão definitiva, no caso em apreço, quanto à questão de saber se a medida [em causa] confer[ia] ou não uma vantagem ao gestor e constitu[ía], portanto, um auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, uma vez que, mesmo na presença de um auxílio de Estado, [ela] considera[va] que [esta] medida [era] compatível com o mercado interno». A Comissão concluiu «que a medida [em causa] [era] compatível com o mercado interno nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea c), [TFUE]».

 Tramitação processual no Tribunal Geral e acórdão recorrido

12      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 21 de julho de 2020, o Reino dos Países Baixos interpôs recurso de anulação da decisão controvertida.

13      Este Estado‑Membro invocou cinco fundamentos de anulação. Os três primeiros fundamentos foram apresentados na hipótese de, não obstante a sua redação, a decisão controvertida dever ser entendida no sentido de que implica a qualificação da medida em causa de auxílio de Estado. Os quarto e quinto fundamentos, dirigidos contra esta decisão uma vez que não se pronunciou sobre a referida qualificação, eram relativos, respetivamente, à incompetência da Comissão para declarar uma medida compatível nos termos do artigo 107.o, n.o 3, TFUE, sem, previamente, a ter qualificado de auxílio de Estado, e à violação do princípio da segurança jurídica.

14      No acórdão recorrido, o Tribunal Geral, depois de ter constatado que a Comissão não se tinha pronunciado, na decisão controvertida, sobre a questão de saber se a medida em causa constituía um auxílio na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, deu provimento ao recurso, com base no quarto e quinto fundamentos de anulação.

 Pedidos das partes

15      Com o presente recurso, a Comissão pede, em substância, ao Tribunal de Justiça que se digne:

–        anular o acórdão recorrido;

–        decidir definitivamente o litígio e negar provimento ao recurso na íntegra;

–        condenar o Reino dos Países Baixos nas despesas.

16      O Reino dos Países Baixos pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

–        negar provimento ao recurso e

–        condenar a Comissão nas despesas.

 Quanto ao presente recurso

17      A Comissão invoca um fundamento único de recurso que comporta duas partes relativas, a primeira, à interpretação errada do artigo 107.o, n.o 3, TFUE e do artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589 e, a segunda, a um erro de direito na interpretação do princípio da segurança jurídica.

 Quanto à primeira parte do fundamento único

 Argumentos das partes

18      A Comissão alega que, ao declarar que não é competente para decidir que uma medida é compatível com o mercado interno sem ter previamente declarado que esta medida era um auxílio de Estado, o Tribunal Geral violou, através de uma interpretação literal indevidamente restritiva dessas disposições, o artigo 107.o, n.o 3, TFUE e o artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589.

19      A Comissão alega que nem o n.o 1, nem o n.o 3 do artigo 107.o TFUE enunciam regras processuais e não dizem respeito às competências conferidas à Comissão em matéria de fiscalização dos auxílios de Estado. Têm como objetivo único proibir determinadas medidas e precisar que as medidas que preenchem determinados critérios são autorizadas. Por conseguinte, o Tribunal Geral afirma erradamente que estas duas disposições proíbem a adoção de decisões como a decisão controvertida. O conceito de «auxílio» utilizado no artigo 107.o, n.o 3, TFUE é utilizado em sentido amplo e não para designar um auxílio de Estado na aceção técnica deste conceito, de modo que não se pode excluir que o referido conceito também possa abranger medidas cuja qualificação de auxílio de Estado continua incerta. O Acórdão de 22 de dezembro de 2008, British Aggregates/Comissão (C‑487/06 P, EU:C:2008:757, n.o 113), referido pelo Tribunal Geral, não contém nenhuma indicação quanto ao que a Comissão deve fazer se estiver convencida da compatibilidade de uma medida, mas ainda não tiver chegado a uma conclusão sobre a questão de saber se esta medida é um auxílio de Estado.

20      Quanto ao artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589, a utilização da expressão «na medida em que está abrangida pelo artigo 107.o, n.o 1, [TFUE]» também não significa que a compatibilidade de uma medida só possa ser examinada quando essa medida tiver sido qualificada de auxílio de Estado, devendo a expressão «na medida em que» ser entendida, no seu sentido corrente, como equivalente à de «uma vez que» e que esta conjunção de subordinação deve ser lida em conjugação com a proposta principal que prevê que a Comissão «decidirá que essa medida é compatível com o mercado interno». A única constatação exigida para que a Comissão possa adotar uma decisão de não levantar objeções diz respeito ao facto de a medida não suscitar dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado interno.

21      A Comissão salienta ainda que outras disposições do Regulamento 2015/1589, embora incluam o conceito «auxílio de Estado», permitiriam aos Estados‑Membros ou à Comissão seguir o procedimento previsto neste regulamento também para medidas que não tenham sido consideradas auxílios de Estado. É o que acontece, por exemplo, com o artigo 2.o deste regulamento, que prevê a notificação pelos Estados‑Membros de todos os projetos de um novo auxílio de Estado.

22      Além disso, a Comissão considera que a interpretação assim acolhida pelo Tribunal Geral em relação ao artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589 cria um impasse, uma vez que impede a Comissão de tomar uma decisão no termo da sua análise preliminar. Com efeito, em circunstâncias como as do processo em apreço, a Comissão está impedida de adotar uma decisão, uma vez que não está em condições de dar início a um procedimento formal de investigação, com base no artigo 4.o, n.o 4, deste regulamento, na ausência de dúvidas sobre a compatibilidade da medida em causa com o mercado interno, nem de concluir, com base no artigo 4.o, n.o 2, do referido regulamento, que esta medida não constitui um auxílio, na falta de certeza suficiente quanto ao direito do beneficiário da referida medida a ser indemnizado.

23      Foi erradamente que, no n.o 58 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral invocou o Acórdão de 24 de maio de 2011, Comissão/Kronoply e Kronotex (C‑83/09 P, EU:C:2011:341), para sustentar que o artigo 4.o, n.o 3, do mesmo regulamento fixa uma lista exaustiva das decisões que a Comissão pode adotar no termo da análise preliminar. Com efeito, este acórdão não contém nenhuma interpretação definitiva nesse sentido, mas confirma, em contrapartida, que a Comissão não podia, no caso em apreço, dar início ao procedimento formal de investigação com o único objetivo de demonstrar que a medida em causa era um auxílio de Estado, na ausência de dúvidas sobre a compatibilidade desta medida com o mercado interno.

24      Por outro lado, a Comissão salienta que o artigo 4.o, n.o 6, do Regulamento 2015/1589 prevê que, quando não tomar uma decisão no prazo fixado, se considera que a medida foi autorizada, mesmo que não tenha sido previamente demonstrado que esta medida constitui um auxílio estatal. Por conseguinte, a Comissão deve poder, nos termos do artigo 4.o, n.o 3, deste regulamento, decidir que uma medida é compatível com o mercado interno sem proceder previamente a essa demonstração.

25      Do mesmo modo, ao prever que a decisão de dar início ao procedimento formal de investigação inclui uma «apreciação preliminar» destinada a determinar se a medida tem a natureza de auxílio, o artigo 6.o, n.o 1, do referido regulamento confirma que, no momento em que a Comissão se deve pronunciar sobre a forma como põe termo ao procedimento de análise preliminar, é perfeitamente possível que não tenha adotado uma posição definitiva sobre a existência de um auxílio.

26      Por último, o Tribunal Geral não teve em conta a lógica e as consequências do regime de fiscalização dos auxílios de Estado previsto nos artigos 107.o a 109.o TFUE e nas disposições do Regulamento 2015/1589, nomeadamente o seu artigo 4.o, n.o 3, que visam estabelecer um equilíbrio entre, por um lado, a necessidade de os Estados‑Membros e as partes interessadas obterem esclarecimentos quanto à qualificação de uma medida de auxílio de Estado e, por outro, de obter rapidamente uma autorização dessa medida. Com efeito, existem situações em que é mais fácil apreciar se uma medida é compatível com o mercado interno do que determinar se é um auxílio de Estado. Ao decidir, nessas situações, não levantar objeções sem dar início ao procedimento formal de investigação, a Comissão respeita o princípio da boa administração. A este respeito, é possível uma analogia com a abordagem adotada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 26 de fevereiro de 2002, Conselho/Boehringer (C‑23/00 P, EU:C:2002:118, n.os 51 e 52).

27      O Tribunal de Justiça já precisou que a análise preliminar não visa permitir à Comissão proferir um parecer exaustivo e definitivo sobre a conformidade da medida em causa com o Tratado, mas apenas formar um «parecer preliminar», e que este parecer deve incidir principalmente sobre a compatibilidade desta medida com o mercado interno, independentemente da sua eventual qualificação de auxílio de Estado (Acórdão de 11 de dezembro de 1973, Lorenz, 120/73 EU:C:1973:152, n.o 3).

28      O Governo neerlandês contesta os argumentos da Comissão e pede ao Tribunal de Justiça que julgue improcedente a primeira parte do fundamento único.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

29      A presente parte do fundamento único suscita, em substância, a questão de saber se, no acórdão recorrido, o Tribunal Geral declarou erradamente que o artigo 107.o, n.o 3, TFUE e o artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589 impõem à Comissão que qualifique uma medida de auxílio de Estado antes de decidir que essa medida é compatível com o mercado interno.

30      O Tribunal Geral, após ter recordado, nos n.os 51 e 52 do acórdão recorrido, os termos do artigo 107.o, n.o 1, e n.o 3, alínea c), TFUE, expôs, no n.o 53 desse acórdão, que a utilização do termo «auxílio» no artigo 107.o, n.o 3, TFUE implica que a compatibilidade de uma medida nacional com o mercado interno só pode ser apreciada depois de essa medida ter sido qualificada de auxílio de Estado.

31      No n.o 54 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral acrescentou, referindo‑se ao Acórdão de 22 de dezembro de 2008, British Aggregates/Comissão (C‑487/06 P, EU:C:2008:757, n.o 113), que é jurisprudência constante que, quando a Comissão não puder adquirir a convicção, no termo da fase de análise preliminar, de que uma medida estatal não constitui um auxílio na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, ou de que, se for qualificada de auxílio, é compatível com o Tratado, ou quando esta análise não lhe permitir ultrapassar todas as dificuldades levantadas pela apreciação da compatibilidade da medida em causa, esta instituição tem o dever de dar início ao procedimento previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE, sem dispor, nesta matéria, de uma margem de apreciação.

32      No n.o 55 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral concluiu destas considerações que só uma medida abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, ou seja, uma medida qualificada de auxílio de Estado, pode ser considerada pela Comissão compatível com o mercado interno.

33      Nos n.os 56 a 60 do acórdão recorrido, expôs que esta conclusão é corroborada pelas disposições do artigo 4.o do Regulamento 2015/1589 que, lidas à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, especialmente o Acórdão de 24 de maio de 2011, Comissão/Kronoply e Kronotex (C‑83/09 P, EU:C:2011:341, n.os 43 e 44), fixam uma lista exaustiva das decisões que a Comissão pode adotar no termo da análise preliminar, decisões entre as quais não figura uma decisão que declara a medida examinada compatível com o mercado interno sem que a Comissão se tenha previamente pronunciado sobre a qualificação dessa medida de auxílio de Estado.

34      A Comissão alega que a interpretação literal do artigo 107.o, n.o 3, TFUE, efetuada pelo Tribunal Geral, é indevidamente restritiva. Antes de mais, alega que o termo «auxílios» é utilizado no artigo 107.o, n.o 3, TFUE no seu sentido geral, e não em sentido técnico para designar os auxílios de Estado.

35      No entanto, há que observar que, embora o conceito de «auxílios» seja utilizado na aceção habitual em linguagem corrente no artigo 107.o, n.o 1, TFUE, em conjugação com as outras referências que figuram nesta disposição, é utilizado no artigo 107.o, n.o 3, TFUE, em contrapartida, para designar apenas os auxílios de Estado. Com efeito, resulta do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, lido no seu conjunto, que só as medidas que preencham os requisitos decorrentes desse n.o 1, e que, por conseguinte, constituam auxílios de Estado, são, salvo derrogações previstas pelo Tratado, incompatíveis com o mercado interno. Por conseguinte, o artigo 107.o, n.o 3, TFUE, que, em derrogação a esta disposição, enumera as medidas que podem ser consideradas compatíveis com o mercado interno, só pode dizer respeito aos auxílios de Estado.

36      Por conseguinte, a Comissão alega erradamente que a interpretação literal do artigo 107.o, n.o 3, TFUE, efetuada pelo Tribunal Geral, está errada.

37      Por outro lado, embora seja verdade que, como alega a Comissão, o artigo 107.o TFUE não enuncia regras processuais nem diz diretamente respeito às suas competências, não é menos verdade que, como foi salientado no n.o 35 do presente acórdão, resulta desta disposição que a qualificação de uma medida de auxílio de Estado na aceção do n.o 1 da referida disposição constitui um requisito prévio à eventual aplicação da derrogação prevista no n.o 3 do mesmo. A União Europeia encontra‑se assim investida de competência para se pronunciar sobre a compatibilidade com o mercado interno das medidas constitutivas de auxílios de Estado, e não para se pronunciar sobre a compatibilidade de medidas que não são determinadas como constituindo auxílios de Estado. Os artigos 108.o e 109.o TFUE conferem o exercício desta competência à Comissão e ao Conselho da União Europeia, agindo sob a fiscalização do Tribunal de Justiça. Ora, as instituições da União apenas podem agir dentro dos limites da sua competência de atribuição (Acórdão de 14 de junho de 2016, Comissão/McBride e o., C‑361/14 P, EU:C:2016:434, n.o 36).

38      No que respeita à referência feita pela Comissão ao Acórdão de 11 de dezembro de 1973, Lorenz (120/73, EU:C:1973:152, n.o 3), o Tribunal de Justiça não declarou, contrariamente ao que sugere a Comissão, que o parecer elaborado no âmbito da análise preliminar de uma medida pode, se for caso disso, não ter em conta a questão da qualificação da medida examinada de auxílio de Estado. No processo que deu origem a esse acórdão, em que a natureza de auxílio de Estado das medidas notificadas não era, de resto, duvidosa, a questão colocada era a da obrigação da Comissão de concluir a análise preliminar através de uma decisão. O Tribunal de Justiça declarou que, embora seja do interesse de uma boa administração que a Comissão, quando considere, no termo dessa análise, que «o auxílio» está em conformidade com o Tratado CE, lhe comunique esse facto ao Estado‑Membro, não é, no entanto, obrigada a tomar uma decisão na aceção do artigo 189.o CE (atual, após alteração, artigo 288.o TFUE), uma vez que o artigo 93.o CE (atual, após alteração, artigo 108.o TFUE) só impõe esse ato no termo do procedimento contraditório (Acórdão de 11 de dezembro de 1973, Lorenz, 120/73, EU:C:1973:152, n.os 5 e 6). A título incidental, há que observar que esta possibilidade de não adotar uma decisão deixou de existir com o Regulamento n.o 659/1999, cujo artigo 4.o, n.o 1, lido à luz do considerando 7 deste regulamento, determinou que a análise preliminar devia agora, por razões de segurança jurídica, ser concluída por uma decisão.

39      Quanto às críticas da Comissão contra as afirmações que figuram nos n.os 56 a 60 do acórdão recorrido, relativas ao artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589, importa salientar que estas afirmações só são formuladas pelo Tribunal Geral a título exaustivo, em apoio da sua conclusão expressa, com base nas disposições do Tratado FUE, no n.o 55 desse acórdão. Por conseguinte, estas críticas são inoperantes (v., neste sentido, Acórdão de 14 de junho de 2016, Marchiani/Parlamento (C‑566/14 P, EU:C:2016:437, n.os 59 e 60).

40      Em todo o caso, a expressão «na medida em que está abrangida pelo artigo 107.o, n.o 1, [TFUE]», constante do artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento 2015/1589, deve ser interpretada de acordo com o significado, corretamente adotado pelo Tribunal Geral, nos n.os 53 a 55 do acórdão recorrido, do artigo 107.o, n.os 1 e 3, TFUE. A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, a interpretação de uma disposição de direito derivado deve ser feita, na medida possível, no sentido da sua conformidade com as disposições dos Tratados e os princípios gerais do direito da União (Acórdão de 10 de julho de 2008, Bertelsmann e Sony Corporation of America/Impala, C‑413/06 P, EU:C:2008:392, n.o 174 e jurisprudência referida).

41      Quanto às críticas da Comissão às referências do Tribunal Geral aos Acórdãos de 22 de dezembro de 2008, British Aggregates/Comissão (C‑487/06 P, EU:C:2008:757, n.o 113), e de 24 de maio de 2011, Comissão/Kronoply e Kronotex (C‑83/09 P, EU:C:2011:341, n.os 43 e 44), importa salientar que, embora seja verdade que esses acórdãos não diziam especificamente respeito à questão da competência da Comissão para adotar uma decisão de não levantar objeções em relação a uma medida cuja natureza de auxílio de Estado não determinou, não é menos verdade que, nos referidos acórdãos, o Tribunal de Justiça, em coerência com os termos do artigo 107.o TFUE, considerou o caráter prévio da determinação da natureza de auxílio de Estado de uma medida em relação à análise da eventual compatibilidade dessa medida com o mercado interno.

42      Importa acrescentar, por um lado, que o Tribunal de Justiça, noutros acórdãos, declarou que «a Comissão é obrigada a dar início ao procedimento formal de investigação se, na sequência da análise preliminar prevista no artigo 4.o do Regulamento 2015/1589, […] continua a ter dúvidas sobre a própria qualificação [de] “auxílio”, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, [da] medida» (Acórdão de 16 de março de 2021, Comissão/Polónia, C‑562/19 P, EU:C:2021:201, n.o 50 e jurisprudência referida; v., também, neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, Scandlines Danmark e Scandlines Deutschland/Comissão, C‑174/19 P e C‑175/19 P, EU:C:2021:801, n.os 65 a 67 e jurisprudência referida).

43      Por outro lado, considerou que «a questão de saber se uma medida deve ser qualificada [de] auxílio de Estado, prévia à eventual verificação do caráter incompatível de um auxílio na aceção do artigo 107.o TFUE é, no entanto, necessária para o cumprimento da missão confiada ao beneficiário da medida em causa, nos termos do artigo 106.o, n.o 2, TFUE» (v., neste sentido, Acórdão de 24 de novembro de 2020, Viasat Broadcasting UK, C‑445/19, EU:C:2020:952, n.o 35).

44      Quanto ao argumento da Comissão segundo o qual a posição do Tribunal Geral a coloca num impasse, impedindo‑a, em circunstâncias como as do caso em apreço, de adotar uma decisão no termo da análise preliminar, basta salientar, à semelhança do Reino dos Países Baixos, que este impasse resulta unicamente da posição errada segundo a qual a Comissão é competente para concluir pela ausência de dúvidas quanto à compatibilidade de uma medida que não qualificou de auxílio de Estado e, por conseguinte, como corolário, é incompetente para dar início ao procedimento formal de investigação em tal situação. Uma vez afastada esta posição, o impasse desaparece, dando lugar à abertura do procedimento formal de investigação, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento 2015/1589 e com a jurisprudência recordada no n.o 42 do presente acórdão.

45      Quanto à referência da Comissão ao artigo 4.o, n.o 6, do Regulamento 2015/1589, importa salientar que esta disposição tem por objetivo compensar o facto de a Comissão não ter exercido a sua competência decisória nos termos deste artigo 4.o A referida disposição, lida à luz, nomeadamente, do considerando 7 deste regulamento, não pode servir de fundamento para que a Comissão decida que uma medida que não qualificou de auxílio de Estado é compatível com o mercado interno.

46      Quanto à circunstância de o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento 2015/1589 mencionar uma «apreciação preliminar» da medida, importa salientar que esta menção não significa, ao contrário do que a Comissão alega, que esta última possa pôr termo à análise preliminar através de uma decisão de não levantar objeções em relação a uma medida que não qualificou de auxílio de Estado.

47      Quanto à afirmação da Comissão segundo a qual existem situações em que é mais adequado, à luz do princípio da boa administração e do interesse das partes interessadas, determinar se a medida é compatível com o mercado interno do que determinar se se trata de um auxílio, há que salientar que este princípio e as considerações de oportunidade assim invocadas não podem pôr em causa a economia e a coerência do artigo 107.o TFUE, cujo alcance foi recordado nos n.os 35 e 37 do presente acórdão.

48      A este respeito, é irrelevante o facto de a Comissão ter invocado, no âmbito do princípio da boa administração, o Acórdão de 26 de fevereiro de 2002, Conselho/Boehringer (C‑23/00 P, EU:C:2002:118), para justificar a possibilidade de examinar a compatibilidade de uma medida com o mercado interno sem ter determinado que esta constitui um auxílio de Estado. Com efeito, embora resulte, é certo, do n.o 52 desse acórdão que cabe ao juiz da União apreciar se uma boa administração da justiça justifica, nas circunstâncias do caso em apreço, negar provimento ao recurso sem conhecer dos fundamentos de inadmissibilidade invocados pelo recorrido, a problemática suscitada pelo presente processo diz respeito, por sua vez, à própria competência da Comissão para adotar determinadas decisões. Ora, esta competência da Comissão deve ser exercida no respeito dos pressupostos enunciados pelos Tratados, o que, no caso em apreço, e como resulta nomeadamente dos n.os 35 e 37 do presente acórdão, exige que esta instituição se pronuncie sobre a qualificação de auxílio de Estado de uma medida antes de poder, se for caso disso, examinar se esse auxílio pode, não obstante essa qualificação, ser considerado compatível com o mercado interno.

49      Assim, a Comissão não pode eximir‑se de tal obrigação em função de considerações relativas à maior ou menor facilidade com que essa qualificação ou essa análise de compatibilidade podem ser efetuadas num caso concreto.

50      Resulta de todas as considerações precedentes que a primeira parte do fundamento único deve ser julgada improcedente.

 Quanto à segunda parte do fundamento único

51      Tendo em conta a improcedência da primeira parte do fundamento, não é necessário examinar a segunda parte deste fundamento. Com efeito, resulta do exame desta primeira parte e da sua improcedência que, no acórdão recorrido, o Tribunal Geral anulou corretamente a decisão controvertida, julgando procedente o fundamento relativo à incompetência da Comissão. Daqui resulta que a questão de saber se o Tribunal Geral cometeu eventualmente um erro de direito na apreciação do fundamento relativo a uma eventual violação do princípio da segurança jurídica não pode, em todo o caso, afetar a anulação da decisão controvertida assim proferida pelo Tribunal Geral nem, por conseguinte, o resultado do presente recurso.

52      Nestas circunstâncias, há que negar provimento ao presente recurso.

 Quanto às despesas

53      Por força do disposto no artigo 184.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, se o recurso da decisão do Tribunal Geral for julgado improcedente, o Tribunal de Justiça decide sobre as despesas. Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, deste regulamento, aplicável aos processos de recursos de decisões do Tribunal Geral por força do seu artigo 184.o, n.o 1, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

54      Tendo a Comissão sido vencida, há que, em conformidade com os pedidos do Reino dos Países Baixos, condená‑la a suportar as suas próprias despesas e as despesas efetuadas por este Estado‑Membro.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      A Comissão Europeia suportará, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas pelo Reino dos Países Baixos.

Assinaturas


*      Língua do processo: neerlandês.