Language of document : ECLI:EU:C:2011:319

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 19 de Maio de 2011 (1)

Processos apensos C‑128/09, C‑129/09, C‑130/09, C‑131/09, C‑134/09 e C‑135/09

Antoine Boxus e Willy Roua (Processo C‑128/09)

Guido Durlet e o. (Processo C‑129/09)

Paul Fastrez e Henriette Fastrez (Processo C‑130/09)

Philippe Daras e Bernard Croiselet (Processo C‑131/09)

Association des riverains et habitants des communes proches de l’aéroport BSCA (Brussels South Charleroi Airport) ASBL ‑ ARACh e Bernard Page (Processo C‑134/09)

Association des riverains et habitants des communes proches de l’aéroport BSCA (Brussels South Charleroi Airport) ASBL ‑ ARACh, Léon L’Hoir e Nadine Dartois (Processo C‑135/09)

contra

Région wallonne

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Conseil d’État (Bélgica)]

«Avaliação do impacto ambiental – Conceito de ‘acto legislativo nacional específico’ – Acesso à justiça em matéria de ambiente – Extensão do direito ao recurso judicial»





1.        As decisões sobre projectos susceptíveis de ter um impacto no ambiente podem ser adoptadas por um procedimento administrativo, em que a participação pública (directa) é assegurada através de uma avaliação do impacto ambiental (a seguir «AIA») ou por um procedimento legislativo, em que a participação pública (indirecta) é assegurada através do competente órgão legislativo representativo.

2.        Nesse contexto, a presente série de pedidos de decisão prejudicial, apresentada pelo Conseil d’État belga, tem por objecto a interpretação da legislação da União Europeia (a seguir «UE») sobre o acesso à informação, participação do público e acesso à justiça relativamente ao processo de tomada de decisão em matéria de ambiente, em especial a Directiva 85/337/CEE (2) (a seguir «Directiva AIA») na redacção que lhe foi dada pela Directiva 2003/35/CE (3).

3.        A Directiva AIA não se aplica aos projectos que são adoptados em pormenor por um acto legislativo nacional específico. Nos casos em apreço, foi adoptada uma decisão sobre um projecto através de um procedimento administrativo, o qual foi posteriormente ratificado através de decreto legislativo. Portanto, levanta‑se a questão de saber se uma tal tramitação está abrangida pelo âmbito de aplicação da Directiva AIA.

 Direito internacional

4.        Em 25 de Junho de 1998, a Comunidade Europeia, os Estados‑Membros e 19 outros Estados assinaram a convenção sobre acesso à informação, participação do público no processo de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de ambiente (a seguir «Convenção Aarhus»). A referida convenção entrou em vigor em 30 de Outubro de 2001. Foi ratificada pela Bélgica em 21 de Janeiro de 2003 e aprovada em nome da Comunidade Europeia pela Decisão 2005/370/CE do Conselho (4).

5.        O artigo 2.° da Convenção Aarhus define vários termos. Em especial, exclui do âmbito de aplicação do termo «autoridade pública» todos os «organismos ou instituições que actuem na qualidade de órgãos jurisdicionais ou legislativos».

6.        O artigo 6.°, sob a epígrafe «Participação do público nas decisões referentes a actividades específicas», exige, essencialmente, que sejam tomadas medidas para assegurar a informação atempada e efectiva e a participação do público envolvido nas actividades propostas, em todas as fases relevantes de qualquer procedimento de autorização relativo às actividades expressamente enumeradas no anexo I ou a outras actividades que possam ter um impacto significativo no ambiente. As actividades enunciadas no anexo I incluem «Construção de vias para o tráfego ferroviário de longo curso e de aeroportos cuja pista de descolagem e de aterragem tenha um comprimento de, pelo menos, 2100 metros».

7.        O artigo 9.°, sob a epígrafe «Acesso à justiça», tem o seguinte teor:

«1.      Cada parte assegurará, nos termos da respectiva legislação nacional, o direito de interpor um recurso junto dos tribunais, ou de outro órgão independente e imparcial instituído por lei, a qualquer pessoa que considere que o pedido de informações por si apresentado nos termos do disposto no artigo 4.º foi ignorado, indevidamente recusado, no todo ou em parte, objecto de uma resposta incorrecta, ou que não tenha recebido um tratamento consentâneo com o disposto no mesmo artigo.

Caso uma parte preveja tal recurso judicial, deve igualmente garantir à pessoa em causa o acesso a um procedimento rápido, estabelecido por lei, gratuito ou pouco dispendioso, de reconsideração por uma autoridade pública ou de revisão por uma instância independente e imparcial que não seja um tribunal.

As decisões finais ao abrigo do presente número vinculam a autoridade pública que detém a informação. Os fundamentos da recusa do acesso à informação, pelo menos no que se refere ao disposto no presente número, devem ser apresentados por escrito.

2.      Cada parte garantirá, nos termos da respectiva legislação nacional, que os membros do público em causa

a)      Que tenham um interesse suficiente

ou, em alternativa,

b)      Cujo direito tenha sido ofendido, caso a lei de procedimento administrativo da parte o imponha como condição prévia,

tenham acesso a um recurso junto dos tribunais e/ou de outra instância independente instituída por lei, para impugnar a legalidade material e processual de qualquer decisão, acto ou omissão sujeita às disposições previstas no artigo 6.º e, salvo disposição em contrário no direito interno, a outras disposições relevantes da presente convenção.

O interesse suficiente e a ofensa do direito serão determinados em conformidade com os requisitos do direito interno e com o objectivo de conceder ao público envolvido um amplo acesso à justiça nos termos da presente convenção. Para este fim, o interesse das organizações não governamentais que satisfaçam os requisitos mencionados no n.° 5 do artigo 2.° serão considerados suficientes para efeitos da alínea a). Presumir‑se‑á igualmente que tais organizações têm direitos susceptíveis de serem ofendidos para efeitos da alínea b).

O disposto no n.° 2 não exclui a possibilidade de interposição de recurso preliminar junto de uma autoridade administrativa e não prejudica o requisito do recurso judicial que consiste no esgotamento prévio dos recursos administrativos, caso tal requisito seja previsto no direito interno.

3.      Além disso, e sem prejuízo dos processos de recurso referidos nos n.os 1 e 2, cada parte assegurará que os membros do público que satisfaçam os critérios estabelecidos no direito interno tenham acesso aos processos administrativos ou judiciais destinados a impugnar os actos e as omissões de particulares e de autoridades públicas que infrinjam o disposto no respectivo direito interno do domínio do ambiente.

4.      Além disso, e sem prejuízo do disposto no n.° 1, os processos referidos nos n.os 1, 2 e 3 deverão proporcionar soluções eficazes e adequadas, incluindo, se necessário, a reparação injuntiva do direito, ser justos, equitativos, céleres e não exageradamente dispendiosos. As decisões adoptadas em aplicação do presente artigo serão apresentadas ou registadas por escrito. As decisões dos tribunais e, quando possível, de outras instâncias, serão acessíveis ao público.

5.      Com o objectivo de aumentar a eficácia do disposto no presente artigo, cada parte assegurará a colocação à disposição do público das informações relativas ao acesso aos processos de recurso administrativos e judiciais e considerará a possibilidade de estabelecer mecanismos de assistência adequados para eliminar ou reduzir os entraves financeiros e outros ao acesso à justiça.»

 Direito da UE

8.        Antes da Decisão 2005/370, foram adoptadas várias medidas legislativas para incorporar as disposições da Convenção Aarhus no então denominado direito comunitário, incluindo as alterações introduzidas na Directiva AIA pela Directiva 2003/35.

 A Directiva AIA

9.        A Directiva AIA destina‑se a harmonizar a avaliação dos potenciais efeitos da realização de determinados projectos no ambiente. O sexto considerando refere que «a aprovação dos projectos públicos e privados que possam ter um impacto significativo no ambiente só deveria ser concedida após uma avaliação prévia dos efeitos significativos que estes projectos possam ter no ambiente; […] esta avaliação se deve efectuar com base na informação adequada fornecida pelo dono da obra e eventualmente completada pelas autoridades e pelo público a quem o projecto diga respeito».

10.      O artigo 1.°, n.° 2, da Directiva AIA inclui as seguintes definições:

–        «Projecto»: «a realização de obras de construção ou de outras instalações ou obras», ou «outras intervenções no meio natural ou na paisagem, incluindo as intervenções destinadas à exploração dos recursos do solo»;

–        «Dono da obra»: «o autor de um pedido de aprovação de um projecto privado, ou a autoridade pública que toma a iniciativa relativa a um projecto»;

–        «Aprovação»: «a decisão da autoridade ou das autoridades competentes que confere ao dono da obra o direito de realizar o projecto»;

–        «Público»: «uma ou mais pessoas singulares ou colectivas, bem como, de acordo com a legislação ou práticas nacionais, as suas associações, organizações ou agrupamentos»; e

–        «Público em causa»: «o público afectado ou susceptível de ser afectado pelos processos de tomada de decisão no domínio do ambiente a que se refere o n.° 2 do artigo 2.°, ou neles interessado [(5)][…]».

11.      O artigo 1.°, n.° 5, prevê: «A presente directiva não se aplica aos projectos que são adoptados em pormenor por um acto legislativo nacional específico, visto os objectivos da presente directiva, incluindo o de fornecer informações, serem atingidos através do processo legislativo.»

12.      Nos termos do artigo 4.°, n.° 1, os projectos enumeradas no anexo I da Directiva AIA devem ser submetidos a uma avaliação, nos termos dos artigos 5.° a 10.° (6). Esses projectos incluem, no ponto 7, alínea a), do anexo I, «Construção de vias para o tráfego ferroviário de longo curso e de aeroportos (1) cuja pista de descolagem e de aterragem tenha um comprimento de pelo menos, 2100 metros» (7).

13.      Em seguida, os artigos 5.° a 10.° estabelecem várias obrigações concretas relativamente à realização de uma AIA. Em especial, o artigo 5.° especifica as exigências relativas à informação a ser fornecida pelos donos de obra; o artigo 6.° estabelece regras para garantir que as autoridades responsáveis em matéria de ambiente e o público sejam devidamente informados e que lhes seja dada a oportunidade de participar, tudo isto de forma atempada e efectiva; o artigo 7.° exige a informação e consulta de outros Estados‑Membros, sempre que um projecto puder ter um impacto significativo no ambiente do respectivo território; e o artigo 8.° prevê que: «as informações reunidas nos termos dos artigos 5.°, 6.° e 7.° devem ser tomadas em consideração no âmbito do processo de aprovação.»

14.      O artigo 10.°-A, que corresponde, em termos globais, ao artigo 9.°, n.os 2, 4 e 5 da Convenção Aarhus, tem o seguinte teor:

«Os Estados‑Membros devem assegurar que, de acordo com o sistema jurídico nacional relevante, os membros do público em causa que:

a)      Tenham um interesse suficiente ou, em alternativa;

b)      Invoquem a violação de um direito, sempre que a legislação de processo administrativo de um Estado‑Membro assim o exija como requisito prévio,

tenham a possibilidade de interpor recurso perante um tribunal ou outro órgão independente e imparcial criado por lei para impugnar a legalidade substantiva ou processual de qualquer decisão, acto ou omissão abrangido pelas disposições de participação do público estabelecidas na presente directiva.

Os Estados‑Membros devem determinar a fase na qual as decisões, actos ou omissões podem ser impugnados.

Os Estados‑Membros devem determinar o que constitui um interesse suficiente e a violação de um direito, de acordo com o objectivo que consiste em proporcionar ao público em causa um vasto acesso à justiça. Para tal, considera‑se suficiente, para efeitos da alínea a) do presente artigo, o interesse de qualquer organização não governamental que cumpra os requisitos referidos no n.° 2 do artigo 1.° Igualmente se considera, para efeitos da alínea b) do presente artigo, que tais organizações têm direitos susceptíveis de ser violados.

O presente artigo não exclui a possibilidade de um recurso preliminar para uma autoridade administrativa e não afecta o requisito de exaustão dos recursos administrativos prévios aos recursos judiciais, caso esse requisito exista na legislação nacional.

O referido processo deve ser justo, equitativo, atempado e não exageradamente dispendioso.

Para melhorar a eficácia das disposições do presente artigo, os Estados‑Membros devem garantir que sejam postas à disposição do público informações práticas relativas ao acesso às vias de recurso administrativo e judicial.»

15.      Resulta, em especial, do sexto, nono, décimo primeiro e décimo segundo considerandos da Directiva 2003/35, que introduziu o artigo 10.°-A na Directiva AIA, que o objectivo desta e de outras alterações foi o de alinhar a Directiva AIA com a Convenção Aarhus e, em especial, garantir uma participação do público adequada nos processos de tomada de decisão, e um direito de recurso judicial em todas as fases destes processos.

 Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

16.      O Conseil d’État é o supremo tribunal administrativo na Bélgica, sendo competente para decidir sobre a validade dos actos administrativos mas não sobre a validade dos actos legislativos. Na origem das questões submetidas pelo referido órgão jurisdicional estão seis recursos que impugnam um conjunto de licenças administrativas de construção, concedidas no período compreendido entre Setembro de 2003 e Setembro de 2006, e relativas a projectos centrados no desenvolvimento de aeroportos na Bélgica.

17.      Na concessão das licenças, as autoridades administrativas competentes seguiram um conjunto de trâmites processuais. Esses trâmites incluíam, em termos globais: i) um pedido inicial apresentado por um director de projecto; ii) um período de avaliação; iii) um período de consulta conduzido pelo município; iv) a emissão de vários pareceres; e v) a concessão da licença.

18.      Em todos os processos, os recorrentes são residentes ou associações locais que interpuseram os seus recursos entre Janeiro de 2004 e Abril de 2006.

19.      Em 17 de Julho de 2008, o Parlamento da Região da Valónia (a seguir «Parlamento Valão») adoptou o Decreto valão, de 17 de Julho de 2008, relativo a algumas licenças em relação às quais existem razões imperiosas de interesse geral (Décret wallon relatif à quelques permis pour lesquels il existe des motifs impérieux d’intérêt general, a seguir «Decreto de 17 de Julho de 2008»).

20.      O Decreto de 17 de Julho de 2008 contém três conjuntos de disposições. Em primeiro lugar, o artigo 1.° enumera um conjunto de obras relativas aos aeroportos de Liège‑Bierset e de Charleroi Bruxelas Sul e a algumas outras ligações de transporte, em relação aos quais foi demonstrada a existência de «razões imperiosas de interesse público». A seguir, os artigos 2.° a 4.° estabelecem os procedimentos, ao abrigo dos quais uma licença deverá ser concedida pelo Governo valão, em conformidade com as normas de urbanismo aplicáveis, e ratificada pelo Parlamento Valão, em relação aos projectos abrangidos pela referida lista. Por último, os artigos 5.° a 17.°, dos quais são relevantes para efeitos do presente processo os artigos 6.°, 7.°, 9.° e 14.°, ratificam várias licenças que já tinham sido concedidas.

21.      O artigo 6.° do Decreto de 17 de Julho de 2008 dispõe o seguinte:

«É ratificada a licença seguinte, relativamente à qual foi demonstrada a existência de razões imperiosas de interesse geral:

–        no que respeita aos actos e obras de construção de infra‑estruturas e aerogares dos aeroportos regionais, o despacho ministerial, de 13 de Setembro de 2006, que concede uma licença de construção […] para a ampliação da pista do aeroporto de Liège‑Bierset.» (8)

22.      A mesma formulação é utilizada, mutatis mutandis, (designadamente) nos seguintes artigos:

–        Artigo 7.° (licença de construção relativa ao abobadamento do curso de água Tintia e à alteração do relevo do terreno na parte nordeste da zona aeroportuária de Charleroi (9));

–        Artigo 9.° (licença ambiental relativa à exploração do aeroporto de Charleroi Bruxelas Sul (10)); e

–        Artigo 14.° (licença global para a construção e exploração da terceira e quarta vias da ligação ferroviária entre Bruxelas e Charleroi (11)).

23.      Em sede de recurso no Conseil d’État, a recorrida sustentou que o Decreto de 17 de Julho de 2008, enquanto medida legislativa que substituiu as licenças administrativas e que só podia ser impugnada na Cour constitutionnelle, tinha privado o Conseil d’État da sua competência e os recorrentes do seu interesse na anulação das licenças administrativas. Os recorrentes defenderam que a adopção do decreto não era compatível com a Convenção Aarhus nem com a Directiva AIA, pelo que devia ser ignorada.

24.      Entretanto, foram interpostos outros recursos na Cour constitutionnelle (em alguns processos, por recorrentes do processo pendente no Conseil d’État) que impugnaram a validade do próprio Decreto de 17 de Julho de 2008.

25.      Foi nestas circunstâncias que o Conseil d’État decidiu suspender a instância e submeter à Cour constitutionnelle e ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais.

26.      Com as questões submetidas à Cour constitutionnelle, o Conseil d’État pretendia, em síntese, determinar se o Parlamento Valão podia a) ratificar as licenças administrativas sem examinar os pedidos quanto ao seu conteúdo e o procedimento quanto à sua regularidade e, b) fazendo‑o, impedir o recurso judicial pleno dessas licenças para o Conseil d’État, apesar de esse recurso ter sido interposto antes da adopção do Decreto de 17 de Julho de 2008.

27.      As questões submetidas ao Tribunal de Justiça têm o seguinte teor:

«A.      O artigo 1.°, n.° 5, da [Directiva AIA] pode ser interpretado no sentido de que exclui do seu âmbito de aplicação uma legislação – como o [Decreto de 17 de Julho de 2008] – que se limita a referir que ‘existem razões imperiosas de interesse geral’, para efeitos de concessão de licenças de construção, de licenças ambientais e de licenças únicas relativas aos actos e obras por ela enumerados e que ‘ratifica’ as licenças relativamente às quais é afirmado que ‘existem razões imperiosas de interesse geral’?

B.1      Os artigos 1.°, 5.°, 6.°, 7.°, 8.° e 10.°-A da Directiva AIA, conforme alterada, opõem‑se a um regime jurídico nos termos do qual o direito de realizar um projecto sujeito a avaliação de impacto é conferido por um acto legislativo contra o qual não existe uma via de recurso perante um órgão jurisdicional ou outro órgão independente e imparcial instituído por lei, que permita impugnar, quanto ao mérito e ao procedimento seguido, a decisão que confere o direito de realizar o projecto?

B.2      O artigo 9.° da Convenção de Aarhus deve ser interpretado no sentido de que obriga os Estados‑Membros a prever a possibilidade de interpor recurso perante um órgão jurisdicional ou outro órgão independente e imparcial instituído por lei, para impugnar, relativamente a qualquer questão de mérito ou de processo decorrente do regime material ou do regime processual de autorização de projectos sujeitos a avaliação de impacto, a legalidade de decisões, actos ou omissões abrangidos pelo âmbito de aplicação das disposições do artigo 6.°?

B.3      À luz da Convenção de Aarhus, o artigo 10.°-A da Directiva 85/337/CEE, com a redacção dada pela Directiva 2003/35/CE, deve ser interpretado no sentido de que obriga os Estados‑Membros a prever a possibilidade de interpor recurso perante um órgão jurisdicional ou outro órgão independente e imparcial instituído por lei, para impugnar a legalidade de decisões, actos ou omissões relativamente a qualquer questão de mérito ou de processo decorrente do regime material ou do regime processual de autorização de projectos sujeitos a avaliação de impacto?» (12).

28.      Por último, o Conseil d’État decidiu que, após a recepção das respostas às questões submetidas à Cour constitutionnelle e ao Tribunal de Justiça, seria elaborado um relatório suplementar com base no qual as partes seriam convidadas a apresentar as respectivas alegações finais.

29.      A Cour constitutionnelle, por sua vez, apreciou conjuntamente os recursos que lhe foram directamente interpostos e as questões que lhe foram submetidas pelo Conseil d’État, e submeteu ela própria ao Tribunal de Justiça várias questões sobre a interpretação da Convenção Aarhus e da Directiva AIA (13). Visto esse pedido de decisão prejudicial ter sido recebido um pouco mais de um ano depois dos pedidos de decisão prejudicial objecto do presente processo, e uma vez que o objecto das questões é parcialmente o mesmo, o Tribunal de Justiça decidiu analisar primeiro os presentes pedidos de decisão prejudicial.

30.      No presente processo, apresentaram observações escritas os recorrentes nos processos C‑128/09 a C‑131/09, os Governos belga, grego e italiano e a Comissão. Foram ouvidas as alegações dos recorrentes nos processos C‑128/09 e C‑130/09, de um dos recorrentes nos processos C‑134/09 e C‑135/09, dos Governos belga e grego e da Comissão partes na audiência de 8 de Junho de 2010.

 Admissibilidade

31.      O Governo belga sustenta que os pedidos de decisão prejudicial são inadmissíveis. Em primeiro lugar, alega que i) os elementos de facto e de direitos descritos nos despachos de reenvio são insuficientes para permitir às partes que o desejem apresentem observações e que ii) o Conseil d’État não explicou por que motivo é necessária uma interpretação do direito da UE. Em segundo lugar, considera, com base nos critérios CILFIT (14), que i) as disposições em causa são claras e não necessitam de interpretação; ii) que as questões são irrelevantes e iii) que a jurisprudência existente do Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre as questões submetidas.

 Primeiro argumento quanto à admissibilidade

 Suficiência dos elementos de facto e de direito nos despachos de reenvio

32.      O Governo belga alega que os despachos de reenvio não proporcionam às partes interessadas toda a informação necessária para poderem apresentar observações úteis. Não apresentam, na íntegra, o regime introduzido pelo Decreto de 17 de Julho de 2008, cuja compreensão é necessária para responder à primeira questão; em especial, não especificam que a Directiva AIA é aplicável aos procedimentos administrativos que precedem a ratificação legislativa. Também não explicam o papel e a competência da Cour constitutionnelle, em relação ao papel e competência do Conseil d’État, cuja compreensão é necessária para responder às restantes questões. Na verdade, a forma como as questões estão formuladas induz efectivamente em erro em relação a estes dois aspectos. Por último, em vez de dar a sua própria opinião sobre estas questões, o Conseil d’État limita‑se a indicar as posições tomadas pelos recorrentes nos processos que lhe foram submetidos.

33.      Constitui jurisprudência assente que os dados fornecidos nas decisões de reenvio não servem apenas para permitir ao Tribunal de Justiça dar respostas úteis mas também para dar aos governos dos Estados‑Membros, bem como às demais partes interessadas, a possibilidade de apresentarem observações nos termos do artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça (15). Constitui também jurisprudência assente que não compete ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre a interpretação de disposições nacionais nem julgar se a interpretação delas feita pelo órgão jurisdicional de reenvio é correcta; pelo contrário, incumbe ao Tribunal de Justiça ter em conta o contexto factual e regulamentar, tal como definido pela decisão de reenvio (16). Há que ter em conta estas considerações na apreciação dos argumentos do Governo belga.

34.      No que diz respeito ao primeiro desses argumentos, parece‑me resultar claramente dos despachos de reenvio que as dúvidas do Conseil d’État relativamente ao Decreto de 17 de Julho de 2008 se circunscrevem à ratificação das licenças administrativas existentes, carecendo de especial relevância os demais aspectos do decreto. Também não era necessário especificar que a Directiva AIA se aplicava aos procedimentos administrativos, visto que tal decorre dos termos da própria directiva.

35.      Quanto ao segundo argumento, é verdade que a compreensão dos respectivos papéis e competências do Conseil d’État e da Cour constitutionnelle é útil para apreciar as questões processuais nacionais na origem dos despachos de reenvio. Parece‑me, porém, que não é necessária uma compreensão muito aprofundada ou pormenorizada e que o essencial – nomeadamente, o risco de que o Conseil d’État possa ser privado da sua competência relativamente a processos já pendentes nesse órgão jurisdicional por uma iniciativa do Parlamento Valão, possivelmente de mera natureza formal, resulta claramente dos despachos de reenvio (17).

36.      Também não me parece que a forma como as questões estão formuladas possa levar o Tribunal de Justiça ou um Estado‑Membro a concentrar‑se nos problemas errados, embora o Governo belga tenha razão quando afirma que as questões sugerem um estado do direito belga de que este discorda. A questão central de direito da UE é claramente a do efeito sobre o direito de acesso à justiça garantido pela Convenção Aarhus e pela Directiva AIA, da ratificação através de acto legislativo de licenças anteriormente concedidas na sequência de um procedimento administrativo. Dois Estados‑Membros apresentaram observações a esse respeito, sem que se tivessem deparado com dificuldades manifestas apreciáveis devido a qualquer falta de informação nos despachos de reenvio ou à redacção das questões (18).

37.      Por último, entendo que o facto de o Conseil d’État apresentar os argumentos dos recorrentes sobre várias questões, em vez da sua própria opinião, não vicia de forma alguma os despachos de reenvio. Esses argumentos indicam, de forma adequada, por que motivo poderá ser necessário obter uma decisão sobre o direito da UE antes de o Conseil d’État formular uma opinião a esse respeito.

 Suficiência da explicação da necessidade de uma interpretação do direito da UE

38.      Quando alega que o Conseil d’État não explicou de forma suficiente a necessidade de uma interpretação do direito da UE, o Governo belga baseia‑se, essencialmente, na própria jurisprudência desse órgão jurisdicional, referida nos despachos de reenvio. No seu acórdão n.° 185.645 de 11 de Agosto de 2008 (Deneye), o Conseil d’État decidiu que a adopção do Decreto de 17 de Julho de 2008 o privou de competência para decidir sobre a validade das medidas aí ratificadas; contudo, se o decreto ou o artigo pertinente deste decreto fossem anulados pela Cour constitutionnelle, a referida decisão de incompetência poderia ser revogada a pedido das partes. O Governo belga sustenta que o Conseil d’État devia ter seguido o mesmo procedimento no caso em apreço, e esperado pelo resultado dos processos pendentes na Cour constitutionnelle, sobretudo porque o próprio Conseil d’État submeteu questões a esse órgão jurisdicional sobre o problema da competência suscitado. Consequentemente, nesta fase, as questões submetidas são hipotéticas. Entende que o Conseil d’État não explicou por que motivo, nas referidas circunstâncias, é necessária uma decisão sobre a interpretação do direito da UE antes de a Cour constitutionnelle se pronunciar.

39.      Admito que a situação processual nos órgãos jurisdicionais nacionais, acima descrita (19), é complexa, e que teria sido desejável uma abordagem mais estruturada e, se calhar, mais conforme às regras processuais nacionais. Também reconheço que poderia haver um ganho em termos de eficácia processual global se, no Tribunal de Justiça, o pedido de decisão prejudicial submetido pela Cour constitutionnelle tivesse sido apenso ou apreciado conjuntamente com os processos aqui apensos. Todavia, que nada disto parece afectar, de alguma forma a admissibilidade das questões submetidas no presente processo.

40.      É verdade que, no contexto da cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, um órgão jurisdicional que submete uma questão prejudicial deve expor as razões precisas que o levam a questionar‑se sobre a interpretação do direito comunitário e a considerar necessário submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça (20). Não tem, porém, na minha opinião, de fazer mais do que expor essas razões de uma forma compreensível. Nem tem de antecipar eventuais argumentos das partes ou dos Estados‑Membros quanto à correcção da sua abordagem à luz do direito processual nacional.

41.      Desde que existam motivos evidentes para um pedido de apreciação prejudicial, não compete a este Tribunal de Justiça analisar o que subjaz a essas razões e aventurar‑se no campo do direito nacional. Como o Tribunal de Justiça recordou reiteradamente, compete exclusivamente aos órgãos jurisdicionais nacionais chamados a conhecer do litígio, e que devem assumir a responsabilidade pela decisão judicial a proferir, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submetam ao Tribunal de Justiça (21). Além disso, tendo em conta a repartição de competências entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, não incumbe ao Tribunal de Justiça verificar se a decisão pela qual foi chamado a pronunciar‑se foi adoptada em conformidade com as regras de organização judicial e processuais de direito nacional (22).

42.      No caso em apreço, os motivos para pedir uma decisão prejudicial são extremamente claros. O Conseil d’État foi chamado a pronunciar‑se sobre vários recursos de impugnação de licenças administrativas, para cuja apreciação é competente. Antes de poder decidir, precisa de saber se, nos termos das disposições pertinentes da Convenção Aarhus e da Directiva AIA, o facto de essas licenças terem sido ratificadas por uma medida legislativa o priva dessa competência. Poderá haver dúvidas quanto à validade da anterior jurisprudência do Conseil d’État, na qual este renunciou à sua competência nas referidas circunstâncias. Esta questão, parece‑me, está longe de ser hipotética. O Conseil d’État pode, portanto, e, enquanto órgão jurisdicional de cujas decisões cabe recurso judicial ao abrigo do direito nacional, está possivelmente obrigado a pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie a título prejudicial, nos termos do artigo 267.° TFUE.

 O segundo argumento quanto à admissibilidade

 A relevância das questões submetidas

43.      O Governo belga alega que as questões não são relevantes para o resultado do processo pendente no Conseil d’État.

44.      Quanto às questões A e B.1, sustenta que os despachos de reenvio pressupõem – incorrectamente – que o decreto foi adoptado pelo Parlamento Valão num processo de fase única, sem qualquer avaliação de impacto ambiental ou outras garantias. Uma decisão com base nesse pressuposto seria irrelevante para a situação real, que é a de um processo de duas fases ao qual se aplica a Directiva AIA.

45.      Parece‑me que a referida objecção não tem qualquer fundamento. Resulta claramente dos despachos de reenvio que se trata de um procedimento de duas fases, assim como a necessidade de orientação quanto à questão de saber se e, em caso afirmativo, em que medida o direito da UE pode permitir que a impugnação judicial de uma licença administrativa se torne ineficaz quando essa licença é subsequentemente ratificada por acto legislativo.

46.      O Governo belga sustenta que as questões B.2 e B.3 não são pertinentes porque não têm por objecto o Decreto de 17 de Julho de 2008, mas as normas constitucionais e jurisdicionais que repartem a competência entre o Conseil d’État e a Cour constitutionnelle. Além disso, no que se refere à questão B.3, o artigo 9.° da Convenção Aarhus, que é mais completo do que o artigo 10.°-A da Directiva AIA, é aplicável na Bélgica, e a interpretação do Tribunal de Justiça não pode tornar a segunda mais extensa do que a primeira.

47.      As referidas objecções parecem‑me, elas sim, irrelevantes. O Conseil d’État pede claramente uma decisão sobre as implicações do artigo 9.° da Convenção Aarhus e do artigo 10.°-A da Directiva AIA para a situação processual dos recursos que lhe foram submetidos. Uma tal decisão permitir‑lhe‑á tirar ilações sobre o modo como deverá proceder em relação a esses recursos. As questões são, por conseguinte, relevantes para o resultado do processo pendente no Conseil d’État.

 Acto claro

48.      O Governo belga sustenta que os textos da Convenção Aarhus e da Directiva AIA são claros e que não é necessário que o Tribunal de Justiça interprete as disposições controvertidas. A doutrina do «acto claro» devia, consequentemente, ter impedido o Conseil d’État de efectuar o pedido de decisão prejudicial.

49.      Parece‑me que o presente processo demonstrou amplamente que as disposições não são totalmente claras na sua aplicação às circunstâncias do processo principal. Porém, independentemente da questão de saber se estas são ou não claras, a referência à doutrina do acte clair é irrelevante. Um tribunal nacional pode invocar esse princípio para justificar a sua recusa de submeter um pedido prejudicial, com o fundamento de que a resposta a uma determinada questão já é suficientemente clara (23). Esse princípio não pode ser utilizado pelo Tribunal de Justiça como fundamento para recusar uma resposta às questões que foram submetidas. Se um tribunal de última instância entender que disposições pertinentes do direito da UE não são claras, não só lhe é permitido como é obrigado a submeter um pedido prejudicial. Nesse caso, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (24). Contudo, quando a resposta à questão prejudicial não suscite nenhuma dúvida razoável, o Tribunal de Justiça pode proferir um despacho fundamentado, ao abrigo do artigo 104.°, n.° 3, segundo período, do Regulamento de Processo. No presente processo, pelo contrário, o Tribunal de Justiça decidiu que as questões submetidas mereciam a atenção da Grande Secção.

 Jurisprudência existente

50.      O Governo belga considera que as respostas às questões A e B.1 podem ser inferidas do acórdão WWF e o. (25).

51.      Todavia, tal como a referência à doutrina do acto claro, a referida alegação é irrelevante para a admissibilidade dos pedidos de decisão prejudicial. Embora um órgão jurisdicional nacional, mesmo quando das suas decisões não caiba recurso, não possa ser obrigado a submeter uma questão prejudicial cuja resposta possa ser inferida da jurisprudência existente, também não está impedido de o fazer. Nessa hipótese, o Tribunal de Justiça pode proferir um despacho fundamentado, ao abrigo do artigo 104.°, n.° 3, segundo período, do Regulamento de Processo. Como salientei, o Tribunal de Justiça decidiu, pelo contrário, que as questões submetidas no presente processo mereciam a atenção da Grande Secção. Além disso, como se verá a seguir no exame que farei das próprias questões, considero que as respostas não podem ser inferidas do acórdão WWF e o.

 Conclusão sobre a admissibilidade

52.      Entendo, por conseguinte, que não há obstáculos à admissibilidade das questões submetidas pelo Conseil d’État.

 Quanto ao mérito

 Questão A

53.      Nos termos do artigo 1.°, n.° 5, a Directiva AIA não se aplica aos «projectos que são adoptados em pormenor por um acto legislativo nacional específico, visto os objectivos da presente directiva, incluindo o de fornecer informações, serem atingidos através do processo legislativo». O Conseil d’État pede a clarificação do significado da referida disposição numa situação em que a licença foi primeiro concedida por uma autoridade administrativa, e depois ratificada por um decreto do órgão legislativo competente que refere (apenas) que «existem razões imperiosas de interesse geral».

54.      Esta questão contém implicitamente duas subquestões. Em primeiro lugar, se um decreto é adoptado pelo legislador, como uma medida legislativa, isso significa, por si só, que é automaticamente abrangido pela exclusão prevista no artigo 1.°, n.° 5? Em segundo lugar, e inversamente, um órgão jurisdicional nacional está limitado ao exame dos termos utilizados nessa medida para determinar se a exclusão prevista no artigo 1.°, n.° 5, se aplica, ou pode apreciar o que subjaz ao texto, e examinar como foi conduzido o próprio processo legislativo?

 A lógica subjacente ao artigo 1.°, n.° 5

55.      A Directiva AIA, conforme alterada para ter em conta a Convenção Aarhus, procura melhorar os processos de decisão dos órgãos administrativos (26). O elemento da participação pública que introduz no processo é importante para atingir este objectivo. Por outras palavras, a Directiva AIA promove a participação pública directa nos processos administrativos de tomada de decisão em matéria ambiental num Estado‑Membro.

56.      No entanto, quando uma decisão é adoptada na sequência de um processo legislativo, essa participação pública já existe. O próprio legislador é composto por representantes do público democraticamente eleitos. Quando o processo de decisão se realiza no seio de um órgão deste tipo, beneficia de uma participação pública indirecta, mas, não obstante, representativa.

57.      Tendo isto presente, passo agora a examinar mais de perto o artigo 1.°, n.° 5.

 A redacção do artigo 1.°, n.° 5, da Directiva AIA

58.      O artigo 1.°, n.° 5, enuncia: «A presente directiva não se aplica aos projectos que são adoptados em pormenor por um acto legislativo nacional específico, visto os objectivos da presente directiva, incluindo o de fornecer informações, serem atingidos através do processo legislativo.»

59.      O cerne da questão está na ambiguidade do nexo entre a exclusão de projectos que são adoptados em pormenor por um acto legislativo nacional específico e a realização dos objectivos da directiva através do processo legislativo. Essa ambiguidade permite duas possíveis interpretações.

60.      Segundo uma primeira interpretação, existe a presunção de que o processo legislativo garante automaticamente a realização dos objectivos da Directiva AIA. Assim, sempre que um projecto seja adoptado em pormenor por um acto legislativo nacional específico, um órgão jurisdicional nacional deve considerar que esse acto cumpre automaticamente esses objectivos.

61.      Segundo a outra interpretação, a disposição deve ser lida no sentido de exprimir uma condição prévia: a Directiva AIA não se aplica aos projectos que são adoptados em pormenor por um acto legislativo nacional específico, desde que os objectivos da directiva sejam atingidos através do processo legislativo. Esta interpretação implica que o legislador é obrigado a atingir os objectivos da Directiva AIA (incluindo o de fornecer informações) durante o respectivo processo de decisão, antes de o projecto poder ser excluído da aplicação da directiva pelo artigo 1.°, n.° 5. Tal suscita a questão adicional de saber o que deve o legislador fazer para assegurar o cumprimento desses objectivos.

62.      Nenhuma das leituras está isenta de inconvenientes. A primeira pode alargar indevidamente o alcance da exclusão dos actos legislativos de uma directiva que tem por objectivo melhorar o processo de decisão em matéria ambiental. Isso poderia ter como consequência a aplicação da exclusão mesmo nos casos de projectos administrativos revestidos de uma ligeiríssima forma legislativa. A segunda interpretação pode implicar um certo grau de activismo judicial susceptível de criar confusão quanto às obrigações exactas do legislador em matéria ambiental. Na sua forma mais extrema, pode esvaziar de sentido a própria exclusão ao exigir que o legislador cumpra os mesmos requisitos processuais que uma autoridade administrativa.

 Os acórdãos WWF e o. e Linster

63.      O Tribunal de Justiça já foi chamado a apreciar o significado do artigo 1.°, n.° 5, da Directiva AIA em duas ocasiões.

64.      No acórdão WWF e o. (27), o Tribunal de Justiça referiu que o artigo 1.°, n.° 5, «que os projectos abrangidos pela directiva podem ser dispensados do processo de avaliação desde que estejam preenchidas duas condições. A primeira exige que o projecto seja adoptado em pormenor por um acto legislativo específico; de acordo com a segunda, os objectivos da directiva, incluindo o de fornecer informações, devem ser atingidos através do processo legislativo» (28).

65.      O Tribunal de Justiça precisou, em seguida, relativamente ao primeiro critério, que «se é um acto legislativo que, em vez de uma decisão das autoridades competentes, confere ao dono da obra o direito de realizar o projecto, esse acto deve ser específico e apresentar as mesmas características que a aprovação a que se refere o artigo 1.°, n.° 2, da directiva» (29). Para tal, «um acto legislativo deve adoptar o projecto em pormenor, ou seja, de forma suficientemente precisa e definitiva, tendo por isso que incluir, à semelhança de uma aprovação, após a sua apreciação pelo legislador, todos os elementos do projecto que importam na perspectiva da avaliação dos efeitos no ambiente» (30).

66.      O Tribunal de Justiça especificou o conteúdo da segunda condição (de «os objectivos da presente directiva, incluindo o de fornecer informações, serem atingidos através do processo legislativo») de forma mais indirecta, declarando: «É apenas no respeito [das exigências especificadas para a primeira condição] que os objectivos tidos em vista pela segunda condição, podem ser alcançados através do processo legislativo» (portanto, até um certo ponto, conjugando as duas condições). Contudo, indicou de forma muito clara o que não é aceitável: «Se o acto legislativo específico que adopta e, portanto, aprova um projecto específico, não inclui os elementos do referido projecto que podem importar na perspectiva da avaliação dos seus efeitos no ambiente, os objectivos da directiva ficariam comprometidos, pois podia aprovar‑se um projecto sem prévia avaliação dos seus efeitos no ambiente, embora pudesse ter um impacto significativo sobre este último» (31).

67.      No acórdão Linster (32), o Tribunal de Justiça confirmou, em primeiro lugar que «os conceitos de acto legislativo nacional específico e de projecto, referidos no n.° 5 do artigo 1.° da directiva, devem ser objecto de interpretação autónoma» (33); e que «cabe interpretar o n.° 5 do artigo 1.° da directiva tendo em conta os respectivos objectivos e atendendo ao facto de tal disposição dever ser interpretada de forma estrita, visto limitar o âmbito de aplicação da directiva» (34). O Tribunal de Justiça insistiu, em seguida, na justificação da excepção do artigo 1.°, n.° 5: «quando os objectivos da directiva forem atingidos através do processo legislativo, incluindo o de fornecer informações, a directiva não se aplica ao projecto em causa» (35) (ou seja, na minha maneira de ver, porque não há necessidade de aplicar a directiva nessas circunstâncias).

68.      Em seguida, o Tribunal de Justiça explicou (de forma bastante mais detalhada do que no acórdão WWF e o.) a relação entre o objectivo fundamental da Directiva AIA e o nível de informação que o legislador deve possuir:

«A directiva tem por objecto essencial, tal como resulta do n.° 1 do respectivo artigo 2.°, que, antes da concessão da aprovação, os projectos que possam ter um impacto significativo no ambiente, nomeadamente pela sua natureza, dimensões ou localização, sejam submetidos à avaliação dos seus efeitos.

De acordo com o sexto considerando da directiva, a ‘avaliação deve‑se efectuar com base na informação adequada fornecida pelo dono da obra e eventualmente completada pelas autoridades e pelo público a quem o projecto diga respeito’.

Assim, os objectivos da directiva só podem considerar‑se atingidos através do processo legislativo quando o legislador disponha de informações equivalentes às que seriam submetidas à autoridade competente no âmbito de um processo ordinário de autorização de projecto» (36).

69.      O Tribunal de Justiça completou a sua análise recordando que o artigo 1.°, n.° 5, da Directiva AIA exige que o acto legislativo em questão seja «um acto específico, de adopção do projecto em pormenor. Tal acto deve ter por efeito atestar, pela sua própria redacção, que os objectivos da directiva foram atingidos no que se refere ao dito projecto». Além disso, «não se [pode] considerar que uma lei aprova um projecto em pormenor, na acepção do artigo 1.°, n.° 5, da directiva, quando, por um lado, não inclui os elementos necessários à avaliação dos efeitos desse projecto no ambiente», cabendo ao órgão jurisdicional nacional determinar as circunstâncias no caso concreto (37).

70.      Detenhamo‑nos um pouco para fazer o balanço.

71.      Nos acórdãos WWF e o. e Linster, o Tribunal de Justiça estabeleceu duas condições, as quais devem ser ambas preenchidas antes de um acto legislativo ser abrangido pela exclusão do artigo 1.°, n.° 5, e, portanto, extravasar o âmbito de aplicação da Directiva AIA. Em primeiro lugar, os pormenores do projecto devem ser descritos num acto legislativo específico que contenha, de uma forma suficientemente precisa e definitiva, todos os elementos do projecto relevantes para a avaliação do impacto ambiental. Em segundo lugar, para satisfazer os objectivos de protecção ambiental da Directiva AIA, o legislador deve ter à sua disposição – e deve apreciar durante o processo legislativo – informação equivalente à que seria apresentada à autoridade competente num processo comum de licenciamento de um projecto, para que possa realizar a necessária avaliação do impacto ambiental. Referir‑me‑ei a estas duas condições conjuntamente como «critério duplo da eficácia legislativa».

72.      O referido critério duplo parece claramente favorecer a interpretação do artigo 1.°, n.° 5, no sentido de conter uma condição prévia, de que os objectivos da Directiva AIA devem ser atingidos através do processo legislativo, em lugar de uma presunção de que tais objectivos são assim atingidos. O Tribunal de Justiça já indicou que pretende saber se a participação pública que a Directiva AIA visa atingir foi efectivamente atingida através do processo legislativo.

 Aplicação da jurisprudência existente ao presente processo

73.      Os acórdãos WWF e o. e Linster fornecem um quadro para a avaliação que deverá ser realizada pelo órgãos jurisdicionais nacionais. Em princípio, além disso, esse quadro pode ser aplicado por analogia aos presentes processos (adopção ex post pelo legislador de projectos administrativos, em vez do licenciamento ex ante de projectos), não obstante as alterações introduzidas na Directiva AIA pela Directiva 2003/35 (que reforçaram as disposições relativas à participação pública, em especial adicionando as exigências de fiscalização jurisdicional no artigo 10.°-A, mas que não alteraram os objectivos da Directiva AIA).

74.      Tomando à letra as partes dispositivas dos acórdãos WWF e o. e Linster, a resposta à primeira questão submetida pelo Conseil d’État é relativamente simples. O Decreto de 17 de Julho de 2008 não «adopta[…] o projecto em pormenor, ou seja, de forma suficientemente precisa e definitiva, tendo por isso que incluir, à semelhança de uma aprovação, após a sua apreciação pelo legislador, todos os elementos do projecto que importam na perspectiva da avaliação dos efeitos no ambiente» (38). Não «inclui os elementos necessários à avaliação dos efeitos desse projecto no ambiente», nem tem «por efeito atestar, pela sua própria redacção, que os objectivos da directiva foram atingidos no que se refere ao dito projecto» (39). Pelo contrário, as disposições pertinentes do Decreto de 17 de Julho de 2008 indicam apenas que ratificam a licença administrativa já concedida relativamente a uma série de projectos relativamente aos quais «foi demonstrada a existência de razões imperiosas de interesse geral».

75.      Até aqui, tudo bem – mas a aplicação do artigo 1.°, n.° 5, da Directiva AIA não pode, a meu ver, reduzir‑se à simples questão de saber se o autor da medida legislativa em causa foi suficientemente hábil e bem informado para garantir a conformidade da redacção da medida precisamente com esses dispositivos. Se isso bastasse, um projecto que não tivesse sido adequadamente discutido pelo legislador poderia, não obstante, ser redigido em termos adequados que lhe permitissem passar o controlo. Inversamente, um projecto efectivamente discutido a fundo poderia não cumprir o critério da exclusão da Directiva AIA, nos termos do artigo 1.°, n.° 5, só porque a tradição da redacção das leis nesse Estado‑Membro não favorecia a sobrecarga da medida legislativa resultante com uma grande quantidade de pormenores.

76.      Além disso, se bem entendo, a discussão de um projecto num processo legislativo é frequentemente (se não sempre) precedida de um maior ou menor grau de actividade administrativa que prepara o terreno para o debate que se segue. Se eu tiver razão, parece provável que o processo apresentado ao legislador para decisão poderá não conter necessariamente a mesma informação precisa, com o mesmo pormenor, que aquela que teria sido examinada durante um processo puramente administrativo. De igual modo, poderá – ou não – conter «informação equivalente à que seria apresentada à autoridade competente num processo ordinário [ou seja, administrativo] de licenciamento de um projecto» (o segundo elemento do critério duplo).

77.      Os presentes pedidos de decisão prejudicial oferecem à Grande Secção a oportunidade de reexaminar e clarificar a parte dispositiva dos acórdãos WWF e o. e Linster.

78.      Tomo como ponto de partida a observação útil formulada pelo advogado‑geral P. Léger no processo Linster: «Ao reservar o caso em que um projecto da obra é adoptado para um acto legislativo, o legislador comunitário não pretendeu enunciar o critério formal permitindo aos Estados‑Membros isentar esse projecto da avaliação dos efeitos no ambiente, da informação e da consulta das populações em causa, unicamente pela natureza do acto em causa e da qualidade da autoridade que o adoptou. Apenas ficam excluídos do âmbito de aplicação da directiva os actos legislativos que oferecem garantias idênticas às que seriam exigidas no âmbito da directiva» (40).

79.      Concordo. A Directiva AIA não visa formalismos. Destina‑se a proporcionar uma AIA eficaz para todos os grandes projectos; e, na sua versão alterada, a garantir uma participação pública adequada no processo de decisão. Quando o processo legislativo funciona normalmente e correctamente, prevê – através do funcionamento da democracia representativa – as mesmas garantias exigidas ao abrigo da Directiva AIA.

80.      É evidente que o processo de controlo do legislador pode diferir do estabelecido nos artigos 5.° a 10.° da Directiva AIA. Os órgãos jurisdicionais nacionais não estão obrigados a garantir que o legislador siga exactamente o mesmo processo que teria sido exigido a um órgão administrativo que avaliasse o mesmo projecto. Devem, isso sim, apreciar se o processo legislativo funcionou de forma correcta e adequada.

81.      Para que um órgão jurisdicional nacional o possa fazer de forma eficaz, deve claramente considerar o que está para além da redacção do decreto.

82.      O Tribunal de Justiça já indicou que, quando um acto legislativo deixa ainda aspectos importantes da avaliação do projecto para serem completados após a concessão da aprovação formal, num processo separado (acórdão WWF e o.), ou quando deixa em aberto algum aspecto importante do projecto, como a escolha final do percurso de uma auto‑estrada (acórdão Linster), esse acto legislativo não é abrangido pela exclusão do artigo 1.°, n.° 5. Sugiro que o raciocínio subjacente das duas decisões é o de que, nessas circunstâncias, não se pode razoavelmente afirmar que o legislador apreciou todos os elementos necessários para avaliar o impacto ambiental provável do projecto. Visto que o processo legislativo não funcionou de forma adequada, a medida resultante não satisfaz a lógica subjacente à exclusão. Inversamente, quando o processo legislativo funciona adequadamente, a exclusão dos actos legislativos deve ser aplicada para respeitar as intenções dos autores da Convenção Aarhus e de quem transpôs essa convenção para o direito da UE através da Directiva AIA, conforme alterada.

83.      Se, como sugiro, é necessário adoptar um critério de tipo funcional para evitar o formalismo, dando ao mesmo tempo um sentido real e coerente à cláusula de exclusão prevista no artigo 1.°, n.° 5, a questão que se coloca é a seguinte: como decidir se o processo legislativo funcionou de forma adequada?

84.      Na minha opinião, para avaliar se isso aconteceu num determinado caso, o órgão jurisdicional nacional terá de examinar os seguintes aspectos:

a)      entrada: a informação disponibilizada ao legislador era suficientemente pormenorizada e informativa para permitir ao legislador avaliar o possível impacto ambiental do projecto proposto?

b)      processo: foi respeitado o processo adequado e os tempos de preparação e de discussão foram suficientes para que seja plausível concluir que os representantes eleitos do povo puderam examinar e debater adequadamente o projecto proposto?

c)      saída: a medida legislativa resultante (lida, se apropriado, em conjugação com o material de apoio a que faça referência expressa) enuncia claramente o que está a ser autorizado e as eventuais limitações ou restrições impostas?

85.      Um tal processo legislativo poderia (como nos processos em apreço) implicar que o legislador se apoiasse no trabalho anteriormente realizado por um órgão administrativo.

86.      Nesse caso, o órgão jurisdicional nacional terá de determinar se, no essencial, o projecto já foi aprovado (durante o processo administrativo) antes de chegar ao legislador; ou se foi efectivamente apreciado e aprovado mais tarde, pelo próprio processo legislativo. Mais uma vez, sugiro que o órgão jurisdicional nacional deve procurar a substância, e não a forma, do que aconteceu em cada caso determinado.

87.      Em suma, desde que o legislador tenha o material necessário e exerça a sua função democrática de forma correcta e eficaz, o processo legislativo atingirá os objectivos da Directiva AIA, conforme alterada. Permitir que o processo legislativo beneficie da exclusão do artigo 1.°, n.° 5, e extravase do âmbito de aplicação da Directiva AIA não cria, assim, nenhuma lacuna em termos de protecção.

88.      Inversamente, um processo legislativo que se limita a aprovar formalmente um processo administrativo anterior que já contém, de facto, as decisões relevantes, não oferece as mesmas garantias que as exigidas pela Directiva AIA. Não deve, por conseguinte, beneficiar da exclusão prevista no artigo 1.°, n.° 5.

89.      A referida abordagem parece‑me combinar o respeito pela teleologia da Convenção Aarhus e da Directiva AIA conforme alterada com o respeito pelas intenções do seu autor ao incluir, nos dois instrumentos, uma cláusula de exclusão relativa às decisões em matéria ambiental adoptadas pelo legislador em vez de um órgão administrativo.

 Questões B.1, B.2 e B.3

90.      Na questão B.1, o Conseil d’État pergunta se os artigos 1.°, 5.°, 6.°, 7.°, 8.° e 10.°-A da Directiva AIA se opõem a um regime jurídico nos termos do qual o direito de realizar um projecto sujeito a uma AIA é conferido por um acto legislativo contra o qual não existe uma via de fiscalização jurisdicional que permita impugnar a legalidade substantiva ou processual da decisão em causa. Porém, à luz da redacção e do conteúdo das disposições referidas, parece‑me que o órgão jurisdicional de reenvio está, na realidade, a perguntar se, tendo em conta o artigo 1.° (em especial o artigo 1.°, n.° 5), o artigo 10.°-A da Directiva AIA exige a possibilidade de uma via de fiscalização jurisdicional para verificar se um acto legislativo que confere o direito de realizar um projecto sujeito a uma AIA observa, em termos de mérito e de procedimento, os referidos artigos 5.°, 6.°, 7.° e 8.°

91.      Com as questões B.2 e B.3, pretende‑se saber, no essencial, se o artigo 9.° da Convenção Aarhus e/ou o artigo 10.°-A da Directiva AIA obrigam os Estados‑Membros a prever a possibilidade de fiscalização jurisdicional da legalidade de decisões, actos ou omissões, relativamente ao regime substantivo ou ao regime processual de autorização de projectos sujeitos a uma AIA.

92.      Assim, enquanto a questão A tem por objecto a determinação da questão de saber se a Directiva AIA se aplica a um processo como o que está em causa, as três questões B referem‑se, mais especificamente, à possibilidade de fiscalização jurisdicional de um tal processo e, implicitamente, às dificuldades que podem surgir se diferentes tribunais tiverem normalmente competência para fiscalizar a legalidade das diferentes partes desse processo.

93.      À primeira vista, essas questões podem ser respondidas de uma forma muito simples.

94.      Em primeiro lugar, quanto à questão B.1, é claro que a Directiva AIA não se aplica aos «projectos que são adoptados em pormenor por um acto legislativo nacional específico». Consequentemente, nenhuma das disposições substantivas da directiva pode exigir qualquer tipo de fiscalização jurisdicional das licenças passadas por actos abrangidos por essa definição. A questão de saber se um acto específico é abrangido por essa definição constitui o objecto da questão A, e já nessa sede foi examinada. Se um acto não é abrangido pela definição, as regras sobre a disponibilidade de uma fiscalização jurisdicional estão enunciadas no artigo 10.°-A.

95.      A resposta às questões B.2 e B.3, que não se refere a actos legislativos, é ainda mais simples. Decorre da redacção do artigo 9.° da Convenção Aarhus e do artigo 10.°-A da Directiva AIA, e é a de que essas disposições obrigam, efectivamente, os Estados‑Membros a prever a possibilidade de fiscalização jurisdicional da legalidade de decisões, actos ou omissões abrangidas pelo âmbito de aplicação desses instrumentos, relativamente ao regime substantivo ou ao regime processual de autorização de projectos sujeitos a uma AIA.

96.      Importa, no entanto, observar que, como salientaram o Governo belga e a Comissão, a redacção das referidas disposições deixa aos Estados‑Membros uma margem de manobra não negligenciável para atingirem os objectivos enunciados. Diversas matérias foram deixadas em aberto para serem determinadas nos termos do direito nacional, incluindo o conteúdo de determinados conceitos, a fase em que em que o recurso deve estar disponível e a natureza do órgão competente para examinar esse recurso.

97.      Contudo, mesmo lidas conjuntamente com a minha análise da questão A, essas simples respostas não resolvem o problema subjacente submetido à apreciação do Conseil d’État. As normas detalhadas sobre as respectivas competências do Conseil d’État e da Cour constitutionnelle não foram apresentadas ao Tribunal de Justiça na íntegra (embora o Governo belga tenha fornecido informações importantes). Todavia, no essencial, parece que o Conseil d’État carece de competência para conhecer dos recursos interpostos de actos legislativos como o Decreto de 17 de Julho de 2008, enquanto que a Cour constitutionnelle, possuindo embora essa competência, pode não ser necessariamente competente para conhecer da conformidade desse acto com a Convenção Aarhus ou com a Directiva AIA, por oposição à conformidade com as normas ou princípios constitucionais. Se for esse o caso, ou se se verificar uma situação comparável, existe uma lacuna na competência que seja incompatível com um dos dois instrumentos?

98.      Em especial, se um órgão jurisdicional como o Conseil d’État não foi competente para examinar uma medida como o Decreto de 17 de Julho de 2008 para determinar se esta é válida à luz da Convenção Aarhus ou da Directiva AIA, deve ter competência para fazê‑lo para determinar se a medida é abrangida pela exclusão dos actos legislativos, dado que a essência do exame é, de facto, a mesma em ambos os casos? Em caso negativo, deve um outro órgão jurisdicional, como a Cour constitutionnelle, ter competência para examinar a compatibilidade da medida com a Convenção Aarhus e a Directiva AIA?

99.      Importa ter aqui presentes duas questões de princípio. Em primeiro lugar, a não ser que as regras de competência sejam impostas pelo direito da UE – o que claramente não acontece no presente processo – não incumbe ao Tribunal de Justiça indicar as regras que se devem aplicar nos Estados‑Membros. Em segundo lugar, para garantir que os objectivos de acesso à justiça são atingidos, pelo menos um órgão jurisdicional deve poder apreciar um recurso interposto de um acto específico de legislação nacional com o fundamento de este não ser abrangido pela exclusão prevista no artigo 2.° da Convenção Aarhus ou no artigo 1.°, n.° 5, da Directiva AIA.

100. Nesse contexto, parece claro que, se a Cour constitutionnelle é competente, ao abrigo das regras de competência belgas, para determinar se o Decreto de 17 de Julho de 2008 se integra na definição de «acto legislativo nacional específico» na acepção do artigo 1.°, n.° 5, da Directiva AIA conforme interpretado por este Tribunal de Justiça, e se só esse órgão jurisdicional for competente para o fazer, nesse caso não há uma lacuna na competência e os objectivos do artigo 10.°-A da referida directiva (e do artigo 9.° da Convenção Aarhus) são adequadamente atingidos – desde que, em circunstâncias como as do presente processo, o órgão jurisdicional chamado a apreciar um recurso de impugnação das licenças administrativas subjacentes possa obter uma decisão a esse respeito da Cour constitutionnelle. Resulta do despacho de reenvio que está disponível um processo de decisão prejudicial desse tipo.

101. No entanto, se a competência da Cour constitutionnelle fosse limitada, por exemplo, à verificação da conformidade com os princípios constitucionais, e não se estendesse à apreciação da questão de saber se um particular acto legislativo era abrangido pela definição prevista no artigo 1.°, n.° 5, da Directiva AIA, seria necessário que o Conseil d’État pudesse examinar a referida questão e, se aplicável, não tivesse em consideração o Decreto de 17 de Julho de 2008 para decidir sobre a legalidade substantiva ou processual das próprias licenças administrativas (41).

 Conclusão

102. À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pelo Conseil d’État do seguinte modo:

«A.      O artigo 1.°, n.° 5, da Directiva 85/337/CEE do Conselho, de 27 de Junho de 1985, relativa à avaliação dos efeitos de determinados projectos públicos e privados no ambiente, na redacção que lhe foi dada pela Directiva 2003/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Maio de 2003, que estabelece a participação do público na elaboração de certos planos e programas relativos ao ambiente e que altera, no que diz respeito à participação do público e ao acesso à justiça, as Directivas 85/337/CEE e 96/61/CE do Conselho, exclui do âmbito de aplicação da referida directiva apenas os actos legislativos nos quais o órgão legislativo tenha cumprido os objectivos substanciais da directiva.

Quando é interposto um recurso num órgão jurisdicional nacional para impugnação de licenças administrativas concedidas a projectos sujeitos à Directiva 85/337 e essas licenças são subsequentemente ratificadas por acto legislativo, é necessário apreciar não só o teor do acto em causa, mas também a essência do procedimento legislativo – em especial a informação disponibilizada ao legislador e o controlo a que essa informação foi sujeita – para determinar se esses objectivos foram cumpridos. Se não tiverem sido cumpridos, o acto legislativo não deverá ser tomado em consideração pelo órgão jurisdicional nacional e a legalidade das licenças administrativas deverá ser examinada enquanto tal.

B.      No contexto de um tal recurso, o artigo 10.°-A da Directiva 85/337 e o artigo 9.° da Convenção Aarhus exigem que o tribunal em causa possa decidir, por si mesmo ou mediante reenvio para outro tribunal que disponha da competência adequada, se o acto legislativo está excluído do âmbito de aplicação dos referidos instrumentos, com o fundamento de que o procedimento legislativo cumpriu os objectivos em questão.»


1 – Língua original: inglês.


2 – Directiva 85/337/CEE do Conselho, de 27 de Junho de 1985, relativa à avaliação dos efeitos de determinados projectos públicos e privados no ambiente (JO L 175, p. 40; EE 15 F6 p. 9).


3 – Directiva 2003/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Maio de 2003, que estabelece a participação do público na elaboração de certos planos e programas relativos ao ambiente e que altera, no que diz respeito à participação do público e ao acesso à justiça, as Directivas 85/337/CEE e 96/61/CE do Conselho (JO L 156, p. 17).


4–      Decisão 2005/370/CE do Conselho, de 17 de Fevereiro de 2005, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia, da Convenção sobre o acesso à informação, participação do público no processo de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de ambiente (JO L 124, p. 1). O texto da convenção Aarhus é reproduzido na pp. 4 e segs. do referido número do Jornal Oficial da União Europeia.


5 – O artigo 2.°, n.° 2, permite aos Estados‑Membros integrar as AIA nos processos existentes ou estabelecer novos processos.


6 – Em casos excepcionais, e em condições estritamente definidas, os Estados‑Membros podem estabelecer uma derrogação a esta exigência, nos termos do artigo 2.°, n.° 3, da Directiva AIA. Nos presentes processos não foi invocado esse procedimento excepcional.


7 – Parece ser pacífico que os projectos em causa nestes processos estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do anexo I.


8 – Objecto dos processos C‑128/09 e C‑129/09.


9 – Objecto do processo C‑134/09.


10 – Objecto do processo C‑135/09.


11 – Objecto dos processos C‑130/09 e C‑131/09.


12 –      Foram submetidas questões idênticas ao Tribunal de Justiça em outros três pedidos de decisão prejudicial relativos aos artigos 15.°, 16.° e 17.° do Decreto de 17 de Julho de 2008, que foram apensos e suspensos pelo Tribunal de Justiça, aguardando a decisão a proferir no presente processo (processos apensos C‑177/09, C‑178/09 e C‑179/09, Poumon Vert de la Hulpe e o., JO C 180 pp. 30 a 32).


13 – Processo C‑182/10, Solvay e o. (JO 2010, C 179, p. 18).


14 – Acórdão de 6 de Outubro de 1982, CILFIT (283/81, Recueil, p. 3415).


15 – V., por exemplo, acórdão de 3 de Maio de 2007, Advocaten voor de Wereld (C‑303/05, Colect., p. I‑3633, n.° 20).


16 – V., por exemplo, acórdão de 21 de Outubro de 2010, Padawan (C‑467/08, Colect., p. I-0000, n.° 22).


17 – Reconheço que a compreensão do contexto relevante poderá ter sido ligeiramente afectada por um factor diferente, não reconduzível aos próprios despachos de reenvio: As traduções desses despachos enviadas pelo Tribunal de Justiça aos Estados‑Membros nas respectivas línguas omitiram as secções relativas aos pedidos de decisão prejudicial submetidos à Cour constitutionnelle. Porém, os cortes foram claramente indicados como tais nas traduções e foram também enviadas aos Estados‑Membros cópias integrais do original em língua francesa. Além disso, mesmo sem essas passagens, parece‑me que os despachos de reenvio continham informação suficiente.


18 – Importa também assinalar que o Governo italiano descreveu a primeira questão como «formulada de forma enigmática» – mas que, apesar disso, se considerou em condições de apresentar observações.


19 – Nos n.os 23 a 29.


20 – V., por exemplo, o despacho de 2 de Março de 1999, Colonia Versicherung e o. (C‑422/98 Colect., p. I‑1279, n.° 6).


21 – V., por exemplo, acórdão de 1 de Julho de 2010, Sbarigia (C‑393/08, Colect., p. I-0000, n.° 19).


22 – V., por exemplo, acórdãos de 16 de Setembro de 1999, WWF e o. (C‑435/97, Colect., p. I‑5613, n.° 33); e de 23 de Novembro de 2006, Asnef‑Equifax e Administración del Estado (C‑238/05, Colect., p. I‑11125, n.° 14).


23 – Acórdão CILFIT (já referido na nota 13, n.° 16).


24 – V., por exemplo, acórdão de 19 de Abril de 2007, Asemfo (C‑295/05, Colect., p. I‑2999, n.° 30).


25 – Já referido na nota 19, n.os 55 a 63 do acórdão.


26 – V. os preâmbulos da Directiva 2003/35 e da própria Convenção Aarhus.


27 – Já referido na nota 22 supra.


28 – N.° 57 do acórdão.


29 – N.° 58 do acórdão.


30 – N.° 59 do acórdão (o sublinhado é meu).


31 – N.° 60 (o sublinhado é meu).


32 – Acórdão de 19 de Setembro de 2000, Lister e o. (C‑287/98, Colect., p. I‑6917).


33 – N.° 44.


34 – N.° 49.


35 – N.° 51.


36 –      N.os 52 a 54.


37 – N.os 56 a 58.


38 – Acórdão WWF e o., n.° 59.


39 – Acórdão Linster, n.os 56 e 57.


40 – No n.° 114 das suas conclusões.


41 – Para uma situação processual comparável, embora não idêntica, v., por exemplo, acórdãos de 9 de Março de 1978, Simmenthal (106/77, Colect., p. 243), ou de 19 de Junho de 1990, Factortame e o. (C‑213/89, Colect., p. I‑2433).