Language of document : ECLI:EU:C:2023:948

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

5 de dezembro de 2023 (*)

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílios de Estado — Artigo 107.o, n.o 1, TFUE — Decisões fiscais antecipadas adotadas por um Estado‑Membro — Auxílio declarado incompatível com o mercado interno — Obrigação de recuperar o auxílio — Conceito de “vantagem” — Determinação do quadro de referência — Tributação “normal” segundo o direito nacional — Fiscalização pelo Tribunal de Justiça da interpretação e da aplicação do direito nacional pelo Tribunal Geral da União Europeia — Fiscalidade direta — Interpretação estrita — Poderes da Comissão Europeia — Dever de fundamentação — Qualificação jurídica dos factos — Conceito de “abuso de direito” — Apreciação ex ante pela Administração Fiscal do Estado‑Membro em causa — Princípio da segurança jurídica»

Nos processos apensos C‑451/21 P e C‑454/21 P,

que têm por objeto dois recursos, nos termos do artigo 56.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interpostos respetivamente em 21 e 22 de julho de 2021,

GrãoDucado do Luxemburgo, representado por A. Germeaux, T. Schell e T. Uri, na qualidade de agentes, assistidos por J. Bracker e D. Waelbroeck, avocats, e por A. Pesch, conseil (processo C‑451/21 P),

Engie Global LNG Holding Sàrl, com sede na cidade do Luxemburgo (Luxemburgo),

Engie Invest International SA, com sede na cidade do Luxemburgo,

Engie SA, com sede em Courbevoie (França),

representadas inicialmente por B. Le Bret, F. Pili, C. Rydzynski e M. Struys, e, posteriormente, por M. Gouraud, B. Le Bret, F. Pili, J. Schaffner e M. Struys, avocats (processo C‑454/21 P),

recorrentes,

sendo as outras partes no processo:

Comissão Europeia, representada por J. Carpi Badía e B. Stromsky, na qualidade de agentes,

recorrida em primeira instância,

Irlanda,

interveniente em primeira instância (processo C‑451/21 P),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Arabadjiev, C. Lycourgos, E. Regan, T. von Danwitz, F. Biltgen e Z. Csehi, presidentes de secção, M. Safjan, S. Rodin, N. Wahl (relator), J. Passer, D. Gratsias, M. L. Arastey Sahún e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: C. Di Bella, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 30 de janeiro de 2023,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 4 de maio de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        Com os presentes recursos, o Grão‑Ducado do Luxemburgo (processo C‑451/21 P), por um lado, e a Engie Global LNG Holding Sàrl, a Engie Invest International SA e a Engie SA (processo C‑454/21 P) (a seguir, em conjunto, «Engie e o.»), por outro, vêm, respetivamente, requerer a anulação do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 12 de maio de 2021, Luxemburgo e o./Comissão (T‑516/18 e T‑525/18, a seguir «acórdão recorrido», EU:T:2021:251), pelo qual o Tribunal Geral negou provimento aos seus recursos de anulação da Decisão (UE) 2019/421 da Comissão, de 20 de junho de 2018, relativa ao auxílio estatal SA.44888 (2016/C) (ex 2016/NN) concedido pelo Luxemburgo à Engie (JO 2019, L 78, p. 1; a seguir «decisão controvertida»).

I.      Antecedentes do litígio

2        Os antecedentes do litígio, conforme foram expostos nos n.os 1 a 98 do acórdão recorrido, podem ser resumidos do seguinte modo.

A.      Sociedades em causa

3        O grupo Engie é constituído pela Engie, uma sociedade com sede em França, e por todas as sociedades que esta controla direta ou indiretamente. Este grupo resultou da fusão dos grupos franceses Suez e Gaz de France. Detém, no Luxemburgo, nomeadamente, a Compagnie européenne de financement C.E.F. SA (a seguir «CEF»), constituída em 1933 e redenominada Engie Invest International SA em 2015.

4        A CEF, que tinha por objeto social a aquisição de participações no Luxemburgo e em entidades estrangeiras, bem como a gestão, a exploração e o controlo dessas participações, detinha a totalidade do capital de várias sociedades luxemburguesas, entre as quais, primeiro, a GDF Suez Treasury Management Sàrl (a seguir «GSTM»), atualmente Engie Treasury Management Sàrl, segundo, a Electrabel Invest Luxembourg SA (a seguir «EIL») e, terceiro, a GDF Suez LNG Holding Sàrl (a seguir «LNG Holding»), constituída em 2009, atualmente Engie Global LNG Holding.

5        Em 2009, o grupo Engie estabeleceu duas filiais no Luxemburgo, a GDF Suez LNG Luxembourg Sàrl (a seguir «LNG Luxembourg») e a GDF Suez LNG Supply SA (a seguir «LNG Supply»). No final de 2009, a LNG Holding assumiu o controlo destas duas filiais, que era anteriormente exercido por outra sociedade deste grupo, a Suez LNG Trading SA (a seguir «LNG Trading»). A LNG Holding detinha a totalidade do capital da LNG Luxembourg e da LNG Supply.

B.      Decisões fiscais antecipadas

6        A Administração Fiscal luxemburguesa adotou decisões fiscais antecipadas que têm por objeto uma série de transações internas do grupo Engie. Estas decisões incidem sobre dois conjuntos de operações com uma estrutura económica e jurídica semelhante que pode ser descrita do seguinte modo.

7        Uma sociedade do grupo Engie procede à cessão dos ativos que constituem a sua atividade comercial a uma sociedade filial (a seguir «filial»). Para financiar esta aquisição, a filial contrai junto de uma sociedade intermediária (a seguir «intermediária») um empréstimo com a duração de quinze anos, obrigatoriamente convertível em ações na data de vencimento. A intermediária não recebe juros sobre o empréstimo, mas este é convertido em ações na data de vencimento. Esta conversão tem em conta os resultados, tanto positivos como negativos, da sociedade que contrai o empréstimo, isto é, a filial, na vigência do empréstimo. Este tipo de contrato é denominado zérointérêts obligation remboursable en actions (obrigação sem juros reembolsável em ações, a seguir «ZORA»).

8        A remuneração da intermediária, enquanto subscritora do empréstimo, é, deste modo, indexada aos resultados da filial. Assim, no termo do empréstimo, esta última deve restituir, mediante a emissão de ações, o valor nominal do empréstimo acrescido de um «prémio» constituído pela totalidade dos lucros que realizou na vigência do empréstimo, qualificados de «acréscimos sobre o ZORA». Ao montante deste prémio é imputado o montante que resulta da aplicação da percentagem correspondente à tributação acordada com as autoridades fiscais luxemburguesas. Se a filial apresentar resultados negativos num ou em vários exercícios contabilísticos, estes são tidos em conta nos mesmos moldes, sendo então reduzidos os lucros para efeitos de cálculo do montante final do prémio. Trata‑se, in casu, de «reduções sobre o ZORA».

9        Para financiar a subscrição do empréstimo, a intermediária celebra um contrato de venda a prazo com pagamento antecipado (a seguir «contrato a prazo com pagamento antecipado») com uma sociedade holding (a seguir «holding»), que é acionista única tanto da filial como da intermediária. A holding paga à intermediária, quando da celebração desse contrato, um montante correspondente ao valor nominal do ZORA, em contrapartida do qual a intermediária cede à holding os direitos sobre as ações que serão emitidas no termo do ZORA, incluindo as ações que correspondem, se for o caso, ao montante acumulado dos acréscimos sobre o ZORA.

10      O primeiro conjunto de decisões fiscais antecipadas da Administração Fiscal luxemburguesa diz respeito ao financiamento da transferência das atividades da LNG Trading no setor do gás natural liquefeito e de produtos derivados do gás para a LNG Supply. As sociedades envolvidas nestas transferências apresentaram cinco pedidos de decisões fiscais antecipadas, entre 9 de setembro de 2008 e 20 de setembro de 2013, aos quais as Autoridades Fiscais luxemburguesas responderam através de cinco decisões fiscais antecipadas, adotadas entre 9 de setembro de 2008 e 13 de março de 2014.

11      Em conformidade com os mecanismos descritos nos n.os 7 a 9 do presente acórdão, resulta desse primeiro conjunto de decisões fiscais antecipadas que a LNG Supply, filial, deveria adquirir a atividade de compra, venda e comercialização nos mercados financeiros e de transporte de gás natural liquefeito, bem como de produtos derivados do gás, da LNG Trading, por um preço estimado em 750 milhões de dólares americanos (USD) (cerca de 507 milhões de euros, em aplicação, como os restantes montantes referidos no presente número e nos n.os 12 e 16 do presente acórdão, da taxa de câmbio prevista na decisão controvertida). A referida sociedade deveria financiar essa aquisição com um ZORA subscrito pela LNG Luxembourg, intermediária, no termo do qual a LNG Supply deveria converter em ações, a favor da LNG Luxembourg, o valor nominal do ZORA, eventualmente majorado pelos acréscimos sobre o ZORA. Por seu turno, a LNG Luxembourg deveria pagar o montante necessário para a subscrição do valor nominal do ZORA, mediante a celebração de um contrato a prazo com pagamento antecipado correspondente a esse valor com a LNG Holding, a holding. Este contrato previa a cessão à LNG Holding, quando da conversão do ZORA, das ações inicialmente transferidas para a LNG Luxembourg pela LNG Supply, por um montante que incluía, em função dos resultados da LNG Supply, os acréscimos sobre o ZORA.

12      Resulta dos contratos celebrados por estas diferentes sociedades que, quando da implementação dos mecanismos validados no âmbito do primeiro conjunto de decisões fiscais antecipadas, o contrato relativo à cessão, pela LNG Trading, dos ativos correspondentes à sua atividade comercial à LNG Supply foi celebrado em 30 de outubro de 2009 e por um montante de 657 milhões de USD (cerca de 444 milhões de euros). Este montante foi pago pela LNG Supply através de duas livranças de 11 milhões de USD (cerca de 7 milhões de euros) e de 646 milhões de USD (cerca de 437 milhões de euros). Nesse mesmo dia, a LNG Supply e a LNG Luxembourg celebraram um ZORA no valor nominal de 646 milhões de USD (cerca de 437 milhões de euros), com vencimento em 30 de outubro de 2024, mas que foi parcialmente convertido de forma antecipada em 2014. Em 30 de outubro de 2009, a LNG Luxembourg e a LNG Holding celebraram um contrato a prazo com pagamento antecipado no valor nominal do ZORA.

13      De um ponto de vista fiscal, de acordo com o primeiro conjunto de decisões fiscais antecipadas, a matéria coletável do imposto devido pela LNG Supply em relação a um determinado exercício equivale a uma margem acordada com as autoridades fiscais luxemburguesas, que corresponde a uma fração do valor dos ativos brutos que figuram no balanço desta sociedade. A diferença entre os lucros efetivamente realizados a título desse exercício e a margem tributável constitui os acréscimos sobre o ZORA do referido exercício, que são considerados encargos dedutíveis relacionados com o ZORA.

14      A LNG Luxembourg dispõe, por sua vez, em conformidade com o primeiro conjunto de decisões fiscais antecipadas, de uma opção que consiste em manter o valor nominal do ZORA na sua contabilidade, ou, em contrapartida, em aumentar ou reduzir esse valor, em razão dos acréscimos ou das reduções sobre o ZORA, entre o momento da celebração do ZORA e o da sua conversão ou do seu reembolso antecipado. Quando da conversão do empréstimo em ações, a LNG Luxembourg pode optar pela aplicação do artigo 22.o‑A da loi du 4 décembre 1967, concernant l’impôt sur le revenu (Mémorial A 1967, p. 1228) (Lei de 4 de dezembro de 1967, relativa ao Imposto sobre o Rendimento), conforme alterada (a seguir «LIR»), que permite não tributar as mais‑valias, correspondentes aos acréscimos sobre o ZORA, que resultam dessa conversão.

15      O primeiro conjunto de decisões fiscais antecipadas prevê ainda que a LNG Holding contabilizará, pelo preço de custo, o pagamento recebido ao abrigo do contrato a prazo com pagamento antecipado como imobilizações financeiras próprias. Até à conversão do ZORA, não contabilizará, por conseguinte, nenhum rendimento e, como tal, não poderá deduzir nenhum encargo relativo a esse contrato. No entanto, se estiverem preenchidos os requisitos estabelecidos no artigo 166.o da LIR, todos os rendimentos, nomeadamente os dividendos e as mais‑valias, relacionados com as participações da LNG Holding nas suas filiais luxemburguesas, entre os quais, por consequência, as ações da LNG Supply transferidas pela LNG Luxembourg após a conversão do ZORA em ações, estão isentos do imposto sobre o rendimento.

16      Na prática, a LNG Supply inscreveu no seu passivo o valor nominal do ZORA de 2009 a 2013. Em 2014, procedeu a uma redução de 193,8 milhões de USD (cerca de 163,3 milhões de euros) desse valor para refletir a conversão parcial antecipada do ZORA em ações. A mais‑valia de 506,2 milhões de USD (cerca de 425,2 milhões de euros) realizada pela LNG Holding na sequência dessa conversão parcial ficou isenta de imposto sobre o rendimento, em aplicação do artigo 166.o da LIR. A LNG Supply atualizou o valor nominal restante do ZORA, inscrito no seu passivo, tendo em conta as reduções sobre o ZORA.

17      O segundo conjunto de decisões fiscais antecipadas diz respeito à transferência para a GSTM das atividades de gestão, tesouraria e financiamento exercidas pela CEF. As sociedades envolvidas nesta transferência apresentaram dois pedidos de decisões fiscais antecipadas, em 9 de fevereiro de 2010 e 15 de junho de 2012, aos quais as autoridades fiscais luxemburguesas responderam através de duas decisões fiscais antecipadas, adotadas nessas datas.

18      Segundo essas decisões fiscais antecipadas, a GSTM, filial, deveria adquirir as atividades da CEF descritas no n.o 17 do presente acórdão pelo montante de 1 036 912 506,84 euros. Deveria financiar esta aquisição com um ZORA subscrito pela EIL, intermediária, no termo do qual a GSTM deveria converter o valor nominal do ZORA em ações a favor da EIL, eventualmente majorado pelos acréscimos sobre o ZORA. Por seu turno, a EIL deveria fornecer o montante necessário para subscrever o valor nominal do ZORA mediante a celebração, com a CEF — que é, deste modo, no âmbito do segundo conjunto de decisões fiscais antecipadas, simultaneamente a sociedade que cede as respetivas atividades e a holding que fornece os fundos à intermediária — um contrato a prazo com pagamento antecipado correspondente a esse valor. Este contrato deveria prever a cessão à CEF, quando da conversão do ZORA, das ações inicialmente transferidas para a EIL, por um montante que incluísse, em função dos resultados da GSTM, os acréscimos sobre o ZORA.

19      Com base neste segundo conjunto de decisões fiscais antecipadas, a GSTM celebrou dois contratos de tipo ZORA com a EIL, em 17 de junho de 2011 e em 30 de junho de 2014, com vencimento em 17 de junho de 2026, pelo montante de 1 036 912 506,84 euros. A EIL e a CEF celebraram, em 17 de junho de 2011, um contrato a prazo com pagamento antecipado no valor de emissão do ZORA.

20      As observações relativas ao primeiro conjunto de decisões fiscais antecipadas, expostas nos n.os 13 a 15 do presente acórdão, aplicam‑se mutatis mutandis ao tratamento fiscal do segundo conjunto destas decisões. Convém apenas salientar que resulta do n.o 64 da decisão controvertida e das declarações do Grão‑Ducado do Luxemburgo nele referidas que a margem acordada com a Administração Fiscal deste Estado‑Membro, que constitui a matéria coletável do imposto da GSTM, não sofreu nenhuma alteração, não obstante o pedido apresentado nesse sentido pelo grupo Engie.

21      Resulta das declarações contabilísticas e fiscais da GSTM que esta inscreveu o montante dos acréscimos sobre o ZORA no passivo do seu balanço anual, em contrapartida da despesa correspondente inscrita na demonstração de resultados, uma vez que se trata de um montante que a GSTM deverá, na data de vencimento do ZORA, converter em ações que serão transferidas para a EIL e posteriormente para a CEF. Este montante figura, relativamente ao período de 2011 a 2016, no quadro 2 que surge após o considerando 73 da decisão controvertida. A Comissão Europeia descreveu, nos considerandos 74 e 75 desta decisão e nos quadros neles previstos, as consequências do segundo conjunto de decisões fiscais antecipadas na tributação da GSTM. À semelhança da LNG Holding, a CEF contabilizou as suas participações nas suas filiais como sendo elegíveis para isenção fiscal ao abrigo do artigo 166.o da LIR.

C.      Procedimento administrativo

22      Em 23 de março de 2015, a Comissão Europeia enviou ao Grão‑Ducado do Luxemburgo um pedido de informações relativo às suas práticas em matéria de decisões fiscais antecipadas em relação ao grupo Engie. O Estado‑Membro em causa respondeu a este pedido em 25 de junho de 2015. Com base nos documentos fornecidos, a Comissão comunicou‑lhe, por carta de 1 de abril de 2016, que não podia excluir que as decisões fiscais antecipadas em causa contivessem um elemento de auxílio de Estado incompatível com o mercado interno.

23      Em 19 de setembro de 2016, a Comissão deu início ao procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE. A decisão de início do procedimento foi publicada no Jornal Oficial da União Europeia em 3 de fevereiro de 2017.

24      Ocorreram diversas trocas de correspondência e realizou‑se uma reunião em 1 de junho de 2017 no âmbito do referido procedimento, cujos pormenores constam dos n.os 55 a 62 do acórdão recorrido.

D.      Decisão controvertida

25      Em 20 de junho de 2018, a Comissão adotou a decisão controvertida, pela qual considerou, em substância, que o Grão‑Ducado do Luxemburgo tinha, por intermédio da sua Administração Fiscal, concedido, em violação do artigo 107.o, n.o 1, e do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, uma vantagem seletiva ao grupo Engie, considerado como uma única unidade económica.

26      Sem pôr em causa a legalidade, nos termos do direito fiscal luxemburguês, de toda a estrutura de financiamento criada pelo grupo Engie para a transferência das atividades da LNG Trading, por um lado, e da CEF, por outro, a Comissão contestou os efeitos concretos desta estrutura sobre o imposto total devido por este grupo, pelo facto de, em substância, a quase totalidade dos lucros realizados pelas filiais da Engie no Luxemburgo não terem sido, na prática, tributados, nomeadamente devido à isenção prevista no artigo 166.o da LIR.

27      No que respeita à imputabilidade ao Estado‑Membro das decisões fiscais antecipadas em causa, esta decorre, segundo a Comissão, do facto de estas decisões terem sido adotadas pela Administração Fiscal luxemburguesa e de terem resultado numa perda de receitas fiscais.

28      No que se refere à concessão de uma vantagem económica, a Comissão considerou que esta última residia na não tributação dos rendimentos de participações detidas pela LNG Holding, por um lado, e pela CEF, por outro. Esses rendimentos correspondem, de um ponto de vista económico, aos acréscimos sobre o ZORA, que foram deduzidos, respetivamente, pela LNG Supply e a GSTM dos seus rendimentos tributáveis enquanto encargos.

29      Segundo a Comissão, os acréscimos sobre o ZORA não são tributados nem ao nível das filiais, nem ao nível das intermediárias, nem ao nível das holdings, sendo que as filiais pagam apenas um imposto cuja matéria coletável corresponde a uma margem limitada acordada com as autoridades fiscais luxemburguesas.

30      A Comissão indicou, assim, que as filiais constituíam todos os anos, em razão da conversão futura dos ZORA em causa, provisões contabilísticas correspondentes aos acréscimos sobre os ZORA, consideradas encargos dedutíveis. As intermediárias não são tributadas sobre os acréscimos sobre o ZORA, uma vez que, na conversão dos ZORA, ao abrigo dos contratos a prazo com pagamento antecipado celebrados com as holdings envolvidas, sofrem uma perda do mesmo montante que os acréscimos. Por último, as holdings envolvidas, titulares das ações das filiais na data de vencimento dos ZORA ao abrigo dos contratos a prazo com pagamento antecipado, também não são tributadas, dado que os rendimentos de participações que obtêm com a conversão dos ZORA estão isentos, segundo as decisões fiscais antecipadas em causa, por força do artigo 166.o da LIR.

31      Para demonstrar a seletividade das decisões fiscais antecipadas, a Comissão baseou‑se, a título principal, como resulta, nomeadamente, dos considerandos 163 a 170 e 237 da decisão controvertida, em três linhas de raciocínio. As duas primeiras dizem respeito à existência de uma vantagem seletiva ao nível das holdings, à luz, primeiro, de um quadro de referência alargado ao sistema luxemburguês de tributação das sociedades e, em seguida, de um quadro de referência restrito às disposições relativas à tributação das distribuições de lucros e à isenção dos rendimentos de participações. Uma terceira linha de raciocínio é referente à existência de uma vantagem ao nível do grupo Engie, à luz de um quadro de referência alargado ao sistema luxemburguês de tributação das sociedades. Além disso, decorre do considerando 289 da decisão controvertida que, com base numa quarta linha de raciocínio, apresentada a título subsidiário, a Comissão considerou que da não aplicação do artigo 6.o da Steueranpassungsgesetz (Lei de Adaptação Fiscal), de 16 de outubro de 1934 (Mémorial A 1934) (a seguir «Disposição Relativa ao Abuso de Direito») resultava uma vantagem seletiva. Por outro lado, a Comissão considerou que essa vantagem seletiva era injustificada.

32      Quanto à primeira linha de raciocínio, a Comissão indicou que as decisões fiscais antecipadas em causa conferiam ao grupo Engie, ao nível das holdings, uma vantagem seletiva, na medida em que derrogavam o sistema luxemburguês de tributação das sociedades que resulta dos artigos 18.o, 23.o, 40.o, 159.o e 163.o da LIR, segundo os quais as sociedades residentes no Luxemburgo, sujeitas ao imposto aplicável às sociedades deste Estado, são tributadas sobre os seus lucros, conforme registados nas suas contas. A Comissão considerou que, para efeitos da definição de um quadro de referência, extrair das disposições que constituem tal quadro um objetivo prosseguido ou um princípio que emane das mesmas é conforme com a jurisprudência do Tribunal de Justiça e que, no que respeita ao referido objetivo, a saber, a tributação dos lucros de todas as sociedades sujeitas a imposto no Luxemburgo, conforme registados nas suas contas, este resultava claramente das referidas disposições. A Comissão acrescentou que a tomada em consideração de um quadro de referência alargado ao sistema luxemburguês de tributação das sociedades era igualmente conforme com essa jurisprudência, uma vez que o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente, perante medidas relativas à tributação das sociedades, que o quadro de referência pode ser definido à luz do sistema de tributação destas últimas, e não à luz das disposições específicas aplicáveis a determinados contribuintes ou a determinadas transações.

33      Ora, através das decisões fiscais antecipadas em causa, as autoridades fiscais luxemburguesas derrogaram esse quadro ao permitirem que os rendimentos de participações das holdings envolvidas, que correspondem, de um ponto de vista económico, aos acréscimos sobre o ZORA, não sejam tributados. Estas decisões estiveram igualmente na origem de uma discriminação a favor dessas holdings, uma vez que as sociedades sujeitas ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas no Luxemburgo são, diversamente das referidas holdings, tributadas sobre os seus lucros, conforme estes últimos estão registados nas suas contas.

34      Quanto à segunda linha de raciocínio, a Comissão considerou que as decisões fiscais antecipadas em causa conferiam uma vantagem seletiva ao grupo Engie, ao nível das holdings, na medida em que constituíam uma derrogação ao quadro de referência restrito às disposições relativas à isenção dos rendimentos de participações e à tributação das distribuições de lucros, que resulta dos artigos 164.o e 166.o da LIR. Com efeito, a isenção dos rendimentos de participações para uma sociedade‑mãe só é possível em caso de tributação prévia, ao nível da sua filial, dos lucros distribuídos. Ora, os rendimentos de participações isentos de imposto ao nível das holdings correspondem, de um ponto de vista económico, aos acréscimos sobre o ZORA deduzidos pelas filiais do seu rendimento tributável como encargos.

35      A Comissão referiu, no considerando 212 da decisão controvertida, que, de um ponto de vista económico, tendo em conta a ligação direta e evidente entre os rendimentos isentos ao nível das holdings e os acréscimos sobre o ZORA deduzidos ao nível das filiais, esses acréscimos são equivalentes a distribuições de lucros. A derrogação do quadro de referência restrito deu origem a uma discriminação a favor das holdings envolvidas, dado que, em substância, as sociedades‑mãe colocadas numa situação factual e jurídica comparável a essas holdings não podem beneficiar de uma isenção dos seus rendimentos de participações caso os lucros distribuídos ao nível das suas filiais não sejam tributados previamente.

36      A inexistência de uma ligação explícita entre os artigos 164.o e 166.o da LIR não pode pôr em causa esta conclusão, visto que, se um mesmo rendimento pudesse ser objeto de isenção ao nível de uma sociedade‑mãe e deduzido como encargo ao nível de uma filial, escaparia a qualquer tributação no Luxemburgo, o que iria tanto contra o objetivo do sistema luxemburguês de tributação das sociedades como contra o objetivo de evitar a dupla tributação.

37      No que respeita à terceira linha de raciocínio, a Comissão sustentou que a seletividade das decisões fiscais antecipadas em causa resultava igualmente de uma análise ao nível do grupo composto pelas holdings, as intermediárias e as filiais em causa, uma vez que, a partir de 2015, estas sociedades formaram uma única e mesma unidade fiscal ao pagarem os seus impostos numa base consolidada. Em todo o caso, segundo a Comissão, uma vez que a análise dos efeitos económicos das medidas estatais deve ser efetuada em relação às empresas, há que considerar que as holdings envolvidas, as intermediárias e as filiais fazem parte de uma mesma empresa, na aceção do direito dos auxílios de Estado. A Comissão acrescentou, por um lado, que os pedidos de decisões fiscais antecipadas tinham por objeto o tratamento fiscal de todas as entidades do grupo Engie envolvidas nas transações em causa e, por outro, que a vantagem económica de que beneficiou este grupo, segundo a Comissão, residia na combinação de uma isenção de rendimentos de participações ao nível das referidas sociedades e de uma dedução, ao nível das filiais, dos acréscimos sobre o ZORA enquanto encargos. A vantagem seletiva concedida ao grupo Engie resulta do facto de as decisões fiscais antecipadas constituírem uma derrogação ao quadro de referência correspondente ao sistema luxemburguês de tributação das sociedades, que visa tributar as sociedades sujeitas no Luxemburgo a imposto sobre os seus lucros, conforme estes últimos foram registos nas suas contas.

38      Com efeito, a diminuição da carga fiscal ao nível das filiais, que resultava da circunstância de os acréscimos sobre o ZORA serem deduzidos, enquanto encargos, do rendimento tributável dessas filiais, não era compensada por um aumento da carga fiscal ao nível das holdings ou por um aumento efetivo do rendimento tributável das intermediárias, o que, de facto, conduziu a uma redução do rendimento tributável combinado do grupo Engie no Luxemburgo. No entanto, outros grupos de sociedades que se encontravam numa situação factual e jurídica comparável à deste grupo não estavam em condições de obter essa redução do seu rendimento tributável combinado.

39      No que respeita à análise subsidiária da Comissão, esta assenta no facto de as autoridades fiscais luxemburguesas terem afastado a aplicação do artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal através das decisões fiscais antecipadas em causa, ao passo que os quatro critérios identificados pela jurisprudência luxemburguesa para caracterizar um abuso de direito, a saber, a utilização de formas ou de instituições de direito privado, a redução da carga fiscal, a utilização de uma via jurídica inadequada e a ausência de motivos não fiscais, estavam preenchidos.

40      Mais precisamente, quanto aos dois últimos critérios, a Comissão considerou que a não tributação quase total dos lucros realizados pelas filiais no Luxemburgo não teria sido possível se a transferência dos setores de atividades tivesse sido efetuada através de um instrumento de fundos próprios ou por um empréstimo entre as filiais e as holdings envolvidas. Além disso, não havia nenhum motivo económico efetivo para o grupo Engie, além da realização de uma economia de imposto considerável, para que optasse pelas estruturas complexas de financiamento criadas, que foram aprovadas pelas decisões fiscais antecipadas em causa.

41      A Comissão considerou, por outro lado, que o Estado‑Membro em causa não tinha apresentado uma justificação para o tratamento favorável aplicado às holdings. Concluiu, com base no exposto, que esse tratamento não podia ser justificado pela natureza nem pela economia geral do sistema fiscal luxemburguês. Em todo o caso, a Comissão referiu que uma justificação hipotética baseada na prevenção da dupla tributação económica não podia, em substância, ser acolhida.

42      A Comissão esclareceu que, tendo em conta os múltiplos setores em que o grupo Engie exercia as suas atividades, em vários Estados‑Membros, o tratamento fiscal que lhe foi concedido em aplicação das decisões fiscais antecipadas em causa aliviou esse grupo de uma carga fiscal que o mesmo normalmente teria de suportar no contexto da gestão corrente das suas atividades. Por conseguinte, essas decisões fiscais antecipadas falsearam ou ameaçaram falsear a concorrência.

43      Por considerar que o auxílio concedido era incompatível com o mercado interno e ilegal, a Comissão ordenou ao Grão‑Ducado do Luxemburgo, no que respeita às operações abrangidas pelo primeiro conjunto de decisões fiscais antecipadas em causa, que recuperasse imediatamente junto da LNG Holding, ou, caso tal não se verificasse, junto da Engie ou de um dos seus sucessores, ou das sociedades do grupo Engie, o auxílio que já se tinha materializado devido à conversão parcial em 2014 do ZORA, celebrado a favor da LNG Supply. No que se refere às operações abrangidas pelo segundo conjunto de decisões fiscais antecipadas em causa, ordenou a esse Estado‑Membro que não aplicasse as referidas decisões a respeito da isenção dos rendimentos de participações de que a LNG Holding e a CEF poderiam eventualmente beneficiar quando da conversão total dos ZORA celebrados a favor da LNG Supply e da GSTM.

44      A Comissão indicou que essa recuperação não violava os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança legítima, da igualdade de tratamento e da boa administração e rejeitou as alegações apresentadas, no procedimento administrativo, pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo e pela Engie e o. relativas a irregularidades processuais de que enfermava o procedimento formal de investigação.

II.    Tramitação dos processos no Tribunal Geral e acórdão recorrido

45      Por petições apresentadas na Secretaria do Tribunal Geral em 30 de agosto e em 4 de setembro de 2018, respetivamente, o Grão‑Ducado do Luxemburgo (processo T‑516/18) e a Engie e o. (processo T‑525/18) interpuseram recursos com vista à anulação da decisão controvertida.

46      Por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal Geral em 28 de janeiro de 2019, o Grão‑Ducado do Luxemburgo pediu, nos termos do artigo 28.o, n.o 5, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral então em vigor, que o processo T‑516/18 fosse julgado por uma formação de julgamento alargada. O Tribunal de Geral deferiu este pedido.

47      Por Despacho do presidente da Sétima Secção Alargada do Tribunal Geral de 15 de fevereiro de 2019, a Irlanda foi admitida a intervir em apoio dos pedidos do Grão‑Ducado do Luxemburgo no processo T‑516/18.

48      Por Decisão do Tribunal Geral de 16 de outubro de 2019, o processo T‑516/18 foi atribuído à Segunda Secção Alargada do Tribunal Geral, nos termos do artigo 27.o, n.o 5, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral.

49      Por Despacho do presidente da Segunda Secção alargada do Tribunal Geral de 12 de junho de 2020, os processos T‑516/18 e T‑525/18 foram apensados para efeitos da fase oral do processo, em conformidade com o artigo 68.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral. Pelo mesmo despacho, foi decidido excluir os dados confidenciais constantes dos autos acessíveis à Irlanda, em conformidade com os pedidos de tratamento confidencial apresentados pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo e pela Engie e o.

50      Em apoio do seu recurso, o Grão‑Ducado do Luxemburgo invocou seis fundamentos, relativos, o primeiro, a uma apreciação errada, pela Comissão, da seletividade das decisões fiscais antecipadas em causa, o segundo, a uma violação do conceito de «vantagem», o terceiro, a uma harmonização fiscal disfarçada levada a cabo por esta instituição em violação dos artigos 4.o e 5.o TUE, o quarto, a uma violação dos direitos processuais, o quinto, apresentado a título subsidiário, a uma violação dos princípios gerais do direito da União no âmbito da recuperação dos auxílios alegadamente concedidos e, o sexto, a uma violação do dever de fundamentação.

51      Por seu turno, a Engie e o. apresentaram oito fundamentos de recurso, dos quais seis coincidem com os fundamentos invocados pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo. A Engie e o. sustentaram ainda que as decisões fiscais antecipadas em causa não são imputáveis ao Estado e que, em todo o caso, a Comissão as qualificou erradamente de auxílios individuais.

52      No acórdão recorrido, após ter apensado os processos T‑516/18 e T‑525/18 para efeitos do mesmo, o Tribunal Geral julgou improcedentes todos os fundamentos invocados nesses recursos e negou integralmente provimento aos mesmos.

53      Antes de mais, o Tribunal Geral julgou improcedentes os fundamentos relativos ao facto de a Comissão, ao adotar a decisão controvertida, ter procedido a uma harmonização fiscal disfarçada, recordando que, embora, na fase atual de desenvolvimento do direito da União, a fiscalidade direta seja da competência dos Estados‑Membros, estes devem, todavia, exercer essa competência no respeito do direito da União.

54      O Tribunal Geral referiu que, segundo a jurisprudência, se as medidas fiscais provocarem, de facto, uma discriminação entre sociedades que se encontram numa situação comparável à luz do objetivo prosseguido por essas medidas e conferirem aos seus beneficiários vantagens seletivas que favorecem «certas» empresas ou «certas» produções, as referidas medidas poderão ser consideradas auxílios de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. Consequentemente, concluiu que, sendo a Comissão competente para velar pelo respeito do artigo 107.o TFUE, não pode ser acusada de ter excedido as suas competências quando examinou as decisões fiscais antecipadas em causa para verificar se as mesmas constituíam auxílios de Estado e, na afirmativa, se eram compatíveis com o mercado interno, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

55      A este respeito, declarou que a Comissão não impôs a sua interpretação do direito fiscal luxemburguês na demonstração da seletividade dessas decisões fiscais antecipadas, tendo‑se antes limitado a apresentar as disposições desse direito, baseando‑se não na sua interpretação do referido direito, mas na interpretação das autoridades fiscais luxemburguesas.

56      Conforme resulta dos n.os 138 a 153 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral considerou que a Comissão pode, a título de fiscalização das medidas fiscais em matéria de auxílios de Estado, apreciar as disposições fiscais nacionais, sendo que essa apreciação pode, se for o caso, ser contestada pelo Estado‑Membro em causa ou por eventuais partes interessadas em sede de um recurso de anulação perante o Tribunal Geral. Segundo este último, no caso em apreço, a Comissão só podia proceder a uma apreciação da tributação dita «normal» na aceção do direito fiscal luxemburguês tal como aplicado pelas autoridades fiscais luxemburguesas. Ao fazê‑lo, não procedeu a nenhuma «harmonização fiscal», tendo simplesmente exercido a competência que lhe é conferida pelo artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

57      Em seguida, o Tribunal Geral julgou improcedentes os fundamentos relativos à existência de erros de direito e de erros de apreciação na identificação de uma vantagem seletiva a favor do grupo Engie. Afastou, nomeadamente, o fundamento da Engie e o. segundo o qual a Comissão, por ter confundido os requisitos de seletividade e de vantagem, deduziu a existência dessa vantagem a partir de uma alegada derrogação, não das disposições de direito comum que visam determinar o rendimento tributável, mas do objetivo de tributar, em todas as circunstâncias, os lucros das sociedades sujeitas ao imposto sobre o rendimento. Considerou, a este respeito, que embora, em princípio, a seletividade e a vantagem constituam dois critérios distintos, todavia, em matéria fiscal, a análise da vantagem e a análise da seletividade coincidem, na medida em que estes dois critérios implicam demonstrar que a medida fiscal contestada conduz a uma redução do montante do imposto que seria normalmente devido pelo beneficiário da medida por força do regime fiscal comum, aplicável aos outros contribuintes que estejam na mesma situação. A jurisprudência permite, aliás, examinar conjuntamente estes dois critérios, enquanto «terceiro requisito» previsto no artigo 107.o, n.o 1, TFUE, relativo à existência de uma «vantagem seletiva».

58      No caso em apreço, o Tribunal Geral referiu, nos n.os 239 a 253 do acórdão recorrido, que a Comissão procurou demonstrar, independentemente do mérito de todos os raciocínios que figuram na decisão controvertida, que as decisões fiscais antecipadas em causa conduziam a uma redução do montante do imposto que seria normalmente devido, designadamente pelas holdings envolvidas, por força dos regimes fiscais comuns e que, consequentemente, essas medidas constituíam uma derrogação das regras fiscais aplicáveis aos outros contribuintes que se encontravam numa situação factual e jurídica comparável. Ora, tendo em conta a natureza fiscal das referidas medidas, o Tribunal Geral declarou que o facto de a Comissão apreciar simultaneamente os requisitos relativos à concessão, por meio dessas medidas, de vantagens que apresentam um caráter seletivo, é conforme com a jurisprudência.

59      Por outro lado, o Tribunal Geral julgou improcedentes os fundamentos do Grão‑Ducado do Luxemburgo e da Engie e o., respetivamente, relativos ao facto de a Comissão ter reduzido de maneira errada o quadro de referência às disposições aplicáveis às situações puramente internas. Sublinhou, a este respeito, que a situação em causa é puramente interna, uma vez que tanto as holdings como as filiais e as intermediárias em causa estão estabelecidas no Luxemburgo. Consequentemente, as situações fiscais destas sociedades dependem de uma única e mesma autoridade fiscal, o que exclui os riscos de dupla tributação que são próprios à aplicação de regimes fiscais diferentes e à intervenção de autoridades fiscais diferentes e que podem existir no caso de distribuições transfronteiriças.

60      Quanto ao próprio quadro de referência, o Tribunal Geral também não acolheu, nos n.os 288 a 301 do acórdão recorrido, a argumentação do Grão‑Ducado do Luxemburgo e da Engie e o., ao abrigo da qual a definição de um quadro de referência reduzido apenas aos artigos 164.o e 166.o da LIR resulta de uma leitura conjugada errada destas duas disposições. As recorrentes sustentaram, em particular, por um lado, que um ZORA não implica uma distribuição de lucros, na aceção do primeiro artigo, e, por outro, que o segundo artigo não pode ser interpretado no sentido de que condiciona o benefício da isenção ao nível de uma sociedade‑mãe à inexistência de dedução fiscal ao nível da filial dos rendimentos gerados durante o ZORA. Em primeiro lugar, e embora reconhecendo que o artigo 166.o da LIR não faz depender formalmente a concessão da isenção dos rendimentos de participações ao nível de uma sociedade‑mãe à tributação prévia dos lucros distribuídos ao nível da sua filial, o Tribunal Geral considerou, no entanto, que a concessão dessa isenção só pode ser considerada se os rendimentos distribuídos por uma filial tiverem sido previamente tributados, a menos que se considere a hipótese, numa situação puramente interna, de uma dupla não tributação de lucros. Em segundo lugar, embora admitindo igualmente que os acréscimos sobre o ZORA não são, formalmente, distribuições de lucros, o Tribunal Geral considerou, no n.o 300 do acórdão recorrido, que os rendimentos de participações isentos ao nível da LNG Holding correspondem, em substância, ao montante desses acréscimos, de modo que estes últimos correspondem materialmente, «nas circunstâncias muito específicas do presente caso e atendendo à montagem societária que implica uma sociedade holding, uma sociedade intermédia e uma filial, […] a distribuições de lucros».

61      O Grão‑Ducado do Luxemburgo e a Engie e o. sustentaram, primeiro, que o artigo 164.o da LIR apenas regula, no direito luxemburguês, as distribuições de lucros, e não o ZORA, que é simultaneamente uma dívida e um capital, e que, no caso em apreço, não existe nenhum nexo direto e evidente entre a dedutibilidade dos acréscimos sobre o ZORA, ao nível das filiais, e a isenção dos rendimentos de participações, ao nível das holdings envolvidas, segundo, que o aumento do valor dos ZORA era incerto quando foram emitidos, terceiro, que os artigos 164.o e 166.o da LIR, considerados isoladamente, foram corretamente aplicados pelas autoridades fiscais luxemburguesas, quarto, que a Comissão não demonstrou que as decisões fiscais antecipadas em causa violam estas duas disposições consideradas isoladamente e, quinto, que a Comissão não demonstrou nenhum tratamento preferencial do grupo Engie ao nível das holdings envolvidas.

62      O Tribunal Geral referiu, a este respeito, primeiro, que no caso em apreço, o rendimento obtido pela LNG Holding em aplicação do contrato a prazo com pagamento antecipado correspondia, na realidade, de um ponto de vista económico, ao montante dos acréscimos sobre o ZORA realizados antes da conversão parcial desse ZORA. Salientou que, embora a dedutibilidade dos acréscimos sobre o ZORA ao nível das filiais seja, formalmente, uma operação distinta da isenção dos rendimentos de participações ao nível das holdings, há um nexo direto que une, efetivamente, estas duas operações, pelo que a Comissão pôde considerar, com razão, que a Administração Fiscal luxemburguesa derrogou o quadro de referência restrito às disposições dos artigos 164.o e 166.o da LIR.

63      Segundo, o Tribunal Geral considerou, quanto ao valor incerto de um ZORA no dia da sua emissão e no momento da adoção das decisões fiscais antecipadas em causa, que uma medida pode constituir um auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o TFUE, mesmo que nenhuma vantagem seletiva se tenha materializado no dia da adoção dessa medida. Considerou que a não materialização dessa vantagem não obsta à qualificação da referida medida como auxílio de Estado, mas apenas à recuperação do auxílio. No caso em apreço, o facto de, no dia da adoção dos ZORA, a realização de lucros pelas filiais em causa permanecer um evento fortuito não é suscetível de excluir a existência de uma vantagem seletiva concedida às holdings nem de uma derrogação, por parte da Administração Fiscal luxemburguesa, a esse quadro de referência restrito.

64      Terceiro, o Tribunal Geral declarou que existe um nexo, no direito luxemburguês, entre a isenção dos rendimentos das participações ao nível de uma sociedade‑mãe e a dedutibilidade dos rendimentos distribuídos ao nível da sua filial. Considerou que essa isenção não pode ser aplicada sem que se verifique previamente se os rendimentos correspondentes foram tributados ao nível da filial. No caso em apreço, os rendimentos de participações auferidos pela LNG Holding, sociedade‑mãe, que correspondem, de um ponto de vista económico, aos acréscimos sobre o ZORA, não podem em princípio ser isentos, na medida em que estes acréscimos foram deduzidos como encargos pela LNG Supply, sua filial. O Tribunal Geral concluiu, com base no exposto, que a Comissão teve razão ao considerar que a dedutibilidade de um rendimento ao nível da filial e a sua posterior isenção ao nível da sociedade‑mãe constituem uma derrogação ao quadro de referência restrito aos artigos 164.o e 166.o da LIR.

65      Quarto, o Tribunal Geral considerou que, contrariamente ao que alega, no caso em apreço, o Grão‑Ducado do Luxemburgo, a existência de uma derrogação a esse quadro de referência não deve ser apreciada à luz dos artigos 164.o e 166.o da LIR considerados isoladamente, mas à luz de uma leitura conjugada destas disposições.

66      Quinto, o Tribunal Geral respondeu ao argumento de que a Comissão não demonstrou a existência de um tratamento preferencial do grupo Engie ao nível das holdings envolvidas, quando deveria ter identificado características próprias e específicas das empresas beneficiárias das decisões fiscais antecipadas, que permitissem distingui‑las das empresas que delas foram excluídas. Recordou, nesse contexto, que o requisito relativo à seletividade se encontra preenchido quando a Comissão consegue demonstrar que uma medida nacional que confere uma vantagem fiscal derroga o regime fiscal comum ou «normal» aplicável no Estado‑Membro em causa, introduzindo, assim, através dos seus efeitos concretos, um tratamento diferenciado entre operadores que se encontram, à luz do objetivo prosseguido por esse regime fiscal, numa situação factual e jurídica comparável. Além disso, segundo a jurisprudência, uma medida fiscal pode ser seletiva apesar de qualquer empresa poder livremente optar por realizar a operação que condiciona a concessão da vantagem prevista por essa medida. Ora, no caso em apreço, segundo o raciocínio do Tribunal Geral que figura nos n.os 304 a 381 do acórdão recorrido, a Comissão demonstrou, de forma juridicamente bastante, que as holdings envolvidas beneficiavam de tratamento fiscal preferencial em relação a qualquer sociedade‑mãe suscetível de auferir rendimentos de participações que não foram objeto de tributação no momento da sua distribuição. O facto de outras holdings além da CEF e da LNG Holding beneficiarem de decisões fiscais antecipadas idênticas é, quando muito, um indício de um eventual regime de auxílios, e não da inexistência de discriminação.

67      A título exaustivo, o Tribunal Geral considerou, no n.o 383 do acórdão recorrido, que era oportuno examinar a seletividade das decisões fiscais antecipadas em causa à luz do quadro de referência que abrange o artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal, relativo ao abuso de direito, tendo em conta o caráter inédito do raciocínio adotado a esse respeito pela Comissão. Considerou, em primeiro lugar, que, contrariamente ao que alegou o Grão‑Ducado do Luxemburgo, a Comissão insistiu, desde a decisão de dar início ao procedimento formal de investigação, na não aplicação dessa disposição pelas autoridades luxemburguesas e, posteriormente, convidou o Grão‑Ducado do Luxemburgo e o grupo Engie a apresentarem observações adicionais sobre esse ponto. Salientou, em segundo lugar, que, embora o artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal não suscitasse, no caso em apreço, dificuldades de interpretação, a Comissão se referiu tanto à prática administrativa como à prática jurisdicional luxemburguesa. Considerou, em terceiro lugar, que os critérios a preencher para que seja declarada, no direito luxemburguês, a existência de um abuso de direito estavam preenchidos no caso em apreço. Deduziu com base no exposto que a Comissão demonstrou, de forma juridicamente bastante, que a Administração Fiscal luxemburguesa derrogou o quadro de referência que abrange o artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal.

68      O Tribunal Geral julgou improcedentes os restantes fundamentos dos recursos.

III. Tramitação dos processos no Tribunal de Justiça e pedidos das partes nos presentes recursos

A.      Processo C451/21 P

69      Com o seu recurso, o Grão‑Ducado do Luxemburgo pede que o Tribunal de Justiça se digne:

–        anular o acórdão recorrido;

–        a título principal, decidir definitivamente quanto ao mérito e julgar procedentes os pedidos apresentados em primeira instância, anulando a decisão controvertida;

–        a título subsidiário, remeter o processo ao Tribunal Geral, e

–        condenar a Comissão nas despesas.

70      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        negar provimento ao recurso, e

–        condenar o Grão‑Ducado do Luxemburgo nas despesas.

71      Por Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 11 de outubro de 2021, Luxemburgo/Comissão (C‑451/21 P, EU:C:2021:858), foi conferido um tratamento confidencial, em relação à Irlanda, interveniente em primeira instância, no que respeita às informações ocultadas na versão não confidencial do recurso e dos anexos 2, 3 e 11 ao mesmo, apresentado na Secretaria do Tribunal de Justiça pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo em 2 de agosto de 2021, tendo apenas sido notificada à Irlanda esta versão não confidencial.

B.      Processo C454/21 P

72      Com o seu recurso, a Engie e o. concluem pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        anular o acórdão recorrido;

–        a título principal, julgar procedentes os seus pedidos apresentados em primeira instância ou, a título subsidiário, anular o artigo 2.o da decisão controvertida na parte em que ordena que se proceda à recuperação do auxílio;

–        a título mais subsidiário, remeter o processo ao Tribunal Geral, e

–        condenar a Comissão nas despesas.

73      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        negar provimento ao recurso, e

–        condenar a Engie e o. nas despesas.

IV.    Quanto aos presentes recursos

74      Atenta a sua conexão, há que apensar os presentes processos para efeitos do acórdão, em conformidade com o artigo 54.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

A.      Quanto à admissibilidade

75      Primeiro, a Comissão alega, sem apresentar formalmente uma exceção de inadmissibilidade, que o primeiro fundamento no processo C‑451/21 P e o segundo fundamento no processo C‑454/21 P, mediante os quais o Grão‑Ducado do Luxemburgo e a Engie e o. criticam, respetivamente, o Tribunal Geral por ter considerado um quadro de referência erradamente reduzido apenas aos artigos 164.o e 166.o da LIR e por ter alargado erradamente esse quadro de referência ao artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal, para determinar a existência de uma vantagem seletiva, são inadmissíveis. No entender da Comissão, estes fundamentos, que só foram apresentados pela primeira vez na fase dos recursos, alteram o objeto do litígio no Tribunal Geral. Segundo, a Comissão sustenta que o segundo fundamento no processo C‑451/21 P e o primeiro e segundo fundamentos no processo C‑454/21 P também são inadmissíveis, dado que as partes põem em causa nestes fundamentos as apreciações do Tribunal Geral relativas ao direito luxemburguês, que, por constituírem apreciações de facto, não podem ser analisadas no âmbito de um recurso de um acórdão do Tribunal Geral, dado que este direito não foi desvirtuado.

76      A este respeito, há que recordar que a competência do Tribunal de Justiça em sede de recurso de uma decisão proferida pelo Tribunal Geral é definida pelo artigo 256.o, n.o 1, segundo parágrafo, TFUE. Este indica que o recurso deve ser limitado às questões de direito e enquadrar‑se nas «condições e [nos] limites previstos no Estatuto». Numa lista que enumera os fundamentos que podem ser invocados nesse âmbito, o artigo 58.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça precisa que o recurso para o Tribunal de Justiça pode ter por fundamento a violação do direito da União pelo Tribunal Geral (Acórdão de 5 de julho de 2011, Edwin/IHMI, C‑263/09 P, EU:C:2011:452, n.o 46).

77      É certo que, em princípio, no que se refere ao exame, no âmbito de um recurso de uma decisão do Tribunal Geral, das apreciações deste último sobre o direito nacional, que, no domínio dos auxílios de Estado, constituem apreciações de facto, o Tribunal de Justiça só é competente para verificar se este direito foi desvirtuado (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão, C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.o 82 e jurisprudência referida). No entanto, o Tribunal de Justiça não pode ser privado da possibilidade de fiscalizar se essas apreciações não constituem, em si, uma violação do direito da União na aceção da jurisprudência referida no n.o 76 do presente acórdão.

78      Ora, a questão de saber se o Tribunal Geral delimitou adequadamente o sistema de referência pertinente e, por extensão, se interpretou corretamente as disposições que o compõem, é uma questão de direito que pode ser fiscalizada pelo Tribunal de Justiça na fase de um recurso de uma decisão do Tribunal Geral. Com efeito, os argumentos por meio dos quais é questionada a escolha do quadro de referência no âmbito da primeira etapa da análise da existência de uma vantagem seletiva são admissíveis porque esta análise decorre de uma qualificação jurídica do direito nacional que se baseia numa disposição do direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão, C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.o 85 e jurisprudência referida).

79      Admitir que o Tribunal de Justiça não está em condições de determinar se o Tribunal Geral não cometeu um erro de direito ao adotar a delimitação do quadro de referência pertinente, a sua interpretação e a sua aplicação enquanto parâmetro decisivo para examinar se existe uma vantagem seletiva, equivaleria a aceitar a possibilidade de o Tribunal Geral ter, eventualmente, cometido uma violação de uma disposição do direito primário da União, isto é, do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, sem que esta violação possa ser sancionada no âmbito do recurso de uma decisão do Tribunal Geral, o que viola o artigo 256.o, n.o 1, segundo parágrafo, TFUE, conforme foi sublinhado no n.o 76 do presente acórdão.

80      Por conseguinte, há que considerar que, ao pedirem ao Tribunal de Justiça que fiscalize, por um lado, se a restrição do quadro de referência apenas aos artigos 164.o e 166.o da LIR, efetuada pela Comissão, ou a sua extensão ao artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal, conforme aprovadas pelo Tribunal Geral, e, por outro, se o sentido dado a estas disposições tanto pela Comissão como pelo Tribunal Geral correspondem a uma interpretação e a uma aplicação destas últimas que permitem definir uma tributação normal, para efeitos da análise relativa à existência de uma vantagem seletiva na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, o Grão‑Ducado do Luxemburgo e a Engie e o. apresentaram fundamentos que, contrariamente ao que sustenta a Comissão, são admissíveis.

B.      Quanto ao mérito

81      Em apoio do seu recurso no processo C‑451/21 P, o Grão‑Ducado do Luxemburgo invoca quatro fundamentos, relativos, o primeiro, à violação do artigo 107.o TFUE, na medida em que o Tribunal Geral declarou que a Comissão demonstrou a existência de uma vantagem seletiva conferida às holdings através das decisões fiscais antecipadas em causa à luz do quadro de referência composto pelos artigos 164.o e 166.o da LIR, o segundo, à violação do artigo 107.o TFUE, posto que o Tribunal Geral declarou que a Comissão demonstrou a existência de uma vantagem seletiva conferida ao grupo Engie através das decisões fiscais antecipadas em causa devido à não aplicação do artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal, o terceiro, à violação dos artigos 4.o e 5.o TUE e, o quarto, à violação, pelo Tribunal Geral, do dever de fundamentação que lhe incumbe por força do artigo 296.o TFUE.

82      Em apoio do seu recurso no processo C‑454/21 P, a Engie e o. invocam três fundamentos, relativos, o primeiro, a erros de direito e a desvirtuações dos factos cometidos pelo Tribunal Geral ao fiscalizar a legalidade da definição do quadro de referência composto pelos artigos 164.o e 166.o da LIR, o segundo, a erros de direito e a desvirtuações dos factos cometidos pelo Tribunal Geral ao aprovar a demonstração, pela Comissão, de que existe uma vantagem seletiva à luz do artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal e, o terceiro, à violação pelo Tribunal Geral dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança legítima e da não retroatividade do direito fiscal.

1.      Quanto ao primeiro fundamento dos recursos

a)      Argumentos das partes

83      O primeiro fundamento no processo C‑451/21 P é composto por duas partes.

84      Na primeira parte deste fundamento, o Grão‑Ducado do Luxemburgo alega, nomeadamente, em primeiro lugar, que resulta da jurisprudência que, em matéria fiscal, a existência de uma vantagem seletiva só pode ser determinada em relação a uma tributação dita «normal». Ora, ao adotar a análise da Comissão, o Tribunal Geral reduziu artificialmente o quadro de referência para essa comparação a duas disposições, das quais uma, como aliás reconhece expressamente o Tribunal Geral, não é aplicável ao caso em apreço. Esta análise ignora outras disposições relativas à determinação do lucro comercial das sociedades, ao passo que a jurisprudência proíbe, a este respeito, que a Comissão se baseie num quadro de referência constituído por certas disposições que foram artificialmente retiradas de um quadro legislativo mais amplo.

85      Em segundo lugar, o Grão‑Ducado do Luxemburgo alega que o Tribunal Geral acolheu uma interpretação contra legem das regras fiscais em causa. Com efeito, apesar de o próprio Tribunal Geral reconhecer, por um lado, que o artigo 166.o da LIR não faz depender formalmente a concessão da isenção dos rendimentos de participações ao nível da sociedade‑mãe à tributação prévia dos lucros distribuídos ao nível da filial e, por outro, que os acréscimos sobre o ZORA não são formalmente distribuições de lucros, na aceção do artigo 164.o da LIR, considerou, no entanto, que a Comissão não cometeu um erro de direito ao declarar que existe uma ligação entre estes artigos e ao considerar que essa isenção só se aplica aos rendimentos não deduzidos dos rendimentos tributáveis da filial.

86      Ao fazê‑lo, o Tribunal Geral procedeu a uma definição incorreta do quadro de referência, a uma qualificação jurídica errada dos factos e desvirtuou manifestamente o direito luxemburguês. Ao definirem esse quadro de referência, a Comissão e o Tribunal Geral acrescentaram um requisito aos requisitos que, à época, eram impostos pelo artigo 166.o da LIR. Alargaram ainda o âmbito de aplicação do artigo 164.o, n.o 2, da LIR, uma vez que os acréscimos sobre o ZORA não constituem distribuições de lucros e, como tal, não estão abrangidos por este artigo, ao passo que são dedutíveis como encargos.

87      O raciocínio da Comissão e do Tribunal Geral viola o artigo 107.o TFUE, bem como os princípios da legalidade do imposto e da interpretação estrita do direito fiscal, que caracterizam tanto o direito fiscal luxemburguês como o direito da União.

88      O Grão‑Ducado do Luxemburgo mostra‑se surpreendido que o Tribunal Geral tenha feito referência à carta de 31 de janeiro de 2018 enviada pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo à Comissão durante o procedimento administrativo (a seguir «carta de 31 de janeiro de 2018»). Com efeito, este Estado‑Membro sustenta que esta carta não confirma, contrariamente ao que afirmou o Tribunal de Geral ao citar, fora do respetivo contexto, uma passagem da referida carta, a existência de um nexo entre os artigos 164.o e 166.o da LIR. A leitura desta carta revela, nomeadamente, que estes artigos têm «âmbitos de aplicação distintos». No seu raciocínio, o Tribunal Geral não tem em conta a redação clara da LIR que, por este motivo, não deve ser interpretada além ou aquém dos termos que nela figuram.

89      Do mesmo modo, o Parecer de 2 de abril de 1965 do Conseil d’État (Conselho de Estado, Luxemburgo) (a seguir «Parecer do Conselho de Estado de 1965»), relativo à disposição que antecedeu, no direito luxemburguês, o artigo 166.o da LIR, a que Tribunal Geral também se referiu, não faz nenhuma referência a um requisito de tributação prévia dos lucros distribuídos para efeitos de aplicação do regime de isenção.

90      Por conseguinte, o quadro de referência aprovado pelo Tribunal Geral não só é incompleto, tendo em conta as disposições que exclui do seu âmbito de aplicação, como também fictício, visto que prevê a existência de um nexo entre os artigos 164.o e 166.o da LIR.

91      Na segunda parte do primeiro fundamento, o Grão‑Ducado do Luxemburgo sustenta, em primeiro lugar, que as premissas em que assenta a observação de uma derrogação ao quadro de referência composto pelos artigos 164.o e 166.o da LIR são erradas, uma vez que, por um lado, não existe uma relação entre a isenção dos rendimentos de participações ao nível de uma sociedade‑mãe e a dedutibilidade dos rendimentos distribuídos ao nível da sua filial e que, por outro, os acréscimos sobre o ZORA não são, formalmente, distribuições de lucros, como aliás reconheceu o Tribunal Geral. Ao confirmar pela primeira vez uma abordagem baseada numa «correspondência material» entre essas disposições, o Tribunal Geral afastou‑se da redação clara da lei fiscal luxemburguesa e não teve em conta a exigência, recordada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual a existência de um eventual auxílio deve ser apreciada à luz das disposições pertinentes do direito nacional.

92      Em segundo lugar, o Tribunal Geral cometeu erros de direito ao basear‑se na existência de uma derrogação ao quadro de referência resultante do efeito combinado de disposições gerais. Não contesta que os artigos 164.o e 166.o da LIR foram aplicados corretamente nem considera que estes artigos são discriminatórios enquanto tais. No entanto, ao basear‑se no efeito combinado destas disposições e ao referir‑se à «realidade económica e fiscal» das operações realizadas, rejeitou aquilo que qualificou de «abordagem formalista», a fim de «ultrapassar as aparências jurídicas».

93      Em terceiro lugar, o Tribunal Geral cometeu erros de direito quanto à exigência de demonstrar uma discriminação relativamente a empresas que se encontram numa situação comparável à do grupo Engie. Em particular, reconheceu que o sistema de financiamento posto em prática por este grupo foi «aberto a todos» e que outras empresas podiam obter legalmente uma aplicação das normas fiscais análoga àquela de que beneficiou o referido grupo.

94      Em quarto lugar, o Tribunal Geral também cometeu um erro de direito ao considerar seletivas, na aceção do artigo 107.o TFUE, medidas individuais de aplicação de um regime fiscal geral, cuja legalidade não pôs em causa, nem contestou a possibilidade de todos acederem ao sistema de financiamento utilizado pelo grupo Engie. Por conseguinte, considerou que o tratamento fiscal concedido a este grupo através das decisões fiscais antecipadas em causa era seletivo, ainda que este tratamento tenha resultado da aplicação não seletiva de regras nacionais que, por sua vez, não são seletivas.

95      O primeiro fundamento no âmbito do processo C‑454/21 P está dividido em quatro partes. A segunda a quarta partes deste fundamento, relativas, respetivamente, ao erro de direito e à desvirtuação dos factos no que respeita ao nexo entre os artigos 164.o e 166.o da LIR, ao erro de direito e ao erro manifesto de apreciação que o Tribunal Geral cometeu ao considerar os acréscimos sobre o ZORA distribuições de lucros, e ao erro de direito e ao erro manifesto de apreciação que também cometeu ao considerar que as decisões fiscais antecipadas em causa conferiam uma vantagem seletiva correspondem, em substância, aos argumentos que figuram no primeiro fundamento do recurso no processo C‑451/21 P.

96      A Engie e o. sublinham, em particular, que a relação de dependência entre os artigos 164.o e 166.o da LIR, na qual se baseou o Tribunal de Geral, não resulta nem da lei, nem da jurisprudência, nem da prática administrativa. O Tribunal Geral reconheceu, aliás, que o segundo artigo não faz depender formalmente a concessão da isenção dos rendimentos de participações ao nível de uma sociedade‑mãe à tributação prévia dos lucros distribuídos ao nível da sua filial. A apreciação do Tribunal Geral contradiz não só a redação dos referidos artigos, mas também a prática fiscal luxemburguesa, conforme descrita pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo na carta de 31 de janeiro de 2018. Ao fazê‑lo, o Tribunal Geral violou o princípio constitucional da legalidade do imposto e desvirtuou a resposta que figura nesta carta, bem como o Parecer do Conselho de Estado de 1965.

97      O Tribunal Geral também não teve em conta a qualificação jurídica dos ZORA, que são instrumentos convertíveis que correspondem simultaneamente a duas definições, primeiro, à de dívida e, em seguida, à de capital, qualificação que é, contudo, essencial para determinar o tratamento fiscal de cada sujeito passivo. Esta prática constitui uma violação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, posto que a tomada em consideração dos efeitos económicos de uma determinada medida só deve ocorrer na fase da demonstração de uma derrogação às disposições fiscais que constituem o quadro de referência, uma vez que este último só pode ser definido em função da natureza dos instrumentos em causa e das disposições fiscais nacionais pertinentes.

98      A Comissão contesta o primeiro fundamento de cada um dos recursos.

99      Alega, nomeadamente, que não definiu artificialmente o quadro de referência restrito aos artigos 164.o e 166.o da LIR. Recorda, de resto, que adotou, a título principal, um primeiro quadro de referência mais amplo, correspondente ao sistema luxemburguês de tributação das sociedades. No contexto deste quadro mais amplo, as isenções previstas no artigo 166.o da LIR constituem, segundo a Comissão, derrogações ao princípio geral da tributação, o que já não é o caso à luz do quadro de referência restrito aos artigos 164.o e 166.o da LIR. No entanto, o nexo entre estes artigos é evidente. É verdade que o artigo 166.o da LIR não remete expressamente para o artigo 164.o, n.o 2, desta lei. Contudo, este facto não é decisivo e é necessário verificar se estas disposições formam um sistema e analisar o nexo lógico que as une.

100    Além disso, a interpretação literal não é a única interpretação possível da lei fiscal. A este propósito, a Comissão recorda que o próprio grupo Engie qualificou os lucros resultantes da anulação de ações de distribuição de lucros. Quanto à carta de 31 de janeiro de 2018, a frase citada pelo Tribunal Geral no n.o 295 do acórdão recorrido consta efetivamente desta carta e não é ambígua. A Comissão admite, no entanto, que as autoridades luxemburguesas também alegam na referida carta que o artigo 166.o da LIR deve ser objeto de uma interpretação literal, que deve ser aplicado se os requisitos nele previstos estiverem preenchidos e, por último, que as disposições do artigo 164.o dessa lei não são uma condição sine qua non à aplicação do regime de isenção das participações consagrado no artigo 166.o da referida lei.

101    Além disso, a carta de 31 de janeiro de 2018, assim como o Parecer do Conselho de Estado de 1965, é apenas um dos elementos utilizados pela Comissão e pelo Tribunal Geral para estabelecer o nexo entre os artigos 164.o e 166.o da LIR.

102    No que respeita à correspondência económica entre a dedutibilidade dos acréscimos sobre o ZORA ao nível das filiais e a isenção ao nível das holding dos rendimentos de participações, o Tribunal Geral, em conformidade com a jurisprudência segundo a qual os auxílios de Estado devem ser considerados em função dos seus efeitos e não da sua forma, limitou‑se a contrapor a aparência jurídica das transações em causa à sua realidade económica, sublinhando que a sua separação formal não pode ocultar o nexo efetivo que as une.

103    Por último, a crítica feita à Comissão, por não ter identificado outras sociedades além das sociedades do grupo Engie que foram destinatárias de decisões fiscais antecipadas a título de montagens comparáveis, é manifestamente desprovida de fundamento com base na leitura dos considerandos 205 e 215 da decisão controvertida.

b)      Apreciação do Tribunal de Justiça

1)      Observações preliminares

104    Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as intervenções dos Estados‑Membros nos domínios que não foram objeto de harmonização no direito da União não estão excluídas do âmbito de aplicação das disposições do Tratado FUE relativas ao controlo dos auxílios de Estado. Os Estados‑Membros devem assim abster‑se de adotar qualquer medida fiscal que possa constituir um auxílio de Estado que seja incompatível com o mercado interno (Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão, C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.o 65 e jurisprudência referida).

105    A este respeito, resulta de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que a qualificação de uma medida nacional de «auxílio de Estado», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, exige que estejam preenchidos todos os seguintes requisitos. Primeiro, deve tratar‑se de uma intervenção do Estado ou ser proveniente de recursos estatais. Segundo, essa intervenção deve ser suscetível de afetar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros. Terceiro, essa intervenção deve conferir uma vantagem seletiva ao seu beneficiário. Quarto, essa intervenção deve falsear ou ameaçar falsear a concorrência (Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão, C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.o 66 e jurisprudência referida).

106    No que respeita ao requisito relativo à seletividade da vantagem, este impõe que se determine se, no âmbito de um determinado regime jurídico, a medida nacional em causa é suscetível de favorecer «certas empresas ou certas produções» em relação a outras, que se encontrem, à luz do objetivo prosseguido pelo referido regime, numa situação factual e jurídica comparável e que estão assim sujeitas a uma tratamento diferenciado que pode, em substância, ser qualificado de discriminatório (Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão, C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.o 67 e jurisprudência referida).

107    Para qualificar uma medida fiscal nacional de «seletiva», a Comissão deve identificar, num primeiro momento, o sistema de referência, a saber, o regime fiscal «normal» aplicável no Estado‑Membro em causa, e demonstrar, num segundo momento, que a medida fiscal em causa derroga este sistema de referência, na medida em que introduz diferenciações entre operadores económicos que se encontram, atendendo ao objetivo prosseguido por este último, numa situação factual e jurídica comparável. O conceito de «auxílio de Estado» não abrange, contudo, as medidas que introduzem uma diferenciação entre empresas que se encontram, tendo em conta o objetivo prosseguido pelo regime jurídico em causa, numa situação factual e jurídica comparável e, por conseguinte, a priori, seletivas, quando o Estado‑Membro em causa conseguir demonstrar, num terceiro momento, que esta diferenciação é justificada, no sentido de que resulta da natureza ou da estrutura do sistema em que estas medidas se inserem (Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão, C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.o 68 e jurisprudência referida).

108    Conforme foi sublinhado nos n.os 78 e 79 do presente acórdão, a determinação do quadro de referência reveste uma importância acrescida no caso das medidas fiscais porque a existência de uma vantagem económica, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, só pode ser declarada em relação a uma tributação dita «normal».

109    Assim, a determinação de todas as empresas que se encontram numa situação factual e jurídica comparável depende da definição prévia do regime jurídico à luz de cujo objetivo deve, sendo caso disso, ser examinada a comparabilidade da situação factual e jurídica respetiva das empresas que são beneficiadas pela medida em causa e daquelas que não o são (Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão, C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.o 69 e jurisprudência referida).

110    Para efeitos da apreciação do caráter seletivo de uma medida fiscal, é assim necessário que o regime fiscal comum ou o sistema de referência aplicável no Estado‑Membro em causa esteja corretamente identificado na decisão da Comissão e seja examinado pelo juiz chamado a conhecer de uma contestação relativa a essa identificação. Constituindo a determinação do sistema o ponto de partida do exame comparativo que deve ser realizado no contexto da apreciação da seletividade, um erro cometido no momento em que feita esta determinação é efetuada vicia necessariamente toda a análise da condição relativa à seletividade (Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão, C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.o 71 e jurisprudência referida).

111    Neste contexto, em primeiro lugar, há que especificar que a determinação do quadro de referência, que deve ser efetuada no final de um debate contraditório com o Estado‑Membro em causa, deve decorrer de um exame objetivo do conteúdo, da articulação e dos efeitos concretos das normas aplicáveis ao abrigo do direito nacional desse Estado (Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão, C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.o 72 e jurisprudência referida).

112    Em segundo lugar, fora dos domínios nos quais o direito fiscal da União é objeto de harmonização, é o Estado‑Membro em causa que determina, através do exercício das suas competências próprias em matéria de fiscalidade direta e no respeito da sua autonomia fiscal, as características constitutivas do imposto, as quais definem, em princípio, o sistema de referência ou o regime fiscal «normal», a partir do qual há que analisar o requisito relativo à seletividade. É o que sucede, nomeadamente, com a determinação da matéria coletável do imposto, o seu facto gerador e eventuais isenções a que está sujeito (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão, C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.o 73 e jurisprudência referida).

113    Daqui resulta que só o direito nacional aplicável no Estado‑Membro em causa deve ser tomado em consideração para identificar o sistema de referência em matéria de fiscalidade direta, constituindo esta própria identificação um requisito prévio indispensável para apreciar não só a existência de uma vantagem mas também a questão de saber se esta reveste uma natureza seletiva (Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão, C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.o 74 e jurisprudência referida).

114    Todavia, esta conclusão não prejudica a possibilidade de declarar, como sucedeu no processo que deu origem ao Acórdão de 15 de novembro de 2011, Comissão e Espanha/Government of Gibraltar e Reino Unido (C‑106/09 P e C‑107/09 P, EU:C:2011:732), que o próprio quadro de referência, como decorre do direito nacional, é incompatível com o direito da União em matéria de auxílios de Estado, quando o sistema fiscal em causa tiver sido configurado segundo parâmetros manifestamente discriminatórios, destinados a contornar este direito (v., neste sentido, Acórdão de 16 de março de 2021, Comissão/Hungria, C‑596/19 P, EU:C:2021:202, n.o 49).

2)      Quanto à existência de erros de direito e de uma desvirtuação dos factos na determinação do quadro de referência restrito aos artigos 164.o e 166.o da LIR

115    Para determinar o que deveria ter sido, ao abrigo do direito luxemburguês, uma tributação normal e, por conseguinte, se foi concedida uma vantagem seletiva ao grupo Engie, a Comissão procedeu, conforme exposto nos n.os 31 a 40 do presente acórdão, a uma interpretação desse direito baseada, nomeadamente, na asserção de que o sistema geral de tributação das sociedades no Luxemburgo, que prevê o princípio da tributação dos rendimentos destas últimas, não permite, no caso do grupo Engie, isentar ao nível das holdings os rendimentos de participações em aplicação do artigo 166.o da LIR e que a leitura conjugada dos artigos 164.o e 166.o desta lei se opõe à aplicação concomitante de uma isenção destes rendimentos ao nível das holdings e de uma dedução dos montantes correspondentes ao nível das filiais. No seu raciocínio apresentado a título subsidiário, a Comissão considerou que essa aplicação concomitante deveria ter sido afastada por força do artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal.

116    Consequentemente, para apreciar o caráter seletivo das medidas em causa à luz da LIR, o Tribunal Geral tinha de verificar se a isenção dos rendimentos correspondente aos acréscimos sobre o ZORA, concedida ao abrigo dessas medidas ao nível das holdings, constituía uma derrogação às disposições pertinentes da LIR atendendo às diferentes linhas de raciocínio adotadas pela Comissão na decisão controvertida, que são contestadas pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo e pela Engie e o.

117    Com o seu primeiro fundamento, o Grão‑Ducado do Luxemburgo e a Engie e o. contestam a apreciação do Tribunal Geral mediante a qual este confirmou o mérito da segunda linha de raciocínio da Comissão, de acordo com a qual resulta da interpretação dos artigos 164.o e 166.o da LIR que o tratamento fiscal dos ZORA do grupo Engie, através das decisões fiscais antecipadas em causa, constitui uma derrogação à aplicação «normal» destas disposições, o que confere uma vantagem seletiva a este grupo.

118    A este respeito, como foi recordado no n.o 112 do presente acórdão, é o Estado‑Membro em causa que determina, fora dos domínios em que o direito fiscal da União é objeto de harmonização, através do exercício das suas competências próprias em matéria de fiscalidade direta e no respeito da sua autonomia fiscal, as características constitutivas do imposto, como a sua matéria coletável, o seu facto gerador e eventuais isenções a que está sujeito, as quais definem, em princípio, o sistema de referência ou o regime fiscal «normal».

119    Além disso, o princípio da legalidade do imposto, que faz parte da ordem jurídica da União enquanto princípio geral de direito, exige que todas as obrigações de pagamento de um imposto e todos os elementos essenciais que definem as suas características fundamentais estejam previstos na lei, devendo ser dada ao sujeito passivo a possibilidade de prever e de calcular o montante do imposto devido e determinar em que momento este se tornará exigível (v., neste sentido, Acórdão de 8 de maio de 2019, Związek Gmin Zagłębia Miedziowego, C‑566/17, EU:C:2019:390, n.o 39).

120    Resulta do exposto que, ao determinar o quadro de referência com vista à aplicação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE a medidas fiscais, a Comissão tem, em princípio, de aceitar a interpretação das disposições pertinentes do direito nacional dada pelo Estado‑Membro em causa no âmbito do debate contraditório referido no n.o 111 do presente acórdão, desde que esta interpretação seja compatível com a redação dessas disposições.

121    A Comissão só se pode afastar da referida interpretação se conseguir demonstrar que prevalece outra interpretação na jurisprudência ou na prática administrativa desse Estado‑Membro, baseando‑se, para o efeito, em elementos fiáveis e concordantes, que estão sujeitos a esse debate contraditório.

122    Em conformidade com o artigo 4.o, n.o 3, TUE, o referido Estado‑Membro está vinculado por um dever de cooperação leal durante todo o procedimento relativo ao exame de uma medida ao abrigo das disposições do direito da União em matéria de auxílios de Estado (Acórdão de 6 de novembro de 2018, Scuola Elementare Maria Montessori/Comissão, Comissão/Scuola Elementare Maria Montessori e Comissão/Ferracci, C‑622/16 P a C‑624/16 P, EU:C:2018:873, n.o 83 e jurisprudência referida). Este dever implica, nomeadamente, que esse Estado‑Membro forneça de boa‑fé à Comissão todas as informações pertinentes solicitadas por esta última relativas à interpretação das disposições do direito nacional pertinentes para determinar o quadro de referência, resultante da jurisprudência ou da prática administrativa nacionais.

123    No caso em apreço, no que respeita ao tratamento fiscal de instrumentos financeiros como os ZORA, o Tribunal Geral referiu, por um lado, no n.o 292 do acórdão recorrido, que o artigo 166.o da LIR «não faz depender formalmente a concessão da isenção dos rendimentos de participações ao nível de uma sociedade‑mãe à tributação prévia dos lucros distribuídos ao nível da sua filial», à semelhança da Comissão que, no considerando 218 da decisão controvertida, tinha considerado que não existia «nenhuma ligação expressamente estabelecida entre o artigo 166.o da LIR e o artigo 164.o, n.os 1 e 2, da LIR» e, por outro, no n.o 300 do acórdão recorrido, que «os acréscimos sobre o ZORA não s[ão] formalmente distribuições de lucros».

124    Por conseguinte, o Tribunal Geral afastou‑se de uma interpretação literal dessas disposições. Ao confirmar a abordagem da Comissão, considerou, num primeiro momento, que a isenção dos rendimentos de participações de uma holding só pode ocorrer, nos termos do direito luxemburguês, se os rendimentos distribuídos pela sua filial forem previamente tributados.

125    Baseou‑se, a este respeito, nos n.os 295 e 296 do acórdão recorrido, em dois aspetos considerados pela Comissão na decisão controvertida. Trata‑se, por um lado, da carta de 31 de janeiro de 2018, que «não é ambígua», uma vez que o Grão‑Ducado do Luxemburgo reconheceu nesta carta que «todas as participações cujos rendimentos podem beneficiar do regime de isenção previsto no artigo 166.o da LIR estão igualmente abrangidas pelas disposições do artigo 164.o da LIR». O Tribunal Geral remeteu, por outro lado, para o Parecer do Conselho de Estado de 1965 sobre o projeto de lei que incorpora o artigo 166.o na LIR, no qual este último sublinhou que esta disposição permite, «por motivos de justiça fiscal e de ordem económica», evitar a dupla ou tripla tributação dos rendimentos distribuídos, mas não, em substância, evitar qualquer tributação dos referidos rendimentos.

126    Num segundo momento, o Tribunal Geral considerou que havia que afastar a abordagem formalista que consiste em considerar isoladamente cada uma das operações que compõem a montagem financeira elaborada pelas sociedades em causa e ultrapassar as aparências jurídicas para apreender a realidade económica e fiscal desta montagem, o que o levou a declarar, no n.o 312 do acórdão recorrido, que os acréscimos sobre o ZORA correspondem materialmente, «nas circunstâncias muito específicas do caso em apreço, a distribuições de lucros».

127    Assim, após ter recordado, nos n.os 340 a 342 do acórdão recorrido, que, no direito luxemburguês, existe um nexo entre a isenção dos rendimentos das participações ao nível de uma sociedade‑mãe e a dedutibilidade dos rendimentos distribuídos ao nível da sua filial, o Tribunal Geral concluiu, no n.o 343 desse acórdão, que, «devido ao referido nexo e à consideração ao nível das holding[s] envolvidas do efeito combinado dessas duas operações, as [decisões fiscais antecipadas] em causa derrogam o quadro de referência» composto pelos artigos 164.o e 166.o da LIR. Resulta do exposto, segundo a análise do Tribunal Geral que figura nos n.os 344 e 345 desse acórdão, primeiro, que a Comissão pôde, com razão, deduzir desse efeito combinado, nos considerandos 208 e 209 da decisão controvertida, que existia uma derrogação a esse quadro de referência e, segundo, que esta instituição não cometeu nenhum erro de direito quando considerou, ao nível das holdings, o efeito combinado da dedutibilidade dos rendimentos ao nível de uma filial e da sua posterior isenção ao nível da sua sociedade‑mãe.

128    Ora, os elementos em que o Tribunal Geral se baseou, recordados no n.o 125 do presente acórdão, não lhe permitiam concluir validamente que a Comissão logrou, de acordo com os princípios expostos nos n.os 120 a 122 deste acórdão, fazer prova bastante de que, no direito luxemburguês, existia uma interpretação diferente da apresentada pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo, no que respeita à subordinação da isenção prevista no artigo 166.o da LIR à tributação, ao nível das sociedades filiais, dos rendimentos isentos ao nível das holdings, sendo esta última interpretação coerente com a redação desta disposição que, formalmente, não estabelece semelhante subordinação.

129    A este respeito, relativamente à carta de 31 de janeiro de 2018, importa realçar que, conforme sustentam a Engie e o., o Tribunal Geral considerou, no n.o 295 do acórdão recorrido, desvirtuando a redação desta carta, que o nexo de condicionalidade entre os artigos 164.o e 166.o da LIR, relativo a uma tributação prévia dos rendimentos ao nível da entidade distribuidora com vista a beneficiar da isenção prevista nesta última disposição, resultava expressamente da carta do Grão‑Ducado do Luxemburgo. Com efeito, é manifesto que, ao concluir pela existência desse nexo, o Tribunal Geral apreciou a frase dessa carta citada naquele número fora de contexto, à semelhança da Comissão. Esta apreciação é inconciliável com outras passagens da referida carta, nas quais esse Estado‑Membro indicou que a referida disposição «não exige que os rendimentos de participações sejam previamente tributados para beneficiar do regime de isenção previsto», que os artigos 164.o e 166.o da LIR não devem ser objeto de uma aplicação «conjunta», e que «as disposições do artigo 164.o da LIR não constituem uma condição sine qua non da aplicação do regime de isenção dos rendimentos de participação conforme consagrado no artigo 166.o da LIR».

130    No que respeita ao Parecer do Conselho de Estado de 1965, basta atentar, à semelhança da advogada‑geral no n.o 121 das suas conclusões, que este parecer se limita a referir que a disposição nele examinada, à qual o artigo 166.o da LIR corresponde, tinha por objetivo evitar uma tributação múltipla dos lucros societários ao nível de uma filial e da sua sociedade‑mãe antes de serem distribuídos aos acionistas, sem referir, em contrapartida, que esta disposição visava igualmente evitar eventuais situações de dupla não tributação relativamente aos rendimentos de participações de uma sociedade‑mãe.

131    Consequentemente, foi na sequência de uma análise viciada por um erro de direito e por uma desvirtuação dos factos que o Tribunal Geral confirmou, no n.o 298 do acórdão recorrido, a conclusão da Comissão relativa à existência de uma ligação entre os artigos 164.o e 166.o da LIR, no sentido de que a isenção ao nível de uma sociedade‑mãe dos rendimentos de participações está sujeita à tributação dos lucros distribuídos ao nível da sua filial.

132    Por conseguinte, há que julgar procedente o primeiro fundamento dos recursos, sem que seja necessário examinar a segunda parte do primeiro fundamento de recurso invocado pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo e relativo a erros referentes à derrogação do quadro de referência restrito aos artigos 164.o e 166.o da LIR.

2.      Quanto ao segundo fundamento dos recursos

a)      Argumentos das partes

133    O segundo fundamento no processo C‑451/21 P está dividido em quatro partes, relativas, a primeira, à adoção pelo Tribunal Geral de uma premissa manifestamente errada e à desvirtuação, pelo mesmo, do direito nacional, a segunda, a erros de direito cometidos pelo Tribunal Geral ao identificar o quadro de referência no qual se baseou em matéria de abuso de direito e a uma fundamentação insuficiente e contraditória que vicia o acórdão recorrido, a terceira, a erros quanto à demonstração da existência de uma derrogação a esse quadro de referência e, a quarta, apresentada a título subsidiário, à violação dos direitos de defesa do Grão‑Ducado do Luxemburgo.

134    Na primeira parte deste fundamento, o Grão‑Ducado do Luxemburgo alega, nomeadamente, que o raciocínio do Tribunal Geral assenta integralmente na premissa errada de que o resultado fiscal obtido pelo grupo Engie não teria sido possível sem a existência de intermediárias, que são um elo essencial da montagem financeira realizada por este grupo. Recorda, no entanto, ter afirmado, em sede de primeira instância, que um ZORA direto, celebrado sem recurso a uma intermediária, teria conduzido a um resultado tributável idêntico ao que decorre de um ZORA indireto, uma vez que o credor pode, num primeiro momento, quando da conversão do ZORA direto, beneficiar da neutralidade fiscal permitida pelo artigo 22.o‑A da LIR, e posteriormente, num segundo momento, da isenção de eventuais distribuições ou mais‑valias, ao abrigo do artigo 166.o desta lei, o que foi reconhecido pelo Tribunal Geral ao declarar que estes artigos não excluem formalmente essa isenção.

135    Por conseguinte, o Tribunal Geral considerou erradamente que estavam preenchidos três critérios do abuso de direito, previstos no artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal, e, em consequência, que as decisões fiscais antecipadas em causa derrogavam o quadro de referência.

136    Na segunda parte do segundo fundamento, o Grão‑Ducado do Luxemburgo sustenta, em primeiro lugar, que o Tribunal Geral considerou erradamente que não é necessário ter em conta a prática administrativa, uma vez que o artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal não suscita dificuldades de interpretação. O Tribunal Geral não teve, assim, em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça, da qual resulta o dever, ao definir o quadro de referência, de proceder a uma análise detalhada do direito aplicável no Estado‑Membro em causa, bem como da sua prática administrativa e jurisdicional. Esta análise é ainda mais importante porque o artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal está redigido em termos gerais e exige, como tal, uma apreciação caso a caso. A este respeito, o fundamento segundo o qual o Grão‑Ducado do Luxemburgo não forneceu à Comissão exemplos da sua prática administrativa, além de ter invertido o ónus da prova, carece de base factual, dado que este Estado‑Membro forneceu à Comissão vários exemplos de decisões fiscais antecipadas.

137    Em segundo lugar, o quadro de referência adotado pelo Tribunal Geral é incompleto, primeiro, porque não recorda que o recurso ao conceito de abuso de direito pela Administração luxemburguesa constitui uma exceção, segundo, porque não tem em conta o facto de o contribuinte ser plenamente livre de escolher a solução que considerar menos onerosa do ponto de vista fiscal e, por último, porque esta liberdade de escolha do contribuinte se opõe a que a Administração Fiscal interfira nas opções que este toma no interesse da sua empresa e substitua a sua apreciação pela do contribuinte.

138    Em terceiro lugar, o Tribunal Geral invocou uma derrogação ao objetivo do sistema fiscal de referência, e não a esse próprio sistema, ao passo que a jurisprudência constante recorda que apenas uma derrogação ao quadro de referência permite demonstrar a seletividade de uma medida. Não cabe à Comissão nem ao Tribunal Geral, no âmbito do direito dos auxílios de Estado, definir, em lugar do Estado‑Membro em causa, o objetivo do sistema fiscal nacional.

139    Na terceira parte do segundo fundamento, o Grão‑Ducado do Luxemburgo sustenta, em particular, que o Tribunal Geral não teve em conta o risco económico inerente às transações em causa, cujos efeitos dependem dos resultados das filiais. Se o Tribunal Geral tivesse tido em conta este risco, teria inevitavelmente concluído que o segundo critério de abuso de direito, relativo à redução da carga fiscal, não estava preenchido. Além disso, a jurisprudência luxemburguesa não permite concluir ex post pela existência de um abuso de direito através de uma transação quando essa transação tenha sido anteriormente aprovada por uma decisão fiscal antecipada emitida validamente.

140    Na quarta parte deste fundamento, o Grão‑Ducado do Luxemburgo alega que os seus direitos de defesa foram violados, posto que, na decisão de dar início ao procedimento formal de investigação, a Comissão mencionou somente a título incidental e apenas num parágrafo a possibilidade de existir um abuso de direito que não está especificamente definido, estando antes relacionado com a possibilidade de as filiais procederem à dedução dos acréscimos sobre o ZORA. Ora, esta acusação não corresponde ao que figura na decisão controvertida.

141    O segundo fundamento no processo C‑454/21 P está dividido em três partes, relativas, a primeira, a erros de direito e a um erro manifesto de apreciação cometidos pelo Tribunal Geral ao determinar o quadro de referência, a segunda, ao erro de direito que resulta da identificação, pelo Tribunal Geral, de uma vantagem seletiva à luz do artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal e, a terceira, a um erro manifesto de apreciação que resulta da interpretação do direito luxemburguês pelo Tribunal Geral.

142    Na primeira parte desse fundamento, a Engie e o. alegam que o Tribunal Geral cometeu um erro manifesto de apreciação ao concluir que elas não tinham contestado a definição do quadro de referência visto que foi alargado ao artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal. Com efeito, na sua petição apresentada ao Tribunal Geral, puseram em causa a competência da Comissão e a sua interpretação in abstrato dos critérios de abuso de direito fixados pelo órgão jurisdicional administrativo luxemburguês, e sustentaram que era necessário ter em conta a prática administrativa e jurisdicional das autoridades luxemburguesas em situações comparáveis à sua.

143    No que respeita aos erros de direito, o Tribunal Geral, à semelhança da Comissão, interpretou o artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal sem ter em conta as regras de direito aplicáveis nem a prática administrativa e jurisdicional das autoridades luxemburguesas em situações comparáveis à da Engie e o., para montagens análogas. Além disso, rescreveu a decisão controvertida a este respeito.

144    Na segunda parte do segundo fundamento, a Engie e o. sustentam que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito e que não teve em conta a sua própria jurisprudência ao rejeitar a premissa de que o conceito de «abuso de direito», embora de interpretação estrita, deve ser sempre apreciado caso a caso.

145    Na terceira parte do segundo fundamento, a Engie e o. alegam que, mesmo que se admita que o quadro de referência abrange o artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal, o Tribunal Geral cometeu um erro manifesto de apreciação ao interpretar e aplicar esta disposição. Assim, o Tribunal Geral contradisse‑se ao considerar que a conversão direta do ZORA não podia resultar em rendimentos isentos de tributação na aceção do artigo 166.o da LIR à luz da finalidade do artigo 22.o‑A desta lei, antes de admitir que estas disposições não excluem formalmente a isenção dos rendimentos.

146    A Comissão contesta o segundo fundamento dos recursos.

147    Refere, nomeadamente, que o Tribunal Geral não cometeu nenhuma desvirtuação ao declarar que a definição do quadro de referência que abrange o artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal não foi contestada pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo e pela Engie e o. De qualquer modo, o Tribunal Geral não negou a necessidade de o abuso de direito ser apreciado caso a caso, tendo apenas esclarecido que os critérios para aferir a existência de um abuso de direito estabelecidos pelo direito luxemburguês são claros.

148    A título subsidiário, embora a Comissão não conteste a livre escolha do contribuinte de seguir a via menos onerosa e a proibição feita à Administração Fiscal de substituir a escolha da empresa pela sua escolha, considera, no entanto, que estes princípios são balizados, no direito luxemburguês, pelo artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal e que qualquer interpretação contrária deste artigo retirar‑lhe‑ia o seu sentido.

149    O facto de o Tribunal Geral ter referido que o artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal já foi aplicado não permite concluir que este considerou as medidas em causa seletivas apenas por este motivo, mas simplesmente que o Tribunal Geral pretendeu evitar a crítica de que esta disposição continua a ser letra morta.

150    A Comissão refere igualmente que não partiu do pressuposto de que existe um abuso de direito. Sustenta que um ZORA direto não conduz ao mesmo resultado fiscal que um ZORA indireto e que, mesmo que assim fosse, continuaria a existir um abuso de direito. Além disso, analisou os quatro critérios constitutivos de abuso de direito à luz dos factos do caso em apreço, tendo concluído que estes critérios estavam preenchidos. A este respeito, o facto de as atividades em causa estarem sujeitas a um risco económico não é pertinente. Só é relevante a questão de saber se o tratamento fiscal em causa é ou não abusivo.

b)      Apreciação do Tribunal de Justiça

151    Importa começar por examinar os argumentos do Grão‑Ducado do Luxemburgo e da Engie e o., relativos ao facto de o Tribunal Geral ter considerado erradamente que a Comissão podia demonstrar o caráter seletivo das decisões fiscais antecipadas em causa à luz do quadro de referência constituído pelo artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal sem ter em conta a prática administrativa nacional relativa a esta disposição, dado que esta última não suscita dificuldades de interpretação.

152    A este respeito, importa, em primeiro lugar, recordar que qualificar uma medida fiscal de «seletiva» pressupõe não só o conhecimento do conteúdo das normas jurídicas pertinentes mas também a análise do seu alcance, baseada, designadamente, na prática administrativa e jurisdicional do Estado‑Membro em causa (v., neste sentido, Acórdão de 18 de julho de 2013, P, C‑6/12, EU:C:2013:525, n.o 20).

153    Em segundo lugar, como a advogada‑geral salientou, em substância, nos n.os 146 a 148 das suas conclusões, uma disposição, como o artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal, que visa prevenir abusos fiscais ao nível horizontal, apresenta, por natureza, um grau de generalidade particularmente elevado, sendo suscetível de se aplicar a uma ampla gama de contextos e de situações.

154    Em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 112 do presente acórdão, a opção de prever semelhante disposição no direito nacional e de definir as modalidades com base nas quais as autoridades fiscais devem aplicá‑la faz parte das competências próprias dos Estados‑Membros em matéria de fiscalidade direta nos domínios que não foram objeto de harmonização no direito da União e, como tal, da sua autonomia fiscal.

155    Ora, tendo em conta a natureza de uma disposição antiabuso como a referida no n.o 153 do presente acórdão, a Comissão só pode chegar à conclusão de que a não aplicação pelas autoridades fiscais da referida disposição, com o intuito de recusarem um tratamento fiscal solicitado por um contribuinte num pedido de decisão fiscal antecipada, acarretou a concessão de uma vantagem seletiva se essa não aplicação se afastar da jurisprudência ou da prática administrativa nacionais relativas a essa disposição. Com efeito, se assim não fosse, a própria Comissão poderia definir o que constitui ou não uma aplicação correta daquela disposição, o que excede os limites das competências que lhe são conferidas pelos Tratados em matéria de controlo dos auxílios de Estado e é incompatível com a autonomia fiscal dos Estados‑Membros recordada no número anterior.

156    Resulta do exposto que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar, no n.o 409 do acórdão recorrido, que a tomada em consideração pela Comissão da prática administrativa das autoridades fiscais luxemburguesas relativa ao artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal não se afigurava necessária, uma vez que esta disposição não suscita dificuldades de interpretação.

157    O Tribunal Geral sublinhou efetivamente, por outro lado, nesse n.o 409, que a Comissão tinha remetido, nos considerandos 293 a 298 da decisão controvertida, para uma nota de serviço da Administração luxemburguesa e para a prática jurisdicional deste Estado‑Membro, da qual retirou os quatro critérios para declarar que, à luz direito luxemburguês, existia um abuso de direito em matéria fiscal na aceção dessa disposição.

158    No entanto, como a advogada‑geral salientou nos n.os 153 e 154 das suas conclusões, a Comissão limitou‑se, nessa passagem da decisão controvertida, a fazer um exame geral dos requisitos de aplicação do artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal, sem demonstrar que, nas decisões fiscais antecipadas em causa, a Administração Fiscal luxemburguesa se tinha afastado, sobretudo, da sua prática relativa a operações comparáveis às que estavam em causa.

159    Por conseguinte, há que julgar igualmente procedente, por esse motivo, o segundo fundamento dos recursos, sem que seja necessário examinar os restantes argumentos invocados pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo e pela Engie e o. em apoio do referido fundamento.

160    Tendo em conta a procedência do primeiro e segundo fundamentos dos recursos, há que anular o acórdão recorrido, sem que seja necessário apreciar os restantes fundamentos dos recursos. Com efeito, resulta da procedência destes fundamentos que a constatação feita pelo Tribunal Geral no n.o 478 do acórdão recorrido, de que a rejeição dos fundamentos de anulação que visam, em substância, a análise, na decisão controvertida, de um quadro de referência restrito aos artigos 164.o e 166.o da LIR, ou de um quadro de referência constituído pelo artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal, é suficiente para demonstrar a seletividade das decisões fiscais antecipadas em causa, é desprovida de fundamento.

V.      Quanto aos recursos interpostos no Tribunal Geral

161    Em conformidade com o artigo 61.o, primeiro parágrafo, segundo período, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, o Tribunal de Justiça pode, em caso de anulação da decisão do Tribunal Geral, decidir definitivamente o litígio, se este estiver em condições de ser julgado.

162    É o que acontece no presente caso, uma vez que os fundamentos dos recursos de anulação da decisão controvertida que foram objeto de debate contraditório no Tribunal Geral e o seu exame não exigem medidas suplementares de organização do processo nem medidas de instrução.

163    Importa examinar, em primeiro lugar, o primeiro e segundo fundamentos do recurso no processo T‑516/18 e o segundo e terceiro fundamentos do recurso no processo T‑525/18, na parte em que as recorrentes acusam a Comissão de ter concluído erradamente que as decisões fiscais antecipadas em causa tinham concedido vantagens seletivas à luz do quadro de referência restrito aos artigos 164.o e 166.o da LIR e do quadro de referência constituído pelo artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal, analisados pelo Tribunal Geral no acórdão recorrido e que correspondem à segunda e quarta linhas de raciocínio referidas no n.o 31 do presente acórdão.

164    Quanto à segunda linha de raciocínio sobre a seletividade referida no n.o 31 do presente acórdão, é facto assente que a Comissão incluiu o artigo 166.o da LIR no quadro de referência restrito às disposições do direito luxemburguês relativas à tributação das distribuições de lucros e à isenção dos rendimentos de participações. No entanto, esta instituição considerou que as decisões fiscais antecipadas em causa decorrem de uma aplicação errada desta disposição.

165    Assim, no considerando 202 da decisão controvertida, a Comissão, depois de ter concluído que o conceito de «rendimento de participações», na aceção do artigo 166.o da LIR, não está definido na lei, baseou‑se, para definir este conceito, na carta de 31 de janeiro de 2018, na qual o Grão‑Ducado do Luxemburgo indicou que «todas as participações cujos rendimentos podem beneficiar do regime de isenção previsto no artigo 166.o da LIR estão igualmente abrangidas pelas disposições do artigo 164.o da LIR». Concluiu, com base nesta última, que o conceito de «rendimento de participações», que beneficia da isenção prevista no artigo 166.o da LIR, abrange as «distribuições» a favor dos portadores dos títulos, conforme previstas no artigo 164.o da LIR, e esclareceu que essas distribuições de lucros deveriam ter sido tributadas ao nível da entidade distribuidora. Sublinhou, nos considerandos 204 e 213 da decisão controvertida, que este último requisito era aplicável, independentemente da qualificação dos rendimentos em causa como distribuições de lucros ou mais‑valias.

166    Além disso, a Comissão admitiu expressamente, no considerando 212 da decisão controvertida, que, de um ponto de vista económico, o rendimento recebido pela LNG Holding e pela CEF decorrente da conversão dos ZORA é equivalente a semelhante distribuição de lucros.

167    No entanto, uma vez que essa distribuição não foi tributada ao nível da LNG Supply nem da GSTM, a Comissão concluiu que existia uma derrogação a um quadro de referência constituído pelas regras do direito luxemburguês relativas à isenção do rendimento de participações e à tributação das distribuições de lucros. Mais precisamente, retirou dessa derrogação que a Administração Fiscal luxemburguesa admitiu, através das decisões fiscais antecipadas em causa, que a realização dos acréscimos sobre o ZORA ao nível da LNG Holding e da CEF beneficiasse da isenção dos rendimentos de participações ao abrigo do artigo 166.o da LIR, apesar de os referidos acréscimos terem sido deduzidos dos lucros tributáveis da LNG Supply e da GSTM.

168    No entanto, esta análise contém um erro que, segundo a jurisprudência recordada no n.o 110 do presente acórdão, vicia toda a segunda linha de raciocínio relativa à seletividade referida no n.o 31 deste acórdão.

169    A este respeito, por um lado, resulta da análise dos primeiros fundamentos dos recursos, particularmente dos n.os 128 a 131 do presente acórdão, que a Comissão errou ao considerar que podia retirar da carta de 31 de janeiro de 2018 e do Parecer do Conselho de Estado de 1965 que existia um nexo de condicionalidade entre o artigo 164.o e o artigo 166.o da LIR, relativo à tributação prévia dos rendimentos ao nível da entidade distribuidora para beneficiar da isenção prevista nesta última disposição.

170    Por outro lado, a Comissão não examinou, nem demonstrou a fortiori, que, no direito luxemburguês, o conceito de «distribuições» na aceção do artigo 164.o da LIR, por referência ao qual deve, segundo o Grão‑Ducado do Luxemburgo, ser definido o conceito de «rendimento de participações» na aceção do artigo 166.o da LIR, é incompatível com o conceito de «encargo fiscalmente dedutível» ao nível da entidade distribuidora.

171    Por conseguinte, partindo do pressuposto de que, conforme referiu a Comissão no considerando 212 da decisão controvertida, os acréscimos sobre o ZORA abrangidos pelas decisões fiscais antecipadas em causa constituem, de um ponto de vista económico, uma distribuição de lucros na aceção do artigo 164.o da LIR, estas últimas decisões não podiam, contudo, derrogar o artigo 166.o desta lei ao qualificarem estes acréscimos de rendimento de participações da LNG Holding e da CEF e, consequentemente, ao isentarem estes rendimentos ao abrigo desta última disposição. Assim, cumpre observar que a Comissão não respeitou os princípios enunciados nos n.os 120 a 122 do presente acórdão no que respeita à segunda linha de raciocínio.

172    Dito isto, esta conclusão não prejudica uma análise do caráter eventualmente seletivo das decisões fiscais antecipadas em causa com base na conclusão de que os rendimentos da LNG Supply e da GSTM, em cada exercício em causa, em contrapartida da dedução enquanto encargos dos acréscimos sobre o ZORA, foram tributados sobre a margem acordada com as autoridades fiscais luxemburguesas e não em aplicação das regras de direito fiscal comum, das quais decorre que a carga fiscal que recai sobre uma sociedade é, em princípio, calculada com base na aplicação de uma taxa normal de imposto aos rendimentos efetivamente auferidos, após a dedução das despesas operacionais e outros encargos.

173    Em relação à quarta linha de raciocínio referida no n.o 31 do presente acórdão, resulta dos n.os 153 a 158 deste acórdão que a análise da Comissão sobre a vantagem seletiva que resulta da não aplicação do artigo 6.o da Lei de Adaptação Fiscal, relativo ao abuso de direito, também contém um vício de direito, posto que a Comissão não demonstrou que a Administração Fiscal luxemburguesa se afastou, nas decisões fiscais antecipadas em causa, da sua prática relativa a operações comparáveis às que estão em causa.

174    Importa examinar, em segundo lugar, o primeiro e segundo fundamentos do recurso no processo T‑516/18 e o segundo e terceiro fundamentos do recurso no processo T‑525/18, na parte em que as recorrentes acusam a Comissão de ter concluído erradamente que as decisões fiscais antecipadas em causa concederam vantagens seletivas à LNG Holding e à CEF ou ao grupo Engie à luz de um quadro de referência alargado ao sistema luxemburguês de tributação das sociedades, correspondente às primeira e terceira linhas de raciocínio referidas no n.o 31 do presente acórdão.

175    A este respeito, quanto à primeira linha de raciocínio referida no n.o 31 do presente acórdão, importa salientar que, conforme resulta dos considerandos 166 e 196 da decisão controvertida, a Comissão não considerou que as isenções previstas no sistema luxemburguês de tributação das sociedades e, em particular, a isenção prevista no artigo 166.o da LIR são, em si, constitutivas de um regime de auxílios, mas antes que a sua aplicação através das decisões fiscais antecipadas em causa conferiu ao grupo Engie uma vantagem seletiva na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. Assim, a Comissão não alegou nem demonstrou que a própria existência das disposições de direito fiscal luxemburguês pertinentes viola esta última disposição.

176    Por conseguinte, a Comissão considera que a situação mencionada no n.o 114 do presente acórdão, em que o próprio quadro de referência, como decorre do direito nacional, é incompatível com o direito da União em matéria de auxílios de Estado, não corresponde ao presente processo.

177    Ora, como resulta dos n.os 112 e 118 do presente acórdão, o sistema de referência ou o regime fiscal «normal», com base no qual o requisito relativo à seletividade deve ser analisado, deve abranger as disposições que preveem as isenções que a Administração Fiscal nacional considerou aplicáveis ao caso em apreço, quando estas disposições não conferem, em si, uma vantagem seletiva na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. Nesse caso, atendendo às competências próprias dos Estados‑Membros em matéria de fiscalidade direta e o respeito devido à sua autonomia fiscal, recordados no n.o 118 do presente acórdão, a Comissão não pode declarar que existe uma derrogação a um quadro de referência só porque concluiu que uma medida se afasta de um objetivo geral de tributação de todas as sociedades residentes no Estado‑Membro em causa, sem ter em conta disposições do direito nacional que especificam as modalidades de implementação desse objetivo.

178    No caso em apreço, a Comissão, ao se basear num quadro de referência alargado ao sistema luxemburguês de tributação das sociedades, como resulta dos considerandos 171 a 176 da decisão controvertida, não abrangeu o artigo 166.o da LIR no referido quadro.

179    Nos considerandos 179, 182, 184, 185, 187, 188, 190 e 192 dessa decisão, a Comissão rejeitou a pertinência do artigo 166.o da LIR alegando, em substância, que a aplicação desta disposição não pode pôr em causa a conclusão de que o efeito combinado da dedutibilidade dos acréscimos sobre o ZORA ao nível da LNG Supply e da GSTM e da isenção dos rendimentos correspondentes ao nível da LNG Holding e da CEF derroga o objetivo do sistema geral luxemburguês de tributação das sociedades, que consiste em tributar os lucros de todas as sociedades sujeitas a imposto no Luxemburgo. Foi com base nesta análise que a Comissão concluiu, como resulta dos considerandos 192 e 193 da referida decisão, que a derrogação a esse quadro de referência assumiu a forma de isenção dos rendimentos auferidos pela LNG Holding e pela CEF enquanto holdings da LNG Supply e da GSTM, respetivamente.

180    Ora, atento o exposto no n.o 177 do presente acórdão, há que considerar que esta conclusão está juridicamente errada. Com efeito, o artigo 166.o da LIR, que constitui a base jurídica das decisões fiscais antecipadas em causa, deveria ter integrado o quadro de referência que define o sistema «normal» de tributação, uma vez que a Comissão não considerou que esta disposição confere, em si, uma vantagem seletiva na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

181    Este erro, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 110 do presente acórdão, também viciou inevitavelmente toda a análise de seletividade efetuada pela Comissão ao abrigo de um quadro de referência alargado ao sistema luxemburguês de tributação das sociedades.

182    Por último, quanto à terceira linha de raciocínio referida no n.o 31 do presente acórdão, os erros verificados nos n.os 168 a 171 e 180 deste acórdão viciam igualmente a análise da Comissão relativa aos efeitos gerados pelas decisões fiscais antecipadas em causa ao nível do grupo Engie.

183    Com efeito, por um lado, nos considerandos 252 a 254 da decisão controvertida, atinentes à isenção dos rendimentos de participações em aplicação do artigo 166.o da LIR, a Comissão reproduziu, em substância, a análise efetuada no âmbito da segunda linha de raciocínio, baseando‑se num quadro de referência restrito às disposições do direito luxemburguês relativas à tributação das distribuições de lucros e à isenção dos rendimentos de participações, e remeteu, para o efeito, nomeadamente, para o considerando 202 dessa decisão. Resulta do exposto que esta análise contém o mesmo erro conforme observado nos n.os 168 a 171 do presente acórdão.

184    Por outro lado, resulta do considerando 245 da decisão controvertida que, para efeitos dessa análise, a Comissão teve em conta, enquanto quadro de referência, o sistema luxemburguês de tributação das sociedades, conforme descrito nos considerandos 171 a 190 dessa decisão. Ora, como resulta nos n.os 180 e 181 do presente acórdão, esta definição do quadro de referência é errada porque não abrange o artigo 166.o da LIR.

185    De resto, atendendo aos motivos expostos no n.o 177 do presente acórdão, a Comissão não podia concluir validamente que existia uma derrogação ao sistema «normal» de tributação no âmbito desta terceira linha de raciocínio apenas por referência a um objetivo geral do sistema luxemburguês de tributação dos lucros das sociedades residentes no Luxemburgo, como fez no considerando 256 da decisão controvertida.

186    Resulta de todas estas considerações que há que julgar procedentes o primeiro e segundo fundamentos de recurso no processo T‑516/18 e o segundo e terceiro fundamentos de recurso no processo T‑525/18, relativos, em substância, a erros de apreciação e de direito na identificação de uma vantagem seletiva. Por conseguinte, há que anular a decisão controvertida, não sendo necessário examinar os restantes fundamentos dos recursos de anulação.

VI.    Quanto às despesas

187    Por força do artigo 184.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, se o recurso da decisão do Tribunal Geral for julgado procedente e o Tribunal de Justiça decidir definitivamente o litígio, decidirá igualmente sobre as despesas.

188    O artigo 138.o, n.o 1, desse regulamento, aplicável aos processos de recursos de decisões do Tribunal Geral por força do artigo 184.o, n.o 1, do referido regulamento, dispõe que a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

189    No caso em apreço, no que respeita ao recurso interposto no processo C‑451/21 P, uma vez que o Grão‑Ducado do Luxemburgo obteve ganho de causa, há que condenar, em conformidade com o que requereu, a Comissão a suportar, além das suas despesas, as despesas efetuadas pelo Grão‑Ducado do Luxemburgo.

190    No que respeita ao recurso interposto no processo C‑454/21 P, uma vez que a Engie e o. obtiveram ganho de causa, há que condenar, em conformidade com o que requereram, a Comissão a suportar, além das suas despesas, as despesas efetuadas pela Engie e o.

191    Por outro lado, uma vez que os recursos interpostos no Tribunal Geral foram julgados admissíveis, a Comissão é condenada a suportar a totalidade das despesas relativas ao processo em primeira instância.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

1)      Os processos C451/21 P e C454/21 P são apensados para efeitos do presente acórdão.

2)      O Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 12 de maio de 2021, Luxemburgo e o./Comissão (T516/18 e T525/18, EU:T:2021:251), é anulado.

3)      A Decisão (UE) 2019/421 da Comissão, de 20 de junho de 2018, relativa ao auxílio estatal SA.44888 (2016/C) (ex 2016/NN) concedido pelo Luxemburgo à Engie, é anulada.

4)      A Comissão Europeia é condenada nas despesas dos recursos nos processos C451/21 P e C454/21 P.

5)      A Comissão Europeia é condenada nas despesas do processo em primeira instância.

Assinaturas


*      Língua do processo: francês.