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Processo T578/22

Autoridade Europeia para a Proteção de Dados

contra

Parlamento Europeu,
e
Conselho da União Europeia,

 Despacho do Tribunal Geral (Primeira Secção Alargada) de 6 de setembro de 2023

«Recurso de anulação — Direito institucional — Tratamento de dados pessoais pela Europol — Regulamento (UE) 2016/794 — Prerrogativas institucionais da AEPD — Legitimidade — Recurso em parte inadmissível e em parte manifestamente inadmissível»

1.      Recurso de anulação — Competência do juiz da União — Recurso interposto por um órgão da União — Recurso interposto pela Autoridade Europeia para a Proteção de Dados (AEPD) — Legitimidade com fundamento na salvaguarda das prerrogativas institucionais próprias, invocada em apoio do presente recurso

(Artigo 263.° TFUE; Regulamento do Parlamento e do Conselho n.o 45/2001, artigo 41.°, n.° 1)

(cf. n.os 26‑36)

2.      Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Interesse em agir — Legitimidade — Recurso interposto pela Autoridade Europeia para a Proteção de Dados (AEPD) — Legitimidade com fundamento na salvaguarda das prerrogativas institucionais próprias — Falta — Admissibilidade dependente da demonstração da legitimidade e do interesse em agir

(Artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE)

(cf. n.os 41‑48, 54‑57)

3.      Recurso de anulação — Legitimidade — Pessoas coletivas — Conceito — Autoridade Europeia para a Proteção de Dados (AEPD) — Órgão da União — Inclusão — Requisitos

(Artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE)

(cf. n.os 60‑65)

4.      Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Atos que lhes dizem direta e individualmente respeito — Disposições relativas ao tratamento de dados pessoais pela Europol — Decisão da Autoridade Europeia para a Proteção de Dados (AEPD) contra a Europol — Falta de impacto das referidas disposições na referida decisão e nas competências da AEPD — Inexistência de afetação direta — Inadmissibilidade

(Artigo 16.°, n.° 2, e 263.°, quarto parágrafo, TFUE; Regulamento do Parlamento e do Conselho 2016/794, conforme alterado pelo Regulamento 2022/991, artigo 74.°A e 74.°B)

(cf. n.os 66, 68‑76, 78‑82, 84, 85)

Resumo

Em 3 de janeiro de 2022, na sequência de um inquérito por iniciativa própria, a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados (AEPD) adotou uma decisão dirigida à Agência da União Europeia para a Cooperação Policial (Europol) (1). Através desta decisão a AEPD ordenou, em substância, à Europol, que, para cada contribuição de dados pessoais recebida a partir de 4 de janeiro de 2022, procedesse à categorização dos titulares de dados pessoais num prazo de seis meses a contar da data da receção da contribuição e num prazo de doze meses no caso dos conjuntos de dados existentes à data da referida decisão, sendo que, em caso de inobservância desses prazos, a Europol estava obrigada a apagar os dados em causa.

Em 8 de junho de 2022, o Parlamento Europeu e o Conselho adotaram o Regulamento Europol alterado (2). Este último previa, em substância, ao abrigo de duas disposições transitórias (3), as condições em que a Europol devia proceder, num determinado prazo, à categorização dos conjuntos de dados que se encontravam na sua posse no momento da entrada em vigor do regulamento Europol alterado e precisava os requisitos e os procedimentos com base nos quais era autorizado o tratamento de dados pessoais que não dissessem respeito a categorias de titulares de dados enumeradas no Anexo II do Regulamento Europol alterado, e que tivessem sido transferidos à Europol antes de 28 de junho de 2022, para apoiar uma investigação criminal em curso.

A AEPD considerou que as disposições impugnadas violavam a sua independência e os seus poderes de autoridade de controlo, na medida em que, segundo a referida Autoridade, tais disposições legalizavam retroativamente as práticas da Europol de conservação dos dados controvertidos e anulavam, na prática, a sua Decisão de 3 de janeiro de 2022. Assim sendo, ao abrigo do artigo 263.° TFUE, a AEPD pediu que o Tribunal Geral anulasse as referidas disposições. Alegou que a sua legitimidade para agir assentava na necessidade de dispor de uma via de recurso judicial para defender as suas prerrogativas institucionais, em particular a sua independência enquanto autoridade de controlo.

No caso em apreço, o Tribunal Geral foi pela primeira vez chamado a conhecer de um recurso de anulação apresentado pela AEPD contra um ato legislativo do Conselho e do Parlamento, circunstância que, nomeadamente, suscita a questão da competência do Tribunal Geral para conhecer do referido recurso, a questão da aplicação por analogia do acórdão Parlamento/Conselho (C‑70/88) (4) ao caso vertente, e a questão da afetação direta da AEPD, equiparada a uma pessoa coletiva, ao abrigo do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

Apreciação do Tribunal Geral

Em primeiro lugar, o Tribunal Geral examinou a sua competência para conhecer do recurso interposto pela AEPD e observou, antes de mais, que a mesma não figura nem entre os recorrentes mencionados no artigo 263.°, segundo e terceiro parágrafos, TFUE (5), nem na lista das instituições do artigo 13.°, n.° 1, TUE (6). Em seguida, salientou que, embora o artigo 263.°, primeiro parágrafo, TFUE vise expressamente os órgãos e organismos da União na lista dos autores dos atos cuja legalidade pode ser posta em causa no âmbito de um recurso de anulação, o mesmo não acontece no que respeita ao artigo 263.°, segundo e terceiro parágrafos, TFUE. Assim, precisa que embora o estatuto da AEPD, enquanto autoridade independente de controlo, esteja consagrado no Tratado FUE e na Carta (7), a AEPD foi instituída como órgão da União por um ato de direito derivado e não de direito primário (8). Por conseguinte, embora seja um órgão da União com um estatuto especial, a AEPD não é uma instituição da União e, em todo o caso, não se pode considerar que figura entre os recorrentes referidos no artigo 263.°, segundo e terceiro parágrafos, TFUE. Por último, o Tribunal Geral concluiu ser competente para conhecer do recurso uma vez que estão reservados ao Tribunal de Justiça os recursos previstos no artigo 263.° TFUE interpostos, nomeadamente, por uma instituição da União contra um ato legislativo (9) e uma vez que a AEPD não é uma instituição nem um dos recorrentes referidos no artigo 263.°, segundo e terceiro parágrafos, TFUE.

Em segundo lugar, o Tribunal apreciou a questão de saber se a AEPD tem legitimidade para agir ao abrigo da jurisprudência resultante do acórdão Parlamento/Conselho (C‑70/88). Observou que, nesse acórdão, invocado pela AEPD para fundamentar a sua legitimidade para agir no contexto da salvaguarda das suas prerrogativas institucionais, o Tribunal de Justiça declarou que o Parlamento não tinha qualquer possibilidade de impugnar, perante os juízes da União, os atos adotados pelas outras instituições e que fossem suscetíveis de pôr em causa as suas próprias prerrogativas, tendo optado por colmatar esta lacuna recorrendo ao princípio geral do equilíbrio institucional. Em contrapartida, a AEPD pode interpor um recurso de anulação com fundamento no artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, uma vez que é um órgão criado por um ato de direito derivado da União que pode ser equiparado a uma pessoa coletiva. Por outro lado, o Tribunal Geral precisa que embora a AEPD tenha um estatuto especial reconhecido pelo Tratado FUE e pela Carta, e que a criação de autoridades de controlo independentes seja um elemento essencial da proteção dos indivíduos no que respeita à proteção dos dados pessoais, a independência com que a AEPD deve exercer as suas funções não se destina, na prática, a limitar os poderes do legislador da União (10). Por conseguinte, a AEPD está obrigada a exercer as suas missões e poderes com total independência, sendo que é no contexto dos atos legislativos adotados conjuntamente pelo Parlamento e pelo Conselho, e em conformidade com estes, que a AEPD controla a observância das regras relativas à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas instituições, órgãos e organismos da União. O Tribunal Geral concluiu que o Acórdão Parlamento/Conselho (C‑70/88), não pode ser aplicado por analogia à situação da AEPD, à qual não pode ser reconhecida legitimidade para agir ao abrigo desse acórdão, sendo que a mesma deve ser considerada uma recorrente que tem de preencher os requisitos previstos no artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

Em terceiro lugar, no âmbito do exame da legitimidade ativa da AEPD ao abrigo do artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE, o Tribunal Geral analisou, a título preliminar, se esta pode, enquanto órgão da União, ser equiparada a uma pessoa coletiva na aceção deste artigo. Salienta que, em aplicação de uma interpretação desta disposição à luz dos princípios da fiscalização jurisdicional efetiva e do Estado de direito, um órgão da União, como a AEPD, tem, enquanto «pessoa coletiva», legitimidade para interpor um recurso de anulação das disposições impugnadas, desde que estas lhe digam direta e individualmente respeito na aceção da referida disposição. Com efeito, tal pessoa coletiva é tão suscetível como qualquer outra pessoa ou entidade de ser afetada negativamente nos seus direitos ou interesses por um ato da União e deve, assim, poder, no respeito dessas condições, pedir a anulação desse ato.

No que respeita ao requisito de que uma pessoa coletiva deve ser diretamente afetada, o Tribunal Geral recorda que devem ser cumulativamente preenchidos dois critérios. Em primeiro lugar, no que diz respeito ao critério relativo aos efeitos das disposições impugnadas na situação jurídica da AEPD, o Tribunal Geral sublinha que a AEPD é responsável pelo controlo da aplicação pelas instituições, órgãos ou organismos da União das regras pertinentes relativas à proteção dos dados pessoais (11). No caso em apreço, as disposições impugnadas alteram o Regulamento Europol Inicial e não têm incidência na natureza ou no alcance das missões confiadas à AEPD pela legislação da União. Assim, embora seja verdade que o regime jurídico que a AEPD tem a responsabilidade de controlar foi alterado, as suas próprias competências não o foram, uma vez que a forma como pode exercer legalmente estas competências não foi, enquanto tal, alterada. Assim, as disposições impugnadas não dizem diretamente respeito à AEPD, na medida em que os seus direitos, deveres ou competências não foram afetados por essas disposições. Além disso, quanto aos efeitos das disposições impugnadas na Decisão de 3 de janeiro de 2022, o Tribunal Geral precisa que se trata de uma decisão administrativa que não pode afetar atos legislativos como o Regulamento Europol Alterado nem afetar o seu conteúdo.

Em segundo lugar, no que respeita ao requisito relativo à margem de apreciação dos destinatários responsáveis pela execução das disposições impugnadas, o Tribunal Geral salienta que estas últimas deixam uma certa margem de apreciação à Europol. Por conseguinte, não têm um caráter puramente automático e decorrem apenas da regulamentação da União em relação à AEPD, sem aplicação de outras regras intermédias.

Por conseguinte, dado que as disposições impugnadas não afetam diretamente a situação jurídica da AEPD e uma vez que os requisitos da afetação direta e da afetação individual pelo ato cuja anulação é pedida são cumulativos, o Tribunal Geral concluiu pela inadmissibilidade do recurso.


1      Ao abrigo do artigo 43.º, n.º 3, alínea e), do Regulamento (UE) 2016/794 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2016, que cria a Agência da União Europeia para a Cooperação Policial (Europol) e que substitui e revoga as Decisões 2009/371/JAI, 2009/934/JAI, 2009/935/JAI, 2009/936/JAI e 2009/968/JAI do Conselho (JO 2016, L 135, p. 53, a seguir «regulamento Europol inicial»).


2      Regulamento (UE) 2022/991 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2022, que altera o Regulamento (UE) 2016/794 no que diz respeito à cooperação da Europol com os organismos privados, ao tratamento de dados pessoais pela Europol para apoiar investigações criminais, e ao papel da Europol na investigação e inovação (JO 2022, L 169, p. 1, a seguir «Regulamento Europol alterado»), que altera o Regulamento Europol inicial.


3      Artigos 74.º‑A e 74.º‑B do Regulamento Europol alterado (a seguir «disposições impugnadas»).


4      Acórdão de 22 de maio de 1990, Parlamento/Conselho (C‑70/88, EU:C:1990:217).


5      Nos termos desta disposição, pode ser submetido ao Tribunal de Justiça um recurso interposto, por um lado, por um Estado‑Membro, pelo Parlamento, pelo Conselho ou pela Comissão e, por outro, pelo Tribunal de Contas, pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Comité das Regiões.


6      As sete instituições mencionadas nesta disposição são o Parlamento, o Conselho Europeu, o Conselho, a Comissão, o Tribunal de Justiça da União Europeia, o Banco Central Europeu e o Tribunal de Contas.


7      Nos termos do artigo 16.º, n.º 2, TFUE e do artigo 8.º, n.º 3, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), o respeito das normas relativas à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas instituições, órgãos e organismos da União está sujeito à fiscalização de autoridades independentes.


8      Artigo 41.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.o 45/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de dezembro de 2000, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas instituições e pelos órgãos comunitários e à livre circulação desses dados (JO 2001, L 8, p. 1).


9      Ao abrigo do artigo 51.°, alínea b), do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.


10      Como previstos no artigo 14.º, n.º 1, e no artigo 16.º, n.º 1, TUE.


11      Ao abrigo do artigo 1.º, n.º 3, do Regulamento (UE) 2018/1725 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2018, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas instituições e pelos órgãos e organismos da União e à livre circulação desses dados, e que revoga o Regulamento (CE) n.° 45/2001 e a Decisão n.° 1247/2002/CE (JO 2018 L 295, p. 39) e do artigo 43.º, n.º 1, do Regulamento Europol inicial.