Language of document : ECLI:EU:C:2000:530

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

3 de Outubro de 2000 (1)

«Trabalhadores - Regulamento (CEE) n.° 1612/68 - Igualdade de tratamento - Pessoas não filiadas no regime nacional da segurança social - Funcionários das Comunidades Europeias - Aplicação de tabelas por despesas médicas e hospitalares ligadas à maternidade»

No processo C-411/98,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado CE (actual artigo 234.° CE), pelo Tribunal d'arrondissement de Luxembourg (Luxemburgo) e destinado a obter, no litígio pendente neste tribunal entre

Angelo Ferlini

e

Centre hospitalier de Luxembourg,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação, por um lado, dos artigos 6.°, primeiro parágrafo, e 48.° do Tratado CE (que passaram, após alteração, respectivamente a artigos 12.°, primeiro parágrafo, CE e 39.° CE), do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77), com as alterações do Regulamento (CEE) n.° 312/76 do Conselho, de 9 de Fevereiro de 1976, que altera as disposições relativas aos direitos sindicais dos trabalhadores constantes do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 (JO L 39, p. 2; EE 05 F2 p. 69), e do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, com as alterações e actualização do Regulamento (CEE) n.° 2001/83 do Conselho, de 2 de Junho de 1983 (JO L 230, p. 6; EE 05 F3 p. 53), e, por outro, do n.° 1 do artigo 85.° do Tratado CE (actual artigo 81.°, n.° 1, CE),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, J. C. Moitinho de Almeida, D. A. O. Edward, L. Sevón e R. Schintgen, presidentes de secção, P. J. G. Kapteyn, C. Gulmann, P. Jann, H. Ragnemalm (relator), M. Wathelet e V. Skouris, juízes,

advogado-geral: G. Cosmas,


secretário: R. Grass,

vistas as observações escritas apresentadas:

-    em representação de Ferlini, por A. Lucas, advogado em Liège, e Dennewald, advogado no Luxemburgo,

-    em representação do Governo luxemburguês, por P. Steinmetz, director dos Assuntos Jurídicos e Culturais no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

-    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por P. J. Kuijper, consultor jurídico, E. Gippini Fournier e W. Wils, membros do Serviço Jurídico na qualidade de agentes,

visto o relatório do juiz-relator,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 21 de Setembro de 1999,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por decisão de 7 de Outubro de 1998, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 18 de Novembro seguinte, o Tribunal d'arrondissement de Luxembourg colocou, nos termos do artigo 177.° do Tratado CE (actual artigo 234.° CE), uma questão prejudicial sobre a interpretação dos artigos 6.°, primeiro parágrafo, e 48.° do Tratado CE (que passaram, após alterações, a artigos 12.°, primeiro parágrafo, CE e 39.° CE), do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2), com as alterações do Regulamento (CEE) n.° 312/76 do Conselho, de 9 de Fevereiro de 1976, que altera as disposições relativas aos direitos sindicais dos trabalhadores constantes do Regulamento (CEE) n.° 1612/68 (JO L 39, p. 2, a seguir o «Regulamento n.° 1612/68»), e do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, com as alterações do Regulamento (CEE) n.° 2001/83 do Conselho, de 2 de Junho de 1983 (JO L 230, p. 6, a seguir o «Regulamento n.° 1408/71»), e do n.° 1 do artigo 85.° do Tratado CE (actual artigo 81.°, n.° 1, CE).

2.
    Esta questão foi suscitada num litígio a que opõe A. Ferlini ao Centre hospitalier de Luxembourg (a seguir o «CHL») quanto às tabelas cobradas pela assistência no parto e estadia de sua esposa na maternidade do CHL.

Enquadramento jurídico

A legislação comunitária

3.
    O n.° 1 do artigo 2.° do Regulamento n.° 1408/71 prevê:

«O presente regulamento aplica-se aos trabalhadores assalariados ou não assalariados que estão ou estiveram sujeitos à legislação de um ou mais Estados-Membros e que sejam nacionais de um dos Estados-Membros, apátridas ou refugiados residentes no território de um dos Estados-Membros, bem como aos membros da sua família e sobreviventes.»

4.
    Nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 7.° do Regulamento n.° 1612/68:

«1.    O trabalhador nacional de um Estado-Membro não pode, no território de outros Estados-Membros, sofrer, em razão da sua nacionalidade, tratamento diferente daquele que é concedido aos trabalhadores nacionais no que respeita a todas as condições de emprego e de trabalho, nomeadamente em matéria deremuneração, de despedimento e de reintegração profissional ou de reemprego, se ficar desempregado.

2.    Aquele trabalhador beneficia das mesmas vantagens sociais e fiscais que os trabalhadores nacionais.»

5.
    Os artigos 64.° e 72.° do Estatuto dos Funcionários das Comunidades Europeias (a seguir o «Estatuto») prevêem que os funcionários das Comunidades Europeias contribuam para o Regime de Seguro de Doença Comum às instituições das Comunidades Europeias, comummente designado Regime Comum de Seguro de Doença (a seguir o «RCSD») e que as respectivas despesas médicas são suportadas pelo RCSD.

6.
    Nos termos do artigo 72.° do Estatuto, dos artigos 1.°, 2.° e 3.° do Regime de Seguro de Doença Comum dos funcionários das Comunidades Europeias (a seguir o «regime comum») e do título VIII do anexo I deste regime, as despesas dos funcionários das Comunidades Europeias ou os seus cônjuges em caso de parto suportadas pela RCSD são os honorários médicos, de assistência de parteira e de anestesia e as despesas de sala de partos, de assistência de cinesista, assim como as outras despesas relativas a prestações directamente ligadas ao parto. Os funcionários são reembolsados na percentagem de 85% pelas despesas de estadia em estabelecimento hospitalar e 100% pelas outras despesas e honorários. Todavia, o reembolso dos honorários está limitado a 33 230 BEF e o das despesas de estadia em estabelecimento hospitalar a 5 946 BEF por dia e durante 10 dias.

7.
    O n.° 2 do artigo 9.° do regime comum dispõe que: «As instituições esforçam-se, na medida do possível, por negociar com os representantes do corpo médico e/ou autoridades, associações e estabelecimentos competentes, acordos que fixem percentagens aplicáveis aos beneficiários tendo em conta as condições legais e, se as houver, as tabelas já em vigor, tanto relativamente aos serviços médicos como aos serviços hospitalares».

8.
    Resulta do processo que, à data dos factos objecto do processo principal, não existia convenção entre o RCSD e os representantes do corpo médico e/ou autoridades, associações e estabelecimentos competentes luxemburgueses.

A legislação nacional

9.
    O CHL foi criado por lei de 10 de Dezembro de 1975, que cria um estabelecimento público denominado Centre hospitalier de Luxembourg, que abrange a maternité Grande-Duchesse Charlotte, a clinique pédiatrique fondation Grand-Duc Jean e Grande-Duchesse Joséphine-Charlotte e o hospital municipal (Mémorial A 1975, p. 1795). É financiado pelo Estado luxemburguês e pela cidade do Luxemburgo.

10.
    São beneficiários do seguro de doença os filiados nas caisses de maladie (caixas de seguro de doença) luxemburguesas, instituições públicas autónomas dotadas de personalidade jurídica e sob tutela do Governo.

11.
    O artigo 13.° do código da segurança social (leis de 27 de Junho de 1983 e de 3 de Julho de 1975), na versão em vigor à data dos factos objecto do processo principal (a seguir o «código»), previa, no n.° 1, que «os segurados beneficiam, no caso de parto, de assistência de parteira, de assistência médica, de estadia numa maternidade ou clínica, de prestações farmacêuticas e de produtos dietéticos para os recém nascidos». Nos termos do n.° 2 do artigo 13.° do código, estas prestações ficavam a cargo do Estado mediante um sistema de montante fixo estabelecido por regulamento.

12.
    O Regulamento grão-ducal, de 31 de Dezembro de 1974 (Mémorial A 1974, p. 2398), na redacção alterada (a seguir o «Regulamento grão-ducal»), em vigor à data dos factos objecto do processo principal fixava a tarifa a que, em circunstâncias normais, as prestações médico-hospitalares normalmente necessárias num parto seriam fornecidas aos beneficiários do regime luxemburguês de segurança na doença. Determinava desta forma o montante a cargo do Estado.

13.
    Conforme circular da União das Caixas de Seguro de Doença (a seguir a «UCM»), de 1 de Dezembro de 1988 referente à repartição dos elementos que compõem as importâncias fixas por despesas de maternidade a partir de 1 de Janeiro de 1989, o sistema instituído pelo código e pelo Regulamento grão-ducal previa na prática um cálculo assente em três componentes, a saber, a assistência médica, as despesas de maternidade e os produtos dietéticos.

14.
    Quanto às outras prestações em caso de doença, o artigo 388.°-A do código impunha a obrigatoriedade de convenções entre o UCM e as diversas categorias de prestadores de cuidados, sem distinção de prestações em meio hospitalar ou não. As referidas convenções colectivas deveriam ser homologadas pelo ministro competente e adquiririam dessa forma força obrigatória mesmo para prestadores não membros da associação que negociou a convenção.

15.
    Resulta da decisão de reenvio que o regime de seguro de doença-maternidade no Luxemburgo se caracteriza pela uniformidade das tabelas praticadas, qualquer que seja o prestador, nos cuidados de saúde abrangidos pelo seguro. As referidas tabelas não constituem limiares de reembolso mas preços fixos que não variam nem em função dos rendimentos do doente nem das qualificações do prestador.

16.
    À data dos factos objecto do processo principal, o artigo 4.° do código previa que o Ministro do Trabalho e da Segurança Social poderia dispensar do seguro os estrangeiros que apenas residissem temporariamente no Grão-Ducado do Luxemburgo. Nos termos do n.° 2 do artigo 4.° do código, na versão actualmente em vigor, «não estão sujeitos ao regime de seguro... as pessoas sujeitas a umregime de seguro na doença por actividade ao serviço de organismo internacional ou devido a pensão que a esse título lhes haja sido concedida».

17.
    Na prática, trata-se principalmente dos funcionários e outros agentes das instituições das Comunidades Europeias (Parlamento, Comissão, Cour de justice, Cour des comptes), Banco Europeu de Investimento, Eurocontrol, Tribunal da EFTA e Centro de abastecimento da OTAN no Luxemburgo.

O conflito no processo principal

18.
    A Sr.a Ferlini, esposa de um funcionário da Comissão das Comunidades Europeias residente no Luxemburgo, teve um parto em 17 de Janeiro de 1989 no CHL, onde permaneceu até 24 do mesmo mês e ano.

19.
    A. Ferlini e os membros da sua família são beneficiários do RCSD. Por isso, o Sr. e a Sr.a Ferlini não estão abrangidos pelo regime luxemburguês de segurança social e, em especial, pelo seguro obrigatório de assistência na doença-maternidade.

20.
    Em 24 de Fevereiro de 1989, o CHL enviou a A. Ferlini uma factura no montante de 73 460 LUF por despesas de parto e estadia da esposa na maternidade.

21.
    Esta factura foi feita, nomeadamente, com base em «tabelas hospitalares em vigor a partir de 1 de Janeiro de 1989 aplicáveis às pessoas e organismos não filiados no regime da segurança social nacional», fixadas unilateralmente e com carácter uniforme para o conjunto dos hospitais luxemburgueses reunidos na «Entente des hôpitaux luxembourgeois» (a seguir a «EHL»). Com base naquelas tabelas foi exigido a A. Ferlini um montante de 49 030 LUF, correspondente a um «parto normal simples».

22.
    Foi ainda exigido a A. Ferlini o pagamento dos honorários do médico assistente no hospital, no montante de 5 042 LUF, e despesas farmacêuticas no montante de 674 LUF. As tabelas destas prestações eram também fixadas uniformemente pelo EHL quanto às pessoas não filiadas na segurança social nacional, entre elas os funcionários das Comunidades Europeias.

23.
    A. Ferlini recusou pagar o montante exigido, por o considerar discriminatório. Sustentou que, atenta a regulamentação aplicável à data dos factos objecto do processo principal, o montante fixo facturado, reembolsável pela Caixa de Seguro de Doença luxemburguesa, seria de 36 854 LUF, ao passo que ele e o RCSD teriam de pagar 59 306 LUF pelas mesmas prestações, ou seja, um aumento de 71,43% relativamente à tarifa aplicável aos beneficiários do seguro na doença-maternidade luxemburguês.

24.
    O Sr. Ferlini impugnou um despacho condicional de pagamento emitido em 22 de Abril de 1993, que o injungia a pagar ao CHL o montante 73 460 LUF.

25.
    Por sentença de 24 de Junho de 1994 o Tribunal julgou a impugnação não fundada e condenou o Sr. Ferlini a pagar ao CHL o montante supra referido, acrescido dos juros legais.

26.
    Em 5 de Outubro de 1994, A. Ferlini recorreu daquela decisão para o Tribunal d'arrondissement de Luxembourg.

27.
    Neste tribunal, A. Ferlini sustentou que a facturação do CHL resulta, por um lado, da aplicação de tabelas hospitalares fixadas pelo EHL, aplicáveis, a partir de 1 de Janeiro de 1989, às pessoas e organismos não filiados no regime nacional de segurança social e, por outro, da aplicação de tabelas aplicáveis aos filiados nas caixas de doença e resultantes da circular do UCM de 1 de Dezembro de 1988.

28.
    Em apoio do recurso, A. Ferlini sustenta, primeiramente, que a fixação das despesas com cuidados hospitalares feita pelo CHL é contrária ao princípio da igualdade e, em segundo lugar, que o sistema luxemburguês de tabelas de cuidados hospitalares aplicado aos funcionários das Comunidades Europeias é contrário ao artigo 85.°, n.° 1, do Tratado.

29.
    O CHL pede que seja negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida. Em primeiro lugar, afirma, essencialmente, que a situação dos funcionários das Comunidades Europeias não é comparável às dos filiados no regime nacional de segurança social. Os primeiros não pagam impostos nem contribuições para o regime nacional de segurança social e os seus rendimentos são mais elevados. Aliás, à data dos factos no processo objecto do processo principal, o RCAM não tinha celebrado qualquer convenção com o EHL. Em segundo lugar, o CHL sustenta que as condições referidas no artigo 85.° do Tratado CE não se verificam no caso em apreço.

A questão prejudicial

30.
    O tribunal de reenvio salienta em substância que o artigo 48.° do Tratado CE e os Regulamentos n.os 1408/71 e 1612/68 apenas são aplicáveis aos cidadãos comunitários que obtenham, noutro Estado-Membro, um emprego ou cobertura social regida pelas leis desse Estado-Membro, o que não é o caso dos funcionários das Comunidades Europeias. Acrescenta que isso não significa, no entanto, que se admita que os funcionários das Comunidades Europeias, residentes noutro Estado-Membro, estejam, em virtude das suas funções, em situação menos favorável que a de qualquer outro trabalhador por conta alheia nacional de um Estado-Membro. Deverão, pelo contrário, beneficiar das mesmas vantagens decorrentes do direito comunitário concedidas aos nacionais dos Estados-Membros em matéria de livre circulação das pessoas, de estabelecimento e de protecção social.

31.
    Assim, o tribunal de reenvio aceita que não pode excluir-se que o facto de aplicar aos funcionários das Comunidades Europeias tabelas médicas e hospitalares mais elevadas que as aplicadas aos filiados no regime nacional de segurança social poderá constituir um atentado ao princípio geral da igualdade de tratamento. Salienta que os argumentos de A. Ferlini para refutar as justificações objectivas invocadas pelo CHL para legitimar aquela diferença de tratamento não são destituídas de fundamento pelo que não poderá, a priori, pô-las de lado.

32.
    O tribunal de reenvio acrescenta que os fundamentos invocados pelas partes no processo principal exigem ainda uma interpretação dos princípios do direito da concorrência, nomeadamente das questões da competência dos Estados-Membros para organizar o respectivo regime de segurança social, do estatuto especial das empresas e das prestações em causa bem como da afectação do mercado comum.

33.
    Por esta razão o Tribunal d'arrondissement du Luxembourg decidiu suspender a instância e apresentar ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial seguinte:

«À luz do princípio da não discriminação entre nacionais dos Estados-Membros da União Europeia, princípio consagrado nos artigos 6.° e 48.° do Tratado CE e, no âmbito da livre circulação de trabalhadores na Comunidade, no Regulamento n.° 1612/68 do Conselho, de 5 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade, na redacção dada pelo Regulamento n.° 312/76 do Conselho, de 9 de Fevereiro de 1976, e, no âmbito da segurança social, no Regulamento n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na versão consolidada do Regulamento n.° 2001/83 do Conselho, de 2 de Junho de 1983,

e

à luz do artigo 85.°, n.° 1, do Tratado CE, que proíbe todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado comum,

será compatível com o direito comunitário o Regulamento Grão-Ducal de 31 de Dezembro de 1974 (Mémorial A n.° 95, de 31.12.1974, p. 2398), na redacção alterada, que tem por objecto determinar, por aplicação dos artigos 6.° e 13.° do Código de Segurança Social, as prestações nos casos de doença e de maternidade, as tabelas dos serviços hospitalares a partir de 1 de Janeiro de 1989 válidas para as pessoas e organismos não inscritos no regime de segurança social nacional, a circular da UCSD, de 1 de Dezembro de 1988, relativa à repartição dos elementos que constituem os montantes fixos para despesas de maternidade a partir de 1 de Janeiro de 1989 e as práticas do GHL, traduzidas em aplicar às pessoas eorganismos não inscritos no regime de segurança social nacional e aos funcionários das Comunidades Europeias inscritos no RCSD tabelas uniformes para despesas médicas e de hospitalização superiores às aplicadas aos residentes inscritos no regime de segurança social nacional?»

Quanto à questão prejudicial

34.
    Atento o contexto legislativo e factual descrito pelo tribunal de reenvio, a questão colocada deve entender-se no sentido de que se pergunta, em substância, se a aplicação, de modo unilateral, por um grupo de prestadores de cuidados aos funcionários das Comunidades Europeias de tabelas referentes a cuidados médicos e hospitalares dispensados em caso de maternidade mais elevadas que as aplicáveis aos filiados no regime nacional de segurança social, por um lado, constitui discriminação em razão da nacionalidade e, por outro, se é contrária ao artigo 85.°, n.° 1, do Tratado.

35.
    O Governo luxemburguês sustenta que os funcionários das Comunidades Europeias abrangidos pelo RCSD não estão sujeitos à obrigação de pagamento de contribuições para o seguro de doença-maternidade luxemburguês e não podem por isso beneficiar das prestações previstas pelo Regulamento grão-ducal.

36.
    Faz sua a fundamentação do Tribunal d'arrondissement na decisão de reenvio, no sentido de que o Regulamento n.° 1408/71 não é aplicável aos funcionários das Comunidades Europeias. Os funcionários e agentes de uma organização internacional não estão sujeitos à filiação num regime nacional de segurança social mesmo na ausência de norma que expressamente preveja a sua isenção. Isto é tanto mais verdade quanto é certo que o estatuto é muito completo e vantajoso em matéria de segurança social. Além disso, os funcionários das Comunidades Europeias não têm necessidade de invocar as disposições comunitárias para circular livremente no território dos Estados-Membros uma vez que beneficiam do Protocolo sobre os privilégios e imunidades das Comunidades Europeias.

37.
    A título subsidiário, o Governo luxemburguês sustenta que o regulamento grão-ducal não contém qualquer disposição discriminatória em prejuízo dos nacionais dos outros Estados-Membros.

38.
    A Comissão e, com alguns cambiantes, A. Ferlini consideram que a aplicação às pessoas e organismos não filiados no regime luxemburguês de segurança social e aos funcionários das Comunidades Europeias filiados no RCSD de tabelas uniformes pelas despesas médicas e hospitalares superiores às aplicadas aos filiados no referido regime de segurança social é incompatível com o princípio de não discriminação entre nacionais dos Estados-Membros das Comunidades Europeias consagrado nos artigos 6.°, primeiro parágrafo, e 48.° do Tratado. A Comissão acrescenta que as condições de aplicação do Regulamento n.° 1408/71 não se verificam no caso em apreço.

39.
    A título liminar, há que recordar que, conforme jurisprudência constante, o artigo 6.°, primeiro parágrafo, do Tratado, que consagra o princípio geral da não discriminação em razão da nacionalidade, apenas deve ser aplicado de modo autónomo às situações regidas pelo direito comunitário para as quais o Tratado não preveja normas específicas de não discriminação (v., nomeadamente, acórdãos de 10 de Dezembro de 1991, Merci convenzionali porto di Genova, C-179/90, Colect., p. I-5889, n.° 11; de 14 de Julho de 1994, Peralta, C-379/92, Colect., p. I-3453, n.° 18 e de 13 de Abril de 2000, Lehtonen e Castors Braine, C-176/96, ainda não publicado na Colectânea, n.° 37).

40.
    Ora, quanto à livre circulação dos trabalhadores, este princípio foi instituído pelo artigo 48.° do Tratado.

41.
    Como sublinhou o advogado-geral no n.° 49 das conclusões, os funcionários das Comunidades Europeias e os membros da sua família filiados no RCSD não podem ser considerados trabalhadores no sentido do Regulamento n.° 1408/71. Com efeito, não estão sujeitos a uma legislação nacional em matéria de segurança social, como o exige o n.° 1 do artigo 2.° do Regulamento n.° 1408/71.

42.
    Em contrapartida, a qualidade de trabalhador migrante de um funcionário das Comunidades Europeias não pode ser posta em causa. Com efeito, segundo jurisprudência constante, um nacional comunitário que trabalhe em Estado-Membro diferente do seu Estado de origem não perde a qualidade de trabalhador no sentido do n.° 1 do artigo 48.° do Tratado pelo facto de ocupar um cargo numa organização internacional, ainda que as condições de entrada e permanência no país de emprego sejam reguladas por uma convenção internacional (acórdãos de 15 de Março de 1989, Echternach e Moritz, 398/87 e 390/87, Colect., p. 723, n.° 11, e de 27 de Maio de 1993, Schmid, C-310/91, Colect., p. I-3011, n.° 20).

43.
    Daqui se conclui que a um trabalhador nacional de um Estado-Membro, como é o caso de A. Ferlini, não podem ser recusados os direitos e benefícios sociais que lhe conferem o artigo 48.° do Tratado CE e o Regulamento n.° 1612/68 (v. acórdãos de 13 de Julho de 1983, Forcheri, 152/82, Recueil, p. 2323, n.° 9; Echternach e Moritz, já referido, n.° 12, e Schmid, já referido, n.° 22).

44.
    Todavia, como sublinhou o advogado-geral nos n.os 52 a 54 das conclusões, a aplicação, por cuidados médicos e hospitalares em caso de maternidade, de tabelas mais elevadas que as aplicáveis aos filiados no regime nacional de segurança social não pode considerar-se condição de trabalho, para efeitos do n.° 2 do artigo 48.° do Tratado CE e do artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1612/68.

45.
    Quanto à noção de vantagem social, que se refere o n.° 2 do artigo 7.° do Regulamento n.° 1612/68, A. Ferlini não solicita a concessão daquela vantagem social, prevista na legislação luxemburguesa e consistente na tomada a cargo pelo Estado-Membro de acolhimento de um montante fixo para o reembolso dasdespesas de maternidade. Limita-se a pedir a igualdade de tratamento na tarificação dos cuidados médicos e hospitalares dispensados em caso de maternidade.

46.
    Nestas condições, forçoso é concluir que nem o artigo 48.° do Tratado CE nem o Regulamento n.° 1612/68 se aplicam no caso em apreço.

47.
    Por conseguinte, a questão apresentada quanto à alegada discriminação deve ser examinada sob o ângulo do primeiro parágrafo do artigo 6.° do Tratado.

48.
    No litígio objecto do processo principal, a fixação pelo EHL das tabelas dos cuidados médicos e hospitalares dispensados em caso de maternidade aos não filiados no regime nacional de segurança social, aplicadas pelo CHL a A. Ferlini, não resulta da legislação nacional nem da regulamentação, sob a forma de convenções colectivas, em matéria de segurança social.

49.
    Com efeito, as «tabelas hospitalares aplicáveis a partir de 1 de Janeiro de 1989 às pessoas e organismos não filiados no regime de segurança social nacional» foram unilateralmente fixadas e com carácter uniforme pelo conjunto dos hospitais luxemburgueses reunidos no seio do EHL, na ausência de acordos com o RCSD quanto às taxas aplicáveis aos beneficiários do regime comum. Com base naquelas tabelas, exige-se a A. Ferlini e ao RCSD um montante de 59 306 LUF, ou seja, um aumento de 71,43% relativamente à tarifa aplicável às mesmas prestações quanto aos beneficiários do seguro de doença-maternidade luxemburguês.

50.
    Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o artigo 6.°, primeiro parágrafo, do Tratado é também aplicável nos caso em que um grupo ou organização como o EHL exerce determinado poder sobre os particulares e tem a possibilidade de lhes impor condições que prejudicam o exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado (v., neste sentido, acórdãos de 12 de Dezembro de 1974, Walrave e Koch, 36/74, Recueil, p. 1405; Colect. 1974, p. 595; de 8 de Abril de 1976, Defrenne II, 43/75, Recueil, p. 455, e de 15 de Dezembro de 1995, Bosman, C-415/93, Colect., p. I-4921).

51.
    Segundo jurisprudência constante, uma discriminação apenas poderá existir quando sejam aplicadas regras diferentes a situações comparáveis ou pela aplicação da mesma regra a situações diferentes.

52.
    Há, assim, que examinar se um não filiado no regime nacional de segurança social de um Estado-Membro, como A. Ferlini, se encontra em situação diferente das pessoas desse Estado-Membro filiadas naquele regime.

53.
    A este propósito, os argumentos invocados tanto no tribunal nacional como no processo pendente neste Tribunal para sustentar que a situação de A. Ferlini nãoera comparável à de um filiado no regime luxemburguês de seguro social não podem ser aceites.

54.
    Antes de mais, a circunstância de A. Ferlini não pagar impostos sobre a sua remuneração ao Tesouro nacional nem contribuições para o regime nacional de segurança social é irrelevante para o efeito, dado que, de qualquer modo, não pede o benefício de prestações de segurança social do referido regime mas apenas a aplicação de tabelas não discriminatórias quanto aos cuidados hospitalares dispensados no CHL.

55.
    Quanto ao argumento de que os funcionários das Comunidades Europeias têm rendimentos médios superiores aos dos residentes que trabalham nos sectores nacionais, público ou privado, basta recordar que o custo da prestação em causa no processo principal facturado aos filiados no regime nacional de segurança social não varia em função dos seus rendimentos.

56.
    Nestas condições e com base apenas nos elementos trazidos à consideração do Tribunal de Justiça, verifica-se que A. Ferlini e os membros da sua família, filiados no RCSD, estão em situação comparável à dos nacionais filiados no regime nacional de segurança social.

57.
    Ora, segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, as normas sobre a igualdade de tratamento proíbem não apenas as discriminações ostensivas baseadas na nacionalidade mas também todas as formas dissimuladas de discriminação que, com base noutros critérios de distinção, levam de facto ao mesmo resultado (acórdãos de 12 de Fevereiro de 1974, Sotgiu, 152/73, Recueil, p. 153; Colect. 1974, p. 93, n.° 11, e de 26 de Outubro de 1995, Comissão/Luxemburgo, C-151/94, Colect., p. I-3685, n.° 14).

58.
    O critério da afiliação no regime nacional de segurança social aplicado pelo CHL que serviu de base à diferenciação das tabelas de cuidados médicos e hospitalares feita pelo EHL, constitui uma discriminação indirecta com base na nacionalidade. Com efeito, por um lado, a grande maioria dos filiados no RCSD e não no regime nacional da segurança social, sendo destinatários de cuidados médicos e hospitalares dispensados no território nacional, são nacionais de outros Estados-Membros. Por outro lado, a grande maioria dos nacionais residentes no Luxemburgo está sujeita ao regime nacional de segurança social.

59.
    Uma diferenciação deste tipo só poderia justificar-se se assentasse em considerações objectivas independentes da nacionalidade das pessoas abrangidas e proporcionais ao objectivo legitimamente prosseguido.

60.
    Ora, atentos os factos do caso em apreço e na ausência de argumentos invocados a este propósito tanto no Tribunal de Justiça como no tribunal de reenvio, forçoso é concluir que a diferença considerável de tratamento entre as pessoas filiadas noregime nacional de segurança social e os funcionários das Comunidades Europeias, quanto às tarifas dos cuidados ligados à maternidade, não se justifica.

61.
    Por isso, não há necessidade de examinar a questão colocada sob o ângulo do artigo 85.° do Tratado.

62.
    Deve, portanto, responder-se à questão colocada que a aplicação unilateral, por um grupo de prestadores de cuidados, aos funcionários das Comunidades Europeias, de tabelas referentes aos cuidados médicos e hospitalares, dispensados em caso de maternidade, mais elevadas que as aplicáveis aos residentes filiados no regime nacional de segurança social constitui uma discriminação em razão da nacionalidade proibida pelo primeiro parágrafo do artigo 6.° do Tratado, na falta de justificação objectiva.

Quanto às despesas

63.
    As despesas efectuadas pelo Governo luxemburguês e pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre a questão submetida pelo Tribunal d'arrondissement de Luxembourg, por decisão de 7 de Outubro de 1998, declara:

A aplicação unilateral, por um grupo de prestadores de cuidados, aos funcionários das Comunidades Europeias, de tabelas referentes a cuidados médicos e hospitalares, dispensados em caso de maternidade, mais elevadas que as aplicáveis aos residentes filiados no regime nacional de segurança social constitui uma discriminação em razão da nacionalidade proibida pelo primeiro parágrafo do artigo 6.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a primeiro parágrafo do artigo 12.° CE), na ausência de justificação objectiva.

Rodríguez Iglesias
Moitinho de Almeida
Edward

Sevón

Schintgen

Kapteyn

Gulmann
Jann

Ragnemalm

Wathelet

Skouris

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 3 de Outubro de 2000.

O secretário

O presidente

R. Grass

G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: francês.