Language of document : ECLI:EU:T:2022:834

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção alargada)

21 de dezembro de 2022 (*)

«Auxílios de Estado — Regime‑Quadro destinado a conceder um apoio aos custos fixos não cobertos no contexto da pandemia de COVID‑19 na Alemanha — Decisão de não levantar objeções — Quadro temporário de auxílio estatal — Exame individual do regime de auxílios notificado — Medida destinada a sanar uma perturbação grave da economia de um Estado‑Membro — Proporcionalidade»

No processo T‑306/21,

Falke KGaA, com sede em Schmallenberg (Alemanha), representada por R. Velte e W. Meilicke, advogados,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por V. Bottka, G. Braga da Cruz e C. Kovács, na qualidade de agentes,

recorrida,

apoiada por

República Federal da Alemanha, representada por P.‑L. Krüger e J. Möller, na qualidade de agentes,

interveniente,

O TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção alargada),

composto, na deliberação, por: V. Tomljenović, presidente, F. Schalin, P. Škvařilová‑Pelzl, I. Nõmm (relator) e D. Kukovec, juízes,

secretário: M. P. Cullen, administrador,

vistos os autos,

após a audiência de 14 de setembro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1        Com o seu recurso baseado no artigo 263.o TFUE, a recorrente, Falke KGaA, pede a anulação da Decisão C (2020) 8318 final da Comissão, de 20 de novembro de 2020, relativa ao auxílio estatal SA.59289 (2020/N) — Alemanha COVID‑19 — Apoio aos custos fixos não cobertos (JO 2022, C 124, p. 1), conforme alterada pela Decisão C (2021) 1066 final da Comissão, de 12 de fevereiro de 2021, relativa ao auxílio estatal SA.61744 (2021/N) — Notificação coletiva de alteração relativa à adaptação dos regimes de auxílio autorizados nos termos do Quadro Temporário, nomeadamente na sequência da quinta alteração do Quadro Temporário (JO 2021, C 77, p. 18) (a seguir «decisão impugnada»).

 Antecedentes do litígio

2        A recorrente é a empresa operacional do Grupo Falke, que exerce a sua atividade, nomeadamente, no setor de fabrico e no comércio por grosso e a retalho de vestuário. No que diz respeito às suas atividades de venda a retalho, comercializa os seus produtos através de vários pontos de venda e de uma loja online.

3        Em 19 de março de 2020, a Comissão Europeia adotou uma comunicação intitulada «Quadro temporário relativo a medidas de auxílio estatal em apoio da economia no atual contexto do surto de COVID‑19» (JO 2020, C 91 I, p. 1, a seguir «quadro temporário»), que foi alterada, uma primeira vez, em 3 de abril de 2020 (JO 2020, C 112 I, p. 1), uma segunda vez, em 8 de maio de 2020 (JO 2020, C 164, p. 3), uma terceira vez, em 29 de junho de 2020 (JO 2020, C 218, p. 3), e, uma quarta vez, em 13 de outubro de 2020 (JO 2020, C 340 I, p. 1).

4        Os n.os 17 a 19 do ponto 2 do quadro temporário, com a epígrafe «Aplicabilidade do artigo 107.o, n.o 3, [alínea b), TFUE]», têm a seguinte redação:

«17.       O artigo 107.o, n.o 3, [alínea b), TFUE] confere poderes à Comissão para decidir se os auxílios são compatíveis com o mercado interno nos casos em que se destinem a “sanar uma perturbação grave da economia de um Estado‑Membro”. Neste contexto, os tribunais da União estabeleceram que a perturbação em questão deve afetar o conjunto ou uma parte importante da economia do Estado‑Membro em causa, e não somente a de uma das suas regiões ou de partes do seu território. Esta solução coaduna‑se aliás com a necessidade de interpretar de forma restritiva qualquer disposição excecional como o artigo 107.o, n.o 3, [alínea b), TFUE] […]. A Comissão tem vindo a aplicar de forma sistemática esta interpretação na sua prática decisória […]

18.      Considerando que o surto de COVID‑19 afeta todos os Estados‑Membros e que as medidas de confinamento tomadas pelos Estados‑Membros têm repercussões nas empresas, a Comissão considera que os auxílios estatais são justificados e podem ser declarados compatíveis com o mercado interno com base no artigo 107.o, n.o 3, [alínea b), TFUE], por um período limitado, para colmatar a escassez de liquidez enfrentada pelas empresas e assegurar que as perturbações causadas pelo surto de COVID‑19 não comprometem a viabilidade das empresas, em especial das PME.

19.      Na presente comunicação, a Comissão estabelece as condições de compatibilidade que aplicará, em princípio, aos auxílios concedidos pelos Estados‑Membros nos termos do artigo 107.o, n.o 3, [alínea b), TFUE]. Consequentemente, cabe aos Estados‑Membros demonstrar que as medidas de auxílio notificadas à Comissão ao abrigo da presente comunicação são necessárias, adequadas e proporcionadas para sanar uma perturbação grave da economia do Estado‑Membro em questão e que todas as condições estão plenamente satisfeitas.»

5        A comunicação que alterou uma quarta vez o quadro temporário precisa no seu n.o 11:

«[D]evido ao surto de COVID‑19, muitas empresas estão temporariamente sujeitas a uma procura mais baixa que não lhes permite cobrir uma parte dos seus custos fixos. Em muitos casos, prevê‑se que a procura recupere nos próximos meses, e poderá não ser eficiente para essas empresas reduzir a sua dimensão se isso implicar custos de reestruturação significativos. O apoio a essas empresas, contribuindo temporariamente para uma parte dos seus custos fixos, pode ser uma forma eficaz de preencher esta lacuna, evitando assim a deterioração do seu capital, mantendo a sua atividade empresarial e fornecendo‑lhes uma plataforma forte de recuperação.»

6        A comunicação que alterou uma quarta vez o quadro temporário inseriu neste quadro um ponto 3.12, intitulado «Auxílio sob a forma de apoio para os custos fixos não cobertos», que contém os n.os 86 e 87, com a seguinte redação:

«86.      Os Estados‑Membros podem considerar a possibilidade de contribuir para os custos fixos não cobertos das empresas cuja atividade económica tenha sido suspensa ou reduzida em consequência do surto de COVID‑19.

87.      Se tais medidas configurarem um auxílio, a Comissão considerará que são compatíveis com o mercado interno, com base no artigo 107.o, n.o 3, [alínea b), TFUE], desde que estejam cumpridas as seguintes condições:

a)      O auxílio é concedido até 30 de junho de 2021 e abrange os custos fixos não cobertos incorridos durante o período compreendido entre 1 de março de 2020 e 30 de junho de 2021, incluindo os custos incorridos em parte desse período (“período elegível”);

b)      O auxílio é concedido com base num regime a empresas que sofram uma diminuição do volume de negócios durante o período elegível de, pelo menos, 30 % em relação ao mesmo período de 2019 […]

c)      Os custos fixos não cobertos são os custos fixos incorridos pelas empresas durante o período elegível que não são cobertos pela contribuição para o lucro (ou seja, receitas menos custos variáveis) durante o mesmo período e que não são cobertos por outras fontes, como seguros, medidas de auxílio temporário abrangidas pela presente comunicação ou apoio de outras fontes [[…];a] intensidade do auxílio não pode exceder 70 % dos custos fixos não cobertos, exceto para as microempresas e pequenas empresas (na aceção do anexo I do Regulamento geral de isenção por categoria), em que a intensidade do auxílio não deve exceder 90 % dos custos fixos não cobertos [;p]ara efeitos do presente ponto, considera‑se que as perdas das empresas das suas demonstrações de resultados durante o período elegível […] constituem custos fixos não cobertos. O auxílio no âmbito desta medida pode ser concedido com base nas perdas previstas, enquanto o montante final do auxílio será determinado após a realização das perdas com base nas contas auditadas ou, com uma justificação adequada fornecida pelo Estado‑Membro à Comissão (por exemplo, em relação às características ou à dimensão de um determinado tipo de empresas), com base nas contas fiscais[; q]ualquer pagamento que exceda o montante final do auxílio será recuperado;

d)      Em qualquer caso, o auxílio global não pode exceder 3 milhões de [euros] por empresa [; o]s auxílios podem ser concedidos sob a forma de subvenções diretas, garantias e empréstimos, desde que o valor nominal total dessas medidas permaneça abaixo do limite máximo global de 3 milhões de [euros] por empresa; todos os valores devem ser brutos, isto é, antes de qualquer dedução de impostos ou de outros encargos.

e)      Os auxílios no âmbito desta medida não devem ser acumulados com outros auxílios para os mesmos custos elegíveis;

f)      Não podem ser concedidos auxílios a empresas que já se encontravam em dificuldade [na aceção do Regulamento geral de isenção por categoria […]) em 31 de dezembro de 2019[; em] derrogação do acima enunciado, podem ser concedidos auxílios a micro ou pequenas empresas (na aceção do anexo I do Regulamento geral de isenção por categoria) que já se encontrassem em dificuldade em 31 de dezembro de 2019, desde que não sejam objeto de um processo de insolvência coletivo ao abrigo do direito nacional e que não tenham recebido auxílios de emergência […] ou auxílios à reestruturação […]»

7        Em 17 de novembro de 2020, a República Federal da Alemanha notificou à Comissão, em conformidade com o artigo 108.o, n.o 3, TFUE, um regime de auxílio destinado a conceder um apoio aos custos fixos não cobertos no contexto da pandemia de COVID‑19 no seu território.

8        Em 20 de novembro de 2020, a Comissão adotou a Decisão C (2020) 8318 final.

9        Na Decisão C (2020) 8318 final, em primeiro lugar, a Comissão descreveu as características essenciais do regime de auxílios notificado, do qual decorre, nomeadamente, que só podem ser concedidos medidas individuais a empresas que tenham sofrido uma perda de volume de negócios de pelo menos 30 % (considerando 17). Em segundo lugar, salientou que o regime notificado era abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, porquanto conferia uma vantagem seletiva aos seus beneficiários e que, por este motivo, dava lugar a uma distorção da concorrência (considerandos 31 a 33). Em terceiro lugar, remetendo para os critérios estabelecidos no n.o 87 do seu quadro temporário, considerou que o regime de auxílios era compatível com o mercado interno nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE (considerandos 35 a 41). Por conseguinte, não levantou objeções a respeito desse regime de auxílios.

10      O regime de auxílios autorizado pela Decisão C (2020) 8318 final dizia respeito a auxílios cujo montante máximo estava limitado a 3 milhões de euros por empresa (considerando 20).

11      Em 28 de janeiro de 2021, a Comissão procedeu a uma quinta alteração do seu quadro temporário (JO 2021, C 34, p. 6), a qual, nomeadamente, alterou o n.o 87, alínea d), desse quadro, aumentando o limite máximo do auxílio para 10 milhões de euros por empresa. Alterou igualmente o n.o 87, alínea a), alargando até 31 de dezembro de 2021 o período inicialmente compreendido entre 1 de março de 2020 e 30 de junho de 2021.

12      Em 2 de fevereiro de 2021, a República Federal da Alemanha notificou à Comissão uma alteração ao seu regime de auxílios, que consistia num aumento do limite máximo dos auxílios para 10 milhões de euros e no seu prolongamento até 31 de dezembro de 2021.

13      Com a Decisão C (2021) 1066 final, a Comissão aprovou várias alterações efetuadas pela Alemanha aos regimes de auxílio notificados, incluindo o regime autorizado pela Decisão C (2020) 8318 final (a seguir «regime de auxílios controvertido»).

14      Na Decisão C (2021) 1066 final, a Comissão reiterou, por um lado, particularmente, a análise contida nas suas decisões anteriores, para sublinhar a existência de auxílios estatais na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE e a sua compatibilidade com o mercado interno nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE (considerandos 15 e 17), e, por outro, considerou que o prolongamento da duração do regime de auxílio notificado e aprovado ao abrigo do quadro temporário e o aumento do seu limite máximo eram compatíveis com o artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE (considerando 18).

 Pedidos das partes

15      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão impugnada;

–        condenar a Comissão nas despesas.

16      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        declarar o recurso inadmissível e, a título subsidiário, negar‑lhe provimento;

–        condenar a recorrente nas despesas.

17      Na audiência, a Comissão indicou que retirava o seu pedido relativo à inadmissibilidade do recurso, o que foi registado na ata da audiência.

18      A República Federal da Alemanha conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a recorrente nas despesas.

 Questão de direito

19      A recorrente invoca dois fundamentos de recurso, relativos, respetivamente, à violação do artigo 107.o e do artigo 108.o, n.o 2, TFUE.

 Quanto ao primeiro fundamento, relativo à violação do artigo 107.o TFUE

20      A recorrente entende, em substância, que a Comissão considerou erradamente que o regime de auxílios controvertido podia ser declarado compatível com o mercado interno com base no artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE. Este fundamento divide‑se em duas partes.

21      Na primeira parte deste fundamento, a recorrente sustenta que a decisão impugnada viola o princípio da proporcionalidade, uma vez que aprova um regime de auxílios assente num critério de elegibilidade baseado no volume de negócios da empresa (a seguir «critério de elegibilidade em causa»). Na segunda parte, alega que a Comissão não cumpriu a sua obrigação de proceder a um exame individual do regime de auxílios notificado e não cumpriu o seu dever de fundamentação.

22      A Comissão, apoiada pela República Federal da Alemanha, pede que o presente fundamento seja julgado improcedente.

23      Nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE, «[p]odem ser considerados compatíveis com o mercado interno […] [o]s auxílios destinados […] a sanar uma perturbação grave da economia de um Estado‑Membro».

24      Segundo a jurisprudência, decorre da economia geral do Tratado que o procedimento previsto no artigo 108.o TFUE nunca deve conduzir a um resultado que seja contrário às disposições específicas do Tratado. Por conseguinte, um auxílio de Estado que, em algumas das suas modalidades, viole outras disposições do Tratado não pode ser declarado compatível com o mercado interno pela Comissão. Do mesmo modo, um auxílio de Estado que, em algumas das suas modalidades, viole os princípios gerais do direito da União não pode ser declarado compatível com o mercado interno pela Comissão (v., neste sentido, Acórdãos de 15 de abril de 2008, Nuova Agricast, C‑390/06, EU:C:2008:224, n.os 50 e 51, e de 22 de setembro de 2020, Áustria/Comissão, C‑594/18 P, EU:C:2020:742, n.o 44).

25      Deve recordar‑se que, na aplicação do artigo 107.o, n.o 3, TFUE, a Comissão beneficia de um amplo poder de apreciação cujo exercício implica apreciações complexas de ordem económica e social (v. Acórdão de 29 de julho de 2019, Bayerische Motoren Werke e Freistaat Sachsen/Comissão, C‑654/17 P, EU:C:2019:634, n.o 80 e jurisprudência aí referida), de modo que a fiscalização jurisdicional se deve limitar à verificação do cumprimento das regras processuais e de fundamentação, bem como ao controlo da exatidão material dos factos e da ausência de erro manifesto de apreciação e de desvio de poder (v. Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Régie Networks, C‑333/07, EU:C:2008:764, n.o 78 e jurisprudência aí referida).

 Quanto à primeira parte, relativa a uma violação do princípio da proporcionalidade

26      A recorrente considera, em substância, que o critério de elegibilidade em causa é desproporcionado e dá lugar a uma desigualdade de tratamento em detrimento das empresas que têm várias atividades, das quais apenas algumas foram afetadas pela pandemia de COVID‑19. Assim, dado que este critério conduz à sua exclusão ou à redução do benefício do regime de auxílio controvertido, essas empresas são obrigadas a recorrer ao financiamento cruzado das suas atividades afetadas, contrariamente aos seus concorrentes que operam unicamente no comércio tradicional retalhista, que podem beneficiar plenamente do referido regime.

27      A Comissão e a República Federal da Alemanha sustentam que esta parte do presente recurso é improcedente. A Comissão sustenta igualmente, a título preliminar, que esta parte do presente fundamento deve ser rejeitada liminarmente, porque a recorrente não invocou nenhuma exceção de ilegalidade na aceção do artigo 277.o TFUE contra o quadro temporário de que a decisão impugnada constitui uma aplicação.

–       Quanto ao fundamento de inadmissibilidade apresentado pela Comissão com base na inexistência de uma exceção de ilegalidade deduzida contra o quadro temporário

28      A Comissão salienta, em primeiro lugar, que a decisão impugnada procedeu a uma aplicação correta do critério de elegibilidade em causa, que figura no n.o 87 do quadro temporário; em segundo lugar, sustenta que a recorrente não deduziu nenhuma exceção de ilegalidade contra o referido quadro, e, em terceiro lugar, conclui daí que a validade desse quadro deve ser presumida e não pode ser posta em causa aquando da contestação do mérito da decisão impugnada.

29      Esta argumentação não pode prosperar.

30      Em primeiro lugar, embora seja certo que a petição não contém nenhuma referência explícita a uma exceção de ilegalidade ou ao artigo 277.o TFUE, deve recordar‑se que o direito da União não exige a invocação formal de uma exceção de ilegalidade. Com efeito, a jurisprudência permite considerar que uma exceção de ilegalidade foi implicitamente arguida quando resultar de modo relativamente claro da petição que a recorrente formulou efetivamente essa alegação (v., neste sentido, Acórdão de 27 de novembro de 2018, Mouvement pour une Europe des nations et des libertés/Parlamento, T‑829/16, EU:T:2018:840, n.o 66 e jurisprudência aí referida).

31      É o que sucede no caso em apreço.

32      Em primeiro lugar, certas passagens da petição põem diretamente em causa a validade do n.o 87 do quadro temporário. Assim, salienta‑se que o «critério estabelecido no [n.o 87], alínea b), do quadro temporário na versão da sua quarta alteração […] não é um critério adequado para reduzir ou suprimir distorções da concorrência». Do mesmo modo, afirma‑se que o n.o 87, alínea c) do quadro temporário dá origem a uma «diferença de tratamento injustificada».

33      Além disso, à luz das circunstâncias do caso em apreço, a existência de uma contestação incidental da validade do quadro temporário pela recorrente decorre, igual e necessariamente, de toda a sua argumentação relacionada com esta parte do presente fundamento. Com efeito, tanto o regime de auxílios controvertido como a decisão impugnada que o aprova reproduziram um critério de elegibilidade que tem a sua origem no n.o 87 do quadro temporário. Por conseguinte, a Comissão não podia deixar de compreender que a argumentação da recorrente, baseada na ilegalidade daquela decisão devido ao caráter desproporcionado desse critério, implicava igualmente questionar a validade do referido número.

34      Em segundo lugar, e em todo o caso, visto que a Comissão defende que, na falta de exceção de ilegalidade aduzida contra o critério que tem a sua origem no n.o 87 do quadro temporário, a recorrente não pode questionar a pertinência desse critério, erra acerca do alcance jurídico dos atos, como o referido quadro, que a própria Comissão adota com o objetivo de limitar o seu poder de apreciação.

35      Nos termos de jurisprudência constante, os atos jurídicos da União gozam de uma presunção de legalidade e, por conseguinte, produzem efeitos jurídicos enquanto não forem revogados, anulados no quadro de um recurso de anulação ou declarados inválidos na sequência de um pedido prejudicial ou de uma questão prévia de ilegalidade ou enquanto não tenham sido objeto de suspensão da execução ou de outras medidas provisórias adotadas pelo juiz da União, em aplicação dos artigos 278.o e 279.o TFUE [v., neste sentido, Acórdãos de 14 de junho de 2012, CIVAD, C‑533/10, EU:C:2012:347, n.o 39 e jurisprudência aí referida, e de 2 de abril de 2020, Comissão/Polónia, Hungria e República Checa (Mecanismo temporário de recolocação de requerentes de proteção internacional), C‑715/17, C‑718/17 e C‑719/17, EU:C:2020:257, n.o 140]. O respeito desta presunção de legalidade pode impedir que se examine o mérito de uma decisão que constitui a mera aplicação de um ato de alcance geral cuja validade não é contestada (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de dezembro de 2021, P. Krücken Organic/Comissão, C‑586/20 P, não publicado, EU:C:2021:1046, n.o 69, e de 2 de fevereiro de 2012, Grécia/Comissão, T‑469/09, não publicado, EU:T:2012:50, n.o 57). Assim, só beneficiam da referida presunção os atos definitivos das instituições, órgãos e organismos da União que produzam efeitos jurídicos face a terceiros, suscetíveis de ser objeto de um recurso de anulação. Não é esse o caso de um ato através do qual a Comissão adota regras de conduta para limitar o exercício do seu poder de apreciação.

36      É verdade que a autolimitação pela Comissão do exercício do seu poder de apreciação implica que não pode, em princípio, desrespeitar as regras que estabeleceu para si própria, sob pena de ser sancionada, sendo caso disso, por violação dos princípios gerais do direito, como a igualdade de tratamento (v. Acórdão de 29 de julho de 2019, Bayerische Motoren Werke e Freistaat Sachsen/Comissão, C‑654/17 P:2019:634, n.o 82 e jurisprudência aí referida). Nessa medida, a adoção dessas regras não dispensa a Comissão de proceder a um exame individual das circunstâncias do caso concreto, o qual pode levá‑la a não aplicar essas regras se as especificidades do caso o exigirem (v., neste sentido, Acórdão de 19 de julho de 2016, Kotnik e o., C‑526/14, EU:C:2016:570, n.o 41). Daqui resulta que, contrariamente aos atos jurídicos referidos no n.o 35, supra, os atos através dos quais a Comissão adota unicamente uma regra de conduta não produzem, por si só, efeitos jurídicos vinculativos.

37      Esta falta de efeitos jurídicos vinculativos intrínsecos é particularmente importante tendo em conta a natureza dos poderes conferidos à Comissão no domínio do controlo dos auxílios de Estado. Admitir que o quadro temporário produz por si só efeitos jurídicos vinculativos e goza de uma presunção de legalidade equivaleria, assim, a reconhecer‑lhe uma natureza jurídica idêntica à de um regulamento, ato que a Comissão não tem competência para adotar ao abrigo da secção do Tratado FUE relativa aos «Auxílios concedidos pelos Estados», com exceção dos casos previstos no artigo 108.o, n.o 4, TFUE.

38      Conclui‑se que, não obstante o facto de o critério de elegibilidade aplicado pela Comissão ter a sua origem no n.o 87 do quadro temporário e mesmo não tendo sido aduzida uma exceção de ilegalidade contra o referido número, a recorrente continua a ter o direito de contestar a forma como a Comissão utilizou, na decisão impugnada, o poder de apreciação que lhe é conferido pelo artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE, ao declarar compatível o regime de auxílios controvertido e, neste contexto, o mérito do critério de elegibilidade que aplicou.

–       Quanto ao alcance do argumento da recorrente

39      Na primeira parte do presente fundamento, a recorrente alega que o critério de elegibilidade que figura no n.o 87, alíneas b) e c), do quadro temporário, aplicado no regime de auxílios controvertido e aprovado pela Comissão na decisão impugnada, é desproporcionado. Apresenta a este respeito várias alegações e invoca também uma violação do princípio da igualdade de tratamento.

40      Mais especificamente, a recorrente contesta a utilização, no n.o 87, alíneas b) e c), do quadro temporário, da perda do volume de negócios avaliado ao nível da empresa, e não apenas ao nível das atividades afetadas pela pandemia de COVID‑19, como critério de elegibilidade do apoio aos custos fixos não cobertos.

41      A este respeito, importa salientar que a tomada em consideração da perda de volume de negócios ao nível da empresa decorre do n.o 87, alínea b), do quadro temporário, que precisa que os auxílios são concedidos com base num regime de apoio «a empresas que sofram uma diminuição do volume de negócios durante o período [compreendido entre 1 de março de 2020 e 30 de junho de 2021] de, pelo menos, 30 %». Essa tomada em consideração decorre igualmente do n.o 87, alínea c), do referido quadro, uma vez que exclui da definição de «custos não cobertos» os custos cobertos pela contribuição para os lucros ou por outras fontes.

42      Em primeiro lugar, convém recordar que o princípio da proporcionalidade, recordado no artigo 5.o, n.o 4, TUE, exige que os atos das instituições da União não excedam os limites do que é adequado e necessário para a realização dos objetivos legítimos prosseguidos pela regulamentação em causa (Acórdão de 17 de maio de 1984, Denkavit Nederland, 15/83, UE:C:1984:183, n.o 25), entendendo‑se que, quando haja uma escolha entre várias medidas adequadas, se deve recorrer à menos restritiva e que os inconvenientes causados não devem ser desproporcionados relativamente aos objetivos prosseguidos [Acórdão de 30 de abril de 2019, Itália/Conselho (Quota de pesca do espadarte mediterrânico), C‑611/17, EU:C:2019:332, n.o 55].

43      Assim, para que uma medida respeite o princípio da proporcionalidade deve incluir três componentes. A primeira componente diz respeito à sua adequação, ou seja, à sua aptidão para realizar o objetivo legítimo prosseguido. A segunda componente diz respeito à sua necessidade e implica que o referido objetivo legítimo não possa ser alcançado por meios menos restritivos, mas igualmente apropriados (v., neste sentido, Acórdão de 26 de setembro de 2013, Dansk Jurist‑ og Økonomforbund, C‑546/11, EU:C:2013:603, n.o 69). Por último, a terceira componente, por vezes qualificada de «proporcionalidade em sentido estrito», diz respeito ao seu caráter proporcionado, a saber, a inexistência de inconvenientes desproporcionados em relação aos objetivos prosseguidos (v., neste sentido, Acórdãos de 7 de março de 2013, Polónia/Comissão, T‑370/11, EU:T:2013:113, n.o 89, e de 26 de setembro de 2014, Romonta/Comissão, T‑614/13, EU:T:2014:835, n.o 74).

44      Em segundo lugar, a recorrente parece igualmente apresentar uma alegação relativa à violação do princípio da igualdade de tratamento. Com efeito, sustenta que o critério de elegibilidade em causa deu origem a uma desigualdade de tratamento em detrimento das empresas com atividades que não foram afetadas pela pandemia de COVID‑19, obrigando‑as a recorrer a um financiamento cruzado das suas atividades afetadas, pelo facto de não poderem beneficiar, ou beneficiarem em menor medida, do regime de auxílios controvertido, aprovado pela Comissão.

45      Em aplicação de jurisprudência constante, o princípio da igualdade de tratamento exige que situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de maneira igual, a menos que esse tratamento seja objetivamente justificado (Acórdão de 15 de abril de 2008, Nuova Agricast, C‑390/06, EU:C:2008:224, n.o 66; v. igualmente, neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2018, Montero Mateos, C‑677/16, EU:C:2018:393, n.o 49).

46      Os elementos que caracterizam situações diferentes, e, portanto, o seu caráter comparável, devem, nomeadamente, ser determinados e apreciados à luz do objeto e do objetivo do ato da União que institui a distinção em causa. Além disso, devem ser tidos em consideração os princípios e objetivos do domínio do qual releva o ato em questão (Acórdão de 16 de dezembro de 2008, Arcelor Atlantique et Lorraine e o., C‑127/07, EU:C:2008:728, n.o 26).

47      Há que reconhecer que uma tal argumentação apresentada contra uma decisão que aplica o artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE se confunde com as alegações da recorrente relativas a uma violação do princípio da proporcionalidade nas suas diversas componentes.

48      Com efeito, o artigo 107.o, n.o 3, alínea b), do TFUE permite uma derrogação ao princípio geral de incompatibilidade dos auxílios de Estado com o mercado interno, estabelecido no artigo 107.o, n.o 1, TFUE. Daí resulta, por um lado, que o seu objetivo é permitir declarar compatíveis auxílios de Estado, que, pela sua própria definição, implicam a concessão de uma vantagem seletiva a certas empresas, suscetível de ser classificada como discriminatória (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Comissão contra World Duty Free Group e o., C 20/15 P e C‑21/15 P, EU:C:2016:981, n.os 54 e 55), e, por outro, que deve ser interpretado de forma estrita (v. Acórdão de 9 de abril de 2014, Grécia/Comissão, T‑150/12, não publicado, EU:T:2014:191, n.o 146 e jurisprudência aí referida).

49      Por conseguinte, a circunstância de o critério de elegibilidade em causa conduzir a uma diferença de tratamento entre empresas, consoante a totalidade ou apenas parte das suas atividades tiver sido afetada pela pandemia de COVID‑19, não implica em si mesmo a sua ilegalidade. Em contrapartida, é necessário verificar se essa diferença de tratamento se justifica nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), do TFUE, o que pressupõe que o referido critério seja necessário, adequado e proporcionado para sanar uma perturbação grave da economia do Estado‑Membro em causa.

–       Quanto à alegação que contesta o caráter adequado do critério de elegibilidade em causa

50      A recorrente sustenta, em substância, que o critério de elegibilidade em causa não é adequado para alcançar o objetivo do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), do TFUE, uma vez que distorce a concorrência sem atenuar os efeitos da pandemia de COVID‑19 e é contrário ao n.o 11 da comunicação que introduziu uma quarta alteração ao quadro temporário, o qual refere a necessidade de evitar a deterioração dos fundos próprios das empresas. A este respeito, alega que os efeitos da pandemia no comércio tradicional retalhista foram tais, que não se pode excluir que certas empresas que não beneficiam do regime de auxílios controvertido devido ao exercício de outras atividades se vejam forçadas a abandonar a esse comércio. Acrescenta que a utilização do referido critério de elegibilidade no regime de auxílio controvertido o tornava inapto para realizar o seu objetivo, porquanto exclui toda uma categoria de empresas que, não obstante, foram afetadas por aquela pandemia.

51      Esta argumentação não pode ser acolhida.

52      Em primeiro lugar, é pacífico que a pandemia de COVID‑19 provocou uma grave perturbação da economia alemã. Por conseguinte, está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE.

53      Em segundo lugar, decorre do n.o 18 do quadro temporário, reproduzido no n.o 4, supra, que o objetivo deste é tornar os auxílios compatíveis com o mercado interno, nomeadamente os que têm a forma de apoio aos custos fixos não cobertos, que se destinam a colmatar a falta de liquidez com que as empresas se confrontaram devido à pandemia de COVID‑19, e fazer com que as perturbações por causadas por esse surto não comprometam a viabilidade das empresas.

54      Do mesmo modo, decorre do n.o 11 da comunicação que introduz uma quarta alteração ao quadro temporário, reproduzida no n.o 5, supra, que o apoio às empresas incapazes de cobrir temporariamente uma parte dos seus custos fixos se destina a assegurar a sua continuidade, evitando a deterioração do seu capital próprio, permitindo manter a sua atividade empresarial e fornecendo‑lhes uma plataforma forte de recuperação.

55      Em terceiro lugar, importa sublinhar que um objetivo desta natureza, que implica ter em conta a dificuldade que uma empresa pode encontrar para cobrir os seus custos fixos devido à pandemia de COVID‑19, está em conformidade com o objetivo do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE e se inscreve no exercício do amplo poder de apreciação conferido à Comissão por esta disposição, recordado no n.o 25, supra.

56      Em quarto lugar, deve referir‑se que um critério que permite às empresas cujo volume de negócios foi reduzido em mais de 30 % devido à pandemia de COVID‑19 obter assistência financeira se inscreve plenamente na implementação da finalidade, recordada nos n.os 53 e 54, supra, de assegurar a viabilidade e a continuidade das empresas durante a referida pandemia.

57      Esta conclusão não é posta em causa pela alegação da recorrente de que certas empresas que não beneficiam do regime de auxílios controvertido ou que beneficiam em menor medida, em virtude da realização de atividades não afetadas pela pandemia de COVID‑19, como o comércio em linha, podem ser levadas a abandonar o setor do comércio tradicional retalhista. O mesmo se diga relativamente à alegação da recorrente de que a utilização do referido critério de elegibilidade no regime de auxílio controvertido exclui toda uma categoria de empresas que, não obstante, foram afetadas por aquela pandemia.

58      A este respeito, há que salientar que o artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE não exige que o regime de auxílios controvertido seja suscetível, por si só, de sanar a grave perturbação da economia do Estado‑Membro em causa. Com efeito, uma vez estabelecida a existência de uma perturbação grave na economia de um Estado‑Membro, este pode ser autorizado, se estiverem preenchidos os outros requisitos no dito artigo, a conceder auxílios de Estado, sob a forma de regimes de auxílios ou de auxílios individuais, que contribuam para sanar a referida perturbação grave. Assim, pode tratar‑se de vários regimes de auxílio que contribuem, cada um à sua maneira, para esse fim. Por conseguinte, não se pode exigir que, para se basear validamente naquela disposição, um regime de auxílios sane por si só uma perturbação grave da economia de um Estado‑Membro.

59      Além disso, a Comissão podia considerar, sem desrespeitar os limites do amplo poder de apreciação de que goza em aplicação da jurisprudência referida no n.o 25, supra, que era necessário assegurar a viabilidade das empresas cuja atividade tinha sido afetada numa parte substancial pela pandemia de COVID‑19, e não de qualquer atividade afetada pela referida pandemia, independentemente da situação global da empresa.

60      Consequentemente, improcede a presente alegação.

–       Quanto à alegação que contesta a necessidade do critério de elegibilidade em causa

61      A recorrente alega que a aplicação de um critério alternativo que tivesse em conta as perdas sofridas nos domínios de atividade afetados pela pandemia de COVID‑19, sem ter em conta a situação global da empresa, teria sido mais capaz de alcançar o objetivo do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE, uma vez que não teria tido sobre a concorrência o efeito restritivo resultante do critério de elegibilidade em causa. A recorrente sublinha que esse critério alternativo foi tido em conta pela Comissão noutras decisões.

62      A Comissão responde, nomeadamente, que não era obrigada a pronunciar‑se de forma abstrata sobre todas as medidas alternativas suscetíveis de ser previstas em vez do regime de auxílios controvertido. Acrescenta que a comparação feita pela recorrente com certas decisões que a Comissão adotou devido à pandemia de COVID‑19 é irrelevante, uma vez que essas decisões não têm a mesma base jurídica.

63      É verdade que, em princípio, a Comissão não tem de se pronunciar abstratamente sobre todas as medidas alternativas suscetíveis de ser previstas, uma vez que, embora o Estado‑Membro em causa deva expor detalhadamente as razões para a adoção do regime de auxílios controvertido, sobretudo no que respeita aos critérios de elegibilidade adotados, não tem de demonstrar, de forma positiva, que nenhuma outra medida concebível, por definição hipotética, poderia alcançar melhor o objetivo prosseguido. Se esse Estado‑Membro não está sujeito a essa obrigação, um recorrente não pode solicitar ao Tribunal Geral que obrigue a Comissão a substituir as autoridades nacionais nessa tarefa de prospeção normativa, a fim de examinar qualquer medida alternativa possível (v. Acórdão de 6 de maio de 2019, Scor/Comissão, T‑135/17, não publicado, EU:T:2019:287, n.o 94 e jurisprudência aí referida).

64      No entanto, há que reconhecer que essa jurisprudência não é relevante nas circunstâncias do presente caso. Com efeito, assenta na dupla premissa de que, por um lado, os critérios de elegibilidade de um regime de auxílios são elaborados pelo Estado‑Membro em causa, e, por outro, a Comissão só é obrigada a examinar o seu caráter necessário com base nas explicações fornecidas por esse Estado. Ora, no caso vertente, é dado assente que, por um lado, o critério de elegibilidade que figura no regime de auxílios controvertido tem, na realidade, a sua origem no quadro temporário da Comissão, e, por outro, o critério alternativo admitido pela recorrente foi aplicado pela Comissão noutras decisões com o objetivo de declarar compatíveis determinados regimes de auxílios adotados devido à pandemia de COVID‑19.

65      Não obstante, a presente alegação não pode prosperar.

66      Em primeiro lugar, como foi salientado nos n.os 25, 55 e 58, supra, a Comissão goza de um amplo poder de apreciação na aplicação do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE. Portanto, só na eventualidade de o critério alternativo destacado pela recorrente demonstrar de forma manifesta que o critério de elegibilidade em causa não era necessário, poderia proceder a presente alegação.

67      Em segundo lugar, há que observar que o critério alternativo destacado pela recorrente difere do critério de elegibilidade em causa no que diz respeito ao alcance do seu impacto orçamental no Estado‑Membro em causa. Com efeito, aquele critério teria como consequência a atribuição de recursos públicos a qualquer empresa que tivesse sofrido prejuízos devido à pandemia, independentemente da sua situação financeira global. Ao invés, o critério de elegibilidade em causa limita o impacto orçamental desses auxílios ao excluir ou reduzir o benefício do regime de auxílios controvertido relativamente às empresas que, devido a outras fontes de rendimento, viram a sua situação financeira global afetada em menor escala pela pandemia de COVID‑19.

68      Em terceiro lugar, e consequentemente, a recorrente não tem razão ao argumentar, em substância, que o critério alternativo que apresenta constitui uma medida «igualmente adequada» na aceção da jurisprudência referida nos n.os 42 e 43, supra, que permite demonstrar que o critério de elegibilidade em causa não era necessário.

69      Esta conclusão não é infirmada pelo argumento da recorrente de que a Comissão aceitou a aplicação de um critério baseado em setores de atividade afetados pela pandemia de COVID‑19 em duas decisões mediante as quais, com base no artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE, se declaram compatíveis determinados regimes de auxílios.

70      A este respeito, basta salientar que o facto de, com base no artigo 107.o, n.o 2, alínea b), TFUE, que diz respeito aos auxílios automaticamente compatíveis que se destinam a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários, a Comissão ter podido autorizar regimes de auxílios que implicavam a compensação por perdas sofridas em consequência das injunções de encerramento relacionadas com a pandemia de COVID‑19, sem ter em conta a situação financeira global dos beneficiários, não implica que esteja obrigada a seguir uma abordagem equivalente ao exercer o seu amplo poder de apreciação, que lhe é conferido pelo artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE, para declarar compatíveis os auxílios destinados a sanar uma perturbação grave da economia de um Estado‑Membro.

–       Quanto à alegação que contesta a proporcionalidade do critério de elegibilidade em causa

71      A recorrente alega, em substância, que o critério de elegibilidade em causa é desproporcionado tendo em conta os efeitos restritivos sobre a concorrência que causou às empresas que, unicamente em algumas das suas atividades, se viram afetadas pela pandemia de COVID‑19. Observa que foi obrigada a apoiar essas atividades em vez de proceder a novos investimentos, ao contrário dos seus concorrentes que beneficiaram plenamente do regime de auxílios controvertido. Salienta, em substância, que a Comissão não podia ignorar a extensão dos efeitos restritivos resultantes do critério de elegibilidade em causa sobre a concorrência, uma vez que a comunicação que introduziu uma quinta alteração do quadro temporário elevou o limite máximo para 10 milhões de euros.

72      Sem que seja necessário apreciar se, ao aplicar o artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE, a Comissão estava obrigada a proceder a uma ponderação dos efeitos benéficos do regime de auxílios controvertido e dos seus efeitos negativos na manutenção de uma concorrência não falseada, basta constatar que o critério de elegibilidade em causa não provocou, em caso algum, sobre a concorrência, efeitos restritivos manifestamente desproporcionados em relação ao objetivo, prosseguido pelo regime de auxílios controvertido, de assegurar a viabilidade das empresas afetadas pela pandemia de COVID‑19.

73      Com efeito, não se pode considerar que a circunstância de a recorrente ter sido obrigada a canalizar alguns dos seus recursos provenientes de atividades não afetadas pela pandemia de COVID‑19 para o financiamento de atividades afetadas por esta, em vez de proceder a novos investimentos, prejudique a sua posição concorrencial de tal forma que a derrogação prevista no artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE não possa ser aplicada. A este respeito, importa realçar que os concorrentes da recorrente que beneficiaram plenamente do regime de auxílios controvertido também têm de suportar parte dos prejuízos causados pela pandemia, uma vez que a decisão impugnada prevê, nos termos do n.o 87, alínea c), do quadro temporário, que a intensidade do auxílio não pode exceder 70 % dos custos fixos não cobertos, exceto no caso das micro e pequenas empresas, para as quais esse limiar é de 90 % desses custos.

74      Além disso, importa salientar que o raciocínio da recorrente parece basear‑se no pressuposto de que o regime de auxílios permite aos seus beneficiários investir no desenvolvimento das suas atividades existentes, ou em novas atividades, dando‑lhes assim uma vantagem competitiva sobre as empresas cujo modelo empresarial implica que não beneficiam desse regime, ou que beneficiam apenas em menor medida. Ora, tal pressuposto não existe de facto, uma vez que o referido regime só permite garantir a sobrevivência de empresas que — diferentemente daquelas empresas em que uma parte substancial das suas atividades não foram afetadas pela pandemia de COVID‑19 — ficaram seriamente fragilizadas por tal pandemia. Por conseguinte, não se pode razoavelmente considerar que o referido regime lhes permitirá desenvolver as suas atividades em detrimento das atividades dos seus concorrentes.

75      Atendendo às considerações anteriores, há que julgar improcedente a presente alegação e, consequentemente, a primeira parte do primeiro fundamento.

 Quanto à segunda parte, relativa à falta de exame individual do regime de auxílios controvertido e à falta de fundamentação

76      A recorrente, por um lado, recorda que a adoção do quadro temporário pela Comissão não a dispensava de proceder a um exame individual do regime de auxílios controvertido, e, por outro, critica a referida instituição por não ter procedido a esse exame no caso vertente. A este respeito, refere a circunstância de a decisão impugnada estar fundamentada exclusivamente por remissão para o referido quadro e de ter sido adotada no prazo de apenas três dias após a notificação daquele regime de auxílios. Acrescenta que a decisão enferma de falta de fundamentação, uma vez que nela a Comissão se limitou a remeter para aquele quadro.

77      A Comissão, apoiada pela República Federal da Alemanha, alega que procedeu a um exame do regime de auxílios controvertido, do qual resultou que não havia razão para se afastar do quadro temporário. Além disso, refuta qualquer falta de fundamentação da decisão impugnada.

78      Pelas razões já expostas nos n.os 36 e 37, supra, importa sublinhar que é verdade que a recorrente tem razão ao afirmar que a adoção do quadro temporário pela Comissão não a dispensava de proceder a um exame individual do regime de auxílios em causa.

79      Contudo, não se pode dizer, no caso vertente, que a Comissão não cumpriu a sua obrigação de examinar individualmente o regime de auxílios controvertido.

80      Em primeiro lugar, resulta claramente dos n.os 9 e 14, supra, que, tanto na Decisão C (2020) 8318 final como na Decisão C (2021) 1066 final, a Comissão explicitou as características do regime de auxílios controvertido.

81      Em segundo lugar, nos seus articulados, a recorrente não demonstra a existência de circunstâncias excecionais específicas do regime de auxílios controvertido que tivessem justificado que a Comissão não aplicasse o n.o 87 do quadro temporário. Com efeito, decorre da análise da primeira parte do presente fundamento que as várias críticas apresentadas dizem respeito ao mérito do critério de elegibilidade em causa, nos termos em que figura no citado número, como foi aplicado na decisão impugnada, mas que não são propriamente específicas desse regime de auxílios.

82      A este respeito, deve salientar‑se que a existência de empresas com um modelo económico que implica o exercício, em simultâneo, de atividades afetadas e de atividades não afetadas pela pandemia de COVID‑19 não é uma consideração específica do regime de auxílios controvertido que a Comissão estivesse obrigada a ter em conta na decisão impugnada. O mesmo se diga em relação ao facto de a comunicação que introduziu uma quinta alteração do quadro temporário ter aumentado o limite máximo do auxílio pago para 10 milhões de euros por empresa.

83      Em terceiro lugar, e consequentemente, uma vez que a recorrente não demonstra nenhuma circunstância excecional suscetível de implicar que a Comissão se afastasse das regras que tinha estabelecido no quadro temporário, o facto de ter podido tomar uma decisão no prazo de três dias após a notificação do regime de auxílios não pode considerar‑se como um indício revelador da falta de exame individual do regime de auxílios controvertido.

84      Em quarto lugar, na ausência de circunstâncias específicas do regime de auxílios controvertido, a Comissão não incumpriu o seu dever de fundamentação ao remeter, na decisão impugnada, para os motivos expostos no quadro temporário, a fim de explicar as razões pelas quais tinha decidido declarar o regime de auxílios controvertido compatível com o mercado interno, nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE.

85      Além disso, resulta de todas as apreciações anteriores que, por um lado, a recorrente pôde compreender a fundamentação contida na decisão impugnada, e, por outro, o Tribunal Geral pôde fiscalizar o seu mérito, pelo que se deve considerar que essa decisão foi adequadamente fundamentada em termos jurídicos.

86      Atendendo às considerações anteriores, há que julgar improcedente esta parte do fundamento e, consequentemente, o primeiro fundamento na sua totalidade.

 Quanto ao segundo fundamento, relativo à violação do artigo 108.o, n.o 2, TFUE

87      A recorrente alega que, na medida em que a questão da compatibilidade do regime de auxílios controvertido com o mercado interno suscitava dificuldades sérias, a Comissão estava obrigada a dar início ao procedimento formal de investigação e que, consequentemente, a decisão impugnada violou os direitos processuais que lhe são conferidos pelo artigo 108.o, n.o 2, TFUE. Em substância, a recorrente entende que resulta do primeiro fundamento que a Comissão não se debruçou sobre as implicações de uma abordagem baseada na avaliação dos efeitos da pandemia de COVID‑19 ao nível das empresas que operavam em vários domínios de atividade. Após a quinta alteração do quadro temporário, a Comissão tinha compreendido a importância de conceder uma ajuda às grandes empresas, mas não havia retirado consequências ao examinar a alteração do regime de auxílios original. Isso é revelador de um exame insuficiente e incompleto e, portanto, da existência de dificuldades sérias suscetíveis de gerar dúvidas quanto à compatibilidade do regime controvertido com o mercado interno. Por fim, a recorrente considera que o presente fundamento tem um conteúdo autónomo em relação ao primeiro.

88      A Comissão alega que o presente fundamento não tem nenhum conteúdo autónomo em relação ao primeiro, de modo que a improcedência do primeiro fundamento implica automaticamente a improcedência do presente fundamento.

89      Há que reconhecer que o presente fundamento, relativo à salvaguarda dos direitos processuais da recorrente devido ao facto de a Comissão não ter dado início a um procedimento formal de investigação apesar da alegada existência de dúvidas sérias, tem, na realidade, natureza subsidiária no caso de o Tribunal Geral não ter examinado o mérito da apreciação do auxílio enquanto tal. Com efeito, decorre de jurisprudência constante que o objetivo de tal fundamento é permitir que uma parte interessada possa, nessa qualidade, intentar uma ação ao abrigo do artigo 263.o TFUE, o que de outra forma lhe seria negado (v., neste sentido, Acórdãos de 24 de maio de 2011, Comissão/Kronoply e Kronotex, C‑83/09 P, EU:C:2011:341, n.o 48, e de 27 de outubro de 2011, Áustria/Scheucher Fleisch e o., C‑47/10 P, EU:C:2011:698, n.o 44). Ora, uma vez que este fundamento, que diz respeito ao mérito da apreciação do auxílio enquanto tal, foi examinado, está privado da sua finalidade manifestada.

90      Além disso, há que referir que o presente fundamento é desprovido de conteúdo autónomo. Com efeito, a fim de preservar os seus direitos processuais no âmbito do procedimento formal de investigação, a recorrente só pode invocar os fundamentos que demonstrem que a apreciação das informações e dos elementos de que a Comissão dispôs, aquando da fase preliminar de análise da medida notificada, teria de suscitar dúvidas quanto à sua compatibilidade com o mercado interno (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de dezembro de 2008, Régie Networks, C‑333/07, EU:C:2008:764, n.o 81; de 9 de julho de 2009, 3F/Comissão, C‑319/07 P, EU:C:2009:435, n.o 35; e de 24 de maio de 2011, Comissão/Kronoply e Kronotex, C‑83/09 P, EU:C:2011:341, n.o 59), tais como o caráter insuficiente ou incompleto do exame efetuado pela Comissão no procedimento de exame preliminar ou a existência de denúncias provenientes de terceiros. Ora, importa salientar que o presente fundamento retoma de forma condensada os argumentos suscitados no âmbito do primeiro fundamento sem destacar elementos específicos relacionados com quaisquer dificuldades sérias.

91      Por conseguinte, tendo em conta que o primeiro fundamento foi examinado quanto ao mérito, não há que examinar o presente fundamento.

92      Em face do exposto, deve ser negado provimento ao presente recurso.

 Quanto às despesas

93      Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

94      Tendo a recorrente sido vencida e a Comissão pedido a sua condenação, há que condená‑la nas despesas.

95      Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, os Estados‑Membros e as instituições que intervenham no litígio devem suportar as suas próprias despesas. Por conseguinte, a República Federal da Alemanha suportará as suas próprias despesas.

Com base nestes fundamentos,

O TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção alargada)

decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      A Falke KGa suportará as suas próprias despesas e as despesas da Comissão Europeia.

3)      A República Federal da Alemanha suportará as suas próprias despesas.

Tomljenović

Schalin

Škvařilová‑Pelzl

Nõmm

 

      Kukovec

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 21 de dezembro de 2022.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.