Language of document : ECLI:EU:C:2022:548

Processo C348/20 P

Nord Stream 2 AG

contra

Parlamento Europeu
e
Conselho da União Europeia

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 12 de julho de 2022

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Energia — Mercado interno do gás natural — Diretiva 2009/73/CE — Diretiva (UE) 2019/692 — Extensão da aplicabilidade da Diretiva 2009/73 às condutas de gás entre Estados‑Membros e países terceiros — Artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE — Recurso de anulação — Requisito segundo o qual a medida que é objeto do recurso deve dizer diretamente respeito à recorrente — Inexistência de poder de apreciação quanto às obrigações impostas à recorrente — Requisito segundo o qual a medida que é objeto do recurso deve dizer individualmente respeito à recorrente — Adaptação das derrogações que excluem a recorrente do benefício destas enquanto único operador — Pedido de desentranhamento de documentos dos autos — Regras em matéria de apresentação das provas perante o juiz da União Europeia — Documentos internos das instituições da União»

1.        Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Atos que lhes dizem direta e individualmente respeito — Afetação direta — Critérios — Diretiva de alteração que sujeita, em princípio, a parte dos gasodutos situada entre um EstadoMembro e um país terceiro às regras aplicáveis ao mercado interno do gás natural — Afetação direta de um proprietário de gasodutos suscetível de estar abrangido pela extensão do âmbito de aplicação das normas de direito da União — Requisitos — Diretiva que produz diretamente efeitos na situação jurídica do proprietário — Inexistência de margem de apreciação dos EstadosMembros quanto à execução da diretiva a seu respeito

(Artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE; Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho 2009/73, artigos 2.°, n.° 17, 9.°, 32.°, 36.° e 49.°A, e 2019/692, artigo 1.°)

(cf. n.os 43, 44, 62‑67, 70, 74‑77, 95, 97‑112, 114, 164)

2.        Processo judicial — Incidente processual — Pedido de desentranhamento de documentos dos autos — Critérios de apreciação — Documentos internos das instituições da União — Obrigação do juiz da União de ponderar os interesses das partes tendo em conta o direito destas a um processo equitativo — Alcance

(Artigo 15.°, n.° 3, primeiro parágrafo, TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 42.° e 47.°; Regulamento n.° 1049/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 4.°, n.° 1)

(cf. n.os 128‑134, 136‑148)

3.        Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Atos que lhes dizem direta e individualmente respeito — Afetação direta — Critérios — Diretiva de alteração que sujeita, em princípio, a parte dos gasodutos situada entre um EstadoMembro e um país terceiro às regras aplicáveis ao mercado interno do gás natural — Recurso de um proprietário de gasodutos suscetível de estar abrangido pela extensão do âmbito de aplicação das normas de direito da União — Diretiva que permite a concessão de derrogações pelas entidades reguladoras nacionais — Afetação individual do proprietário enquanto único operador excluído pela diretiva do benefício das referidas derrogações — Admissibilidade

(Artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE; Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho 2009/73, artigos 2.°, n.° 17, 36.° e 49.°A, e 2019/692, artigo 1.°)

(cf. n.os 156‑163)

Resumo

A recorrente, Nord Stream 2 AG, é uma sociedade de direito suíço cujo único acionista é a sociedade pública russa por ações Gazprom. Está encarregada da planificação, construção e exploração do gasoduto marítimo Nord Stream 2, destinado a assegurar o encaminhamento de gás entre Vyborg (Rússia) e Lubmin (Alemanha). Os trabalhos de construção iniciaram‑se no mês de janeiro de 2017.

Em 17 de abril de 2019, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia adotaram a Diretiva 2019/692 (1), que altera a Diretiva 2009/73, que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural. A Diretiva 2019/692, que entrou em vigor em 23 de maio de 2019, tem por objetivo assegurar que as regras aplicáveis aos gasodutos que ligam dois ou mais Estados‑Membros sejam igualmente aplicáveis, na União, aos gasodutos com destino países terceiros e com proveniência destes, como o gasoduto Nord Stream 2. Assim, na sequência da entrada em vigor desta diretiva, os proprietários de gasodutos entre um Estado‑Membro e um país terceiro, como a recorrente, estão, a partir de agora, em princípio, sujeitos às obrigações previstas pela Diretiva 2009/73 em relação à parte dos seus gasodutos situada no território dos Estados‑Membros, no caso em apreço, a parte do gasoduto Nord Stream 2 situada no território da República Federal da Alemanha. Isso implica, para esses exploradores, designadamente, a obrigação de separação entre as redes de transporte e os operadores das redes de transporte em relação às estruturas de produção e de comercialização (2), bem como a instauração de um sistema de acesso não discriminatório de terceiros às redes de transporte de gás com base em tarifas publicadas e aprovadas (3).

Por Despacho de 20 de maio de 2020 (4), o Tribunal Geral julgou inadmissível o recurso interposto pela recorrente destinado à anulação da diretiva controvertida, com o fundamento de que esta não lhe dizia diretamente respeito. Considerou, designadamente, que uma diretiva não podia, por si só, criar obrigações a cargo de um particular, na falta de adoção prévia de medidas de transposição. Nestas circunstâncias, o Tribunal Geral renunciou examinar a admissibilidade do recurso tendo em conta a afetação individual da recorrente. Por ocasião do recurso, o Tribunal Geral ordenou igualmente o desentranhamento dos autos de certos documentos internos apresentados pela recorrente no âmbito do seu recurso, sem autorização das instituições em causa.

Chamado a conhecer de um recurso interposto pela recorrente, o Tribunal de Justiça, reunido em Grande Secção, anula o despacho do Tribunal Geral e declara o recurso admissível. Nesta ocasião, o Tribunal de Justiça especifica a sua jurisprudência relativa à admissibilidade dos recursos diretos interpostos por particulares contra diretivas. Precisa igualmente o papel do Regulamento n.° 1049/2001 relativo ao acesso do público aos documentos (5) para efeitos do exame de pedidos de desentranhamento de documentos internos dos autos do processo judicial.

Apreciação do Tribunal de Justiça

O Tribunal de Justiça começa por recordar que, nos termos do artigo 263.°, quarto parágrafo, segunda parte, TFUE, qualquer pessoa singular ou coletiva pode interpor recursos contra os atos que lhe digam direta e individualmente respeito. Para que o ato impugnado diga diretamente respeito a um particular, dois critérios devem estar cumulativamente preenchidos. Por um lado, a medida impugnada deve produzir diretamente efeitos na sua situação jurídica e, por outro, não deve deixar nenhum poder de apreciação aos destinatários incumbidos da sua execução.

Quanto ao primeiro requisito relativo à produção de efeitos diretos na situação jurídica de um particular, o Tribunal de Justiça salienta que a capacidade de um ato produzir tais efeitos não pode ser apreciada tendo unicamente em conta a sua forma e que há que atender à substância desse ato. Daqui resulta que qualquer ato pode, em princípio, produzir diretamente efeitos na situação jurídica de um particular, e isso independentemente do facto de saber se esse ato necessita de medidas de execução, incluindo, tratando‑se de uma diretiva, medidas de transposição. Com efeito, estas últimas não põem em causa o caráter direto do vínculo existente entre essa diretiva e esses efeitos, na condição de a referida diretiva não deixar aos Estados‑Membros nenhum poder de apreciação quanto à imposição dos referidos efeitos a esse particular.

No caso em apreço, ao alargar o âmbito de aplicação da Diretiva 2009/73 às condutas de gás entre Estados‑Membros e países terceiros, a diretiva controvertida tem como consequência submeter a recorrente, enquanto proprietária dessa conduta de gás, às obrigações que dela decorrem. A este respeito, a necessidade de o Estado‑Membro em causa, no caso em apreço a República Federal da Alemanha, adotar medidas de transposição para dar cumprimento a essas obrigações é irrelevante desde que esse Estado‑Membro não goze de margem de apreciação suscetível de impedir a imposição dessas obrigações à recorrente.

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça conclui que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao declarar que a diretiva controvertida não produzia diretamente efeitos na situação jurídica da recorrente.

Quanto ao segundo requisito relativo à margem de apreciação deixada aos destinatários de um ato com vista à sua aplicação, o Tribunal de Justiça precisa que a existência de tal margem deve igualmente ser examinada tendo em conta a substância desse ato e deve, por outro lado, necessariamente ser apreciada tendo em conta os efeitos jurídicos concretos visados pelo recurso e que podem efetivamente produzir‑se na situação jurídica do interessado.

Ora, no caso em apreço, embora os Estados‑Membros destinatários da diretiva controvertida disponham de uma certa margem de manobra quanto à concretização das obrigações que esta impõe, o Estado‑Membro em causa não goza de nenhuma margem de apreciação no que respeita à imposição dessas obrigações à recorrente. Em especial, não tem a possibilidade de lhe conceder uma das derrogações previstas na Diretiva 2009/73 (6). Com efeito, apesar da margem de apreciação dos Estados‑Membros quanto à concessão dessas derrogações previstas na Diretiva 2009/73 a empresas do setor do gás que preencham os seus requisitos de concessão, nenhuma dessas derrogações é suscetível de se aplicar à situação da recorrente, que não preenche esses requisitos. Existe, assim, um nexo direto entre a entrada em vigor da diretiva controvertida e a imposição à recorrente das obrigações nesta previstas.

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça entende que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar que a diretiva controvertida deixava uma margem de apreciação aos Estados‑Membros, sem ter em conta a situação da recorrente e o facto de a entrada em vigor da diretiva controvertida ter tido como consequência direta sujeitar esta última a obrigações a que não se pode subtrair.

Tendo em conta estas considerações, o Tribunal de Justiça conclui que a diretiva controvertida diz diretamente respeito à recorrente.

Em seguida, o Tribunal de Justiça debruça‑se sobre o pedido do Conselho de desentranhamento dos autos de determinados documentos internos apresentados de modo irregular pela recorrente no decurso do processo. Tratava‑se, mais precisamente, de uma recomendação da Comissão Europeia ao Conselho relativa à abertura de negociações entre a União e um Estado terceiro com vista à celebração de um acordo internacional, de um parecer do serviço jurídico do Conselho relativo a essa recomendação, bem como das observações da República Federal da Alemanha formuladas no âmbito do processo legislativo de adoção da diretiva controvertida.

O Tribunal de Justiça observa, antes de mais, que a admissibilidade de elementos de prova produzidos de modo irregular, como os documentos internos das instituições da União cuja apresentação não foi autorizada, depende da ponderação dos interesses das partes, designadamente tendo em conta o objetivo de garantir o seu direito a um processo equitativo. A este respeito, embora o Regulamento n.° 1049/2001 revista um certo valor indicativo na ponderação desses interesses, não a regula de forma exaustiva.

Assim, no que respeita ao parecer do serviço jurídico do Conselho, o Tribunal de Justiça considera, à semelhança do Tribunal Geral, que a ponderação pende a favor da proteção dos interesses do Conselho, cujo direito a um processo equitativo e o seu interesse em receber pareceres francos, objetivos e completos seriam postos em causa pela manutenção do referido parecer nos autos do processo judicial, sem que o interesse da recorrente em sustentar a sua argumentação com o auxílio desse parecer seja, só por si, suficiente, no caso em apreço, para justificar essa manutenção, tanto mais que a procedência desta argumentação não depende de modo algum da apresentação desse parecer. Em contrapartida, no que respeita à recomendação da Comissão e às observações da República Federal da Alemanha, o Tribunal de Justiça declara que o Tribunal Geral, na realidade, aplicou exclusivamente as disposições do Regulamento n.° 1049/2001, sem proceder a uma ponderação dos interesses em causa e sem apreciar, neste âmbito, se a manutenção dos mesmos documentos nos autos podia, concreta e efetivamente, pôr em causa o interesse invocado para justificar o seu desentranhamento, a saber, o interesse público no que diz respeito às relações internacionais (7).

Depois de ter concedido provimento ao recurso, fazendo uso do poder de avocação, o Tribunal de Justiça pronuncia‑se, por último, sobre a afetação individual da recorrente pela diretiva controvertida. A este respeito, observa que os requisitos de derrogação nesta previstos, dizem individualmente respeito à recorrente, uma vez que esta é o único operador a encontrar‑se, e a poder encontrar‑se, em situação de ser excluída do benefício destas.

Tendo em conta o que precede, o Tribunal de Justiça declara admissível o recurso de anulação da recorrente e remete o processo ao Tribunal Geral para que seja proferida decisão de mérito.


1      Diretiva (UE) 2019/692 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019, que altera a Diretiva 2009/73/CE que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural (JO 2019, L 117, p. 1, a seguir «diretiva controvertida»).


2      Artigo 9.° da Diretiva 2009/73.


3      Artigo 32.° da Diretiva 2009/73.


4      Despacho de 20 de maio de 2020, Nord Stream 2/Parlamento e Conselho (T‑526/19, EU:T:2020:210).


5      Regulamento (CE) n.° 1049/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2001, relativo ao acesso do público aos documentos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão (JO 2001, L 145, p. 43). Há que observar que este regulamento não é aplicável no caso em apreço.


6      Artigos 36.° e 49.°‑A da Diretiva 2009/73.


7      Artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1049/2001.