Language of document : ECLI:EU:T:2010:216

Processos apensos T‑425/04, T‑444/04, T‑450/04 e T‑456/04

República Francesa e o.

contra

Comissão Europeia

«Auxílios de Estado – Medidas financeiras a favor da France Télécom – Projecto de adiantamento de accionista – Declarações públicas de um membro do Governo francês – Decisão que declara o auxílio incompatível com o mercado comum e não ordena a sua recuperação – Recurso de anulação – Interesse em agir – Admissibilidade – Conceito de auxílio de Estado – Vantagem – Recursos estatais – Dever de fundamentação»

Sumário do acórdão

1.      Recurso de anulação – Recursos dos Estados‑Membros – Recurso dirigido contra a decisão da Comissão que declara a incompatibilidade de um auxílio com o mercado comum – Admissibilidade não subordinada à demonstração de interesse em agir

2.      Recurso de anulação – Pessoas singulares ou colectivas – Interesse em agir – Decisão da Comissão que declara a incompatibilidade de um auxílio com o mercado comum

3.      Auxílios concedidos pelos Estados – Conceito – Declarações públicas de um membro do Governo de um Estado‑Membro manifestando a vontade deste último de adoptar as medidas adequadas para resolver as dificuldades financeiras de uma empresa – Vantagem concedida sem transferência de recursos públicos – Exclusão – Projecto de concessão de uma linha de crédito a uma empresa

(Artigo 87.°, n.° 1, CE)

4.      Auxílios concedidos pelos Estados – Conceito – Concessão, imputável ao Estado, de uma vantagem através de recursos estatais – Declarações públicas de um membro do Governo de um Estado‑Membro manifestando a vontade deste último de adoptar as medidas adequadas para resolver as dificuldades financeiras de uma empresa – Vantagem concedida sem transferência de recursos públicos – Exclusão

(Artigo 87.°, n.° 1, CE)

5.      Auxílios concedidos pelos Estados – Decisão da Comissão – Fiscalização jurisdicional

6.      Actos das instituições – Fundamentação – Dever – Alcance

(Artigo 253.° CE)

1.      O Tratado CE estabelece uma nítida distinção entre o direito de interpor um recurso de anulação conferido às instituições comunitárias e aos Estados‑Membros, por um lado, e o conferido às pessoas singulares e colectivas, por outro, uma vez que aos Estados‑Membros foi atribuído o direito de impugnar, através de um recurso de anulação, a legalidade das decisões da Comissão, sem fazer depender o exercício desse direito da demonstração de um interesse em agir. Um Estado‑Membro não tem, pois, que demonstrar que o acto da Comissão por si impugnado produz efeitos na sua própria esfera jurídica, para que o seu recurso seja admissível. O interesse em agir visa unicamente os recursos interpostos por pessoas singulares ou colectivas, e não os das instituições ou dos Estados‑Membros.

Acresce que, a noção de interesse em agir não pode ser confundida com o conceito de acto recorrível, por força do qual o acto se deve destinar a produzir efeitos jurídicos susceptíveis de lesar, para que possa ser objecto de um recurso de anulação, o que convém determinar tendo em atenção a sua substância.

Uma decisão da Comissão que qualifica uma medida como auxílio de Estado, o que lhe permite analisar a sua compatibilidade com o mercado comum, produz tais efeitos jurídicos obrigatórios e constitui, por isso, em relação a um Estado‑Membro, um acto susceptível de recurso.

(cf. n.os 118‑119)

2.      A admissibilidade de um recurso de anulação está subordinada à condição de a pessoa singular ou colectiva que o interpõe ter um interesse efectivo e actual em que o acto impugnado seja anulado. Tal interesse só existe se a anulação desse acto for susceptível, por si própria, de ter consequências jurídicas ou, segundo outra fórmula, se o recurso puder, pelo seu resultado, conferir um benefício à parte que o interpôs. Portanto, uma decisão que satisfaz inteiramente essa pessoa não é, por definição, susceptível de lhe causar prejuízo, e essa pessoa não tem interesse em pedir a sua anulação.

Todavia, no respeitante a uma decisão da Comissão que constata a incompatibilidade de um auxílio com o mercado comum, uma empresa concorrente do beneficiário do auxílio justifica ter interesse efectivo e actual em obter a anulação desta decisão, quando invoca que o Estado tomou medidas de auxílio suplementares que incluem vantagens distintas a favor da empresa beneficiária e que afectam mais ainda a sua posição de mercado.

Efectivamente, a existência de um auxílio e a sua incompatibilidade com o mercado comum não excluem a priori a existência de outras medidas de auxílio incompatíveis que, apesar de não serem visadas pela decisão da Comissão, também se enquadram no objecto do procedimento administrativo que conduziu à adopção da referida decisão e que, mais ainda, são susceptíveis de afectar substancialmente a posição no mercado de determinados concorrentes do beneficiário do auxílio.

Aliás, quando um recorrente invoca que o acto impugnado, mesmo na eventualidade de lhe ser parcialmente favorável, ainda não protege de modo adequado a sua situação jurídica, deve‑lhe ser reconhecido um interesse em agir para fazer verificar, pelo juiz comunitário, a legalidade dessa decisão.

(cf. n.os 116, 127‑128, 130‑131)

3.      Para que uma medida seja qualificada de auxílio de Estado, na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE, é nomeadamente necessário, por um lado, que comporte uma vantagem, a qual é susceptível de assumir diversas formas («independentemente da forma que assumam»), e, por outro, que esta vantagem provenha, de modo directo ou indirecto, de recursos públicos (concedidos «pelos Estados ou provenientes de recursos estatais»). A noção de vantagem implica que a intervenção do Estado deve ter por consequência uma melhoria da posição económica e/ou financeira, ou mesmo um enriquecimento do beneficiário, por exemplo, aliviando os encargos que normalmente oneram o seu orçamento.

No respeitante ao impacto das declarações públicas de um membro do Governo de um Estado‑Membro manifestando a vontade deste último de adoptar as medidas adequadas para resolver as dificuldades financeiras de uma empresa, há que constatar que estas declarações podem conduzir a uma vantagem apreciável em proveito da referida empresa, na medida em que permitem restaurar a confiança dos mercados financeiros, tornam possível, mais fácil e menos dispendioso o seu acesso a novos créditos necessários ao refinanciamento das suas dívidas a curto prazo e, em definitivo, contribuem para estabilizar a sua situação financeira muito frágil. Com efeito, tais declarações podem influir, de modo decisivo, na reacção das agências de notação e contribuir assim para a revalorização da imagem da empresa aos olhos dos investidores e dos credores, bem como revelar‑se determinante para o comportamento dos actores dos mercados financeiros que posteriormente participem no refinanciamento da empresa em causa.

Além disso, por força dos princípios que regem a concessão de créditos e o refinanciamento nos mercados de capitais, o nível de notação de uma empresa e, portanto, do risco de não pagamento associado aos créditos que lhe são concedidos, é determinante para medir o custo de refinanciamento que esta empresa deve suportar, nomeadamente, em termos de juros devidos para a emissão de novas obrigações. Donde resulta que quanto menor é este risco de não pagamento, menos difícil e oneroso é o refinanciamento dos créditos em causa nos mercados de capitais. Por outras palavras, qualquer influência positiva na notação de uma empresa, nem que seja graças a declarações públicas que possam criar ou reforçar a confiança dos investidores, produz um impacto imediato no nível dos custos que esta deve suportar a fim de se refinanciar nos mercados de capitais.

Acresce que, para qualificar uma medida de auxílio de Estado, a Comissão tem o dever de demonstrar com base em elementos objectivos que estão reunidas todas as condições cumulativas do conceito de auxílio na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE, incluindo a existência de uma vantagem, tendo em conta os efeitos económicos da medida em causa.

No tocante a uma proposta unilateral do Estado de conceder a uma empresa uma linha de crédito de um determinado montante que nunca chegou a ser executada, a Comissão não pode presumir, unicamente com fundamento nela, que esta proposta implica efeitos económicos vantajosos para o beneficiário, abstendo‑se de ter em conta as condições que regem a execução do contrato de crédito em causa e, em especial, as que se prendem com a concessão e o reembolso do referido crédito, e isto tanto menos quanto o beneficiário não aceitou esta proposta, limitando‑se a refinanciar‑se nas condições que reinavam no mercado. Se assim não fosse, mesmo um contrato de crédito que comportasse condições objectivamente desvantajosas, como taxas de juros mais elevadas e termos de reembolso mais estritos do que os oferecidos pelo mercado, deveria ser qualificado de vantagem na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE, e isto pelo único motivo de um credor público se ter declarado pronto a colocar uma determinada quantia à disposição do beneficiário.

(cf. n.os 215, 231, 234, 237‑238, 253, 255)

4.      Apenas as vantagens concedidas directa ou indirectamente e provenientes de recursos estatais devem ser consideradas auxílios na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE. Com efeito, a distinção, estabelecida nesta disposição, entre os «auxílios concedidos pelos Estados» e os auxílios «provenientes de recursos estatais» não significa que todas as vantagens concedidas por um Estado constituam auxílios, quer sejam ou não financiadas por recursos estatais, mas destina‑se apenas a incluir neste conceito as vantagens atribuídas directamente pelo Estado e as atribuídas por intermédio de um organismo público ou privado, designado ou instituído por este Estado.

Neste contexto, a aplicação do critério do investidor privado pressupõe necessariamente que as medidas tomadas pelo Estado a favor de uma empresa confiram uma vantagem decorrente de recursos estatais.

Por outro lado, no tocante ao alcance da fiscalização jurisdicional a efectuar, cabe lembrar que o conceito de auxílio é um conceito objectivo e que, portanto, a qualificação de uma medida de auxílio de Estado, que, segundo o Tratado, incumbe tanto à Comissão como ao órgão jurisdicional, não pode, em princípio, justificar, na ausência de circunstâncias específicas devidas nomeadamente à natureza complexa da intervenção estatal em causa, o reconhecimento de um amplo poder de apreciação à Comissão. Efectivamente, é apenas na aplicação do artigo 87.°, n.° 3, CE, que implica a tomada em consideração pela Comissão, no quadro do seu exame da eventual compatibilidade de determinadas medidas estatais com o mercado comum, de apreciações complexas de ordem económica, social, regional e sectorial, que é efectivamente conferido à Comissão um amplo poder de apreciação. Com efeito, o conceito de auxílio de Estado, tal como é definido pelo Tratado, é um conceito jurídico e deve ser interpretado com base em elementos objectivos. Por esta razão, o juiz comunitário deve, em princípio, e tendo em conta tanto os elementos concretos do litígio submetido à sua apreciação como o carácter técnico ou complexo das apreciações feitas pela Comissão, exercer uma fiscalização exaustiva no que diz respeito à questão de saber se uma medida é abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 87.°, n.° 1, CE.

A vantagem deve decorrer de uma transferência de recursos do Estado. Esta exigência de nexo entre a vantagem identificada e a afectação de recursos estatais pressupõe, em princípio, que a referida vantagem esteja estreitamente ligada a um encargo correspondente que onere o orçamento do Estado, ou à criação, com base em obrigações juridicamente vinculativas assumidas pelo Estado, de um risco económico suficientemente concreto para este orçamento.

Tratando‑se das declarações públicas de um membro do Governo de um Estado‑Membro manifestando a vontade deste último de adoptar as medidas adequadas para resolver as dificuldades financeiras de uma empresa, um compromisso concreto, incondicional e irrevogável de recursos públicos por parte do Estado‑Membro na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE pressuporia que estas declarações tivessem precisado, expressamente, quer as quantias exactas a investir, quer as dívidas concretas a garantir, quer, pelo menos, um quadro financeiro predefinido, tal como uma linha de crédito de um determinado montante, bem como as condições de concessão da contribuição prevista.

O simples facto de o Estado‑Membro se ter socorrido da sua especial reputação nos mercados financeiros não basta para demonstrar que os seus recursos estavam expostos a um risco tal que possa ser considerado equivalente a uma transferência de recursos estatais, na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE, suficientemente conexa com a vantagem conferida à empresa pelas declarações públicas de um membro do Governo do Estado. Com efeito, não basta que, em vez de utilizar directa ou indirectamente recursos estatais, o Estado‑Membro faça entrar em jogo as regras específicas que regem o funcionamento dos mercados financeiros a fim de estabilizar a posição económica da empresa a curto prazo, e isto precisamente com o objectivo de reunir as condições empresariais e financeiras indispensáveis às medidas de apoio mais concretas que deverão ser posteriormente tomadas.

(cf. n.os 214, 217‑219, 262, 280, 282, 297)

5.      No quadro do contencioso comunitário dos auxílios de Estado, a apreciação dos factos e das provas insere‑se inteiramente na livre apreciação do Tribunal Geral. Além disso, neste contexto, a questão de saber se e em que medida uma regra do direito nacional é ou não aplicável ao caso concreto inscreve‑se na apreciação dos factos pelo juiz e está sujeita às regras sobre a administração da prova e sobre a repartição do ónus da prova.

(cf. n.° 269)

6.      A fundamentação exigida pelo artigo 253.° CE deve ser adaptada à natureza do acto em causa e revelar, de forma clara e inequívoca, a argumentação da instituição autora do acto, por forma a permitir aos interessados conhecer as razões da medida adoptada e ao órgão jurisdicional competente exercer a sua fiscalização. Acresce que a obrigação de fundamentar as decisões é uma formalidade essencial que deve ser distinguida da questão do mérito da fundamentação, uma vez que este tem a ver com a legalidade substancial do acto controvertido. Com efeito, a fundamentação de uma decisão consiste em exprimir formalmente as razões em que assenta essa decisão. Se essas razões estiverem feridas de erros, estes inquinam a legalidade substancial da decisão, mas não a fundamentação desta, que pode ser suficiente, contendo embora motivos errados.

(cf. n.° 315)