Language of document : ECLI:EU:C:2010:136

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

11 de Março de 2010 (*)

«Auxílios de Estado – Artigo 88.°, n.° 3, CE – Auxílios ilegais declarados compatíveis com o mercado comum – Anulação da decisão da Comissão – Órgãos jurisdicionais nacionais – Pedido de recuperação de auxílios ilegalmente executados – Suspensão da instância até à adopção de uma nova decisão da Comissão – Circunstâncias excepcionais que podem limitar a obrigação de restituição»

No processo C‑1/09,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Conseil d’État (França), por decisão de 19 de Dezembro de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 2 de Janeiro de 2009, no processo

Centre d’exportation du livre français (CELF),

Ministre de la Culture et de la Communication

contra

Société internationale de diffusion et d’édition (SIDE),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente da Quarta Secção, C. Toader, K. Schiemann, P. Kūris e L. Bay Larsen (relator), juízes,

advogado‑geral: P. Cruz Villalón,

secretário: R. Șereş, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 13 de Janeiro de 2010,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Centre d’exportation du livre français (CELF), por O. Schmitt e A. Tabouis, avocats,

–        em representação da Société internationale de diffusion et d’édition (SIDE), por N. Coutrelis, avocat,

–        em representação do Governo francês, por E. Belliard, G. de Bergues e B. Beaupère‑Manokha, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo neerlandês, por C. M. Wissels e Y. de Vries, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por J.‑P. Keppenne e B. Stromsky, na qualidade de agentes,

–        em representação do Órgão de Fiscalização da EFTA, por X. Lewis, B. Alterskjær e L. Armati, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 88.°, n.° 3, CE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito do litígio que opõe o Centre d’exportation du livre français (a seguir «CELF») e o Ministro da Cultura e da Comunicação à Société internationale de diffusion et d’édition (a seguir «SIDE»), a propósito de auxílios concedidos pelo Estado francês ao CELF.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

 Factos na origem do litígio e tramitação do processo no Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias

3        Até 2009, o CELF era uma sociedade anónima cooperativa que se dedicava à actividade de comissária em matéria de exportações.

4        O CELF tinha por missão tratar directamente encomendas, para o estrangeiro e os territórios e departamentos ultramarinos franceses, de livros, brochuras e quaisquer suportes de comunicação e, mais genericamente, efectuar todas as operações tendo em vista desenvolver a promoção da cultura francesa no mundo, por meio dos referidos suportes.

5        De 1980 a 2002, o CELF beneficiou de subvenções à exploração concedidas pelo Estado francês para compensar os custos adicionais do tratamento das pequenas encomendas feitas pelos livreiros estabelecidos no estrangeiro.

6        Na sequência de uma denúncia apresentada em 1992 pela SIDE, concorrente do CELF, a Comissão das Comunidades Europeias admitiu, por meio da Decisão NN 127/92, de 18 de Maio de 1993, cujo anúncio foi publicado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, em 25 de Junho de 1993 (JO C 174, p. 6), que os auxílios em causa eram compatíveis com o mercado comum. Consequentemente, considerou que não devia levantar objecções.

7        O Tribunal de Primeira Instância, por acórdão de 18 de Setembro de 1995, SIDE/Comissão (T‑49/93, Colect., p. II‑2501), anulou essa decisão na medida em que dizia respeito à subvenção concedida exclusivamente ao CELF para compensar os custos adicionais do tratamento das pequenas encomendas de livros de língua francesa feitas por livreiros estabelecidos no estrangeiro. Considerou que a Comissão devia ter dado início ao procedimento contraditório previsto no artigo 93,°, n.° 2, do Tratado CE (actual artigo 88.°, n.° 2, CE).

8        Através da Decisão 1999/133/CE, de 10 de Junho de 1998, relativa ao auxílio estatal concedido à Coopérative d’exportation du livre français (CELF) (JO L 44, p. 37), a Comissão declarou a ilegalidade dos auxílios, mas, uma vez mais, admitiu a sua compatibilidade com o mercado comum.

9        Por acórdão de 28 de Fevereiro de 2002, SIDE/Comissão (T‑155/98, Colect., p. II‑1179), o Tribunal de Primeira Instância anulou essa decisão na parte em que declarava os auxílios em causa compatíveis com o mercado comum, pelo facto de a Comissão ter cometido um erro manifesto de apreciação quanto à definição do mercado relevante.

10      Por Decisão 2005/262/CE, de 20 de Abril de 2004, relativa ao auxílio concedido pela França a favor da Coopérative d’exportation du livre français (CELF) (JO L 85, p. 27), a Comissão admitiu, pela terceira vez, a compatibilidade dos auxílios.

11      Por acórdão de 15 de Abril de 2008, SIDE/Comissão (T‑348/04, Colect., p. II‑625), o Tribunal de Primeira Instância anulou essa decisão positiva, pelo facto de a Comissão ter cometido, por um lado, um erro de direito, quando aplicou o artigo 87.°, n.° 3, alínea d), CE ao período anterior a 1 de Novembro de 1993, em vez de aplicar as normas substantivas que estavam em vigor no período em causa, e, por outro, um erro manifesto de apreciação no exame da compatibilidade dos auxílios controvertidos.

12      Em 8 de Abril de 2009, a Comissão adoptou uma decisão de prolongamento do procedimento formal de investigação iniciado em 1996, de modo a expor as suas dúvidas sobre a compatibilidade dos auxílios em causa à luz do acórdão do Tribunal de 15 de Abril de 2008, SIDE/Comissão, já referido, e a permitir à República Francesa, ao beneficiário dos auxílios e às outras partes interessadas manifestarem‑se de novo, antes de ser tomada uma decisão definitiva.

13      Por sentença de 25 de Abril de 2009, o tribunal de commerce de Paris, atendendo à situação financeira do CELF, deu início, relativamente a esta empresa, a um procedimento de salvaguarda, com um período de observação de seis meses.

14      Por sentença de 9 de Setembro de 2009, que concluiu pela inexistência de uma solução por via de transacção e a existência de um passivo que excluía a perspectiva de um plano de viabilidade, esse tribunal declarou a insolvência do CELF e nomeou um administrador da insolvência.

15      Segundo informações comunicadas ao Tribunal de Justiça durante a fase oral do processo, o CELF cessou a sua actividade na sequência desta sentença.

 Tramitação do processo perante o órgão jurisdicional de reenvio e questões prejudiciais

16      O Conseil d’État foi chamado a conhecer dos recursos interpostos pelo CELF e pelo Ministro da Cultura e da Comunicação de um acórdão da cour administrative d’appel de Paris, de 5 de Outubro de 2004, que ordenou ao Estado, a pedido da SIDE, que procedesse à recuperação dos auxílios pagos ao CELF relativamente ao tratamento das pequenas encomendas de livros efectuadas por livreiros estrangeiros, no prazo de três meses a contar da data da notificação do acórdão, sob pena de pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 1 000 euros por dia de atraso.

17      Nesses recursos, os recorrentes sustentaram, nomeadamente, que a cour administrative d’appel de Paris deveria ter decidido que, no caso em apreço, a circunstância de a Comissão ter reconhecido a compatibilidade dos auxílios com o mercado comum obstava à obrigação de restituição dos mesmos, que decorre, em princípio, da ilegalidade associada à execução de medidas de auxílio pelo Estado‑Membro, com violação do artigo 88.°, n.° 3, CE.

18      Por acórdão de 29 de Março de 2006, o Conseil d’État decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Em primeiro lugar, o artigo 88.° [CE] permite a um Estado que tenha concedido um auxílio ilegal a uma empresa, ilegalidade reconhecida pelos tribunais desse Estado em virtude de o auxílio não ter sido objecto de notificação prévia à Comissão [...] em conformidade com as condições previstas no referido artigo 88.°, n.° 3, não recuperar esse auxílio junto do operador económico que dele beneficiou, pelo facto de a Comissão, chamada por um terceiro a decidir, ter declarado o auxílio compatível com as regras do mercado comum e, assim, ter assegurado de forma efectiva o controlo exclusivo que exerce sobre essa compatibilidade?

2)      Em segundo lugar, caso essa obrigação de restituição seja confirmada, deverão ser tidos em conta, no cálculo do valor dos montantes a restituir, os períodos durante os quais o auxílio em causa foi declarado compatível com as regras do mercado comum pela Comissão [...], antes de essas decisões serem objecto de anulação por parte do [Tribunal de Primeira Instância]?»

19      Em resposta a estas questões, o Tribunal de Justiça, por acórdão de 12 de Fevereiro de 2008, CELF e ministre de la Culture et de la Communication (C‑199/06, Colect., p. I‑469, a seguir «acórdão CELF I»), declarou:

«1)       O artigo 88.°, n.° 3, último período, CE deve ser interpretado no sentido de que o tribunal nacional não é obrigado a ordenar a recuperação de um auxílio executado com inobservância dessa disposição quando a Comissão […] tiver adoptado uma decisão final em que declare a compatibilidade do referido auxílio com o mercado comum, na acepção do artigo 87.° CE. Por força do direito comunitário, o tribunal nacional é obrigado a ordenar ao beneficiário do auxílio o pagamento dos juros relativos ao período de duração da ilegalidade. No âmbito do seu direito nacional, o tribunal nacional pode eventualmente ordenar ainda a recuperação do auxílio ilegal, sem prejuízo do direito do Estado‑Membro de voltar a dar‑lhe execução ulteriormente. Pode também ser levado a deferir pedidos de indemnização dos prejuízos causados pela ilegalidade do auxílio.

2)      Numa situação processual como a do processo principal, a obrigação que resulta do artigo 88.°, n.° 3, último período, CE de remediar os efeitos da ilegalidade de um auxílio também se estende, para efeitos do cálculo das quantias a saldar pelo beneficiário e salvo circunstâncias excepcionais, ao período decorrido entre a decisão da Comissão [...] que declara a compatibilidade desse auxílio com o mercado comum e a anulação da referida decisão pelo tribunal comunitário.»

20      Com base nestas respostas, o Conseil d’État, por acórdão de 19 de Dezembro de 2008, ordenou ao Ministro da Cultura e da Comunicação que procedesse à cobrança, junto do CELF, dos juros sobre os auxílios ilegais respeitantes aos períodos compreendidos:

–        entre 1980, ano de início do pagamento destes auxílios, e a data da decisão de reenvio;

–        entre a data da decisão de reenvio e a data em que tenha sido definitivamente declarada a compatibilidade destes auxílios com o mercado comum, ou se tenha procedido, a título definitivo, à restituição dos referidos auxílios.

21      No que diz respeito à questão do reembolso do montante principal dos auxílios pagos, o Conseil d’État considerou que a solução do litígio dependia da interpretação do direito comunitário, em razão da nova anulação declarada, posteriormente ao acórdão CELF I, pelo acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 15 de Abril de 2008, SIDE/Comissão, já referido.

22      Por conseguinte, o Conseil d’État decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Pode o órgão jurisdicional nacional sobrestar na decisão da questão relativa à obrigação de restituição de um auxílio até que a Comissão […] se tenha pronunciado, por decisão definitiva, quanto à compatibilidade do auxílio com as regras do mercado comum, quando uma primeira decisão da Comissão declarando esse auxílio compatível tiver sido anulada pelo tribunal comunitário?

2)      Quando a Comissão tiver declarado por três vezes o auxílio compatível com o mercado comum, antes de essas decisões serem anuladas pelo Tribunal […], essa situação é susceptível de constituir uma circunstância excepcional que pode conduzir o tribunal nacional a limitar a obrigação de recuperação do auxílio?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

23      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se um órgão jurisdicional nacional, chamado a decidir, com base no artigo 88.°, n.° 3, CE, sobre um pedido de restituição de um auxílio de Estado ilegal, pode suspender a adopção da sua decisão sobre esse pedido, até que a Comissão se pronuncie sobre a compatibilidade dos auxílios com o mercado comum, após a anulação de uma decisão positiva anterior.

24      Nos n.os 61 e 63 do acórdão CELF I, o Tribunal de Justiça sublinhou que:

–        Nos termos do artigo 231.°, primeiro parágrafo, CE, quando um recurso de anulação é procedente, o tribunal comunitário anula o acto impugnado, de modo que a decisão de anulação elimina retroactivamente o acto impugnado no que diz respeito a todos os interessados;

–        à data da anulação pelo tribunal comunitário de uma decisão positiva, considera‑se que os auxílios em causa não foram declarados compatíveis pela decisão anulada.

25      Daqui resulta que uma situação como a do processo principal é análoga à situação em que o tribunal nacional é chamado a conhecer de um processo com base no artigo 88.°, n.° 3, CE, quando não tenha sido ainda adoptada pela Comissão uma decisão quanto à compatibilidade de um auxílio objecto de exame.

26      Ora, importa observar que o artigo 88.°, n.° 3, CE confia aos órgãos jurisdicionais nacionais a missão de proteger, até à decisão final da Comissão, os direitos dos particulares face a uma eventual inobservância, pelas autoridades estatais, da proibição estabelecida nessa disposição (acórdão CELF I, n.° 38).

27      A este respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu, no essencial, no acórdão de 11 de Julho de 1996, SFEI e o. (C‑39/94, Colect., p. I‑3547, n.os 44 e 50 a 53), que:

–        o início de um processo de exame pela Comissão não exonera os órgãos jurisdicionais nacionais da obrigação de salvaguardarem os direitos dos particulares em caso de violação da obrigação de notificação prévia;

–        quando for provável que decorra um certo tempo até o órgão jurisdicional nacional decidir definitivamente, por exemplo, quando tenha solicitado esclarecimentos à Comissão para efeitos da interpretação do conceito de auxílio de Estado que pode ser levado a dar ou quando submete ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial, compete‑lhe apreciar a necessidade de ordenar medidas provisórias a fim de salvaguardar os interesses das partes.

28      O Tribunal de Justiça sublinhou, assim, a obrigação de o órgão jurisdicional nacional não protelar o exame dos pedidos de medidas de protecção.

29      O artigo 88.°, n.° 3, último período, CE assenta no objectivo cautelar de garantir que nunca será dada execução a um auxílio incompatível. O objectivo da prevenção assim organizada é, pois, o de que só seja dada execução aos auxílios compatíveis. Para concretizar este objectivo, a execução de um projecto de auxílio é diferida até que a dúvida quanto à sua compatibilidade seja afastada pela decisão final da Comissão (acórdão CELF I, n.os 47 e 48).

30      O objectivo da missão dos órgãos jurisdicionais nacionais é, por consequência, decretar as medidas adequadas para remediar a ilegalidade da execução dos auxílios, a fim de que o beneficiário não conserve o poder de livre disposição sobre estes durante o restante período de tempo até à decisão da Comissão.

31      A decisão de suspender a instância produziria, de facto, o mesmo resultado que uma decisão de indeferimento do pedido de medidas de protecção. Com efeito, levaria a que não fosse tomada nenhuma decisão sobre a procedência desse pedido, antes da decisão da Comissão. Corresponderia a manter o benefício de um auxílio durante o período de proibição da sua execução, o que seria incompatível com o próprio objectivo do artigo 88.°, n.° 3, CE e privaria esta disposição do seu efeito útil.

32      Por conseguinte, o órgão jurisdicional nacional não pode suspender a instância, sem privar o artigo 88.°, n.° 3, CE do seu efeito útil, violando o princípio da efectividade dos processos nacionais aplicáveis.

33      A anulação, pelo tribunal comunitário, de uma primeira decisão positiva da Comissão não pode justificar uma conclusão diferente, que se inspirasse na consideração de que, nesse caso, o auxílio poderia, posteriormente, ser, de novo, declarado compatível pela Comissão.

34      Com efeito, o objectivo do artigo 88.°, n.° 3, CE inspira‑se claramente na consideração de que, até à adopção de uma nova decisão pela Comissão, não se pode antecipar o respectivo conteúdo positivo.

35      A obrigação de decidir sem demora sobre o pedido de medidas de protecção não exige que o órgão jurisdicional chamado a conhecer do mesmo adopte efectivamente essas medidas.

36      A obrigação de adoptar medidas de protecção só existe se estiverem preenchidos os requisitos que justificam essas medidas, ou seja, se a qualificação de auxílio de Estado não suscitar dúvidas, se o auxílio estiver prestes a ser ou já tiver sido executado e se não forem constatadas circunstâncias excepcionais que tornem a sua recuperação inadequada. Se estes requisitos não estiverem preenchidos, o órgão jurisdicional nacional deve indeferir o pedido.

37      Quando decide sobre o pedido, o órgão jurisdicional nacional pode ordenar a restituição dos auxílios com juros, ou, por exemplo, tal como sugeriu a Comissão no n.° 62 da sua Comunicação 2009/C 85/01, relativa à aplicação da legislação em matéria de auxílios estatais pelos tribunais nacionais (JO 2009, C 85, p. 1), que os fundos sejam depositados numa conta bloqueada, a fim de não permanecerem à disposição do beneficiário, sem prejuízo do pagamento de juros correspondentes ao período compreendido entre a execução antecipada do auxílio e o respectivo depósito nessa conta bloqueada.

38      Ao invés, a obrigação de «standstill» estabelecida no artigo 88.°, n.° 3, CE não seria respeitada, nesta fase, pela simples condenação ao pagamento de juros sobre as quantias que permanecem nas contas da empresa. Com efeito, não constitui de maneira nenhuma um dado adquirido que uma empresa que tenha recebido ilegalmente um auxílio de Estado tivesse podido, na ausência deste, obter um empréstimo de igual montante, junto de uma instituição financeira, em condições normais de mercado e, assim, dispor do referido montante antes da decisão da Comissão.

39      A primeira obrigação do órgão jurisdicional nacional é, em definitivo, decidir no sentido do deferimento ou do indeferimento.

40      Importa, assim, responder à primeira questão que um órgão jurisdicional nacional, chamado a decidir, com base no artigo 88.°, n.° 3, CE, sobre um pedido de restituição de um auxílio de Estado ilegal, não pode suspender a adopção da sua decisão sobre esse pedido, até que a Comissão se pronuncie sobre a compatibilidade do auxílio com o mercado comum, após a anulação de uma decisão positiva anterior.

 Quanto à segunda questão

41      Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a adopção pela Comissão de três decisões sucessivas que declaram um auxílio compatível com o mercado comum, que foram subsequentemente anuladas pelo tribunal comunitário, pode, por si só, constituir uma circunstância excepcional que justifique uma limitação à obrigação de o beneficiário restituir esse auxílio quando tenha sido executado em violação do disposto no artigo 88.°, n.° 3, CE.

42      Importa recordar que, no acórdão CELF I, o Tribunal de Justiça ressalvou a possibilidade de se terem em conta circunstâncias excepcionais no exame do alcance da obrigação de remediar a ilegalidade de um auxílio, inclusive quando essa obrigação esteja limitada ao pagamento de juros.

43      No n.° 65 desse acórdão, o Tribunal de Justiça admitiu a possibilidade de o beneficiário de auxílios ilegalmente executados invocar circunstâncias excepcionais que, legitimamente, possam ter suscitado a sua confiança no carácter regular desses auxílios e se opor, em consequência, ao seu reembolso.

44      O Tribunal de Justiça decidiu neste sentido, atendendo à situação em causa no processo principal, no âmbito do qual tinham já sido adoptadas três decisões positivas da Comissão, duas das quais tinham sido anuladas.

45      Todavia, o Tribunal de Justiça sublinhou imediatamente, no essencial, que a confiança legítima do beneficiário do auxílio não pode nascer de uma decisão positiva da Comissão, por um lado, quando essa decisão tiver sido impugnada dentro do prazo de recurso contencioso e, posteriormente, anulada pelo tribunal comunitário, nem, por outro, enquanto não tiver terminado o prazo para interposição de recurso ou, no caso de este já ter sido interposto, enquanto o tribunal comunitário não se tiver pronunciado definitivamente (acórdão CELF I, n.os 66 a 68).

46      Por último, o Tribunal de Justiça precisou que a resposta à questão submetida era dada à luz de uma situação processual como a do processo principal (acórdão CELF I, n.° 69).

47      A articulação dessa fundamentação sugeria, assim, que três decisões positivas seguidas de recursos de anulação interpostos dentro do prazo, tendo os dois primeiros sido julgados procedentes e estando o terceiro ainda pendente, não constituíam uma circunstância excepcional.

48      A redacção da segunda questão submetida no presente processo revela que o órgão jurisdicional de reenvio encara, pelo contrário, a possibilidade de a sucessão de três decisões positivas poder constituir uma circunstância excepcional.

49      Ora, à data da prolação do acórdão CELF I, as três decisões positivas da Comissão já tinham sido adoptadas.

50      Apenas um novo facto ocorreu antes da segunda decisão de reenvio, ou seja, a anulação da terceira decisão positiva pelo acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 15 de Abril de 2008, SIDE/Comissão, já referido.

51      Esse facto não pode, por si só, servir de fonte a uma confiança legítima e constituir uma circunstância excepcional. Com efeito, a sucessão pouco usual de três anulações traduz, a priori, a dificuldade do processo e, longe de fazer nascer uma confiança legítima, aumenta, pelo contrário, as dúvidas do beneficiário sobre a compatibilidade do auxílio controvertido.

52      É certo que se pode admitir que uma sucessão de três recursos que conduziram a três anulações caracteriza uma situação muito rara. Não obstante, estas circunstâncias inscrevem‑se no funcionamento normal do sistema jurisdicional, que oferece aos sujeitos jurídicos que consideram ter sofrido as consequências da ilegalidade de um auxílio a possibilidade de interporem um recurso para obter a anulação de decisões sucessivas que consideram estar na origem dessa situação.

53      Numa situação como a do processo principal, a existência de uma circunstância excepcional não pode também ser admitida à luz do princípio da segurança jurídica, uma vez que o Tribunal de Justiça decidiu já, no essencial, que, enquanto a Comissão não tiver tomado uma decisão de aprovação e enquanto não tiver terminado o prazo para interposição de recurso dessa decisão, o beneficiário não tem a certeza da legalidade do auxílio, pelo que não podem ser invocados nem o princípio da protecção da confiança legítima nem o da segurança jurídica (v. acórdão de 29 de Abril de 2004, Itália/Comissão, C‑91/01, Colect., p. I‑4355, n.os 66 e 67).

54      Numa situação como a do processo principal, a existência de uma circunstância excepcional não pode, por último, ser admitida à luz do princípio da proporcionalidade. Com efeito, a supressão de um auxílio ilegal mediante recuperação é a consequência lógica da declaração da respectiva ilegalidade, de modo que a recuperação desse auxílio, com vista ao restabelecimento da situação anterior, não pode, em princípio, ser considerada uma medida desproporcionada relativamente aos objectivos das disposições do Tratado CE em matéria de auxílios de Estado (v., designadamente, acórdão de 29 de Abril de 2004, Itália/Comissão, C‑298/00 P, Colect., p. I‑4087, n.° 75 e jurisprudência aí referida).

55      Por conseguinte, há que responder à segunda questão que a adopção pela Comissão de três decisões sucessivas que declaram um auxílio compatível com o mercado comum, que foram subsequentemente anuladas pelo tribunal comunitário, não pode, por si só, constituir uma circunstância excepcional que justifique uma limitação à obrigação de o beneficiário restituir esse auxílio quando tenha sido executado em violação do disposto no artigo 88.°, n.° 3, CE.

 Quanto às despesas

56      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

1)      Um órgão jurisdicional nacional, chamado a decidir, com base no artigo 88.°, n.° 3, CE, sobre um pedido de restituição de um auxílio de Estado ilegal, não pode suspender a adopção da sua decisão sobre esse pedido, até que a Comissão das Comunidades Europeias se pronuncie sobre a compatibilidade do auxílio com o mercado comum, após a anulação de uma decisão positiva anterior.

2)      A adopção pela Comissão das Comunidades Europeias de três decisões sucessivas que declaram um auxílio compatível com o mercado comum, que foram subsequentemente anuladas pelo tribunal comunitário, não pode, por si só, constituir uma circunstância excepcional que justifique uma limitação à obrigação de o beneficiário restituir esse auxílio quando tenha sido executado em violação do disposto no artigo 88.°, n.° 3, CE.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.