Language of document : ECLI:EU:C:2019:510

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

19 de junho de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Imposto sobre as sociedades — Grupo de sociedades — Liberdade de estabelecimento — Dedução dos prejuízos sofridos por uma filial não residente — Conceito de “prejuízos definitivos” — Fusão por incorporação da filial na sociedade‑mãe — Legislação do Estado de residência da filial que no quadro de uma fusão só permite a dedução dos prejuízos à entidade que os sofreu»

No processo C‑607/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo, Suécia), por Decisão de 5 de outubro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 24 de outubro de 2017, no processo

Skatteverket

contra

Memira Holding AB,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot (relator), presidente de secção, C. Toader, A. Rosas, L. Bay Larsen e M. Safjan, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 24 de outubro de 2018,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Skatteverket, por J. Anderberg, na qualidade de agente,

–        em representação da Memira Holding AB, por L. Staberg, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo sueco, por A. Falk, A. Alriksson, C. Meyer‑Seitz, H. Shev, H. Eklinder, L. Zettergren e J. Lundberg, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo alemão, inicialmente por T. Henze e R. Kanitz, e em seguida por R. Kanitz, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por G. De Socio, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo finlandês, por S. Hartikainen, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por S. Brandon e G. Brown, na qualidade de agentes, assistidos por D. Yates, barrister,

–        em representação da Comissão Europeia, por K. Simonsson, N. Gossement, E. Ljung Rasmussen e G. Tolstoy, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 10 de janeiro de 2019,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 49.o TFUE, lido em conjugação com o artigo 54.o TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o Skatteverket (Administração Fiscal, Suécia) à Memira Holding AB (a seguir «Memira») a respeito da possibilidade de esta deduzir, a título de imposto sobre as sociedades, os prejuízos de uma filial estabelecida noutro Estado‑Membro, na hipótese de fusão dessa filial por incorporação.

 Quadro jurídico

 Direito sueco

3        O regime fiscal das fusões de empresas é regulado pelas disposições do capítulo 37 da Inkomstskattelag (1999:1229) [Lei (1999:1229) do imposto sobre o rendimento, a seguir «Lei do imposto sobre o rendimento»].

4        Os §§ 16 a 29 desse capítulo preveem as normas fiscais especiais aplicáveis às fusões ditas «qualificadas».

5        Para que uma fusão seja considerada como tal, os §§ 11 e 12 do referido capítulo exigem, por um lado, que a sociedade cedente seja, imediatamente antes da fusão, sujeita a tributação sobre o rendimento na Suécia no que respeita a pelo menos uma parte das suas atividades económicas e, por outro lado, que, imediatamente após a fusão, a empresa beneficiária seja sujeita a tributação na Suécia relativamente aos rendimentos resultantes das atividades económicas em relação às quais a sociedade cedente foi tributada. Além disso, o rendimento em causa não pode ser, total ou parcialmente, isento de tributação na Suécia ao abrigo de uma convenção fiscal.

6        Em caso de fusão qualificada, os §§ 17 e 18 do capítulo 37 da Lei do imposto sobre o rendimento preveem que a sociedade cedente não pode declarar nenhum rendimento nem deduzir nenhuma despesa em relação à atividade económica referida no § 11 e que a empresa cessionária se substitui à sociedade cedente para o tratamento fiscal dessa atividade. Essa substituição implica, nomeadamente, que a sociedade cessionária pode deduzir prejuízos de exercícios fiscais anteriores da sociedade cedente, dentro de certos limites estabelecidos nos §§ 21 a 26 do mesmo capítulo.

7        O capítulo 35a da Lei do imposto sobre o rendimento prevê uma dedução de grupo transfronteiriça que permite transferir um prejuízo definitivo sofrido por uma filial estrangeira detida a 100 % com sede num Estado‑Membro do Espaço Económico Europeu (EEE), com a condição de ser detida diretamente, que tenha sido liquidada e que a sociedade‑mãe não prossiga, através de uma sociedade ligada, a sua atividade no Estado da filial à data da liquidação. No entanto, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, estas disposições não se aplicam às fusões.

 Direito alemão

8        Resulta das constatações do tribunal de reenvio, não contestadas pelo Governo alemão, que o direito alemão proíbe a transferência de prejuízos entre empresas sujeitas a imposto na Alemanha em caso de fusão.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9        A Memira é uma sociedade sueca que exerce, através das suas filiais, atividades no setor da cirurgia oftalmológica. Na Alemanha, detém apenas uma sociedade, que tem e gere clínicas. Tendo essa filial sido deficitária, a Memira concedeu‑lhe um empréstimo para financiar a sua exploração, mas sem sucesso. A atividade da filial terminou então, ficando no seu balanço apenas as dívidas e alguns ativos líquidos.

10      A Memira pretende incorporar a sua filial alemã por fusão transfronteiriça, que implica a dissolução sem liquidação desta, após o que a Memira não exercerá nenhuma atividade, direta ou indireta na Alemanha.

11      Os prejuízos da filial alemã da Memira que não puderam ser imputados aos lucros passados ascendem a 7,6 milhões de euros. Tais prejuízos seriam elegíveis para a dedução a título do imposto alemão sobre as sociedades que incide sobre essa filial, por imputação quer nos lucros correntes, quer nos lucros ulteriores, indefinidamente. Em contrapartida, não o são na situação pretendida pela Memira referida no número anterior, uma vez que o direito alemão exclui a transferência desses prejuízos para outra empresa sujeita a imposto na Alemanha no caso de fusão.

12      Neste contexto, a Memira solicitou uma decisão preliminar ao Skatterättsnämnden (Comissão de Direito Fiscal, Suécia) para saber se, no caso de concretizar o seu projeto de fusão, podia invocar a liberdade de estabelecimento para deduzir os prejuízos da sua filial alemã do seu imposto sobre as sociedades na Suécia, o que lhe foi respondido pela negativa.

13      A decisão preliminar indica, a este respeito, que os prejuízos da filial alemã da Memira não podem ser assumidos pela sociedade‑mãe com base na lei sueca relativa à tributação de fusões qualificadas, uma vez que o requisito que exige que essa filial seja sujeita a imposto na Suécia não está preenchido. A dedução também não pode ser concedida com fundamento nas regras em matéria de dedução de grupo, dado que estas se aplicam a uma situação diferente da pretendida pela Memira.

14      A Comissão de Direito Fiscal admitiu que essa situação criava uma restrição à liberdade de estabelecimento, mas considerou que, em conformidade com a jurisprudência decorrente do Acórdão de 13 de dezembro de 2005, Marks & Spencer (C‑446/03, a seguir «Acórdão Marks & Spencer», EU:C:2005:763), essa restrição pode ser justificada desde que o princípio da proporcionalidade seja respeitado e, portanto, que os prejuízos em causa não se enquadrem numa das situações referidas no n.o 55 desse acórdão, em que os prejuízos são ditos «definitivos».

15      Apoiando‑se na jurisprudência do Tribunal de Justiça, a Comissão de Direito Fiscal considerou que, para determinar se os prejuízos em questão são definitivos, seria necessário ter em conta o tratamento dado a esses prejuízos pela lei do Estado da filial. A Comissão de Direito Fiscal salientou que o direito alemão não prevê a possibilidade de utilizar os prejuízos no caso de fusão com outra empresa sujeita a imposto na Alemanha e inferiu desse facto que os prejuízos não deviam ser considerados definitivos.

16      Três membros da Comissão de Direito Fiscal sustentaram, pelo contrário, que os prejuízos da filial alemã da Memira deviam ser considerados definitivos, visto não existir, na Memira, nenhuma empresa alemã nem nenhuma empresa que tenha um estabelecimento estável na Alemanha com o qual a filial pudesse ser fundida. O facto de a lei alemã excluir a transferência de prejuízos no quadro de uma fusão com outra empresa sujeita a tributação na Alemanha, na sua perspetiva, não seria relevante para afastar o caráter definitivo dos prejuízos da filial.

17      A decisão preliminar da Comissão de Direito Fiscal foi impugnada no Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo, Suécia) pela Administração Fiscal e pela Memira.

18      Aquele tribunal considera que a jurisprudência do Tribunal de Justiça, em especial o Acórdão de 21 de fevereiro de 2013, A (C‑123/11, EU:C:2013:84), não precisa se, para apreciar o caráter definitivo dos prejuízos de uma filial, é necessário ter em conta se a legislação do Estado de residência da filial não dá a outras entidades jurídicas a possibilidade de terem em conta esses prejuízos e, em caso afirmativo, de que modo essa legislação deve ser considerada.

19      Nestas circunstâncias, o Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Ao apreciar se um prejuízo sofrido por uma filial estabelecida noutro Estado‑Membro é definitivo na aceção, nomeadamente, [do Acórdão de 21 de fevereiro de 2013, A (C‑123/11, EU:C:2013:84)], e se uma [sociedade‑mãe] pode deduzir o prejuízo com base no artigo 49.o TFUE, deve ter‑se em conta o facto de que, por força da legislação do Estado da filial, há restrições à possibilidade de uma entidade diferente da que sofreu o prejuízo o deduzir?

2)      Caso haja que ter em consideração uma restrição como a que é referida na primeira questão, deve ter‑se em conta se, no processo em causa, há efetivamente outra entidade no Estado da filial que poderia ter deduzido os prejuízos se tal dedução aí fosse autorizada?»

 Quanto às questões prejudiciais

20      A título liminar, importa referir que, nos n.os 43 a 51 do Acórdão Marks & Spencer, o Tribunal de Justiça declarou que uma restrição à liberdade de estabelecimento decorrente de uma limitação ao direito de uma sociedade deduzir prejuízos de uma filial estrangeira, ao passo que essa dedutibilidade é concedida a uma filial residente, é justificada pela necessidade de preservar a repartição equilibrada dos poderes de tributação entre os Estados‑Membros e de prevenir o risco de dupla utilização dos prejuízos e de evasão fiscal.

21      No n.o 55 do referido acórdão, o Tribunal de Justiça precisou, todavia, que, mesmo tratando‑se de uma restrição em princípio justificada, não deixa de ser desproporcionado que o Estado de residência da sociedade‑mãe exclua a possibilidade de esta deduzir os prejuízos, qualificados de definitivos, de uma filial não residente, numa situação em que:

–        a filial não residente tenha esgotado as possibilidades de dedução dos prejuízos existentes no seu Estado de residência para o exercício fiscal relativo ao pedido de dedução, bem como para os exercícios fiscais anteriores, eventualmente através da transferência desses prejuízos para um terceiro ou da imputação dos referidos prejuízos nos lucros obtidos pela filial no decurso de exercícios anteriores, e

–        não haja possibilidade de dedução dos prejuízos da filial estrangeira no seu Estado de residência a título dos exercícios futuros, nem por si própria nem por um terceiro, nomeadamente no caso de a filial ser cedida a esse terceiro.

Quanto à primeira questão

22      Com a sua primeira questão, o tribunal de reenvio pretende, em substância, saber qual a relevância que se deve dar, para apreciação do caráter definitivo dos prejuízos de uma filial não residente no sentido do n.o 55 do Acórdão Marks & Spencer, ao facto de o Estado‑Membro da filial não permitir transferir os prejuízos de uma sociedade para outro sujeito passivo em caso de fusão, ao passo que tal transferência é admitida pelo Estado‑Membro da sociedade‑mãe em caso de fusão de sociedades residentes.

23      O Tribunal de Justiça é assim chamado a esclarecer se uma situação como a pretendida pela Memira é uma das mencionadas pelo Tribunal de Justiça no segundo travessão do n.o 55 do Acórdão Marks & Spencer, em que não existe a possibilidade de deduzir os prejuízos da filial no seu Estado de residência a título dos exercícios futuros.

24      Ora, quanto a este aspeto, basta referir que os motivos invocados pelo Tribunal de Justiça no segundo travessão do n.o 55 do Acórdão Marks & Spencer consideraram expressamente que a impossibilidade de que depende o caráter definitivo dos prejuízos possa dizer respeito à sua dedutibilidade a título de exercícios futuros por um terceiro, designadamente em caso de cessão da filial a esse terceiro.

25      Numa situação como a pretendida pela Memira, e mesmo que todas as outras impossibilidades mencionadas no n.o 55 do Acórdão Marks & Spencer estivessem reunidas, os prejuízos não poderiam ser qualificados de definitivos se for possível deduzi‑los economicamente transferindo‑os para um terceiro.

26      Com efeito, como salientou a advogada‑geral nos n.os 65 a 70 das suas conclusões, não se pode excluir que um terceiro possa deduzir fiscalmente os prejuízos da filial no seu Estado de residência, por exemplo, na sequência de uma cessão da filial por um preço que integre o valor da vantagem fiscal constituída pela dedutibilidade dos prejuízos no futuro (v., neste sentido, Acórdão de 21 de fevereiro de 2013, A, C‑123/11, EU:C:2013:84, n.os 52 e segs., e Acórdão do mesmo dia, Holmen, C‑608/17, n.o 38).

27      Por conseguinte, numa situação como a pretendida pela Memira, e não provando esta que a possibilidade mencionada no número anterior está excluída, o simples facto de a lei do Estado de residência da filial não permitir a transferência de prejuízos em caso de fusão não é suficiente para considerar os prejuízos da filial definitivos.

28      Consequentemente, há que responder à primeira questão que, para efeitos da apreciação do caráter definitivo dos prejuízos de uma filial não residente, no sentido do n.o 55 do Acórdão Marks & Spencer, o facto de o Estado‑Membro a que pertence a filial não permitir transferir prejuízos de uma sociedade para outro sujeito passivo em caso de fusão, ao passo que essa transferência está prevista no Estado‑Membro de que depende a sociedade‑mãe em caso de fusão entre sociedades residentes, não é determinante, a menos que a sociedade‑mãe demonstre que lhe é impossível valorizar esses prejuízos, fazendo com que, nomeadamente através de uma cessão, sejam fiscalmente deduzidos por um terceiro a título de exercícios futuros.

Quanto à segunda questão

29      Com a sua segunda questão, o tribunal de reenvio pergunta, em substância, se, no caso de o facto mencionado na primeira questão ser relevante, se deve ter em conta o facto de no Estado de residência da filial não existir nenhuma outra entidade que pudesse deduzir os prejuízos no quadro de uma fusão se a dedução fosse autorizada.

30      A este respeito, como foi dito no quadro da resposta à primeira questão, as restrições à dedução dos prejuízos em caso de fusão decorrentes da legislação do Estado de residência da filial não são determinantes enquanto a impossibilidade de dedução dos prejuízos por um terceiro, nomeadamente através de uma cessão cujo preço integre o seu valor fiscal, não esteja demonstrada pela sociedade‑mãe.

31      Se for feita essa prova, e estiverem também reunidas as demais condições mencionadas no n.o 55 do Acórdão Marks & Spencer, as autoridades fiscais são obrigadas a considerar que os prejuízos de uma filial não residente são definitivos e que é, portanto, desproporcionado não permitir à sociedade‑mãe deduzi‑los.

32      Nesta perspetiva, é irrelevante, para apreciar o caráter definitivo dos prejuízos, a existência ou não, no Estado de residência da filial deficitária, de outras entidades para as quais pudessem ser transferidos os prejuízos da filial através de uma fusão se tal possibilidade existisse.

33      Há, portanto, que responder à segunda questão que, no caso de o facto mencionado na primeira questão ser relevante, é indiferente que não exista, no Estado de residência da filial, nenhuma outra entidade que pudesse deduzir esses prejuízos em caso de fusão se tal dedução fosse autorizada.

 Quanto às despesas

34      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      Para efeitos da apreciação do caráter definitivo dos prejuízos de uma filial não residente, no sentido do n.o 55 do Acórdão de 13 de dezembro de 2005, Marks & Spencer (C446/03, EU:C:2005:763), o facto de o EstadoMembro a que pertence a filial não permitir transferir prejuízos de uma sociedade para outro sujeito passivo em caso de fusão, ao passo que essa transferência está prevista no EstadoMembro de que depende a sociedademãe em caso de fusão entre sociedades residentes, não é determinante, a menos que a sociedademãe demonstre que lhe é impossível valorizar esses prejuízos, fazendo com que, nomeadamente através de uma cessão, sejam fiscalmente deduzidos por um terceiro a título de exercícios futuros.

2)      No caso de o facto mencionado na primeira questão ser relevante, é indiferente que não exista, no Estado de residência da filial, nenhuma outra entidade que pudesse deduzir esses prejuízos em caso de fusão se tal dedução fosse autorizada.

Assinaturas


*      Língua do processo: sueco.