Language of document : ECLI:EU:C:2010:501

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 7 de Setembro de 2010 1(1)

Processo C‑261/09

Processo penal

contra

Gaetano Mantello

[pedido de decisão prejudicial submetido pelo Oberlandesgericht Stuttgart (Alemanha)]

«Cooperação judiciária em matéria penal – Decisão‑Quadro 2002/584/JAI – Mandado europeu de detenção – Motivos de não execução obrigatória – Princípio ne bis in idem – Direito fundamental – Aplicação quando a decisão definitiva foi proferida no Estado‑Membro de emissão – Conceito de ‘mesmos factos’ – Conceito autónomo – Âmbito de aplicação»





1.        O mandado europeu de detenção, instituído pela Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho (2), substituiu o procedimento formal de extradição entre os Estados‑Membros por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias, baseado num elevado grau de confiança entre essas autoridades. É considerado, acertadamente, o instrumento de cooperação judiciária em matéria penal que melhores resultados produz.

2.        A decisão‑quadro enumera de forma exaustiva os motivos que se podem opor à execução de um mandado europeu de detenção. O presente processo de reenvio prejudicial diz respeito, pela primeira vez, ao alcance do motivo previsto no artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, nos termos do qual um mandado europeu de detenção não pode ser executado se a pessoa procurada já tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos e, quando haja lugar a sentença condenatória, se esta tiver sido executada, estiver em execução ou não já puder ser executada.

3.        O pedido de decisão prejudicial tem na sua origem o mandado europeu de detenção emitido por uma autoridade judiciária italiana contra um cidadão italiano residente na Alemanha, que essa autoridade acusa de ter participado em tráfico organizado de cocaína entre a Alemanha e a Itália por vários meses, durante os anos de 2004 e 2005.

4.        No presente processo, o Oberlandesgericht Stuttgart questiona‑se sobre a eventual aplicação do artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, à luz das seguintes circunstâncias. Por um lado, a pessoa procurada foi condenada por um tribunal italiano por um delito de detenção ilegal de cocaína cometido a 13 de Setembro de 2005, e, por outro lado, à data dessa condenação os investigadores italianos já dispunham de elementos de informação suficientes para dar início a uma acção penal contra essa pessoa por participação no tráfico referido no mandado europeu de detenção, não o tendo feito para não comprometer o bom desenrolar da sua investigação desse tráfico.

5.        O órgão jurisdicional de reenvio coloca duas questões ao Tribunal de Justiça, a primeira relativa a saber se o conceito de «mesmos factos», na acepção do artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, pode ser interpretado no sentido de que se refere ao direito do Estado‑Membro de emissão ou ao do Estado‑Membro de execução, ou ainda se deve ser objecto de uma interpretação autónoma. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, através da segunda questão, se esse conceito se aplica à situação em que os investigadores, quando a pessoa procurada foi condenada por um facto isolado de detenção de estupefacientes, dispunham de provas da sua participação num tráfico mais vasto, mas decidiram abster‑se, no interesse da investigação, de dar início à acção penal a esse título.

6.        Essas duas questões assentam na premissa de que o artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro é igualmente susceptível de se aplicar quando os factos referidos no mandado europeu de detenção foram objecto de uma sentença definitiva no Estado‑Membro onde esse mandado foi emitido.

7.        Esta premissa é fortemente contestada pela maioria dos Estados‑Membros que intervieram no presente processo, segundo os quais a mesma é contrária ao princípio do reconhecimento mútuo subjacente ao regime do mandado europeu de detenção. Esses Estados‑Membros são da opinião que o motivo em causa para a não execução do mandado apenas é aplicável se os factos referido no mandado europeu de detenção tiverem sido objecto de uma sentença definitiva proferida num Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro de emissão.

8.        Antes de examinarmos as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, convidamos assim o Tribunal de Justiça a pronunciar‑se sobre a validade da premissa subjacente a essas questões, não apenas porque se trata de uma questão de princípio, mas também porque é muito provável que se suscite num grande número de casos.

9.        Referiremos que, embora o sistema do mandado europeu de detenção efectivamente assente num elevado grau de confiança mútua, não é menos verdade que a entrega da pessoa visada por esse mandado europeu de detenção deriva de uma decisão da autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução (3) que deve ser tomada com respeito pelos direitos fundamentais. Exporemos que o artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, é uma expressão do princípio ne bis in idem, que é um direito fundamental reconhecido pelo ordenamento jurídico de todos os Estados‑Membros e consagrado pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (4).

10.      Daí deduziremos que, embora, em virtude do princípio do reconhecimento mútuo, não caiba à autoridade judiciária de execução verificar oficiosamente o respeito por esse princípio, não é menos verdade que a mesma não pode executar o mandado europeu de detenção se dispuser de elementos de prova suficientes de que esse princípio é violado, inclusivamente no caso de os factos já terem sido objecto de uma decisão definitiva no Estado‑Membro de emissão.

11.      De seguida, proporemos ao Tribunal de Justiça que declare que o conceito de «mesmos factos», referido no artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro deve, na falta de remissão, quanto ao seu teor, para o direito dos Estados‑Membros e em conformidade com jurisprudência assente, ser objecto de uma interpretação uniforme no seio da União Europeia. Sustentaremos igualmente que esse conceito deve ser interpretado no mesmo sentido que o referido no artigo 54.° da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen (5), devido à identidade dos termos e à semelhança dos objectivos dessas duas disposições.

12.      Por último, em resposta à segunda questão, proporemos ao Tribunal de Justiça que declare, atenta a jurisprudência relativa à interpretação do artigo 54.° CAAS, que a circunstância de os serviços de investigação disporem, no momento do julgamento da pessoa procurada por um facto isolado de detenção ilícita de estupefacientes, de elementos de prova do envolvimento dessa pessoa, durante vários meses, no tráfico organizado de estupefacientes e de, nesse momento, se terem abstido, no interesse da investigação, de iniciar a acção penal contra essa pessoa por esse delito, é irrelevante para a apreciação do conceito de mesmos factos.

I –    Quadro jurídico

A –    A decisão‑quadro

13.      A decisão‑quadro tem como objectivo suprimir, entre os Estados‑Membros, o procedimento formal de extradição previsto por diferentes convenções das quais esses Estados são partes e substitui‑lo por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Aquela visa, em especial, «suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição» e «dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré‑sentencial como transitadas em julgado» (6).

14.      A decisão‑quadro baseia‑se no princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciárias em matéria penal, que constitui a «pedra angular» da cooperação judiciária (7). O mecanismo do mandado de detenção europeu, instituído pela decisão‑quadro, é baseado num «elevado grau de confiança» entre os Estados‑Membros (8).

15.      No entanto, nos termos do oitavo considerando da decisão‑quadro, as decisões sobre a execução do mandado de detenção europeu devem ser objecto de um controlo adequado, o que implica que deva ser a autoridade judiciária do Estado‑Membro onde a pessoa procurada foi detida a tomar uma decisão no que respeita à sua entrega.

16.      Da mesma forma, nos termos do décimo segundo considerando da decisão‑quadro, esta respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.° do Tratado da União Europeia, consignados na Carta.

17.      Este objectivos da decisão‑quadro traduzem‑se da seguinte forma nas suas disposições normativas.

18.      O artigo 1.° da decisão‑quadro dispõe o seguinte:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou uma medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.° do Tratado da União Europeia.»

19.      O artigo 3.° da decisão‑quadro elenca três motivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu. O artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, dispõe o seguinte:

«A [autoridade judiciária de execução] recusa a execução de um mandado de detenção europeu nos seguintes casos:

[…]

2.      Se das informações de que dispõe a autoridade judiciária de execução resultar que a pessoa procurada foi definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado‑Membro, na condição de que, em caso de condenação, a pena tenha sido cumprida ou esteja actualmente em cumprimento ou não possa já ser cumprida segundo as leis do Estado‑Membro de condenação».

20.      O artigo 4.° da decisão‑quadro estabelece, em sete números, os motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu. O artigo 4.°, n.os 3 e 5, da decisão‑quadro, tem a seguinte redacção:

«A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu:

[…]

3.      Quando as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de execução tiverem decidido não instaurar procedimento criminal, ou pôr termo ao procedimento instaurado, pela infracção que determina o mandado de detenção europeu ou quando a pessoa procurada foi definitivamente julgada num Estado‑Membro pelos mesmos factos, o que obsta ao ulterior exercício da acção penal;

[…]

5.      Se das informações de que dispõe a autoridade judiciária de execução resultar que a pessoa procurada foi definitivamente julgada pelos mesmos factos por um país terceiro, na condição de que, em caso de condenação, a pena tenha sido cumprida ou esteja actualmente em cumprimento ou não possa já ser cumprida segundo as leis do país de condenação».

21.      O artigo 8.° da decisão‑quadro elenca as referências obrigatórias que o mandado europeu de detenção deve conter. Para além da identidade da pessoa procurada, o mandado europeu de detenção deve expor, nomeadamente, as circunstâncias em que a infracção foi cometida e as informações sobre a participação da pessoa procurada. Essas referências devem ser traduzidas na língua oficial da autoridade judiciária de execução.

22.      O artigo 15.° da decisão‑quadro trata da decisão sobre a entrega. Dispõe o seguinte:

«1.      A autoridade judiciária de execução decide da entrega da pessoa nos prazos e nas condições definidos na presente decisão‑quadro.

2.      Se a autoridade judiciária de execução considerar que as informações comunicadas pelo Estado‑Membro de emissão são insuficientes para que possa decidir da entrega, solicita que lhe sejam comunicadas com urgência as informações complementares necessárias, em especial, em conexão com os artigos 3.º a 5.º e o artigo 8.º, podendo fixar um prazo para a sua recepção, tendo em conta a necessidade de respeitar os prazos fixados no artigo 17.°

3.      A autoridade judiciária [do Estado‑Membro] de emissão [(9)]pode, a qualquer momento, transmitir todas as informações suplementares úteis à autoridade judiciária de execução.»

23.      O artigo 17.° da decisão‑quadro é consagrado aos prazos e regras relativos à decisão de execução do mandado de detenção europeu. Tem a seguinte redacção:

«1.      Um mandado de detenção europeu deve ser tratado e executado com urgência.

2.      Nos casos em que a pessoa procurada consinta na sua entrega, a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada no prazo de 10 dias a contar da data do consentimento.

3.      Nos outros casos, a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada no prazo de 60 dias após a detenção da pessoa procurada.

4.      Em casos específicos, quando o mandado de detenção europeu não possa ser executado dentro dos prazos previstos nos n.os 2 ou 3, a autoridade judiciária de execução informa imediatamente a autoridade judiciária de emissão do facto e das respectivas razões. Neste caso, os prazos podem ser prorrogados por mais 30 dias.

5.      Enquanto não for tomada uma decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu pela autoridade judiciária de execução, o Estado‑Membro de execução deve zelar por que continuem a estar reunidas as condições materiais necessárias para uma entrega efectiva da pessoa.

6.      Qualquer recusa de execução de um mandado de detenção europeu deve ser fundamentada.

7.      Sempre que, em circunstâncias excepcionais, um Estado‑Membro não possa observar os prazos fixados no presente artigo, deve informar a Eurojust do facto e das razões do atraso. Além disso, um Estado‑Membro que tenha sofrido, por parte de outro Estado‑Membro, atrasos repetidos na execução de mandados de detenção europeus, deve informar o Conselho [da União Europeia] do facto, com vista à avaliação, a nível dos Estados‑Membros, da aplicação da presente decisão‑quadro.»

24.      Por último, a decisão‑quadro prevê os direitos da pessoa procurada. Quando uma pessoa procurada for detida, a autoridade judiciária de execução informa‑a, por força do disposto no artigo 11.° da decisão‑quadro, do conteúdo do mandado de detenção europeu. A pessoa detida pode consentir na sua entrega ou opor‑se à mesma. Pode igualmente renunciar ou não à regra da especialidade, segundo a qual a pessoa entregue por força de um mandado europeu de detenção não pode ser sujeita a procedimento penal por uma infracção praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue (10). Se a pessoa procurada não consentir na sua entrega, tem o direito de ser ouvida pela autoridade judiciária de execução (11).

B –    O princípio ne bis in idem

25.      O artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro é uma manifestação do princípio ne bis in idem.

1.      Os fundamentos do princípio ne bis in idem

26.      O princípio, expresso na máxima latina «ne bis in idem» ou «non bis in idem», que significa «duas vezes a mesma coisa, não», implica que uma pessoa não pode ser condenada duas vezes pelo mesmo facto.

27.      Esse princípio é inerente ao conceito de Estado de Direito. De facto, a sociedade, quando exerceu o seu direito legítimo de punir o autor de uma infracção às suas regras, esgotou o seu direito de acção penal, deixando por isso de ter o poder de punir a pessoa que já foi condenada por esse facto. O referido princípio é, assim, indissociável do princípio da autoridade do caso julgado, bem como do da proporcionalidade das penas, nos termos do qual a sanção deve ser proporcional à gravidade dos factos objecto da acção penal.

28.      Considerado ao nível do indivíduo, o princípio ne bis in idem destina‑se a garantir à pessoa condenada que, no momento em que cumpriu a sua pena, «pagou a sua dívida» à sociedade e pode, assim, nela retomar o seu lugar, sem temer uma nova acção penal. Responde, assim, à dupla exigência de equidade e segurança jurídica.

29.      O princípio ne bis in idem é um princípio muito antigo (12).Contudo, longe de ter caído em desuso, foi progressivamente reforçado e alargado pela evolução do direito penal nas sociedades modernas no que diz respeito, em especial, ao papel da sanção. De facto, a evolução moderna do direito penal, partilhada por todos os Estados‑Membros, fez da reinserção uma função fundamental da pena. Assim, esta não tem unicamente como objecto a punição ou a dissuasão, mas também tem a finalidade de favorecer a reinserção do condenado. Esta reinserção pressupõe necessariamente que a dívida foi considerada definitivamente liquidada e que o interessado que foi julgado definitivamente nada mais tem a temer da lei.

30.      O princípio ne bis in idem foi consagrado em vários actos internacionais quer no direito interno dos Estados‑Membros, quer no âmbito da União.

31.      No direito interno, o princípio ne bis in idem encontra‑se igualmente vertido no artigo 4.° do Protocolo n.° 7 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinado em 22 de Novembro de 1984, pelos menos para os Estados‑Membros que a ela aderiram (13). Esse artigo 4.° enuncia:

«1.      Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelos órgãos jurisdicionais do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado.

[…]»

32.      No plano das relações entre os Estados‑Membros, o princípio ne bis in idem encontra‑se vertido no artigo 54.° da CAAS (14), nos termos seguintes:

«Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida.»

33.      O artigo 54.° da CAAS tem por objectivo garantir a livre circulação dos cidadãos da União no interior desta. Destina‑se a evitar que alguém, pelo facto de exercer o seu direito à livre circulação, seja objecto de acção penal pelos mesmos factos no território de vários Estados contratantes (15).

34.      Na falta de harmonização das legislações penais dos Estados‑Membros, a aplicação desse princípio implica necessariamente que exista uma confiança mútua desses Estados nos respectivos sistemas de justiça penal e que cada um aceite a aplicação do direito penal em vigor noutros Estados‑Membros, ainda que a aplicação do seu direito nacional leve a uma solução diferente (16).

35.      Por último, o princípio ne bis in idem foi consagrado no artigo 50.° da Carta como um obstáculo a uma dupla condenação tanto pelos órgãos jurisdicionais dum mesmo Estado‑Membro, como pelos órgãos jurisdicionais de Estados‑Membros distintos, desde que a situação se enquadre no direito da União (17). Este artigo enuncia:

«Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei» (18).

2.      O teor do princípio ne bis in idem

36.      O teor preciso do princípio ne bis in idem, para além da definição muito geral já referida, é difícil de definir (19). Pode variar significativamente de um Estado‑Membro para outro. As diferenças podem recair sobre os dois elementos de que depende a aplicação desse princípio, a saber, o bis e o idem.

37.      O conceito de bis abrange a determinação das decisões que são susceptíveis de permitir a aplicação do princípio.

38.      O artigo 4.° do protocolo n.° 7 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o artigo 54.° da CAAS e o artigo 50.° da carta referem‑se, como o artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, a uma sentença definitiva de absolvição ou de condenação. O artigo 54.° da CAAS e o artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro acrescentam, contudo, como condição suplementar em caso de sentença de condenação, que esta tenha sido executada ou esteja em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação do Estado em que a condenação foi proferida.

39.      Coloca‑se, no entanto, a questão de saber se esta última condição abrange os casos de perdão e amnistia, ou ainda de determinar se as decisões em que se pode basear a aplicação do princípio ne bis in idem se podem limitar às decisões dos órgãos jurisdicionais ou se incluem igualmente as das autoridades de inquérito, nos casos em que estas decidem pôr termo definitivo às diligências penais e, se for caso disso, em que condições.

40.      A noção de idem remete para os elementos que se deve considera que já foram julgados. Pode tratar‑se, numa concepção favorável às pessoas, apenas da identidade dos factos materiais ou antes, numa acepção mais estrita, da identidade das infracções, isto é, desses factos revestidos da sua qualificação jurídica.

41.      O Tribunal de Justiça já foi confrontado com diversas dessas questões relativas à interpretação do artigo 54.° da CAAS.

42.      Quanto ao bis, o Tribunal de Justiça interpretou a condição segundo a qual a sanção aplicada por um órgão jurisdicional de um Estado contratante deve ser considerada «cumprida» ou «actualmente em curso de execução» no sentido que aquela cobre a situação em que o arguido tenha sido condenado numa pena de prisão suspensa. Em contrapartida, esse conceito não cobre o caso em que o arguido tenha sido detido e/ou preso preventivamente durante um curto período, inclusivamente quando, segundo o direito do Estado de condenação, essa privação de liberdade deva ser descontada na posterior execução da pena de prisão (20).

43.      O Tribunal de Justiça decidiu igualmente que o princípio ne bis in idem se aplica a uma decisão de um tribunal de um Estado contratante, proferida na sequência do exercício da acção penal, que absolve definitivamente um arguido por prescrição do procedimento (21).

44.      Da mesma forma, este princípio aplica‑se a uma decisão definitiva de absolvição por falta de provas (22). Por último, cobre uma sentença proferida à revelia pela autoridade judiciária de um Estado‑Membro fora do território coberto pela CAAS (23).

45.      No que diz respeito ao autor da decisão que pode levar à aplicação do princípio ne bis in idem, o Tribunal de Justiça decidiu que esse princípio se aplica igualmente a procedimentos de extinção da acção penal pelos quais o Ministério Público de um Estado‑Membro arquiva, sem intervenção de um órgão jurisdicional, o procedimento criminal instaurado nesse Estado, depois de o arguido ter satisfeito determinadas obrigações e, designadamente, ter pago determinada soma em dinheiro fixada pelo Ministério Público (24).

46.      Em contrapartida, o princípio ne bis in idem não é aplicável a uma decisão das autoridades judiciárias de um Estado‑Membro que arquiva um processo, após o Ministério Público, sem qualquer apreciação de mérito, ter decidido não instaurar a acção penal com o único fundamento de já ter sido instaurada noutro Estado‑Membro uma acção penal contra o mesmo arguido e pelos mesmos factos (25).

47.      Esse princípio também não é aplicável a uma decisão pela qual uma autoridade de um Estado contratante, após uma análise de mérito do processo que lhe foi submetido, ordena, numa fase anterior à acusação de uma pessoa suspeita da prática de um crime, o arquivamento do processo penal, quando essa decisão de arquivamento, segundo o direito nacional desse Estado, não extingue definitivamente a acção penal nem obsta, portanto, a uma nova acção penal, pelos mesmos factos, no referido Estado (26).

48.      Quanto ao idem, o Tribunal de Justiça decidiu que o artigo 54.° da CAAS deve ser interpretado no sentido de que o critério relevante para efeitos da aplicação do referido artigo é o da identidade dos factos materiais, entendido como a existência de um conjunto de factos indissociavelmente ligados entre si, independentemente da qualificação jurídica desses factos ou do bem jurídico protegido (27).

49.      O Tribunal de Justiça precisou, no que respeita aos crimes relacionados com estupefacientes, que não é necessário que as quantidades de droga em causa nos dois Estados contratantes ou as pessoas que alegadamente participaram nos factos nos dois Estados sejam idênticas, pelo que não se exclui que uma situação em que não exista tal identidade constitua um conjunto de factos que, pela sua própria natureza, estão indissociavelmente ligados. A apreciação definitiva sobre esse aspecto cabe às instâncias nacionais competentes (28).

50.      Esta jurisprudência apenas determina o alcance mínimo do princípio ne bis in idem nas relações interestatais. De acordo com o artigo 58.° da CAAS, o seu artigo 54.° não prejudica a aplicação das disposições nacionais mais amplas relativas ao efeito ne bis in idem associado às decisões judiciais proferidas no estrangeiro.

51.      No ordenamento jurídico puramente interior dos Estados‑Membros, o Tribunal Europeus dos Direitos do Homem definiu o conteúdo mínimo que o princípio ne bis in idem deve ter. No que diz respeito ao conceito de idem, aquele subscreveu a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual apenas se deve ter em conta os factos materiais, sem se considerar o bem jurídico protegido (29).

C –    Os direitos nacionais

1.      O direito alemão

52.      O artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro foi transposto para o direito alemão pelo § 83, n.° 1, da Lei sobre a cooperação judiciária internacional em matéria penal (Gesetz über die internationale Rechtshilfe in Strafsachen), de 23 de Dezembro de 1982, na versão resultante da lei sobre o mandado de detenção europeu (Europäisches Haftbefehlsgesetz), de 20 de Julho de 2006 (30). Esse artigo, intitulado «Condições complementares de admissibilidade» dispõe:

«A extradição é excluída quando:

1.      O arguido já tenha sido alvo, pelo mesmo facto em que se baseia o pedido de extradição, de uma decisão com força de caso julgado de um outro Estado‑Membro, desde que, em caso de condenação, a sanção já tenha sido aplicada ou esteja em curso de execução ou já não possa ser executada segundo as leis do Estado‑Membro de condenação […].

[…]»

2.      O direito italiano

53.      Os artigos 73.° e 74.° do Decreto n.° 306/90 do Presidente da República, que aprova o «texto consolidado das leis em matéria do regime aplicável aos estupefacientes e substâncias psicotrópicas», de 9 de Outubro de 1990, dispõem o seguinte:

«Artigo 73.° Produção, tráfico e detenção ilícitas de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas

1.      É punido com uma pena de prisão de 6 a 20 anos e numa multa de 26 000 a 260 000 euros quem, agindo sem a autorização a que se refere o artigo 17.°, cultivar, produzir, extrair, refinar, vender, oferecer ou colocar à venda, ceder, distribuir, comercializar, transportar, procurar, enviar, passar ou expedir em trânsito ou utilizar para qualquer fim estupefacientes ou substâncias psicotrópicas […]

[…]

6.      A pena é agravada se o acto for cometido por três pessoas ou mais, actuando em conjunto.

Artigo 74.° Associação que tem por objecto o tráfico ilícito de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas

1.      Quando três ou mais pessoas se associarem para cometer vários dos delitos previstos no artigo 73.°, quem promover, constituir, dirigir, organizar ou financiar a associação é punido, por este motivo, com uma pena de prisão não inferior a 20 anos.

2.      Quem participar na associação é punido com uma pena de prisão não inferior a 10 anos.

3.      A pena é agravada se o número de associados for igual a 10 […].

[…]»

54.      Nos termos do artigo 649.° do Código de Processo Penal italiano, «o arguido absolvido ou condenado por sentença ou despacho penal irrevogáveis não pode ser submetido a novo processo penal pelo mesmo acto, mesmo que este último seja considerado diferentemente do ponto de vista da sua qualificação jurídica, do seu grau de gravidade ou das circunstâncias.».

55.      De acordo com as indicações do governo italiano, decorre no entanto da jurisprudência da Corte suprema di cassazione (tribunal de cassação) (Itália) que «a excepção prevista no artigo 649.° do Código de Processo Penal só pode ser invocada quando o facto que esteve na origem de uma decisão judicial definitiva se enquadra numa situação de concurso ideal de infracções, uma vez que o comportamento que foi desde logo objecto de decisão judicial definitiva pode ser requalificado como um elemento de facto e classificado, segundo uma apreciação diferente, senão mesmo alternativa, numa categoria de incriminação mais ampla».

II – Matéria de facto e tramitação no processo principal

A –    O mandado europeu de detenção em apreço

56.      Em 7 de Novembro de 2008, o Tribunale di Catania, Sezione del Giudice per le indagini preliminari (tribunal de Catania, secção do juiz de inquérito preliminar) (Itália), emitiu um mandado europeu de detenção contra G. Mantello, baseado num mandado nacional de 5 de Setembro de 2008 contra essa pessoa e 76 co‑arguidos.

57.      No mandado europeu de detenção, G. Mantello era acusado de dois crimes.

58.      Por um lado, durante um período que se iniciou um pouco antes de Janeiro de 2004 e que se prolongou até Novembro de 2005, o interessado participou, dentro de uma associação criminosa que contava pelo menos dez pessoas, no tráfico de cocaína organizado em Vittoria (Itália), noutras cidades italianas e na Alemanha. G. Mantello não só desempenhou o papel de «correio» e de intermediário, mas esteve igualmente encarregado do abastecimento de cocaína e da sua venda.

59.      Por outro lado, ao longo do mesmo período e nos mesmos locais, actuando sozinho ou por vezes em co‑autoria, entrou na posse ilícita de cocaína, que transportou, vendeu ou ainda cedeu a terceiros.

B –    Decisão que pode obstar à execução do mandado de detenção europeu

60.      Segundo as indicações fornecidas no mandado de detenção nacional, diversas autoridades italianas iniciaram, a partir de Janeiro de 2004, investigações sobre o tráfico ilícito de cocaína na região de Vittoria. As escutas efectuadas às chamadas telefónicas de G. Mantello, ao longo do período compreendido entre 19 de Janeiro e 13 de Setembro de 2005, confirmaram a sua participação nesse tráfico. G. Mantello esteve igualmente sob vigilância dos investigadores durante algumas das suas deslocações, nomeadamente entre a Sicília (Itália) e Milão (Itália) em 28 de Julho de 2005 e em 12 de Agosto de 2005, e entre a Sicília, Esslingen (Alemanha) e a Catania, em 12 de Setembro de 2005,.

61.      Quando desta última deslocação, G. Mantello comprou cerca de 150g de cocaína em Esslingen e, no regresso na noite de 13 de Setembro de 2005, ao sair do comboio na gare de Catania, foi detido pela polícia dos caminhos‑de‑ferro. Transportava dois invólucros que continham, respectivamente, 9,5 e 145,96g de cocaína, ou seja entre 599 e 719 doses individuais.

62.      Por sentença do Tribunale di Catania, de 30 de Novembro de 2005, G. Mantello foi condenado a uma pena de prisão de 3 anos, 6 meses e 20 dias e a uma multa de 13 000 euros, por estar na posse ilícita, no dia 13 de Setembro de 2005, na Catania, de 155,46g de cocaína para revenda. Esta sentença foi confirmada pela Corte d’Appello di Catania (tribunal de recurso de Catania), por acórdão de 18 de Abril de 2006.

C –    O processo perante a autoridade judiciária de execução

63.      Tendo tomado conhecimento do mandado de detenção europeu através do sistema de informação de Schengen (SIS), o Generalstaatsanwaltschaft Stuttgart (Ministério Público de Estugarda) ordenou a detenção de G. Mantello, em 3 de Dezembro de 2008, no local da sua residência, e a sua apresentação ao Amtsgericht Stuttgart (tribunal de primeira instância de Estugarda) (Alemanha). Durante o interrogatório, G. Mantello opôs‑se à sua entrega à autoridade judiciária de emissão e não renunciou a invocar o princípio da especialidade. A pedido do Generalstaatsanwaltschaft Stuttgart, o Oberlandesgericht Stuttgart, em 22 de Janeiro de 2009, solicitou às autoridades italianas que remetesse determinados documentos, para verificar se o trânsito em julgado da sentença de 30 de Novembro de 2005 não obstava à execução do mandado europeu de extradição.

64.      Dado não ter obtido nenhuma informação dessas autoridades, o Oberlandesgericht Stuttgart decidiu, em 20 de Março de 2009, suspender a execução do mandado de detenção europeu e nomear um defensor oficioso para G. Mantello.

65.      Em 4 de Abril de 2009, o juiz de instrução do Tribunale di Catania respondeu que não se deveria aplicar o princípio ne bis in idem. O Generalstaatsanwaltschaft Stuttgart pediu então ao órgão jurisdicional de reenvio que procedesse à execução do mandado europeu de detenção.

66.      O Oberlandesgericht Stuttgart interroga‑se, entretanto, sobre se se pode opor a essa execução, face às seguintes circunstâncias. No momento do inquérito que conduziu à condenação de G. Mantello por posse de doses de cocaína com vista à sua revenda, os investigadores já dispunham de provas suficientes para o acusar e contra ele exercer a acção penal pelos factos que lhe eram imputados no mandado de detenção europeu, nomeadamente pelo tráfico de droga em associação organizada. Contudo, no interesse do inquérito, para poder desmantelar esse tráfico e deter as outras pessoas implicadas, esses investigadores não transmitiram as informações e as provas em sua posse ao juiz de instrução, nem solicitaram, nessa data, que fosse iniciada a acção penal por esses factos.

67.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, no direito alemão, tal como é interpretado pelo Bundesgerichtshof (Supremo tribunal federal de justiça) (Alemanha), um delito de associação pode ainda, em princípio, ser objecto de acção penal a posteriori se, por um lado, a acusação e o inquérito anteriores apenas tiverem tido por objecto actos isolados do membro dessa associação e, por outro, o acusado não tiver adquirido a confiança legítima de que o processo anterior englobava todos os actos praticados no quadro da associação. O órgão jurisdicional de reenvio entende que é ainda necessário que, à data da decisão judicial sobre o facto isolado, os responsáveis pelo inquérito ignorassem que havia outros delitos individuais e um delito de associação, o que não sucedia propriamente com as autoridades de investigação em Itália.

68.      Por outro lado, esse órgão jurisdicional sublinha que, no processo principal, não existe um elemento transnacional, porquanto o potencial idem é constituído por uma decisão judicial vinda do próprio Estado‑Membro de emissão, e não de outro Estado‑Membro. Aquele sublinha, além do mais, que o conceito de «mesmos factos» referido pela decisão‑quadro ainda não foi objecto de interpretação pelo Tribunal de Justiça. O referido órgão jurisdicional questiona‑se, a esse respeito, se a jurisprudência desenvolvida no quadro da CAAS pode ser transposta para o quadro do mandado europeu de detenção.

III – As questões prejudiciais

69.      Atentas estas circunstâncias, o Oberlandesgericht Stuttgart decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      A questão de saber se estão em causa os ‘mesmos factos’ na acepção do artigo 3.°, n.° 2, da [decisão‑quadro] é apreciada:

a)      tendo por referência o direito do Estado‑Membro de emissão ou

b)      tendo por referência o direito do Estado‑Membro de execução ou

c)      mediante uma interpretação autónoma do conceito de ‘mesmos factos’, específica ao direito comunitário?

2.      A importação ilícita de estupefacientes constitui o ‘mesmo facto’, na acepção do artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, que a participação numa associação que tem por objectivo o tráfico de estupefacientes numa situação em que, no momento da sentença condenatória da referida importação ilícita, os serviços responsáveis pelo inquérito dispunham de informações e de provas que apoiavam a suspeita de participação numa associação, mas se abstiveram, no interesse do inquérito, de submeter essas informações e provas ao tribunal e de dar início a qualquer diligência penal a esse título?»

IV – Apreciação

70.      O reenvio prejudicial do Oberlandesgericht Stuttgart é admissível nos termos do artigo 35.° UE. Decorre, de facto, da informação relativa à entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, publicada no Jornal Oficial das Comunidades europeias de 1 de Maio de 1999 (31), que a República Federal da Alemanha fez uma declaração nos termos do artigo 35.º, n.° 3, UE, através da qual aceitou a competência do Tribunal de Justiça para decidir segundo as modalidades previstas no artigo 35.°, n.° 3, alínea b), UE, isto é, sobre as questões submetidas por todos os seus órgãos jurisdicionais.

71.      Antes de apreciar as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, parece‑me necessário apreciar a questão de saber se o motivo de não execução obrigatória previsto no artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, é aplicável no caso em que a sentença definitiva que poderia justificar a sua aplicação foi proferida pelo Estado‑Membro de emissão.

A –    Quanto à aplicação do artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro quando os factos referidos no mandado de detenção europeu foram objecto de sentença definitiva no Estado‑Membro de emissão

72.      Alguns dos Estados‑Membros que intervieram no presente processo defendem que o motivo de não execução obrigatória prevista no artigo 3.°,n.° 2, da decisão‑quadro não é aplicável nessa situação (32). Alegaram, em apoio dessa tese, que o princípio ne bis in idem faz parte dos princípios gerais de direito e que as autoridades judiciárias que emitem um mandado europeu de detenção devem assegurar o seu respeito. Sublinham que essas autoridades são as que estão melhor colocadas para confirmar que a pessoa contra quem o mandado europeu de detenção foi emitido não foi já alvo de sentença condenatória no seu Estado pelos mesmos factos.

73.      Segundo os governos desses Estados‑Membros, a aplicação, nessa situação, do artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro seria contrária ao princípio do reconhecimento mútuo e do elevado grau de confiança que a autoridade judiciária de execução deve ter na autoridade judiciária de emissão.

74.      Segundo o governo italiano, a apreciação da autoridade judiciária de emissão de que o princípio ne bis in idem não se aplica vincula a autoridade judiciária de execução.

75.      O governo espanhol realça que o artigo 3.°,n.° 2, da decisão‑quadro, deve ser interpretado de forma estrita, tal como decorre da fundamentação do acórdão de 6 de Outubro de 2009, Wolzenburg (33). Alega, tal como o governo checo, que o princípio ne bis in idem, referido no artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, é necessariamente transnacional, tal como é o referido no artigo 54.° da CAAS. O governo espanhol alega, além disso, que a eventual violação do princípio ne bis in idem não terá sido cometida quando da entrega, mas sim no momento em que a autoridade judiciária de emissão, depois de, se necessário, ouvir a pessoa procurada, a constituiu ainda assim como arguida.

76.      Não subscrevemos a posição defendida por esses governos, porquanto a mesma é contrária, em nossa opinião, ao regime do mandado de detenção europeu definido pela decisão‑quadro e porquanto o seu artigo 3.°, n.° 2, constitui a expressão de um direito fundamental.

77.      Assim, ainda que o sistema da decisão‑quadro assente sobre o princípio do reconhecimento mútuo, o legislador da União não quis equiparar um mandado de detenção europeu a um mandado nacional de detenção, cuja execução cabe directamente às forças policiais do Estado‑Membro de execução. Previu que o mandado europeu de detenção assenta na cooperação das autoridades judiciárias dos Estados‑Membros interessados e que a entrega da pessoa procurada deve dar lugar a uma decisão da autoridade judiciária de execução, à qual aquela se pode opor por um dos motivos enunciados na decisão‑quadro.

78.      Ao fazer do motivo enunciado no artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro um motivo de não execução obrigatória, quando se supõe que a própria autoridade judiciária de emissão confirmou que os factos imputados ao interessado não foram já julgados, o legislador da União afirmou expressamente, por um lado, que o princípio ne bis in idem obsta não só a um novo julgamento da pessoa interessada, mas também à sua entrega e, por outro, que o respeito desse princípio não deve ser deixado apenas à apreciação da autoridade judiciária de emissão, devendo ser igualmente garantido pela autoridade judiciária de execução.

79.      Para esse efeito, a decisão‑quadro prevê toda uma série de regras que permitem à autoridade judiciária de execução assegurar concretamente o respeito do referido princípio. Assim, exige‑se que o mandado de detenção europeu contenha as indicações necessárias no que respeita aos factos susceptíveis de serem imputados à pessoa procurada. Prevê‑se igualmente que a autoridade judiciária de execução deve proceder à audição dessa pessoa. Por último, essa autoridade pode, se necessário, solicitar à autoridade judiciária de emissão todas as informações complementares necessárias relativas ao motivo de não execução obrigatória.

80.      Compreendemos bem, nesta fase da análise, o argumento dos governos de que o controlo duplo instaurado por esse sistema não terá real utilidade nos casos em que a pessoa procurada já tiver sido julgada num Estado‑Membro que não o Estado‑Membro de emissão. De facto, a autoridade judiciária de emissão, que não teve porventura a possibilidade de ouvir a pessoa procurada, pode, na falta de um registo criminal europeu que centralize todas as sentenças condenatórias proferidas pelos órgãos jurisdicionais de todos os Estados‑Membros, ignorar legitimamente que o processo já foi julgado noutro Estado‑Membro. Em contrapartida, esse risco não existe relativamente a uma decisão proferida no Estado‑Membro de emissão, e por maioria de razão quando, como sucede no processo em apreço, a sentença definitiva invocada pela pessoa procurada e o mandado europeu de detenção foram proferidos pelo mesmo órgão jurisdicional.

81.      Não cremos que esse argumento possa justificar a exclusão da aplicação do artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro no caso de uma sentença definitiva proferida no Estado‑Membro de emissão.

82.      É certo que, em virtude do elevado grau de confiança que deve reger as relações entre as autoridades judiciárias de execução e de emissão, não cabe à primeira verificar oficiosamente se os factos referidos no mandado de detenção europeu já foram ou não julgados no Estado‑Membro de emissão ou noutro Estado‑Membro. O artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, não impõe essas verificações prévias, porquanto prevê que se aplica «[s]e das informações de que dispõe a autoridade judiciária de execução resultar» que a pessoa procurada já foi definitivamente julgada pelos mesmos factos.

83.      A questão que se coloca é a de saber se a reacção dessa autoridade judiciária, quando dispõe dessas informações, deve ser diferente consoante a sentença definitiva tenha sido proferida no Estado‑Membro de emissão ou noutro Estado‑Membro.

84.      Entendemos que não, pelas seguintes razões. Por um lado, como a Comissão das Comunidades Europeias sublinhou, o artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro e o sistema destinado a assegurar o seu respeito não se limitam aos casos em que os factos referidos no mandado de detenção europeu foram objecto de sentença definitiva num Estado‑Membro que não o de emissão.

85.      Por outro lado, o direito fundamental que essa disposição da decisão‑quadro visa proteger tem o mesmo valor nos dois casos.

86.      Lembre‑se que o princípio ne bis in idem constitui um direito fundamental que faz parte do ordenamento jurídico de todos os Estados‑Membros enquanto princípio inerente ao conceito de Estado de Direito, e que foi expressamente consagrado na Carta.

87.      É jurisprudência assente que os Estados‑Membros, quando executam o direito da União, devem fazê‑lo respeitando os direitos fundamentais (34). Essa jurisprudência não se limita aos actos adoptados no âmbito de aplicação do Tratado CE. Aplica‑se a todos os actos adoptados no quadro da União (35), porquanto, nos termos do artigo 6.° UE, a União se baseia no princípio do Estado de Direito e do respeito pelos direitos fundamentais, tal como são garantidos pela Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950, e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros.

88.      Consequentemente, da mesma forma que a legalidade de um acto adoptado no quadro do terceiro pilar, como a decisão‑quadro, pode ser fiscalizada à luz dos direitos fundamentais (36), a actuação dos Estados‑Membros, na execução de tal acto, deve ser conforme a esses mesmos direitos. A autoridade judiciária de execução está, assim, vinculada por essa obrigação quando é responsável pela execução de um mandado de detenção europeu, como expressamente se refere no artigo 1.°, n.° 3, da decisão‑quadro.

89.      Ao prever que o princípio ne bis in idem constitui um motivo de não execução obrigatória e não apenas um obstáculo a um processo no Estado‑Membro de emissão, o legislador da União tomou em consideração e procurou prevenir os efeitos prejudiciais às liberdades individuais que a execução de um mandado europeu de detenção em violação desse princípio produziria.

90.      Com efeito, importa recordar que a execução de um mandado de detenção europeu tem como consequência a detenção da pessoa procurada e depois, se for caso disso, a sua prisão preventiva no Estado‑Membro de execução durante um período que pode ir até 60 dias se a pessoa procurada não consentir na sua entrega e, finalmente, a sua transferência coerciva para outro Estado‑Membro, à ordem da autoridade judiciária de emissão. Face aos efeitos destas medidas nas liberdades fundamentais, o legislador da União entendeu, acertadamente, que se deve considerar que a execução do mandado de detenção europeu integra as diligências penais levadas a cabo pela autoridade judiciária de emissão.

91.      Além disso, a hipótese em que os factos referidos no mandado de detenção europeu tenham sido julgados no Estado‑Membro de emissão não constitui uma situação puramente interna, cuja conformidade com os direitos fundamentais apenas deva ser apreciada à luz do direito desse Estado‑Membro, sob a fiscalização do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

92.      De facto, a partir do momento em que a pessoa procurada é alvo de um mandado de detenção europeu, a sua situação está coberta pelo direito da União e a execução desse mandado deve ser conforme com os princípios gerais de direito que enquadram a actuação da União e a dos Estados‑Membros quando executam esse direito.

93.      Na apreciação da questão de saber se o artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro é ou não aplicável, a autoridade judiciária de execução não verifica se o princípio ne bis in idem, tal como é definido no ordenamento jurídico do Estado‑Membro de emissão, foi realmente respeitado pela autoridade judiciária de emissão, mas fiscaliza o respeito do princípio enunciado nessa disposição do direito da União, tal como é definido pelo Tribunal de Justiça.

94.      Por último, os efeitos prejudiciais, para a pessoa procurada, da execução do mandado europeu de detenção em violação desse princípio revestem a mesma gravidade, quer os factos tenham sido julgados no Estado‑Membro de emissão quer noutro Estado‑Membro.

95.      A autoridade judiciária de execução deve, assim, aplicar o motivo de não execução previsto no artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, se se verificar, excepcionalmente, que os factos referidos no mandado de europeu de detenção já foram objecto de sentença definitiva no Estado‑Membro de emissão, ou ainda se, depois de ter recebido elementos de informação nesse sentido e questionado a autoridade judiciária de emissão para apurar a sua exactidão, não receber desta uma resposta satisfatória.

96.      Daí decorre que, no presente processo, a autoridade judiciária de execução alemã, depois de a pessoa procurada lhe ter dito que já tinha sido julgada em Itália pelos factos referidos no mandado europeu de detenção emitido pelo Tribunal de Catania, questionou acertadamente as autoridades judiciárias italianas sobre a existência e o teor dessa sentença, para poder apreciar se, face a essa sentença, o motivo de não execução referido no artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, era ou não aplicável.

97.      De seguida, a autoridade judiciária de execução alemã, uma vez que tinha dúvidas sobre o escopo do artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, nas circunstâncias do processo principal, e que o Tribunal de Justiça ainda não precisou o sentido do conceito de «mesmos factos» referido nessa disposição, submeteu legitimamente ao Tribunal de Justiça o presente reenvio prejudicial.

98.      As suas questões prejudiciais, que se destinam a obter o esclarecimento dos critérios com base nos quais esse conceito deve ser apreciado, são claramente relevantes para a resolução do processo principal, sendo assim admissíveis.

B –    Quanto à primeira questão prejudicial

99.      Através da sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «mesmos factos» referido nessa disposição deve ser apreciado tendo por referência o direito do Estado‑Membro de emissão, ou tendo por referência o direito do Estado‑Membro de execução, ou ainda se constitui um conceito autónomo, específico da União.

100. O Governo do Reino Unido defende que o conceito em causa deve ser determinado em conformidade com o direito do Estado‑Membro de execução, pelos motivos seguintes.

101. Em primeiro lugar, segundo aquele governo, o artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, deve ser executado da mesma forma que os outros motivos de não execução previstos nesse artigo, os quais remetem para o direito interno do Estado‑Membro de execução (37).

102. Em segundo lugar, nas circunstâncias do presente processo, a questão do grau de sobreposição entre os factos relevantes e a questão de saber se a inexistência de acção penal contra todos os delitos conhecidos à data em que apenas parte deles foi objecto de acção penal constitui um abuso do processo ou uma violação dos direitos de defesa caem no âmbito da lei penal substantiva de cada Estado‑Membro.

103. O artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro tem, por isso, precisamente o objectivo de se aplicar quando o Estado de execução confere ao princípio ne bis in idem um alcance mais amplo que o Estado‑Membro de emissão. Se assim não fosse, e se o conceito de mesmos factos tivesse que ser objecto de uma definição autónoma e uniforme, seria improvável, para começar, que o Estado‑Membro de emissão emitisse o mandado de detenção europeu.

104. Não partilhamos desta posição. Somos da opinião, como os outros governos dos Estados‑Membros que intervieram no presente processo e como a Comissão, que há que ter presente que o artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, ao contrário do seu artigo 3.°, n.os 1 e 3, não remete para o direito do Estado‑Membro de execução para determinar o seu teor, mas apenas para o direito do Estado‑Membro da condenação e unicamente no que respeita à questão específica de saber se a sentença definitiva, quando se trate de sentença condenatória, já não pode ser executada.

105. Aderimos assim à posição defendida por essas outros intervenientes, de que há que aplicar a jurisprudência assente segundo a qual uma disposição de direito comunitário ou da União, quando não contém nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance, deve encontrar, em todos os Estados‑Membros, uma interpretação autónoma e uniforme que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pelas normas a que pertence (38). O Tribunal de Justiça já aplicou essa jurisprudência, relativamente à decisão‑quadro, para interpretar os termos «se encontrar» e «residente», referidos no seu artigo 4.°, n.° 6 (39).

106. O artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro deve, assim, ser interpretado, em nossa opinião, no sentido de que o conceito de «mesmos factos», referido nessa disposição, constitui um conceito autónomo do direito da União.

107. Os governos, bem como a Comissão, que defendem essa tese, propõem ao Tribunal de Justiça que vá mais longe na sua resposta e declare que esse conceito deve ser objecto da mesma interpretação que o conceito de «mesmos factos» referido no artigo 54.° da CAAS. Nós partilhamos da sua posição.

108. É necessário, com efeito, apurar o teor do conceito de «mesmos factos», referido no artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, para responder à segunda questão do órgão jurisdicional de reenvio. Aderimos igualmente aos motivos pelos quais esses intervenientes propõem que se remeta para o artigo 54.° da CAAS.

109. Em primeiro lugar, os conceitos exprimem‑se em idênticos termos, na maioria das versões linguísticas. É certo que não é o que sucede na língua alemã, visto que o artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro refere o conceito «derselben Handlung», enquanto que o artigo 54.° da CAAS refere o conceito de «derselben Tat». Contudo, o próprio governo alemão indica nas suas observações escritas que essa diferença terminológica não deve obstar a que as duas disposições em causa sejam objecto da mesma interpretação.

110. Como alega esse governo, essa mesma interpretação justifica‑se principalmente, em segundo lugar, pela semelhança dos objectivos prosseguidos pelas duas disposições em causa.

111. De facto, o artigo 54.° da CAAS, como vimos, tem o objectivo de evitar que, pelo facto de exercer o seu direito de livre circulação, uma pessoa seja, pelos mesmos factos, objecto de acção penal no território de vários Estados contratantes (40). Nas circunstâncias do presente processo, o artigo 54.° da CAAS, admitindo que os factos imputados a G. Mantello no mandado de detenção europeu foram objecto de sentença definitiva em Itália, opõem‑se, pois, a que seja novamente julgado pelos mesmos factos na Alemanha.

112. O artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro constitui de certa forma o instrumento complementar do artigo 54.° da CAAS em relação à República Italiana. Ao vedar às autoridades judiciárias a execução do mandado de detenção europeu emitido contra G. Mantello, esta última disposição tem igualmente o objectivo de impedir que seja entravada a permanência do interessado na Alemanha ou noutro Estado‑Membro quando os factos referidos nesse mandado foram já objecto de sentença definitiva.

113. O princípio ne bis in idem, enunciado no artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, tem assim o mesmo objectivo que o artigo 54.° da CAAS. Esta última disposição tem o objectivo de garantir que uma pessoa possa exercer o seu direito de livre circulação sem temer novos processos‑crime, pelos mesmos factos, no Estado‑Membro para onde se dirige (41). O artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro tem, por seu turno, o objectivo de impedir que a permanência dessa pessoa nesse Estado seja perturbada pela execução de um mandado europeu de detenção emitido por outro Estado‑Membro.

114. Propomos assim ao Tribunal de Justiça que complete a resposta à primeira questão com a indicação de que o conceito de «mesmos factos» prevista no artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, deve ser interpretado da mesma forma que o conceito de «mesmos factos» previsto no artigo 54.° da CAAS.

C –    Quanto à segunda questão prejudicial

115. Através da sua segunda questão, o Oberlandesgericht Stuttgart pretende saber se a circunstância de, quando G. Mantello foi julgado, em 30 de Novembro de 2005, pela detenção, em 13 de Setembro de 2005, de cocaína para revenda, os investigadores italianos disporem de elementos de prova da sua participação, durante vários meses, no tráfico de estupefacientes entre a Alemanha e a Itália, é pertinente para apreciar se a entrega dessa pessoa deve ser recusada por aplicação do artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro.

116. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta pois, no essencial, se o artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro deve ser interpretado no sentido de que a circunstância de os investigadores disporem, no momento em que uma pessoa já foi acusada e condenada por um acto isolado de tráfico de estupefacientes, de provas da participação dessa pessoa, durante vários meses, numa associação criminosa destinada ao tráfico de estupefacientes, provas essas que, no interesse da investigação, não revelaram ao órgão jurisdicional competente, justifica que se considere que essa participação na associação criminosa e a detenção isolada de estupefacientes constituem os mesmos factos.

117. O órgão jurisdicional de reenvio coloca esta questão porque essa circunstância, no seu ordenamento jurídico nacional, poderá, em determinadas condições, conduzir à extinção da acção penal no que diz respeito à participação na associação criminosa.

118. Somos da opinião, como os governos dos Estados‑Membros e a Comissão, que intervieram no presente processo, que semelhante circunstância é irrelevante e não justifica que se considere que um facto isolado de detenção de estupefacientes e a participação, durante vários meses, em tráfico de estupefacientes constituem «mesmos factos», no sentido em que esse conceito foi definido no quadro do artigo 54.° CAAS.

119. Com efeito, já vimos que, por força de jurisprudência assente, o critério pertinente para apreciar o elemento «idem» é o da identidade dos factos materiais, interpretados como a existência de factos indissociavelmente ligados entre si, independentemente da qualificação jurídica desses factos ou do bem jurídico protegido (42). Esta interpretação visa proteger a confiança legítima de uma pessoa já condenada, e que exerceu o seu direito de livre circulação, em que não será novamente alvo de acção penal pelos mesmos factos devido à circunstância de estes violarem uma norma penal diferente em cada Estado‑Membro e poderiam ser objecto de qualificação diferente.

120. De acordo com a jurisprudência Kraaijenbrink (43), a mera circunstância de a instância chamada a conhecer da segunda acção penal declarar que o presumido autor agiu com a mesma intenção delituosa não pode ser suficiente para concluir que os factos procedem de um mesmo conjunto indissociável, na acepção do artigo 54.° da CAAS (44).

121. À luz desta jurisprudência, a apreciação do conceito de «mesmos factos», na acepção do artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, deve assim efectuar‑se com base numa comparação dos factos que são objectivamente imputados no primeiro procedimento com aqueles que são referidos no mandado de detenção europeu. Trata‑se de determinar se o interessado, quando do primeiro processo, já foi julgado pelos factos referidos no mandado de detenção europeu.

122. Daí decorre, por um lado, que o momento em que foram descobertos pelos investigadores os factos referidos no mandado de detenção europeu é irrelevante para determinar se estão indissociavelmente ligados aos factos que já foram julgados.

123. Daí resulta, por outro lado, que, nessa comparação, a autoridade judiciária de execução não deve tomar em consideração elementos subjectivos. Assim, essa autoridade não só não deve tomar em consideração a intenção delituosa da pessoa procurada, como não deve ter em conta a estratégia dos serviços de investigação.

124. Além disso, como foi exposto pela Comissão, a questão de saber quais são as possibilidades de que esses serviços dispõem para efectuar eficazmente as investigações iniciadas em processos difíceis e de grande envergadura, como os relacionados com o crime organizado, decorre das regras de processo penal do seu Estado‑Membro e é irrelevante para apreciar a existência de uma identidade de factos na acepção do artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro.

125. Uma vez que o conceito de «mesmos factos» constitui um conceito autónomo de direito da União, o facto de uma situação semelhante conduzir, se for caso disso, à extinção da acção penal no Estado‑Membro de execução, com base no direito interno, não pode justificar uma apreciação diferente.

126. Face à jurisprudência sobre o alcance do princípio ne bis in idem no âmbito do artigo 54.° da CAAS, esse princípio não pode assim ser interpretado no sentido de que obriga os serviços de investigação a exercer a acção penal, desde a primeira acusação, relativamente a todos os factos susceptíveis de serem imputados à pessoa interessada e a submetê‑los à apreciação do tribunal.

127. Consequentemente, a circunstância de os serviços de investigação, no momento em que a pessoa procurada foi acusada e condenada por um facto isolado de detenção ilegal de estupefacientes, disporem de elementos que provavam a participação dessa pessoa durante vários meses em tráfico de estupefacientes e de, contudo, terem optado por não exercer a acção penal relativamente a esses factos e não revelar essas provas ao órgão jurisdicional competente, para não comprometer o bom decurso das investigações e permitir o total desmantelamento da rede, não justifica que se considere que estes últimos factos formam, com o primeiro, um conjunto indissociável abrangido pelo artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro.

128. Além disso, como expôs o governo francês, a circunstância de a autoridade policial ter optado, no âmbito das acções penais que levaram à sentença condenatória de 30 de Novembro de 2005, por não exercer a acção penal igualmente quanto aos factos referidos no mandado de detenção europeu para não prejudicar o desenrolar das investigações, não pode ser equiparada a um «julgamento definitivo» desses factos, na acepção do artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro.

129. De facto, atenta a interpretação desse conceito no âmbito do artigo 54.° da CAAS feita pelo Tribunal de Justiça nos já referidos acórdãos Gözütok e Brügge, Miraglia e ainda Turanzký, há que ter em conta que os factos em causa não foram levados ao conhecimento do órgão jurisdicional que conheceu do primeiro processo nem ao do Ministério Público, e que, portanto, não conduziram a qualquer apreciação de mérito por parte de uma autoridade chamada a participar na administração da justiça penal no ordenamento jurídico em questão. Além disso, a decisão da autoridade policial de não exercer a acção penal não pôs termo à acção penal nesse ordenamento jurídico.

130. No presente processo, a circunstância de os serviços de investigação italianos disporem, no momento em que G. Mantello foi julgado em Novembro de 2005 pelo Tribunale di Catania, por detenção e transporte, a 13 de Setembro de 2005, de 155,46 g de cocaína para revenda, de elementos de prova da sua participação, entre Janeiro de 2004 e Novembro de 2005, numa organização criminosa que tinha por objecto o tráfico de cocaína, não se opõe assim a que aquele seja entregue ao órgão jurisdicional italiano no âmbito de um mandado de detenção europeu relativo à sua participação nessa associação.

131. É certo que caberá ao órgão jurisdicional italiano excluir de novas acções penais exercidas contra G. Mantello os factos pelos quais já tenha sido definitivamente condenado. Contudo, o respeito dessa obrigação é da sua responsabilidade, e não da do órgão judiciário de execução. Em virtude do princípio da confiança mútua subjacente ao regime do mandado europeu de detenção a autoridade judiciária de execução, a partir do momento em que logrou certificar‑se de que os factos referidos no mandado europeu de detenção não se confundem com os factos já julgados, cumpriu as suas obrigações de fiscalização do respeito pelo princípio ne bis in idem e deve decidir a entrega da pessoa procurada.

132. Propomos assim que o Tribunal de Justiça responda ao órgão jurisdicional de reenvio que o artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro, deve ser interpretado no sentido de que o facto de os investigadores disporem, no momento em que uma pessoa já foi acusada e condenada por um acto isolado de tráfico de estupefacientes, de provas da participação dessa pessoa, durante vários meses, numa associação criminosa destinada ao tráfico de estupefacientes, mas, no interesse da investigação, as não terem revelado ao órgão jurisdicional competente, não justifica que se considere que essa participação na associação criminosa e a detenção isolada de estupefacientes constituem os «mesmos factos» na acepção dessa disposição.

V –    Conclusão

133. Atentas as considerações precedentes, propomos ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma às questões submetidas pela Oberlandesgericht Stuttgart:

«1.      O artigo 3.°, n.° 2, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados Membros (JO L 190, p. 1, a seguir «decisão‑quadro») deve ser interpretado no sentido de que o conceito de ‘mesmos factos’ referido nessa disposição constitui um conceito autónomo de direito da União.

Esse conceito tem o mesmo sentido que o conceito de «mesmos factos» referido no artigo 54.° da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinada em Schengen, em 19 de Junho de 1990.

2)      O facto de os investigadores disporem, no momento em que uma pessoa já foi acusada e condenada por um acto isolado de tráfico de estupefacientes, de provas da participação dessa pessoa, durante vários meses, numa associação criminosa destinada ao tráfico de estupefacientes mas, no interesse da investigação, as não terem revelado ao órgão jurisdicional competente, não justifica que se considere que essa participação na associação criminosa e a detenção isolada de estupefacientes constituem os «mesmos factos» na acepção do artigo 3.°, n.° 2, da decisão‑quadro 2002/584.


1 – Língua original: francês.


2 – Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados Membros (JO L 190, p. 1, a seguir «decisão‑quadro»).


3 – A seguir «autoridade judiciária de execução».


4 – A seguir «Carta».


5 – Convenção de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (JO 2000, L 239, p. 19), assinada em Schengen em 19 de Junho de 1990 (a seguir «CAAS»).


6 – Quinto considerando da referida decisão.


7 – Sexto considerando.


8 – Décimo considerando.


9 –      A seguir, «autoridade judiciária de emissão».


10 – Artigos 13.°, n.° 1, e 27.°, n.° 2, da referida decisão.


11 – Artigo 14.°


12 – Podemos assim pensar que este já está intrinsecamente contido na lei de talião, que constitui uma das primeiras limitações do direito de punir, ao limitar a sanção ao prejuízo causado pelo autor da infracção. V., igualmente, os exemplos citados pela advogada‑geral E. Sharpston no n.° 72 das suas conclusões apresentadas no processo que deu lugar ao acórdão de 28 de Setembro de 2006, Gasparini e o. (C‑467/04, Colect., p. I‑9199).


13 – Segundo as informações que constavam do sítio Internet do Conselho da Europa, em 18 de Março de 2010, todos os Estados‑Membros tinham assinado esse protocolo, com excepção do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte. O Reino da Bélgica, a República Federal da Alemanha e o Reino dos Países Baixos não tinham ainda ratificado o referido protocolo.


14 – O artigo 54.° da CAAS vincula os 27 Estados‑Membros, incluindo o Reino Unido e a Irlanda [v. Decisões 2000/365/CE do Conselho, de 29 de Maio de 2000, sobre o pedido do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte para participar em algumas das disposições do acervo de Schengen (JO L 131, p. 43) e 2002/192/CE do Conselho, de 28 de Fevereiro de 2002, sobre o pedido da Irlanda para participar em algumas das disposições do acervo de Schengen (JO L 64, p. 20)].


15 – Acórdãos de 11 de Fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge (C‑187/01 e C‑385/01, Colect., p. I‑1345, n.° 38) e de 11 de Dezembro de 2008, Bourquain (C‑297/07, Colect., p. I‑9425, n.° 41).


16 – Acórdão Gözütok e Brügge, já referido (n.° 33).


17 – Como está indicado na declaração sobre a carta, anexada aos tratados, esta não alarga o âmbito de aplicação do direito da União.


18 –      Por força do Tratado de Lisboa, entrado em vigor no dia 1 de Dezembro de 2009, a carta adquiriu força vinculativa, porquanto, nos termos do artigo 6.°, n.° 1, TUE, tem o mesmo valor jurídico que os tratados.


19 – Weyembergh, A., «Le principe ne bis in idem: pierre d’achoppement de l’espace pénal européen?», Cahiers de droit européen, 2004, n.os 3 e 4, p. 337.


20 – Acórdão de 18 de Julho de 2007, Kretzinger (C‑288/05, Colect., p. I‑6411).


21 – Acórdão Gasparini e o., já referido.


22 – Acórdão de 28 de Setembro de 2006, Van Straaten (C‑150/05, Colect., p. I‑9327).


23 – Acórdão Bourquain, já referido.


24 – Acórdão Gözütok e Brügge, já referido.


25 – Acórdão de 10 de Março de 2005, Miraglia (C‑469/03, Colect., p. I‑2009).


26 – Acórdão de 22 de Dezembro de 2008, Turanský (C‑491/07, Colect., p. I‑11039).


27 – Acórdão de 9 de Março de 2006, Van Esbroeck (C‑436/04, Colect., p. I‑2333).


28 – Acórdão Van Straaten, já referido.


29 – V. acórdão de 20 de Fevereiro de 2009 do Tribunal europeu dos Direitos do Homem, Sergueï Zolotoukhine/Rússia.


30 – BGBI. 2006 I, p. 1721.


31 – JO L 114, p. 56.


32 – Trata‑se da República Checa, do Reino de Espanha, da República Francesa, da República Italiana, do Reino dos Países Baixos e da República da Polónia.


33 – C‑123/08, ainda não publicado na jurisprudência (n.os 57 a 59).


34 – Acórdãos de 13 de Julho de 1989, Wachauf (5/88, Colect., p. 2609, n.° 19) e de 4 de Junho de 2009, JK Otsa Talu (C‑241/07, Colect., p. I‑4323, n.° 46 e jurisprudência referida).


35 – V., no que respeita à aplicação dos direitos fundamentais no âmbito de aplicação do Tratado CEEA, acórdão de 27 de Outubro de 2009, ČEZ (C‑115/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 91).


36 – Acórdão de 3 de Maio de 2007, Advocaten voor de Wereld (C‑303/05, Colect., p. I‑3633, n.° 45).


37 – O artigo 3.°, n.° 1, da decisão‑quadro prevê que a execução do mandado europeu de detenção deve ser recusada se a infracção na origem do mandado de detenção estiver abrangida por amnistia no Estado‑Membro de execução, quando este for competente para o respectivo procedimento penal nos termos da sua legislação penal. O artigo 3.°, n.° 3, da decisão‑quadro dispõe que a execução do mandado europeu de detenção deve ser recusada se, nos termos do direito do Estado-Membro de execução, a pessoa sobre a qual recai o mandado de detenção europeu não puder, devido à sua idade, ser responsabilizada pelos factos que fundamentam o referido mandado.


38 – Acórdão de 18 de Outubro de 2007, Österreichischer Rundfunk (C‑195/06, Colect., p. I‑8817, n.° 24 e jurisprudência aí referida).


39 – Acórdão de 17 de Julho de 2008, Kozlowski (C‑66/08, Colect., p. I‑6041, n.° 42).


40 – V. acórdãos Gözütok e Brügge (n.° 38); Gasparini e o. (n.° 27), bem como Van Straaten (n.° 57), já referidos.


41 – V. acórdão Gasparini e o., já referido (n.° 27).


42 – Acórdão Kretzinger, já referido (n.° 34).


43 – Acórdão de 18 de Julho de 2007, Kraaijenbrink (C‑367/05, Colect., p. I‑6619).


44 – N.° 29.