Language of document : ECLI:EU:C:2023:105

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

16 de fevereiro de 2023 (*)

«Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual — Desenho ou modelo — Diretiva 98/71/CE — Artigo 3.o, n.os 3 e 4 — Requisitos de obtenção da proteção para um componente de um produto complexo — Conceitos de “visibilidade” e de “utilização normal” — Visibilidade de um componente de um produto complexo durante a utilização normal deste produto pelo utilizador final»

No processo C‑472/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha), por Decisão de 1 de julho de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 2 de agosto de 2021, no processo

Monz Handelsgesellschaft International mbH & Co. KG

contra

Büchel GmbH & Co. Fahrzeugtechnik KG,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, D. Gratsias, M. Ilešič (relator), I. Jarukaitis e Z. Csehi, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

—        em representação da Monz Handelsgesellschaft International mbH & Co. KG, por C. Rohnke e T. Winter, Rechtsanwälte,

—        em representação da Büchel GmbH & Co. Fahrzeugtechnik KG, por M. Pilla, Rechtsanwalt,

—        em representação da Comissão Europeia, por E. Gippini Fournier, J. Samnadda e T. Scharf, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 8 de setembro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 98/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, relativa à proteção legal de desenhos e modelos (JO 1998, L 289, p. 28).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Monz Handelsgesellschaft International mbH & Co. KG (a seguir «Monz») à Büchel GmbH & Co. Fahrzeugtechnik KG (a seguir «Büchel»), a respeito de um pedido de declaração de nulidade de um desenho ou modelo nacional registado apresentado por esta última sociedade.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Diretiva 98/71

3        Nos termos do considerando 12 da Diretiva 98/71:

«[…] a proteção não deve abranger os componentes não visíveis durante a utilização normal do produto, nem as características invisíveis de um componente quando este se encontra montado, nem as que não satisfaçam elas próprias os requisitos de novidade e de caráter singular; […] as características do desenho ou modelo excluídas da proteção por estes motivos não devem ser tomadas em consideração para apreciar se outras características do desenho ou modelo preenchem os requisitos de proteção».

4        O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Definições», enuncia:

«Para efeitos do disposto na presente diretiva:

a)      “Desenho ou modelo” designa a aparência da totalidade ou de uma parte de um produto, resultante das características, nomeadamente de linhas, contornos, cores, forma, textura e/ou materiais do próprio produto e/ou da sua ornamentação;

b)      “Produto” designa qualquer artigo industrial ou de artesanato, incluindo, entre outros, os componentes para montagem de um produto complexo, as embalagens, os elementos de apresentação, os símbolos gráficos e os carateres tipográficos, mas excluindo os programas de computador;

c)      “Produto complexo” designa qualquer produto composto por componentes múltiplos suscetíveis de serem dele retirados para o desmontar e nele recolocados para o montar novamente.»

5        O artigo 3.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Condições de proteção», dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros protegerão desenhos e modelos mediante registo, conferindo aos seus titulares direitos exclusivos nos termos da presente diretiva.

2.      Um desenho ou modelo será protegido pelo registo na medida em que seja novo e possua caráter singular.

3.      Considera‑se que o desenho ou modelo que se aplica ou está incorporado num produto que constitua um componente de um produto complexo é novo e possui caráter singular:

a)      Se o componente, depois de incorporado no produto complexo, continuar visível durante a utilização normal deste último; e

b)      Na medida em que as próprias características visíveis desse componente preencham os requisitos de novidade e de caráter singular.

4.      Para efeitos do disposto na alínea a) do n.o 3, entende‑se por “utilização normal” a utilização pelo consumidor final, sem incluir as medidas de conservação, manutenção ou reparação.»

6        O artigo 5.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Caráter singular», prevê, no seu n.o 1:

«Considera‑se que um desenho ou modelo possui caráter singular se a impressão global que suscita no utilizador informado diferir da impressão global suscitada nesse utilizador por qualquer desenho ou modelo divulgado ao público antes da data do pedido de registo ou, se for reivindicada uma prioridade, antes da data de prioridade.»

 Regulamento (CE) n.o 6/2002

7        Os considerandos 9 e 12 do Regulamento (CE) n.o 6/2002 do Conselho, de 12 de dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários (JO 2002, L 3, p. 1), têm a seguinte redação:

«(9)      As disposições substantivas do presente regulamento sobre desenhos ou modelos deveriam ser alinhadas com as correspondentes disposições da Diretiva [98/71].

[…]

(12)      A proteção não deve ser extensiva aos componentes que não são visíveis durante a utilização normal do produto, nem às características invisíveis de um componente quando este se encontra montado, nem às características das peças que não satisfaçam, enquanto tal, os requisitos de novidade e de caráter singular. As características de um desenho ou modelo excluídas da proteção por estes motivos não deverão, portanto, ser tomadas em consideração ao apreciar se outras características do desenho ou modelo preenchem os requisitos para obtenção da proteção.»

8        O artigo 4.o deste regulamento, sob a epígrafe «Requisitos da proteção», dispõe:

«1.      Um desenho ou modelo será protegido enquanto desenho ou modelo comunitário na medida em que seja novo e possua caráter singular.

2.      Um desenho ou modelo aplicado ou incorporado num produto que constitua um componente de um produto complexo só é considerado novo e possuidor de caráter singular:

a)      Se o componente, depois de incorporado no produto complexo, continuar visível durante a utilização normal deste último, e

b)      Se as características visíveis do componente satisfizerem, enquanto tal, os requisitos de novidade e singularidade.

3.      “Utilização normal”, na aceção da alínea a) do n.o 2, designa o uso do produto pelo utilizador final, excluindo as medidas de conservação, manutenção ou reparação.»

 Direito alemão

9        O § 1, ponto 4, e o § 4 da Gesetz über den rechtlichen Schutz von Design (Lei relativa à Proteção dos Desenhos), de 24 de fevereiro de 2014 (BGBl. 2014 I, p. 122), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «DesignG»), transpõem o artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 98/71.

10      O § 1 da DesignG, sob a epígrafe «Definições», enuncia, no seu ponto 3, que um produto complexo é um produto composto por vários componentes que podem ser substituídos de modo que o produto possa ser desmontado e montado novamente. Segundo o ponto 4 deste § 1, a «utilização normal» é definida como a utilização pelo utilizador final, sem incluir as medidas de conservação, manutenção ou reparação.

11      O § 4 da DesignG, sob a epígrafe «Componentes de produtos complexos», dispõe que um desenho aplicado ou incorporado num produto que constitua um componente de um produto complexo só é considerado novo e possuidor de caráter singular se o componente, depois de incorporado no produto complexo, continuar visível durante a utilização normal deste último e se as características visíveis do componente preencherem, enquanto tal, os requisitos de novidade e de caráter singular.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12      A Monz, uma sociedade de direito alemão, é titular de um desenho ou modelo, registado desde 3 de novembro de 2011 no Deutsches Patent‑ und Markenamt (Instituto de Marcas e Patentes Alemão, Alemanha) (a seguir «DPMA»), para os produtos «selins para bicicletas ou motocicletas». Este desenho ou modelo está registado com uma representação única que apresenta a superfície inferior de um selim, do seguinte modo:

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13      Em 27 de julho de 2016, a Büchel, uma sociedade de direito alemão, pediu ao DPMA a declaração de nulidade do desenho ou modelo em causa no processo principal, alegando que não cumpria os requisitos exigidos para obter a proteção legal dos desenhos ou modelos ao abrigo do § 4 da DesignG. Sustentou, em especial, que esse desenho ou modelo aplicado a um selim, que é um componente de um produto complexo como uma «bicicleta» ou «motocicleta», não era visível durante uma utilização normal desse produto.

14      Por Decisão de 10 de agosto de 2018, o DPMA indeferiu este pedido de declaração de nulidade considerando que não existiam motivos para a exclusão da proteção do desenho ou modelo em causa no processo principal nos termos do § 4 da DesignG. Na sua opinião, embora seja verdade que o selim de bicicleta, sobre o qual é aplicado esse desenho ou modelo, é um «componente de um produto complexo», este componente permanece visível durante a utilização normal desse produto complexo. O DPMA considerou que uma utilização normal de tal produto abrange igualmente «o ato de desmontar e montar novamente o selim que não vise as medidas de conservação, manutenção ou reparação», figurando estes últimos numa lista exaustiva de utilizações excluídas deste conceito, na aceção do § 1, ponto 4, da DesignG.

15      Na sequência de um recurso dessa decisão, interposto pela Büchel, para o Bundespatentgericht (Tribunal Federal das Patentes, Alemanha), esse órgão jurisdicional declarou, por Decisão de 27 de fevereiro de 2020, a nulidade do desenho ou modelo em causa no processo principal com o fundamento de que não cumpria os requisitos de novidade e de caráter singular. Segundo o referido órgão jurisdicional, por força do § 4 da DesignG, apenas os componentes que permanecem «visíveis, enquanto componentes do produto complexo, após a sua montagem/incorporação no mesmo», podem, à partida, beneficiar da proteção legal dos desenhos ou modelos. Inversamente, não se pode considerar que um componente que só é visível em virtude de ou durante a sua separação de um produto complexo cumpre o requisito da visibilidade e não pode, portanto, beneficiar dessa proteção. Além disso, esse mesmo órgão jurisdicional considerou que a utilização normal, na aceção do § 1, ponto 4, da DesignG, consistia apenas no facto de andar de bicicleta e de subir ou descer da mesma. Ora, na sua opinião, no âmbito dessas utilizações, a parte inferior do selim não é visível nem para o consumidor final nem para um terceiro.

16      A Monz interpôs recurso dessa decisão para o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha), o órgão jurisdicional de reenvio. Esse órgão jurisdicional considera que a resolução do litígio no processo principal depende da interpretação dos conceitos de «visibilidade» e de «utilização normal», na aceção do artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 98/71.

17      O órgão jurisdicional de reenvio indica, antes de mais, que compartilha da opinião do Bundespatentgericht (Tribunal Federal das Patentes) segundo a qual, em aplicação da jurisprudência do Tribunal de Justiça, resultante nomeadamente do Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Acacia e D’Amato (C‑397/16 e C‑435/16, EU:C:2017:992, n.o 64), uma bicicleta constitui um produto complexo e o selim um componente desse produto.

18      Esse órgão jurisdicional considera que, para efeitos da resolução do litígio que lhe foi submetido, há que determinar, em primeiro lugar, se o requisito de «visibilidade» de um componente, uma vez incorporado no produto complexo, durante uma «utilização normal» desse produto, deve ser apreciado tendo em conta certas condições de utilização do referido produto ou certos ângulos de visão por parte do observador ou, pelo contrário, apenas a possibilidade objetiva de reconhecer o desenho ou modelo aplicado ao componente como incorporado no produto complexo.

19      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio expõe, por um lado, que o Bundespatentgericht (Tribunal Federal das Patentes) concluiu que é necessário que o componente continue visível para o utilizador final ou para um terceiro, no âmbito da utilização normal pelo utilizador final do produto complexo no qual esse componente está incorporado. Por outro lado, a recorrente no processo principal sustentou que, para que o desenho ou modelo possa ser protegido, basta que possa ser identificado quando o componente sobre o qual é aplicado está integrado no produto complexo. Por conseguinte, não é pertinente saber se o desenho ou modelo pode ser facilmente observado a partir de uma «perspetiva» específica.

20      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a interpretação do artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 98/71, considerando que o objeto destas disposições não pode ser claramente deduzido desta diretiva.

21      Esse órgão jurisdicional entende, nomeadamente, que a consideração segundo a qual um produtor que não vê interesse em apresentar de maneira visível um desenho ou modelo não tem interesse em invocar a proteção desse desenho ou modelo é demasiado redutora, dado que não há obrigatoriamente identidade entre o titular do desenho ou modelo, o produtor do componente e o produtor do produto complexo.

22      Por outro lado, observa que, segundo a doutrina, esta disposição é contrária ao princípio segundo o qual a aptidão para poder beneficiar da proteção legal dos desenhos ou modelos já deve ser estabelecida no momento do registo do desenho ou modelo em causa.

23      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, estas considerações militam a favor de uma interpretação estrita do artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 98/71.

24      No entanto, esse órgão jurisdicional considera que, embora o significado do termo «visível» na linguagem corrente sugira uma compreensão objetiva que remete para a possibilidade de perceber uma coisa, não se pode deduzir da expressão «utilização normal» que formas especiais de observação do produto complexo sejam excluídas.

25      Em segundo lugar, importa determinar os critérios que são pertinentes para efeitos da apreciação da «utilização normal» de um produto complexo pelo utilizador final, na aceção do artigo 3.o, n.o 4, desta diretiva.

26      A este respeito, coloca‑se, em especial, a questão de saber se, no âmbito dessa apreciação, há que ter em conta a utilização pretendida pelo produtor do componente ou do produto complexo ou apenas a utilização habitual do produto complexo pelo utilizador final.

27      O órgão jurisdicional de reenvio considera que a definição do conceito de «utilização normal», que figura no artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71, pode ser entendida no sentido de que, para o legislador da União, qualquer utilização do produto complexo pelo utilizador final é, em princípio, uma utilização normal, sob reserva das exceções referidas nesta disposição.

28      Quanto ao critério da utilização pretendida pelo produtor do componente ou do produto complexo, esse órgão jurisdicional indica que a sua aplicação permite, em seu entender, evitar a exclusão da proteção legal dos desenhos ou modelos, uma vez que a utilização do produto complexo pelos utilizadores finais não é pertinente, recordando ao mesmo tempo as suas reservas relativamente a esse critério, mencionadas no n.o 21 do presente acórdão.

29      Em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se apenas a utilização principal do produto complexo é determinante ou se, eventualmente, devem ser tidas em conta outras utilizações desse produto.

30      A este respeito, defende uma interpretação ampla do artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71, para minimizar os efeitos do artigo 3.o, n.o 3, desta diretiva, considerado pela doutrina contrário à lógica do sistema de proteção dos desenhos ou modelos, e evitar uma maior desigualdade de tratamento entre os titulares de desenhos ou modelos que abrangem componentes de produtos complexos e os titulares de outros desenhos ou modelos.

31      Nestas condições, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Entende‑se que um componente que incorpora um desenho é “visível”, na aceção do artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva [98/71], se for objetivamente possível reconhecer o desenho quando o componente está instalado ou é necessário que seja visível em determinadas condições de utilização ou de uma determinada perspetiva do observador?

2)      Se a resposta à primeira questão prejudicial for no sentido de que é determinante a visibilidade em determinadas condições de utilização ou de uma determinada perspetiva do observador:

a)      Para efeitos de apreciação da “utilização normal” de um produto complexo pelo consumidor final, na aceção dos n.os 3 e 4 do artigo 3.o, da Diretiva [98/71], a finalidade da utilização pretendida pelo fabricante do componente ou do produto complexo ou a utilização habitual do produto complexo pelo consumidor final são relevantes?

b)      À luz de que critérios deve ser apreciado se a utilização de um produto complexo pelo consumidor final é “normal”, na aceção do artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva [98/71]?»

 Quanto às questões prejudiciais

32      Com as suas duas questões, que importa analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, por um lado, se o artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 98/71 deve ser interpretado no sentido de que o requisito de «visibilidade», previsto nesta disposição, para que um desenho ou modelo aplicado a um produto ou incorporado num produto que constitui um componente de um produto complexo possa beneficiar da proteção legal dos desenhos ou modelos, deve ser apreciado em função de determinados requisitos de utilização desse produto complexo ou apenas da possibilidade objetiva de reconhecer o desenho ou modelo aplicado ao componente como incorporado no produto complexo e, por outro, quais os critérios pertinentes para caracterizar a «utilização normal» de um produto complexo pelo utilizador final.

33      Estas questões são submetidas no âmbito de um litígio resultante do pedido apresentado pela Büchel destinado a obter a anulação do desenho ou modelo em causa no processo principal pelo facto de este não poder beneficiar da proteção legal dos desenhos ou modelos, uma vez que o selim, enquanto componente de um produto complexo como a «bicicleta» ou a «motocicleta», não é visível em caso de utilização normal desse produto complexo.

34      Antes de mais, há que observar que, no caso em apreço, o selim de uma bicicleta ou de uma motocicleta constitui um componente de um produto complexo, na aceção do artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71, constituindo uma bicicleta ou uma motocicleta, em si mesmos, um produto complexo, na aceção do artigo 1.o, alínea c), desta diretiva. Com efeito, um selim é suscetível de ser retirado da bicicleta ou motocicleta para a desmontar e ser nela recolocado e, na sua ausência, este produto complexo não pode ser objeto de uma utilização normal (v., por analogia, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Acacia e D’Amato, C‑397/16 e C‑435/16, EU:C:2017:992, n.os 64 a 66).

35      Importa recordar, em primeiro lugar, que, nos termos do artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71, lido à luz do seu considerando 12, um desenho ou modelo que se aplica ou está incorporado num produto que constitua um componente de um produto complexo é novo e possui caráter singular se o componente, depois de incorporado no produto complexo, continuar visível durante a utilização normal deste último [alínea a)] e na medida em que as próprias características visíveis desse componente preencham os requisitos de novidade e de caráter singular [alínea b)].

36      O artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71 estabelece, assim, uma regra especial que incide especificamente sobre os desenhos ou modelos que se aplicam a um produto ou estão incorporados num produto que constitua um componente de um produto complexo, na aceção do artigo 1.o, alínea c), da Diretiva 98/71.

37      Em seguida, importa recordar que, em conformidade com o artigo 1.o, alínea a), da Diretiva 98/71, é a aparência da totalidade ou de uma parte de um produto que é objeto da proteção legal de desenhos ou modelos nos termos desta diretiva.

38      No contexto da proteção de desenhos ou modelos prevista pelo Regulamento n.o 6/2002, o Tribunal de Justiça já declarou que a aparência constitui o elemento determinante de um desenho ou modelo e que o facto de uma característica de um desenho ou modelo ser visível constitui um requisito essencial para essa proteção (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de setembro de 2017, Easy Sanitary Solutions e EUIPO/Group Nivelles, C‑361/15 P e C‑405/15 P, EU:C:2017:720, n.os 62 e 63, e de 28 de outubro de 2021, Ferrari, C‑123/20, EU:C:2021:889, n.o 30).

39      No que se refere, em especial, aos desenhos ou modelos incorporados num produto que constitui um componente de um produto complexo, o Tribunal de Justiça precisou que, para que a aparência do componente de um produto complexo seja suscetível de proteção enquanto desenho ou modelo, deve, por definição, ser visível e delimitada por características que constituem a sua aparência específica, a saber, através de linhas, contornos, cores, formas ou ainda uma textura específica. Isto pressupõe que a aparência desse componente não se possa fundir completamente no produto de conjunto (v., neste sentido, Acórdão de 28 de outubro de 2021, Ferrari, C‑123/20, EU:C:2021:889, n.os 49 e 50).

40      A este respeito, há que considerar que estes mesmos princípios são aplicáveis ao sistema de proteção dos desenhos ou modelos, previsto na Diretiva 98/71.

41      Assim, o artigo 3.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 98/71 exige que, para que um componente, incorporado num produto complexo, possa beneficiar da proteção enquanto desenho ou modelo, este deve continuar visível durante a utilização normal desse produto. Além disso, em conformidade com o considerando 12 desta diretiva, a proteção não deve abranger os componentes não visíveis durante a utilização normal do produto, nem as características invisíveis de um componente quando este se encontra montado, nem as que não satisfaçam elas próprias os requisitos de novidade e de caráter singular.

42      Esta limitação da proteção legal dos desenhos ou modelos às características visíveis do componente em causa explica‑se pelo facto de a aparência deste componente decorrer exclusivamente dos mesmos.

43      Esta interpretação é corroborada pela sistemática da Diretiva 98/71, bem como pelo objetivo prosseguido pelo seu artigo 3.o, n.o 3. Com efeito, a proteção de um desenho ou modelo nos termos desta diretiva só é válida para as características que determinam a aparência de um produto ou de uma parte de um produto. Um componente visível contribui necessariamente para a aparência do produto complexo (v., por analogia, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Acacia e D’Amato, C‑397/16 e C‑435/16, EU:C:2017:992, n.o 73).

44      Além disso, resulta claramente da redação do artigo 3.o, n.o 3, alínea a), da Diretiva 98/71 que, para beneficiar da proteção legal dos desenhos ou modelos, o componente, depois de incorporado no produto complexo, deve continuar visível «durante uma utilização normal» desse produto.

45      Daqui resulta que uma avaliação in abstracto da visibilidade do componente incorporado num produto complexo, sem ligação com qualquer situação concreta de utilização desse produto, não basta para que esse componente possa beneficiar da proteção a título de desenhos ou modelos ao abrigo da Diretiva 98/71. A este respeito, há que precisar que o artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71 não exige, todavia, que um componente que está incorporado num produto complexo continue visível na totalidade em cada momento da utilização do produto complexo.

46      Com efeito, como sublinhou o advogado‑geral nos n.os 33 e 34 das suas conclusões, a visibilidade de um componente incorporado num produto complexo, na aceção do artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 98/71, lido em conjugação com o seu artigo 3.o, n.o 4, não pode ser apreciada unicamente do ponto de vista do utilizador final desse produto. A este respeito, a visibilidade desse componente para um observador externo também deve ser tida em conta.

47      Em segundo lugar, há que recordar que, nos termos do artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71, o conceito de «utilização normal» de um produto complexo é definido como «a utilização pelo consumidor final, sem incluir as medidas de conservação, manutenção ou reparação». Segundo esta definição, a «utilização normal» corresponde à utilização pelo utilizador final. São expressamente excluídas as utilizações pelo utilizador final abrangidas pelas medidas de conservação, manutenção ou reparação do produto complexo.

48      A este respeito, há que determinar se o conceito de «utilização normal» de um produto pelo utilizador final, na aceção do artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71, corresponde à utilização pretendida pelo produtor ou pelo criador do componente, à pretendida pelo produtor ou pelo criador do produto complexo ou à utilização habitual do produto complexo pelo utilizador final.

49      No que se refere, em primeiro lugar, à questão de saber se a «utilização normal» de um produto complexo corresponde à utilização pretendida pelo produtor do componente, à pretendida pelo produtor do produto complexo ou à utilização habitual desse produto pelo utilizador final, há que observar desde já que, em conformidade com os termos do artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71, esta disposição visa a «utilização normal» do produto complexo pelo utilizador final.

50      A este respeito, embora a versão em língua alemã do artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 98/71 adote como critério da visibilidade de um componente incorporado num produto complexo a «utilização normal» («bestimmungsgemäße Verwendung»), outras versões linguísticas dessas mesmas disposições, como as versões em línguas inglesa («normal use»), francesa («utilisation normale»), italiana («la normale utilizzazione»), espanhola («la utilización normal») ou neerlandesa («normaal gebruik»), indicam que o componente incorporado num produto complexo deve continuar visível durante a utilização «normal» ou «habitual» desse produto.

51      Há que salientar que, como sublinhou, em substância, a Comissão Europeia nas suas observações escritas, a utilização normal ou habitual de um produto complexo pelo utilizador final corresponde, regra geral, a uma utilização normal do produto complexo pretendida pelo produtor ou pelo criador deste.

52      Dito isto, como salientou, em substância, a Comissão, no que respeita ao conceito de «utilização normal», o legislador da União pretendeu referir‑se à utilização habitual do produto complexo pelo utilizador final, para excluir uma utilização deste produto noutras fases comerciais e evitar, assim, que o requisito da visibilidade seja contornado. Por conseguinte, a apreciação da «utilização normal» de um produto complexo, na aceção do artigo 3.o, n.o 3, alínea a), e n.o 4, da Diretiva 98/71, não se pode basear unicamente na intenção do produtor do componente ou do produto complexo.

53      No que respeita, em segundo lugar, à questão de saber que utilização de um produto complexo pelo utilizador final constitui uma «utilização normal», na aceção do artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71, há que salientar desde já que o facto de esta disposição não precisar que tipo de utilização desse produto é abrangida por este conceito e se referir, de maneira geral, à utilização desse produto pelo utilizador final, milita a favor de uma interpretação ampla do referido conceito.

54      A este respeito, como salientou o advogado‑geral no n.o 38 das suas conclusões, na prática, a utilização de um produto na sua função principal exige frequentemente vários atos que podem ser praticados antes ou depois de o produto ter cumprido essa função principal, como o seu armazenamento e transporte. Por conseguinte, há que considerar que a «utilização normal» de um produto complexo, na aceção do artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 98/71, abrange todos estes atos, com exceção dos que são expressamente excluídos pelo referido n.o 4, a saber, os atos relativos às medidas de conservação, manutenção ou reparação.

55      O conceito de «utilização normal», na aceção do artigo 3.o, n.o 4, da Diretiva 98/71 deve, consequentemente, abranger os atos relativos à utilização habitual de um produto, bem como outros atos que possam ser razoavelmente praticados durante essa utilização e que são habituais do ponto de vista do utilizador final, incluindo os que podem ser realizados antes ou depois de o produto ter cumprido a sua função principal, como o seu armazenamento e transporte.

56      Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 98/71 deve ser interpretado no sentido de que o requisito de «visibilidade», previsto nesta disposição, para que um desenho ou modelo aplicado a um produto ou incorporado num produto que constitui um componente de um produto complexo possa beneficiar da proteção legal dos desenhos ou modelos deve ser apreciado à luz de uma situação de utilização normal desse produto complexo, de modo que o componente em causa, uma vez incorporado no referido produto, continue visível durante essa utilização. Para este efeito, a visibilidade de um componente de um produto complexo durante a sua «utilização normal» pelo utilizador final deve ser apreciada do ponto de vista desse utilizador e de um observador externo, devendo essa utilização normal abranger os atos praticados durante a utilização principal de um produto complexo e os que devem ser habitualmente praticados pelo utilizador final no âmbito dessa utilização, sem incluir as medidas de conservação, manutenção ou reparação.

 Quanto às despesas

57      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

O artigo 3.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 98/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, relativa à proteção legal de desenhos e modelos,

deve ser interpretado no sentido de que:

o requisito de «visibilidade», previsto nesta disposição, para que um desenho ou modelo aplicado a um produto ou incorporado num produto que constitui um componente de um produto complexo possa beneficiar da proteção legal dos desenhos ou modelos deve ser apreciado à luz de uma situação de utilização normal desse produto complexo, de modo que o componente em causa, uma vez incorporado no referido produto, continue visível durante essa utilização. Para este efeito, a visibilidade de um componente de um produto complexo durante a sua «utilização normal» pelo utilizador final deve ser apreciada do ponto de vista desse utilizador e de um observador externo, devendo essa utilização normal abranger os atos praticados durante a utilização principal de um produto complexo e os que devem ser habitualmente praticados pelo utilizador final no âmbito dessa utilização, sem incluir as medidas de conservação, manutenção ou reparação.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.