Language of document : ECLI:EU:T:2021:763

(Processo T-612/17)

Google LLC, anteriormente Google Inc. e Alphabet, Inc.

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Nona Secção Alargada) de 10 de novembro de 2021

«Concorrência – Abuso de posição dominante – Pesquisa geral e pesquisa especializada de produtos na Internet – Decisão que declara uma infração ao artigo 102.º TFUE e ao artigo 54.º do Acordo EEE – Abuso por efeito de alavanca – Concorrência pelo mérito ou prática anticoncorrencial – Condições de acesso dos concorrentes a um serviço de uma empresa dominante cuja utilização não pode ser efetivamente substituída – Apresentação favorecida pela empresa dominante dos resultados do seu próprio serviço de pesquisa especializada – Efeitos – Necessidade de demonstrar um cenário contrafactual – Inexistência – Justificações objetivas – Inexistência – Possibilidade de aplicar uma coima em face de certas circunstâncias – Orientações para o cálculo do montante das coimas – Competência de plena jurisdição»

1.      Recurso de anulação – Fiscalização da legalidade – Critérios – Decisões adotadas pela Comissão em matéria de concorrência – Elementos a ter em consideração – Elementos anteriores e posteriores à decisão recorrida – Elementos apresentados no procedimento administrativo ou apresentados pela primeira vez no recurso de anulação – Inclusão

(Artigos 101.º, 102.º, 261.º e 263.º TFUE)

(cf. n.os 129-131)

2.      Direito da União Europeia – Princípios – Direitos fundamentais – Presunção de inocência – Processo em matéria de concorrência – Aplicabilidade

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 48.°, n.° 1)

(cf. n.º 132)

3.      Concorrência – Procedimento administrativo – Decisão da Comissão que declara a existência de uma infração – Prova da infração e da respetiva duração a cargo da Comissão – Alcance do ónus probatório – Decisão que se baseia em provas suficientes para demonstrar a existência da infração – Ónus probatório das empresas que impugnam a realidade da infração

(Artigo 102.º TFUE)

(cf. n.os 133, 134)

4.      Recurso de anulação – Competência do juiz da União – Interpretação da fundamentação de um ato administrativo – Limites

(Artigos 263.º e 264.º TFUE)

(cf. n.º 135)

5.      Posição dominante – Abuso – Conceito – Conceito objetivo que visa os comportamentos suscetíveis de influenciar a estrutura do mercado e que têm por efeito criar obstáculos à manutenção ou ao desenvolvimento da concorrência – Obrigações que incumbem à empresa dominante – Exercício da concorrência unicamente pelo mérito

(Artigo 102.º TFUE)

(cf. n.os 150-157)

6.      Posição dominante – Abuso – Efeito de alavanca – Posição dominante no mercado da pesquisa geral na Internet – Práticas que favorecem o comparador de produtos da empresa em posição dominante e que desfavorecem os comparadores de produtos concorrentes – Caráter abusivo – Critério de apreciação – Práticas que constituem uma melhoria qualitativa que se integram na concorrência pelo mérito – Inexistência – Prática em linha com o caráter aberto da infraestrutura na base do motor de busca geral – Inexistência

(Artigo 102.º TFUE)

(cf. n.os 158-189, 193-197)

7.      Processo jurisdicional – Intervenção – Fundamento não invocado pelo recorrente – Inadmissibilidade

(Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 40.º, quarto parágrafo, e 53.º, primeiro parágrafo; Regulamento de Processo do Tribunal Geral, artigo 142.º, n.º 3)

(cf. n.os 191, 192)

8.      Posição dominante – Abuso – Efeito de alavanca – Posição dominante no mercado da pesquisa geral na Internet – Práticas que favorecem o comparador de produtos da empresa em posição dominante e que desfavorecem os comparadores de produtos concorrentes – Abuso diferente da recusa de fornecimento

(Artigo 102.º TFUE)

(cf. n.os 212-249, 285, 287, 290, 292, 314, 315, 351)

9.      Posição dominante – Abuso – Conceito – Conceito objetivo que visa os comportamentos suscetíveis de influenciar a estrutura do mercado e que tem por efeito criar obstáculos à manutenção ou ao desenvolvimento da concorrência – Necessidade de demonstrar a existência de uma intenção anticoncorrencial – Inexistência

(Artigo 102.º TFUE)

(cf. n.os 55, 257, 262)

10.    Posição dominante – Abuso – Efeito anticoncorrencial – Posição dominante no mercado da pesquisa geral na Internet – Práticas que favorecem o comparador de produtos da empresa em posição dominante e que desfavorecem os comparadores de produtos concorrentes – Práticas suscetíveis de ter efeitos anticoncorrenciais no mercado – Necessidade de estabelecer um cenário contrafactual – Inexistência

(Artigo 102.º TFUE)

(cf. n.os 369, 372, 373, 376-378, 419)

11.    Posição dominante – Abuso – Efeito anticoncorrencial – Ónus da prova da Comissão – Caráter suficiente de um efeito potencial – Posição dominante no mercado da pesquisa geral na Internet – Práticas que favorecem o comparador de produtos da empresa em posição dominante e que desfavorecem os comparadores de produtos concorrentes – Impacto nos mercados em causa – Baixa global de tráfego a partir das páginas de resultados gerais da empresa dominante para os comparadores de produtos concorrentes – Comportamento da empresa dominante que diz respeito a uma única categoria dos seus concorrentes – Irrelevância – Obrigação de utilizar o critério do concorrente igualmente eficaz – Inexistência

(Artigo 102.º TFUE)

(cf. n.os 382-394, 406, 414, 417, 438-443, 454, 501, 504-506, 523, 537, 538, 541)

12.    Posição dominante – Mercado em questão – Delimitação – Mercado bifacetado – Critérios de apreciação – Mercado da pesquisa especializada de comparação de produtos na Internet, que agrupa as comparações de produtos sem incluir as plataformas comerciais – Serviços que respondem a utilizações diferentes

(Artigo 102.° TFUE; Comunicação da Comissão 97/C 372/03)

(cf. n.os 466-495)

13.    Posição dominante – Abuso – Posição dominante no mercado da pesquisa geral na Internet – Práticas que favorecem o comparador de produtos da empresa em posição dominante e que desfavorecem os comparadores de produtos concorrentes – Justificação objetiva – Ónus da prova

(Artigo 102.º TFUE)

(cf. n.os 551-555, 560-567)

14.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Poder de apreciação da Comissão – Fiscalização jurisdicional – Competência de plena jurisdição do juiz da União – Alcance

(Artigos 101.º, 261.º e 263.º TFUE; Regulamento n.º 1/2003 do Conselho, artigo 31.º; Comunicação 2006/C 210/02 da Comissão)

(cf. n.º 605)

15.    Concorrência – Regras da União – Infrações – Realização deliberada ou por negligência – Conceito – Empresa que não pode ignorar o caráter anticoncorrencial do seu comportamento – Inexistência de decisão anterior da Comissão relativa a uma infração semelhante – Irrelevância

(Artigo 101.° TFUE. Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.º 2)

(cf. n.os 608, 616, 618)

16.    Concorrência – Procedimento administrativo – Decisão da Comissão que declara a existência de uma infração – Inexistência de decisão anterior da Comissão relativa a uma infração semelhante – Violação do princípio da legalidade dos crimes e das penas – Inexistência – Admissão pela Comissão da possibilidade de aceitar compromissos da empresa em causa antes de proceder à declaração da infração – Irrelevância – Violação do princípio da confiança legítima – Inexistência

(Artigo 101.° TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 49.°; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 23.°, n.° 2)

(cf. n.os 619, 628-630, 634, 636-639)


Resumo

O Tribunal Geral nega provimento, no essencial, ao recurso interposto pela Google da decisão da Comissão que declara que a empresa abusou da sua posição dominante ao favorecer o seu próprio comparador de produtos em relação aos comparadores de produtos concorrentes.

O Tribunal Geral confirma a coima de 2 420 milhões de euros aplicada à Google

Por Decisão de 27 de junho de 2017 (1), a Comissão Europeia declarou que, em treze países do Espaço Económico Europeu (EEE), a Google LLC abusou da sua posição dominante detida no mercado da pesquisa geral na Internet ao favorecer o seu próprio comparador de produtos, um serviço de pesquisa especializada, relativamente aos comparadores de produtos concorrentes (2).

Por um lado, a Comissão considerou que os resultados de uma pesquisa de produtos lançada a partir do motor de busca geral da Google estavam posicionados e apresentados de forma mais atrativa quando se tratava dos próprios resultados do comparador de produtos da Google do que nos resultados oriundos dos comparadores de produtos concorrentes. Por outro lado, estes últimos, que apareciam como simples resultados genéricos (apresentados sob a forma de ligações em azul), eram, por esse facto, suscetíveis de ser apresentados numa posição mais baixa por algoritmos de ajustamento nas páginas de resultados gerais, contrariamente aos resultados do comparador de produtos da Google. Deste modo, a Google reduziu, em substância, o tráfego proveniente das suas páginas de resultados gerais para os comparadores de produtos concorrentes, aumentando esse tráfego para o seu próprio comparador de produtos (a seguir «prática controvertida»).

Segundo a Comissão, esta prática tinha produzido efeitos anticoncorrenciais tanto nos treze mercados nacionais da pesquisa especializada para a comparação de produtos como nos treze mercados nacionais da pesquisa geral.

Concluindo assim por uma violação da proibição de abuso de posição dominante prevista no artigo 102.º TFUE e no artigo 54.º do Acordo EEE, a Comissão aplicou à Google uma coima no montante de 2 424 495 000 EUR, dos quais 523 518 000 EUR solidariamente com a Alphabet, Inc., a sua sociedade-mãe.

O Tribunal Geral nega provimento, no essencial, ao recurso interposto desta decisão pela Google e pela Alphabet, confirmando igualmente o montante da coima aplicada pela Comissão.

Apreciação do Tribunal Geral

No que respeita, em primeiro lugar, ao caráter anticoncorrencial da prática controvertida, o Tribunal Geral considera que a mera declaração da existência de uma posição dominante de uma empresa, ainda que da dimensão da Google, não implica, por si só, nenhuma censura à empresa em causa, mesmo que esta última pretenda estender-se a um mercado vizinho. Com efeito, é a «exploração abusiva» de uma posição dominante que o artigo 102.º TFUE proíbe. A responsabilidade especial que, neste contexto, impende sobre uma empresa dominante deve ser apreciada à luz das circunstâncias específicas de cada caso que demonstrem um enfraquecimento da concorrência.

Ora, tendo em conta a importância do tráfego gerado pelo motor de busca geral da Google para os comparadores de produtos, o comportamento dos utilizadores que se focalizam em geral nos primeiros resultados, bem como a grande proporção e o caráter não efetivamente substituível do tráfego «desviado», o Tribunal Geral considera que a prática controvertida constitui, com efeito, uma diferença de tratamento que se afasta da concorrência pelo mérito e pode conduzir a um enfraquecimento da concorrência no mercado, suscetível de ser contrária ao artigo 102.º TFUE.

Neste contexto, o Tribunal Geral sublinha que, tendo em conta a vocação universal do motor de busca geral da Google, concebido para indexar resultados que compreendem todos os conteúdos possíveis, a promoção, nas suas páginas de resultados gerais, de um único tipo de resultados especializados, a saber, os seus, reveste uma certa forma de anomalia.

O Tribunal Geral refere ainda que, embora a página de resultados gerais da Google apresente características que a aproximam de «uma facilidade essencial», no sentido de serviço indispensável para o qual não existe nenhum substituto real ou potencial, a prática controvertida distingue-se, nos seus elementos constitutivos, da recusa de fornecimento de uma facilidade essencial. Por este motivo, a análise desenvolvida pelo Tribunal de Justiça no seu Acórdão Bronner (3) relativamente a essa recusa não pode ser aplicada no caso presente.

Por último, o Tribunal Geral observa que, como o tratamento diferenciado aplicado pela Google opera em função da origem dos resultados, a saber, consoante provenham do seu próprio comparador ou dos comparadores concorrentes, daí decorre que os resultados dos comparadores concorrentes nunca podem beneficiar de um tratamento semelhante ao dos resultados do comparador Google no que respeita ao seu posicionamento e à sua apresentação. Assim, a Google favorece o seu próprio comparador relativamente aos comparadores concorrentes e não o melhor dos resultados.

Em segundo lugar, quanto aos efeitos anticoncorrenciais gerados pela prática controvertida, o Tribunal Geral recorda que existe um abuso de posição dominante quando a empresa dominante, recorrendo a meios diferentes dos que regem uma competição normal, obsta à manutenção do grau de concorrência ou ao desenvolvimento desta. Neste contexto, para demonstrar uma infração ao artigo 102.º TFUE, a Comissão não tem que demonstrar que as práticas em causa tiveram efeitos reais de exclusão, sendo suficiente a prova da existência de efeitos potenciais.

A este respeito, o Tribunal Geral confirma a conclusão da Comissão de que a prática controvertida podia gerar efeitos potencialmente anticoncorrenciais no mercado da pesquisa especializada para a comparação de produtos. A Comissão tinha, mais especificamente, demonstrado, por um lado, que existiam efeitos concretos no tráfego resultante das páginas de resultados gerais da Google em detrimento dos comparadores de produtos concorrentes e em benefício do comparador de produtos da Google e, por outro, que o tráfego de comparadores de produtos concorrentes resultante dessas páginas representava uma grande parte do seu tráfego total e não podia ser efetivamente substituído por outras fontes, como a publicidade («AdWords») ou as aplicações móveis, pelo que a prática controvertida podia levar ao desaparecimento de concorrentes, a uma baixa da inovação no mercado e a uma menor escolha para os consumidores, elementos característicos de um enfraquecimento da concorrência.

Em contrapartida, o Tribunal Geral considera que a Comissão não demonstrou que o comportamento controvertido da Google tivera efeitos anticoncorrenciais, ainda que potenciais, no mercado da pesquisa geral e anula, consequentemente, a declaração de infração apenas para esse mercado.

No que respeita aos efeitos potencialmente anticoncorrenciais no mercado da pesquisa especializada para a comparação de produtos, o Tribunal Geral rejeita, por outro lado, o argumento da Google de que a concorrência se manteve viva devido à presença das plataformas comerciais nesse mercado, confirmando a análise da Comissão segundo a qual essas plataformas não têm atividade no mesmo mercado.

As justificações invocadas pela Google para impugnar o caráter abusivo do seu comportamento são igualmente rejeitadas pelo Tribunal Geral. A este respeito, refere que, embora os algoritmos de classificação dos resultados genéricos ou os critérios de posicionamento e de apresentação dos resultados especializados para os produtos da Google possam, enquanto tais, representar aperfeiçoamentos do seu serviço com um teor pró-concorrencial, isso não justifica a prática controvertida, a saber, uma desigualdade de tratamento entre os resultados do comparador de produtos da Google e os dos comparadores de produtos concorrentes. Além disso, a Google não demonstrou ganhos de eficiência ligados a esta prática que compensassem os seus efeitos negativos para a concorrência.

No termo de uma nova apreciação da infração, o Tribunal Geral confirma, por último, o montante da coima aplicada pela Comissão, não deixando de rejeitar os argumentos da Google relativos ao facto de o comportamento controvertido ter sido analisado pela primeira vez pela Comissão à luz das normas da concorrência e que, na fase do procedimento, aceitou tentar resolver o caso através de compromissos.

Procedendo a uma apreciação própria dos factos com vista a determinar o nível da sanção, o Tribunal Geral observa, por um lado, que a anulação parcial da decisão impugnada no que respeita ao mercado da pesquisa geral não tem impacto no montante da coima, uma vez que a Comissão não teve em conta o valor das vendas nesse mercado para determinar o montante de base da coima aplicada. Por outro lado, o Tribunal sublinha que, embora tenha em conta que o abuso não foi demonstrado no mercado da pesquisa geral, toma igualmente em consideração o facto de o comportamento controvertido constituir uma infração particularmente grave e ter sido adotado de forma deliberada e não por negligência.

No termo desta análise, o Tribunal Geral confirma o montante da sanção pecuniária aplicada à Google.


1      Decisão C(2017) 4444 final da Comissão, de 27 de junho de 2017, relativa a um processo nos termos do artigo 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e do artigo 54.º do Acordo EEE [Processo AT.39740 — Google Search (Shopping)].


2      Bélgica, República Checa, Dinamarca, Alemanha, Espanha, França, Itália, Países Baixos, Áustria, Polónia, Suécia, Reino Unido e Noruega.


3      Acórdão de 26 de novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, EU:C:1998:569).