Language of document : ECLI:EU:C:2012:440

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

12 de julho de 2012 (*)

«Artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE — Liberdade de estabelecimento — Princípios da equivalência e da efetividade — Transformação transfronteiriça — Recusa da inscrição no registo»

No processo C‑378/10,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Legfelsőbb Bíróság (Hungria), por decisão de 17 de junho de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 28 de julho de 2010, no âmbito de um pedido de inscrição no registo comercial apresentado por

VALE Építési kft

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, J. Malenovský, R. Silva de Lapuerta, G. Arestis e T. von Danwitz (relator), juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: A. Impellizzeri, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 14 de setembro de 2011,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da VALE Építési kft, por P. Metzinger, ügyvéd,

¾        em representação do Governo húngaro, por Z. Fehér, K. Szíjjártó e K. Veres, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Kemper, na qualidade de agentes,

¾        em representação da Irlanda, por D. O’Hagan, na qualidade de agente, assitido por M. Collins, SC, B. Doherty, BL, J. Buttimore, BL, e L. Williams,

¾        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por S. Fiorentino, avvocato dello Stato,

¾        em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo do Reino Unido, por S. Hathaway e H. Walker, na qualidade de agentes, assistidos por K. Beal, barrister,

¾        em representação da Comissão Europeia, por G. Braun, A. Sipos e K. Talabér‑Ritz, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Órgão de Fiscalização da EFTA, por X. Lewis e F. Simonetti, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 15 de dezembro de 2011,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial, que tem por objeto a interpretação dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE, foi apresentado no âmbito de um litígio respeitante à transformação transfronteiriça de uma sociedade de direito italiano em sociedade de direito húngaro.

 Direito nacional

2        A Lei n.° V de 2006, relativa à publicidade das sociedades, ao procedimento judicial de registo das sociedades e à sua liquidação voluntária (A cégnyilvánosságról, a bírósági cégeljárásról és a végelszámolásról szóló 2006. évi V. törvény), dispõe no seu artigo 25.°:

«1)      Conforme necessário, a inscrição no registo mencionará, relativamente a todas as sociedades:

[…]

g)      a denominação social e o número de registo da(s) sua(s) antecessora(s) e da(s) sua(s) sucessora(s) jurídica(s), bem como, quando a sociedade tenha decidido a sua transformação, a data que fixou para tal;

[…]»

3        O artigo 57.°, n.° 4, desta lei dispõe:

«O tribunal das sociedades do foro da sede da antecessora jurídica decide sobre a alteração da forma da sociedade. O referido tribunal cancelará a inscrição da antecessora jurídica — com indicação da sua sucessora jurídica — e procederá à inscrição da sociedade sucessora no registo comercial. Este tribunal decide se há que comunicar os documentos sociais ao tribunal das sociedades do foro da sede da sucessora jurídica.»

4        A Lei n.° IV de 2006, relativa às sociedades comerciais (A gazdasági társaságokról szóló 2006. évi IV. törvény, a seguir «lei das sociedades comerciais»), prevê no seu artigo 69.°, n.° 1:

«Salvo disposição em contrário da presente lei, as normas que regem a constituição de uma sociedade comercial são também aplicáveis à sua transformação. São igualmente aplicáveis as disposições da presente lei em matéria de transformação que constam das normas que regem cada uma das formas de sociedade.»

5        Nos termos do artigo 71.° desta lei:

«1)      Salvo estipulação em contrário do contrato de sociedade, o órgão supremo da sociedade comercial toma, relativamente à transformação, uma decisão em duas fases. […]

2)      […] [O] órgão, na primeira fase, aprecia, com base numa proposta dos quadros dirigentes — após consulta do comité de fiscalização, caso a sociedade disponha de tal comité –, se os associados (acionistas) da sociedade aprovam a intenção de transformá‑la, e depois decide sobre a forma jurídica da sociedade que será alvo da transformação e identifica os associados (acionistas) da sociedade que desejam tornar‑se associados (acionistas) desta.

3)       Se a intenção de transformar a sociedade comercial for aprovada pelos seus associados (acionistas) pela maioria exigida para a forma da sociedade em questão, o órgão supremo determina a data de referência dos balanços, designa o revisor oficial de contas e encarrega os quadros dirigentes da sociedade de preparar os projetos de balanço e os projetos de inventário subjacentes aos ativos, bem como todos os outros documentos necessários para a tomada da decisão de transformação, quer sejam requeridos pela lei ou pelo órgão supremo.

4)      Os quadros dirigentes preparam os projetos de balanço e de inventário dos ativos da sociedade a transformar, os projetos de balanço e de inventário dos ativos (iniciais) da sociedade que resultará da transformação, o projeto de contrato de sociedade desta, bem como um projeto de acordo com as pessoas que não desejam tornar‑se associadas (acionistas) da sociedade que resultará da transformação.

[…]»

6        O artigo 73.° da lei das sociedades comerciais contém disposições sobre a redação do projeto de balanço e o seu controlo pelos revisores oficiais de contas independentes e o artigo 74.° desta lei tem por objeto a adoção, por parte da sociedade, do projeto de balanço e a repartição do capital na nova sociedade.

7        Nos termos do artigo 75.° da lei das sociedades comerciais, os órgãos de representação do pessoal da sociedade comercial são informados da decisão de transformação desta, que deve fazer publicar um comunicado a este respeito em dois números sucessivos do Boletim das sociedades que contenha, nomeadamente, um aviso aos credores.

8        Nos termos do artigo 76.°, n.° 2, desta lei, os credores cujos créditos não exigíveis à sociedade em transformação se tenham constituído antes da publicação do primeiro comunicado sobre a decisão de transformação podem exigir à sociedade a constituição de uma garantia no valor dos seus créditos.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9        A VALE Costruzioni Srl (sociedade de responsabilidade limitada de direito italiano, a seguir «VALE Costruzioni»), constituída por ato de 27 de setembro de 2000, foi inscrita no registo comercial de Roma (Itália) em 16 de novembro de 2000. Em 3 de fevereiro de 2006, requereu o cancelamento da sua inscrição no referido registo, indicando a sua intenção de transferir a sua sede social para a Hungria e de aí prosseguir a sua atividade e cessar a sua atividade em Itália. A autoridade competente do registo comercial em Roma deferiu este pedido e cancelou o registo desta sociedade em 13 de fevereiro de 2006. Como resulta dos autos, no registo, sob a epígrafe «Cancelamento do registo e transferência de sede», encontra‑se a seguinte inscrição: «a sociedade foi transferida para a Hungria».

10      Dado que a sociedade constituída originalmente em Itália, segundo o direito italiano, tinha decidido transferir a sua sede social para a Hungria e operar a partir desse país segundo o direito húngaro, o diretor da VALE Costruzioni e outra pessoa singular aprovaram em Roma, em 14 de novembro de 2006, os estatutos da VALE Építési kft (uma sociedade de responsabilidade limitada de direito húngaro, a seguir «VALE Építési») para efeitos da sua inscrição no registo comercial húngaro. Além disso, liberaram o capital requerido, segundo a lei húngara, para a inscrição no registo.

11      Em 19 de janeiro de 2007, o representante legal da VALE Építési apresentou um pedido de registo da sociedade ao Fővárosi Bíróság [Tribunal da Comarca de Budapeste, Hungria, operando como cégbíróság (tribunal do comércio)]. No seu pedido, mencionou a VALE Construzioni como antecessora jurídica da VALE Építési.

12      O Fővárosi Bíróság, decidindo em primeira instância na qualidade de tribunal do comércio, indeferiu o pedido de registo. Em segunda instância, o Fővárosi ítélőtábla (Tribunal Regional de Budapeste), após recurso da VALE Építési, confirmou o despacho de indeferimento. Segundo esse órgão jurisdicional, por força das regras do direito comercial húngaro, uma sociedade constituída e registada em Itália não pode transferir a sua sede para a Hungria e não pode ser inscrita no registo comercial húngaro sob a forma requerida. Segundo esse órgão jurisdicional, de acordo com as regras do direito húngaro em vigor, só os elementos taxativamente enumerados nos artigos 24.° a 29.° da Lei n.° V de 2006 podem figurar no registo comercial e, como tal, não é possível mencionar como antecessora jurídica uma sociedade que não seja húngara.

13      A VALE Építési interpôs um recurso de cassação para o Legefelsőbb Bíróság (Supremo Tribunal da Hungria), pedindo a anulação da decisão de indeferimento e que fosse ordenada a inscrição da sociedade no registo comercial. Alega que o despacho recorrido viola as disposições diretamente aplicáveis dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE.

14      A este respeito, salienta que este despacho não tem em conta a diferença fundamental entre, por um lado, a transferência internacional da sede social de uma sociedade sem alteração do direito nacional aplicável e, por outro, a transformação internacional de uma sociedade. Ora, o Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 16 de dezembro de 2008, Cartesio (C‑210/06, Colet., p. I‑9641), reconheceu claramente esta diferença.

15      O órgão jurisdicional de reenvio confirmou a decisão do Fővárosi ítélőtábla e salientou que a transferência da sede social de uma sociedade regulada pelo direito de outro Estado‑Membro, neste caso, a República Italiana, com uma reconstituição da sociedade segundo o direito húngaro e a menção da sua antecessora jurídica italiana, como pede a VALE Építési, não pode ser admitida, no direito húngaro, como uma transformação, pois as normas nacionais sobre transformações apenas se aplicam a situações internas. Todavia, interroga‑se sobre a compatibilidade de tal legislação com a liberdade de estabelecimento, salientando que o caso em apreço é diferente do processo que deu origem ao acórdão Cartesio, já referido, na medida em que, neste caso, a questão se prende com a transferência da sede de uma sociedade com alteração do direito nacional aplicável e manutenção da personalidade jurídica, ou seja, uma transformação transfronteiriça.

16      Nestas circunstâncias, o Legefelsőbb Bíróság decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O Estado‑Membro de acolhimento deve ter em consideração o disposto nos artigos [49.° TFUE e 54.° TFUE] quando uma sociedade constituída noutro Estado‑Membro (Estado[…] de origem) para aí transfira a sua sede, sendo — por esse motivo — cancelada a sua inscrição no registo do Estado‑Membro de origem, aprovando os seus sócios um novo pacto social, elaborado em conformidade com o direito do Estado[…] de acolhimento, e pedindo a referida sociedade a sua inscrição no registo comercial do Estado‑Membro de acolhimento em conformidade com o direito deste último?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, devem os artigos [49.° TFUE e 54.° TFUE] ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação ou prática de um Estado‑Membro (de acolhimento) que nega a uma sociedade legalmente constituída em conformidade com o direito de outro Estado‑Membro (de origem) o direito de transferir a sua sede social para o Estado[…] de acolhimento e aí continuar a exercer a sua atividade ao abrigo do direito deste último?

3)      Para a resposta à segunda questão, importa ter em conta o motivo pelo qual o Estado‑Membro de acolhimento recusa a inscrição da sociedade requerente no registo comercial, e mais concretamente:

—       o facto de no pacto social entregue no Estado[…] de acolhimento a sociedade mencionar como sua antecessora jurídica a sociedade constituída no Estado‑Membro de origem, em cujo registo comercial a sua inscrição foi cancelada, e solicitar que a referida antecessora seja mencionada como a sua própria antecessora jurídica no registo comercial do Estado[…] de acolhimento, bem como 

—       a questão de saber se, em caso de transformação internacional intracomunitária, o Estado[…] de acolhimento é obrigado, quando examina um pedido de registo de inscrição de uma sociedade no seu registo comercial, a ter em conta o ato através do qual o Estado‑Membro de origem averbou a transferência da sede social no seu registo comercial e, em caso de resposta afirmativa, em que medida?

4)      Pode o Estado‑Membro de acolhimento examinar um pedido de registo de inscrição no seu registo comercial, apresentado por uma sociedade que procedeu a uma transformação internacional intracomunitária, aplicando as disposições do seu direito interno que regulam a transformação das sociedades a nível nacional, ou seja, exigindo que a sociedade em causa satisfaça todos os requisitos que o seu direito interno impõe em caso de transformação nacional (por exemplo, elaboração de um balanço e de um inventário dos ativos) ou, pelo contrário, impõem os artigos [49.° TFUE e 54.° TFUE] que este Estado introduza uma distinção entre as transformações internacionais intracomunitárias e as transformações a nível nacional e, em caso de resposta afirmativa, em que medida?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

17      O Governo do Reino Unido põe em causa a admissibilidade do reenvio prejudicial na sua totalidade, sustentando que as questões prejudiciais são de natureza hipotética. Com efeito, considera que estas questões dizem respeito a um caso de transformação fronteiriça, ao passo que, com base nos factos descritos na decisão de reenvio, há que concluir que a operação em causa não corresponde a uma transformação transfronteiriça. O Órgão de Fiscalização da EFTA considera que a terceira e quarta questões são inadmissíveis, uma vez que o quadro jurídico não é exposto de forma suficientemente detalhada para permitir ao Tribunal de Justiça dar uma resposta útil.

18      Para analisar, respetivamente, a admissibilidade do reenvio prejudicial na sua totalidade, ou da terceira e quarta questões, importa recordar que, segundo a jurisprudência assente, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que este define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (acórdão de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli, C‑188/10 e C‑189/10, Colet., p. I‑5667, n.° 27 e jurisprudência referida).

19      Ora, neste caso, as questões submetidas visam a interpretação dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE num litígio real relativamente à inscrição da VALE Építési no registo comercial. Além disso, a qualificação pelo órgão jurisdicional de reenvio da operação em causa no processo principal de transformação transfronteiriça não é desprovida de pertinência, uma vez que resulta dos autos que a autoridade competente para o registo comercial em Roma cancelou o registo da VALE Costruzioni, inscrevendo no registo, sob a epígrafe «Cancelamento do registo e transferência de sede», que «a sociedade foi transferida para a Hungria».

20      Pela mesma razão, não compete ao Tribunal de Justiça, dada a clara separação de funções entre este e os órgãos jurisdicionais nacionais, declarar a extinção da VALE Costruzioni devido ao seu cancelamento no registo comercial em Roma. Nestas condições, não se pode considerar que a interpretação solicitada não tem relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal.

21      Por último, a decisão de reenvio descreve de forma suficiente os factos em causa no processo principal assim como a legislação nacional pertinente, permitindo, assim, ao Tribunal de Justiça entender o sentido e o alcance das questões prejudiciais a fim de lhes dar uma resposta útil.

22      Por conseguinte, o pedido de decisão prejudicial assim como as suas diferentes questões devem ser julgados admissíveis.

 Quanto ao mérito

 Quanto às duas primeiras questões

23      Com essas duas primeiras questões, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, embora preveja que as sociedades de direito interno têm a faculdade de se transformarem, não permite a transformação de uma sociedade de direito de outro Estado‑Membro em sociedade de direito nacional através da constituição desta última.

—       Quanto ao âmbito de aplicação dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE

24      No que respeita à questão de saber se esta legislação se insere no âmbito de aplicação dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE, importa recordar que o Tribunal de Justiça declarou, no n.° 19 do acórdão de 13 de dezembro de 2005, SEVIC Systems (C‑411/03, Colet., p. I‑10805), que as operações de transformação de sociedades fazem, em princípio, parte das atividades económicas relativamente às quais os Estados‑Membros devem respeitar a liberdade de estabelecimento.

25      Ora, os Governos húngaro e alemão, a Irlanda, bem como o Governo do Reino Unido, sustentam que tal legislação não é abrangida pelos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE uma vez que uma transformação transfronteiriça, diversamente da fusão transfronteiriça em causa no acórdão SEVIC Systems, já referido, conduz à constituição de uma sociedade no Estado‑Membro de acolhimento.

26      Esta tese não pode ser acolhida.

27      Na verdade, segundo jurisprudência assente, uma sociedade criada no âmbito de uma ordem jurídica nacional só existe através da legislação nacional que determina a sua constituição e o seu funcionamento (v. acórdãos de 27 de setembro de 1988, Daily Mail and General Trust, 81/87, Colet., p. 5483, n.° 19, e Cartesio, já referido, n.° 104).

28      De igual modo, é pacífico que, nos termos do artigo 54.° TFUE, na falta de uma definição uniforme dada pelo direito da União das sociedades que podem beneficiar do direito de estabelecimento em função de um critério de conexão único que determine o direito nacional aplicável a uma sociedade, a questão de saber se o artigo 49.° TFUE se aplica a uma sociedade que invoca a liberdade fundamental consagrada por este artigo constitui uma questão prévia que, no estado atual do direito da União, apenas pode encontrar resposta no direito nacional aplicável (acórdão de 29 de novembro de 2011, National Grid Indus, C‑371/10, Colet., p. I‑12273, n.° 26 e jurisprudência referida).

29      Por último, um Estado‑Membro dispõe assim incontestavelmente da faculdade de definir não só o elemento de conexão exigido a uma sociedade para que possa ser considerada constituída em conformidade com o seu direito nacional e suscetível, a esse título, de beneficiar do direito de estabelecimento como o elemento de conexão exigido para manter essa mesma qualidade posteriormente (acórdãos, já referidos, Cartesio, n.° 110, e National Grid Indus, n.° 27).

30      Segundo os ensinamentos resultantes desta jurisprudência assente, importa salientar que a obrigação eventual, por força dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE, de permitir uma transformação transfronteiriça não põe em causa a faculdade do Estado‑Membro, evocada no número anterior do presente acórdão, nem a possibilidade de este estabelecer as regras de constituição e de funcionamento da sociedade resultante de uma transformação transfronteiriça.

31      Com efeito, como resulta da jurisprudência recordada no n.° 27 do presente acórdão, tal sociedade apenas está necessariamente sujeita ao direito nacional do Estado‑Membro de acolhimento que determina o elemento de conexão requerido, bem como a sua constituição e o seu funcionamento.

32      Afigura‑se assim que a expressão «desde que este [direito] o permita», que consta do final do n.° 112 do acórdão Cartesio, já referido, não pode ser entendida no sentido de que pretende subtrair à partida a legislação do Estado‑Membro de acolhimento sobre a transformação das sociedades à aplicação das regras do Tratado FUE relativas à liberdade de estabelecimento, mas no sentido de que reflete a simples consideração de que uma sociedade criada ao abrigo de uma ordem jurídica nacional só existe através da legislação nacional que «permite» assim a constituição da sociedade, se os requisitos por ela estabelecidos estiverem preenchidos.

33      Tendo em conta o exposto, há que concluir que uma legislação nacional que, embora preveja que as sociedades de direito interno têm a faculdade de se transformarem, não permite a transformação de uma sociedade de direito de outro Estado‑Membro se enquadra no âmbito de aplicação dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE.

—       Quanto à existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento e à sua eventual justificação

34      Quanto à existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento, cabe recordar que o conceito de estabelecimento, na aceção das disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento, implica o exercício efetivo de uma atividade económica, através de um estabelecimento fixo no Estado‑Membro de acollhimento por um período indefinido. Por conseguinte, pressupõe uma implantação real da sociedade em causa nesse Estado e o exercício de uma atividade económica efetiva neste (acórdão de 12 de setembro de 2006, Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas, C‑196/04, Colet., p. I‑7995, n.° 54 e jurisprudência referida).

35      No caso em apreço, o processo perante o Tribunal de Justiça não revelou elementos que façam crer que as atividades da VALE Építési se desenvolverão apenas em Itália e que esta não pretende implantar‑se de facto na Hungria, o que, contudo, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

36      Importa considerar que, na medida em que a legislação nacional em causa no processo principal apenas prevê a transformação de uma sociedade que já tem a sua sede no Estado‑Membro em causa, a referida legislação institui uma diferença de tratamento entre sociedades segundo a natureza interna ou transfronteiriça da transformação, diferença essa que é suscetível de dissuadir as sociedades que têm a sua sede noutros Estados‑Membros de exercerem a liberdade de estabelecimento consagrada pelo Tratado e, como tal, constitui uma restrição na aceção dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE (v., neste sentido, acórdão SEVIC Systems, já referido, n.os 22 e 23).

37      Quanto à eventual justificação da restrição em causa, é verdade que o Tribunal de Justiça reconheceu, no n.° 27 do acórdão SEVIC Systems, já referido, que as fusões transfronteiriças colocam problemas específicos, o que é válido igualmente para as transformações transfronteiriças. Com efeito, tais transformações pressupõem a aplicação consecutiva de dois direitos nacionais.

38      Como tal, impõe‑se reconhecer que a diferença de tratamento consoante a natureza transfronteiriça ou interna da transformação não pode ser justificada pela inexistência de regras de direito derivado da União. Com efeito, deve recordar‑se que, embora tais regras sejam sem dúvida úteis para facilitar as transformações transfronteiriças, a sua existência não pode ser transformada em condição prévia para a aplicação da liberdade de estabelecimento consagrada nos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE (v., a respeito das fusões transfronteiriças, acórdão SEVIC Systems, já referido, n.° 26).

39      No que respeita a uma justificação por razões imperiosas de interesse geral, como a proteção dos interesses dos credores, dos sócios minoritários e dos trabalhadores, bem como a preservação da eficácia das inspeções fiscais e da lealdade das transações comerciais, é ponto assente que tais razões podem justificar uma medida restritiva da liberdade de estabelecimento na condição de que essa medida restritiva seja adequada a garantir a realização dos objetivos prosseguidos e não vá além do que é necessário para os alcançar (v. acórdão SEVIC Systems, já referido, n.os 28 e 29).

40      Ora, no caso em apreço, tal justificação não existe. Com efeito, o direito húngaro recusa, genericamente, as transformações transfronteiriças, o que tem como resultado impedir a realização de tais operações, mesmo quando os interesses referidos no número anterior não estão ameaçados. De qualquer forma, tal regra vai além do que é necessário para alcançar os objetivos de proteção dos referidos interesses (v., a respeito das fusões transfronteiriças, acórdão SEVIC Systems, já referido, n.° 30).

41      Nestas condições, há que responder às duas primeiras questões que os artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, embora preveja que as sociedades de direito interno têm a faculdade de se transformarem, não permite, de forma geral, a transformação de uma sociedade de direito de outro Estado‑Membro em sociedade de direito nacional através da constituição desta última.

 Quanto à terceira e quarta questões

42      Com a terceira e quarta questões, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE devem ser interpretados, no contexto de uma transformação transfronteiriça, no sentido de que o Estado‑Membro de acolhimento tem o direito de determinar o direito interno pertinente quanto a tal operação e de assim aplicar as disposições do seu direito nacional relativas às transformações internas que regulam a constituição e o funcionamento de uma sociedade, como as exigências quanto à preparação de um balanço e de um inventário de ativos. Mais concretamente, pretende saber se o Estado‑Membro de acolhimento pode recusar, relativamente às transformações transfronteiriças, a menção «antecessora jurídica», menção que está prevista no registo comercial para as transformações internas, e se e em que medida é obrigado a ter em conta os documentos emitidos pelas autoridades do Estado‑Membro de origem quando do procedimento de registo da sociedade.

43      A este propósito, há que recordar, em primeiro lugar, que, uma vez que o direito derivado da União não prevê, no seu estado atual, regras específicas para as transformações transfronteiriças, as disposições que permitem a realização de tal operação apenas podem ser encontradas no direito nacional, isto é, no direito do Estado‑Membro de origem ao abrigo do qual foi constituída a sociedade que pretende transformar‑se e no direito do Estado‑Membro de acolhimento da sociedade que resultará dessa transformação.

44      Com efeito, a realização de uma transformação transfronteiriça implica, como resulta do n.° 37 do presente acórdão, a aplicação consecutiva de dois direitos nacionais a esta operação jurídica.

45      Em segundo lugar, ainda que não seja possível inferir dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE regras precisas suscetíveis de substituírem as disposições nacionais, a aplicação destas não está isenta de fiscalização à luz dos referidos artigos.

46      Com efeito, como resulta da resposta às duas primeiras questões, os artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE obrigam um Estado‑Membro, que prevê a faculdade de as sociedades de direito interno se transformarem, a conceder a mesma faculdade às sociedades constituídas segundo o direito de outro Estado‑Membro que pretendem tansformar‑se em sociedades de direito nacional do primeiro Estado‑Membro.

47      Portanto, a aplicação das disposições nacionais deve efetuar‑se respeitando tal obrigação decorrente dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE.

48      A este respeito, há que recordar que, em vários domínios, é jurisprudência assente que, não havendo regulamentação da União na matéria, as modalidades destinadas a salvaguardar os direitos que decorrem para os particulares do direito da União devem ser adotadas pela ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro, na condição, porém, de não serem menos favoráveis do que as que regulam as situações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) e de não tornarem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (v., neste sentido, quanto à repetição do indevido, acórdão de 22 de outubro de 1998, IN. CO. GE.’90 e o., C‑10/97 a C‑22/97, Colet., p. I‑6307, n.° 25; quanto ao direito administrativo, acórdão de 7 de junho de 2007, van der Weerd e o., C‑222/05 a C‑225/05, Colet., p. I‑4233, n.° 28; quanto à responsabilidade extracontratual de um Estado‑Membro, acórdão de 24 de março de 2009, Danske Slagterier, C‑445/06, Colet., p. I‑2119, n.° 31; e, quanto à exigência de um certificado para obter um benefício fiscal, acórdão de 30 de junho de 2011, Meilicke e o., C‑262/09, Colet., p. I‑5669, n.° 55 e jurisprudência referida).

49      Ora, impõe‑se reconhecer que a lógica subjacente a esta jurisprudência é igualmente válida para o contexto jurídico em causa no processo principal. Com efeito, como nesta jurisprudência, o interessado dispõe de um direito que lhe é conferido pela ordem jurídica da União, neste caso, o direito de proceder a uma transformação transfronteiriça, cuja realização depende, na inexistência de regras da União, da aplicação do direito nacional.

50      A este respeito, há que salientar que a determinação, pelo Estado‑Membro de acolhimento, do direito interno aplicável que permite a realização de uma transformação transfronteiriça não é, por si só, suscetível de pôr em causa o respeito pelas obrigações que decorrem dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE.

51      Com efeito, é ponto assente que uma transformação transfronteiriça resulta, no Estado‑Membro de acolhimento, na constituição de uma sociedade nos termos do direito deste Estado‑Membro. Ora, uma sociedade criada ao abrigo de uma ordem jurídica nacional só existe através da legislação nacional que determina a respetiva constituição e funcionamento (v. acórdãos, já referidos, Daily Mail and General Trust, n.° 19, e Cartesio, n.° 104).

52      Assim, neste caso, não pode ser posta em causa a aplicação, pela Hungria, das disposições do seu direito nacional relativas às transformações internas que regulam a constituição e o funcionamento de uma sociedade, como as exigências relativas à preparação de um balanço e de um inventário de ativos.

53      Em terceiro lugar, importa explicitar, tendo em conta as interrogações do órgão jurisdicional de reenvio quanto à realização da operação em questão no processo principal, as obrigações que decorrem dos princípios da equivalência e da efetividade que enquadram a aplicação do direito nacional.

54      Por um lado, quanto ao princípio da equivalência, há que salientar que, por força deste princípio, um Estado‑Membro não é obrigado a tratar as operações transfronteiriças de forma mais favorável do que as operações internas. Este princípio implica apenas que as modalidades de direito nacional destinadas a salvaguardar os direitos que decorrem para os particulares do direito da União não podem ser menos favoráveis do que as que regulam as situações semelhantes de natureza interna.

55      Assim, se a legislação de um Estado‑Membro exigir, no quadro de uma transformação interna, uma continuidade jurídica e económica estrita entre a sociedade antecessora que pediu a transformação e a sociedade sucessora transformada, tal exigência pode ser igualmente imposta no quadro de uma transformação transfronteiriça.

56      Contudo, o facto de as autoridades de um Estado‑Membro, por ocasião de uma transformação transfronteiriça, recusarem mencionar no registo comercial a sociedade do Estado‑Membro de origem como «antecessora jurídica» da sociedade transformada não é compatível com o princípio da equivalência se tal menção da sociedade antecessora for inscrita por ocasião das transformações internas. Saliente‑se, a este respeito, que a menção «antecessora jurídica» no registo comercial pode ser útil, independentemente do caráter interno ou transfronteiriço da transformação, nomeadamente para informar os credores da sociedade que foi transformada. Por outro lado, o Governo húngaro não apresentou nenhuma razão que justificasse o facto de tal menção ser reservada às transformações internas.

57      Por conseguinte, a recusa de fazer figurar no registo comercial húngaro a menção VALE Costruzioni como «antecessora jurídica» é incompatível com o princípio da equivalência.

58      Por outro lado, quanto ao princípio da efetividade, coloca‑se, neste caso, a questão de saber que valor o Estado‑Membro de acolhimento deve atribuir, no quadro do procedimento de um pedido de registo, aos documentos emitidos pelas autoridades do Estado‑Membro de origem. No contexto do litígio no processo principal, esta questão prende‑se com o exame, que deve ser feito pelas autoridades húngaras, destinado a apurar se a VALE Costruzioni se desvinculou do direito italiano, em conformidade com os requisitos deste, mantendo ao mesmo tempo a sua personalidade jurídica, o que lhe permitiu transformar‑se em sociedade de direito húngaro.

59      Uma vez que este exame constitui o nexo indispensável entre o procedimento de registo no Estado‑Membro de origem e o do Estado‑Membro de acolhimento, e na inexistência de regras de direito do União, o procedimento de registo no Estado‑Membro de acolhimento é regulado pelo direito deste último, que determina assim igualmente, em princípio, as provas que devem ser apresentadas pela sociedade que solicita a sua transformação e que comprovam que os requisitos compatíveis com o direito da União e requeridos pelo Estado‑Membro de origem a este respeito estão preenchidos.

60      Ora, uma prática das autoridades do Estado‑Membro de acolhimento de recusar, de maneira geral, ter em conta os documentos emitidos pelas autoridades do Estado‑Membro de origem por ocasião do procedimento de registo coloca a sociedade que solicita a transformação em risco de não poder demonstrar que respeitou efetivamente as exigências do Estado‑Membro de origem, pondo assim em risco a realização da transformação transfronteiriça em que se envolveu.

61      Daqui resulta que as autoridades do Estado‑Membro de acolhimento estão obrigadas, por força do princípio da efetividade, a ter devidamente em conta, quando do exame de um pedido de registo de uma sociedade, os documentos emitidos pelas autoridades do Estado‑Membro de origem que comprovam que esta sociedade cumpriu efetivamente os requisitos estabelecidos por este Estado‑Membro, desde que tais requisitos sejam compatíveis com o direito da União.

62      Em face do exposto, há que responder à terceira e quarta questões que os artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE devem ser interpretados, no contexto de uma transformação transfronteiriça de uma sociedade, no sentido de que o Estado‑Membro de acolhimento tem o direito de determinar o direito interno pertinente quanto a tal operação e de aplicar as disposições do seu direito nacional relativas às transformações internas que regulam a constituição e o funcionamento de uma sociedade, tais como as exigências quanto à preparação de um balanço e de um inventário de ativos. Todavia, os princípios da equivalência e da efetividade opõem‑se, respetivamente, a que o Estado‑Membro de acolhimento

¾        recuse, para as transformações transfronteiriças, a menção da sociedade que solicitou a transformação como «antecessora jurídica» se tal menção da sociedade antecessora no registo comercial estiver prevista para as transformações internas e

¾        recuse ter devidamente em conta os documentos emitidos pelas autoridades do Estado‑Membro de origem quando do procedimento de registo da sociedade.

 Quanto às despesas

63      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observação ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1)      Os artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, embora preveja que as sociedades de direito interno têm a faculdade de se transformarem, não permite, de forma geral, a transformação de uma sociedade de direito de outro Estado‑Membro em sociedade de direito nacional através da constituição desta última.

2)      Os artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE devem ser interpretados, no contexto de uma transformação transfronteiriça de uma sociedade, no sentido de que o Estado‑Membro de acolhimento tem o direito de determinar o direito interno pertinente quanto a tal operação e de aplicar as disposições do seu direito nacional relativas às transformações internas que regulam a constituição e o funcionamento de uma sociedade, tais como as exigências quanto à preparação de um balanço e de um inventário de ativos. Todavia, os princípios da equivalência e da efetividade opõem‑se, respetivamente, a que o Estado‑Membro de acolhimento

¾        recuse, para as transformações transfronteiriças, a menção da sociedade que solicitou a transformação como «antecessora jurídica» se tal menção da sociedade antecessora no registo comercial se encontrar prevista para as transformações internas e

¾        recuse ter devidamente em conta os documentos emitidos pelas autoridades do Estado‑Membro de origem quando do procedimento de registo da sociedade.

Assinaturas


* Língua do processo: húngaro.