Language of document :

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

6 de outubro de 2021 (*)

«Reenvio prejudicial — Transportes aéreos — Regulamento (CE) n.o 261/2004 — Artigo 5.o, n.o 3 — Regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de cancelamento ou atraso considerável dos voos — Isenção da obrigação de indemnização — Conceito de “circunstâncias extraordinárias” — Greve do pessoal da companhia aérea — Greve do pessoal de uma filial por solidariedade com o pessoal da sociedade‑mãe»

No processo C‑613/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landgericht Salzburg (Tribunal Regional de Salzburgo, Áustria), por Decisão de 10 de novembro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 18 de novembro de 2020, no processo

CS

contra

Eurowings GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: N. Piçarra, presidente de secção, D. Šváby (relator) e S. Rodin, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

considerando as observações apresentadas:

—        em representação da Eurowings GmbH, por W. E. Bloch e Y. Pochyla, Rechtsanwälte,

—        em representação do Governo espanhol, por M. J. Ruiz Sánchez, na qualidade de agente,

—        em representação da Comissão Europeia, por G. Braun, K. Simonsson e G. Wilms, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91 (JO 2004, L 46, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe CS à Eurowings GmbH a propósito da recusa desta última em indemnizar CS pelo cancelamento do voo em que este reservou um lugar.

 Quadro jurídico

 Regulamento n.o 261/2004

3        Os considerandos 1, 4, 14 e 15 do Regulamento n.o 261/2004 enunciam:

«(1)      A ação da [União] no domínio do transporte aéreo deve ter, entre outros, o objetivo de garantir um elevado nível de proteção dos passageiros. Além disso, devem ser tidas plenamente em conta as exigências de proteção dos consumidores em geral.

[…]

(4)      Por conseguinte, a [União] deverá elevar os níveis de proteção estabelecidos [no] [R]egulamento [(CEE) n.o 295/91 do Conselho, de 4 de fevereiro de 1991, que estabelece regras comuns relativas a um sistema de compensação por recusa de embarque de passageiros nos transportes aéreos regulares (JO 1991, L 36, p. 5)], quer para reforçar os direitos dos passageiros, quer para garantir que as transportadoras aéreas operem em condições harmonizadas num mercado liberalizado.

[…]

(14)      Tal como ao abrigo da Convenção [para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, em 28 de maio de 1999, e aprovada, em nome da Comunidade Europeia, pela Decisão 2001/539/CE do Conselho, de 5 de abril de 2001 (JO 2001, L 194, p. 38)], as obrigações a que estão sujeitas as transportadoras aéreas operadoras deverão ser limitadas ou eliminadas nos casos em que a ocorrência tenha sido causada por circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis. Essas circunstâncias podem sobrevir, em especial, em caso de instabilidade política, condições meteorológicas incompatíveis com a realização do voo em causa, riscos de segurança, falhas inesperadas para a segurança do voo e greves que afetem o funcionamento da transportadora aérea.

(15)      Considerar‑se‑á que existem circunstâncias extraordinárias sempre que o impacto de uma decisão de gestão do tráfego aéreo, relativa a uma determinada aeronave num determinado dia provoque um atraso considerável, um atraso de uma noite ou o cancelamento de um ou mais voos dessa aeronave, não obstante a transportadora aérea em questão ter efetuado todos os esforços razoáveis para evitar atrasos ou cancelamentos.»

4        Sob a epígrafe «Definições», o artigo 2.o deste regulamento dispõe:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

b)      “Transportadora aérea operadora”, uma transportadora aérea que opera ou pretende operar um voo ao abrigo de um contrato com um passageiro, ou em nome de uma pessoa coletiva ou singular que tenha contrato com esse passageiro;

[…]

l)      “Cancelamento”, a não realização de um voo que anteriormente estava programado e em que, pelo menos, um lugar foi reservado.»

5        Nos termos do artigo 5.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Cancelamento»:

«1.      Em caso de cancelamento de um voo, os passageiros em causa têm direito a:

[…]

c)      Receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7.o, salvo se:

i)      tiverem sido informados do cancelamento pelo menos duas semanas antes da hora programada de partida, ou

ii)      tiverem sido informados do cancelamento entre duas semanas e sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até duas horas antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até quatro horas depois da hora programada de chegada, ou

iii)      tiverem sido informados do cancelamento menos de sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até uma hora antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até duas horas depois da hora programada de chegada.

[…]

3.      A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.o, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.

[…]»

6        Sob a epígrafe «Direito a indemnização», o artigo 7.o do mesmo regulamento prevê, no seu n.o 1:

«Em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de:

a)      250 euros para todos os voos até 1500 quilómetros;

b)      400 euros para todos os voos intracomunitários com mais de 1500 quilómetros e para todos os outros voos entre 1500 e 3500 quilómetros;

c)      600 euros para todos os voos não abrangidos pelas alíneas a) ou b).

[…]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

7        CS tinha reservado um lugar num voo que ligava Salzburgo (Áustria) a Berlim (aeroporto de Berlim‑Tegel, Alemanha). A distância de voo entre estas duas cidades não excede 1 500 km. Esse voo, que devia ser operado pela Eurowings em 20 de outubro de 2019, teve, contudo, de ser cancelado devido a uma greve do pessoal de cabine desta transportadora aérea operadora.

8        Essa greve foi organizada por iniciativa do sindicato UFO, que é um sindicato de hospedeiras de bordo e de comissários de bordo. Era consequência de negociações coletivas levadas a cabo com a Lufthansa AG, sociedade‑mãe da Eurowings. Em 18 de outubro de 2019, a fim de acelerar o processo das negociações e de aumentar a pressão sobre a sociedade‑mãe do grupo, a greve de 14 de outubro de 2019 foi alargada aos trabalhadores de várias filiais, entre as quais a Eurowings. Inicialmente prevista para 20 de outubro de 2019, das 5h00 às 11h00, a referida greve foi prorrogada até à meia‑noite, no próprio dia e sem aviso prévio. Devido à prorrogação da duração desta greve, não foi possível respeitar a programação dos voos definida para esse dia. Consequentemente, a Eurowings teve de cancelar 158 voos dos 712 atribuídos para o dia 20 de outubro de 2019, entre os quais o de CS.

9        CS exige o pagamento da indemnização de 250 euros prevista no artigo 7.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 261/2004. Alega que a greve do pessoal de cabine que levou ao cancelamento do seu voo não constitui uma «circunstância extraordinária», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, deste regulamento, e é imputável à Eurowings. A greve parece decorrer de medidas de reestruturação internas da própria transportadora aérea operadora e deveria ter sido evitada por esta através de negociações e de acordos correspondentes. Além disso, os conflitos coletivos são inerentes ao exercício da atividade de transportadora aérea. Por último, o acordo celebrado posteriormente demonstra que a Eurowings estava em condições de resolver o conflito social. Assim, a greve enquadra‑se no âmbito do exercício normal da atividade desta transportadora e também não estava fora do seu domínio de influência.

10      A Eurowings alega, por seu lado, que na origem do cancelamento do voo estiveram circunstâncias extraordinárias. A greve de 14 de outubro de 2019 dizia respeito unicamente à Lufthansa e só foi alargada às suas filiais, entre as quais a Eurowings, em 18 de outubro de 2019. Além disso, a greve deveria inicialmente ter decorrido das 5h00 às 11h00. Foi apenas no dia da greve que este período foi prorrogado até à meia‑noite, espontaneamente e sem aviso prévio do sindicato. A Eurowings só foi informada às 5h30 da manhã do próprio dia, o que tornou obsoleto o plano de emergência que tinha elaborado para gerir o período de greve inicialmente previsto. Além disso, recorrendo à subcontratação no dia do voo de CS, acabou por só ter sido obrigada a cancelar 158 voos num total de 712 voos em causa. A Eurowings tomou, por isso, todas as medidas ao seu alcance para reduzir as consequências negativas do movimento social na globalidade dos voos normalmente programados para esse dia. Por último, em 18 de outubro de 2019, a Lufthansa cedeu às reivindicações e anunciou um aumento salarial de 2 %. Por conseguinte, a greve na Lufthansa foi desconvocada, enquanto a greve na Eurowings, embora já sem fundamento, foi mantida. Assim, esta greve não se insere no exercício normal da atividade de uma transportadora aérea nem era controlável pela Eurowings, uma vez que a sua extensão e a prorrogação da sua duração representavam uma circunstância extraordinária que não podia evitar.

11      CS intentou uma ação no Bezirksgericht Salzburg (Tribunal de Primeira Instância de Salzburgo, Áustria) destinada a obter a condenação da Eurowings no pagamento da indemnização de 250 euros prevista no artigo 7.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 261/2004. Este órgão jurisdicional indeferiu o seu pedido com o fundamento de que o movimento grevista em causa devia ser qualificado de «circunstância extraordinária», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, deste regulamento. O referido órgão jurisdicional salientou nomeadamente, por um lado, que, embora a Lufthansa, enquanto sociedade‑mãe do grupo, tenha respondido favoravelmente às reivindicações do pessoal, a greve foi mantida e mesmo ampliada. Por outro lado, enquanto filial da Lufthansa, a Eurowings não podia obter um acordo que vinculasse a sociedade‑mãe. Além disso, dos 712 voos previstos para o dia da greve, a Eurowings tinha conseguido limitar os cancelamentos a 158 voos, sendo estes cancelamentos inevitáveis.

12      CS interpôs recurso dessa sentença no órgão jurisdicional de reenvio, o Landgericht Salzburg (Tribunal Regional de Salzburgo, Áustria).

13      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que o Tribunal de Justiça ainda não foi chamado a pronunciar‑se sobre a situação em que a greve do pessoal de uma transportadora aérea operadora ocorre no contexto de um grupo de sociedades. Coloca‑se, por conseguinte, a questão de saber se, e durante quanto tempo, se pode considerar que é inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa que os trabalhadores da filial se solidarizem com o apelo à greve de um sindicato contra a sociedade‑mãe para apoiar as reivindicações salariais avançadas pelos sindicatos do pessoal de cabine da sociedade‑mãe. Esta questão coloca‑se sobretudo quando, na sequência do acordo celebrado entre o sindicato e a sociedade‑mãe do grupo, a greve da filial se torna «autónoma», tendo o sindicato mantido e mesmo ampliado a greve sem motivo legítimo e tendo o pessoal de cabine seguido este apelo.

14      O órgão jurisdicional de reenvio considera que incumbe à transportadora aérea operadora provar uma circunstância extraordinária e demonstrar que não poderia ter evitado, em caso algum, essa circunstância através da adoção de medidas adaptadas à situação. A este respeito, coloca‑se a questão de saber se basta que essa transportadora alegue que, apesar de as reivindicações sindicais terem sido satisfeitas pela sociedade‑mãe, o apelo à greve foi mantido pelo sindicato e mesmo posteriormente ampliado. O órgão jurisdicional de reenvio considera que não pode ser imposta nenhuma exigência excessiva à transportadora aérea operadora em matéria de ónus da prova. Se o motivo de uma greve for um impasse na negociação coletiva, mas for finalmente celebrado um acordo, a greve e a sua prorrogação são desprovidas de fundamento, desde que o procedimento não revele uma causa imputável à referida transportadora.

15      Esse órgão jurisdicional observa igualmente que, em caso de reorganização exigida por uma greve do pessoal de uma transportadora aérea operadora, seria admissível, por princípio, fixar prioridades, procurando a menor perturbação para todos os passageiros.

16      Foi neste contexto que o Landgericht Salzburg (Tribunal Regional de Salzburgo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Pode uma greve dos trabalhadores de uma transportadora aérea, convocada por um sindicato para fazer valer exigências salariais e/ou prestações sociais, constituir uma “circunstância extraordinária” na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 261/2004?

2)      Poderá ser esse o caso, pelo menos:

a)      Quando os trabalhadores da filial se solidarizam com o apelo à greve contra a sociedade mãe do grupo (Lufthansa AG) para apoiar exigências sindicais do pessoal de cabine da sociedade‑mãe,

e

b)      Especialmente quando a greve na filial se tornou «autónoma», após ter sido obtido um acordo com a sociedade‑mãe do grupo, tendo o sindicato, sem motivos aparentes, mantido a greve e decidido mesmo ampliá‑la e tendo o pessoal de cabine da filial seguido este apelo?

3)      Para demonstrar que se verificou uma circunstância extraordinária, basta que a transportadora aérea operadora afirme que o sindicato manteve o apelo à greve sem nenhum motivo, tendo finalmente decidido prolongá‑la apesar de a sociedade‑mãe do grupo ter satisfeito as reivindicações? E quem é responsável caso as circunstâncias concretas não tiverem sido de facto esclarecidas?

4)      Pode uma greve anunciada em 18 de outubro de 2019 para o período compreendido entre as 05h:00 e as 11h:00 do dia 20 de outubro de 2019 na filial da recorrida, que finalmente, de maneira espontânea, foi prolongada, às 05h:30 de 20 de outubro de 2019, até às 24h00, constituir uma circunstância que já não é efetivamente controlável?

5)      Constituem medidas adequadas à situação as medidas de precaução que consistem na preparação de planos de voo alternativos e de substituição dos voos cancelados devido à falta de tripulação de cabine através da subcontratação de outras companhias, tendo em especial atenção os destinos sem acesso terrestre ou com acesso terrestre difícil, e a distinção entre voos internos na Alemanha e voos intraeuropeus, tendo ainda em consideração o facto de apenas terem sido cancelados 158 de um total de 712 voos planeados para a data em causa?

6)      Que requisitos probatórios devem ser impostos à alegação da transportadora aérea operadora de que foram tomadas todas as medidas razoavelmente viáveis do ponto de vista técnico e económico?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira a quarta questões

17      Com as suas primeira a quarta questões prejudiciais, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que um movimento grevista destinado a fazer valer reivindicações salariais e/ou sociais dos trabalhadores, iniciado a pedido de um sindicato do pessoal de uma transportadora aérea operadora por solidariedade com o movimento convocado contra a sociedade‑mãe da qual essa transportadora é uma das filiais, que é seguido por uma categoria do pessoal dessa filial, cuja presença é necessária para operar um voo, e que se prolonga para além do termo inicialmente anunciado pelo sindicato que convocou a greve, apesar de entretanto se ter chegado a um acordo com a sociedade‑mãe, está abrangido pelo conceito de «circunstâncias extraordinárias» na aceção desta disposição.

18      Antes de mais, há que recordar que, em caso de cancelamento de um voo, o artigo 5.o do Regulamento n.o 261/2004 prevê que os passageiros em causa têm direito a receber da transportadora aérea operadora uma indemnização nos termos do artigo 7.o, n.o 1, salvo se tiverem sido previamente informados desse cancelamento nos prazos previstos no n.o 1, alínea c), i) a iii), do referido artigo 5.o O artigo 5.o, n.o 3, do referido regulamento permite todavia que essa transportadora não seja obrigada a indemnizar se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a «circunstâncias extraordinárias» que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis (v., neste sentido, Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp, C‑28/20, EU:C:2021:226, n.os 21 e 22 e jurisprudência referida).

19      O conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, que deve ser objeto de interpretação estrita, designa eventos que, devido à sua natureza ou à sua origem, não são inerentes ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa e escapam ao controlo efetivo desta última, sendo estes dois requisitos cumulativos e devendo a sua observância ser objeto de apreciação caso a caso (v., neste sentido, Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp, C‑28/20, EU:C:2021:226, n.os 23 e 24 e jurisprudência referida).

20      Em primeiro lugar, como resulta do n.o 28 do Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp (C‑28/20, EU:C:2021:226), apesar de consubstanciar um momento de conflito nas relações entre os trabalhadores e o empregador, cuja atividade visa paralisar, a greve não deixa de ser uma das expressões possíveis da negociação social e, portanto, deve ser entendida como um evento inerente ao exercício normal da atividade do empregador em causa, independentemente das especificidades do mercado de trabalho em causa ou da legislação nacional aplicável no que respeita à execução desse direito fundamental garantido no artigo 28.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

21      Tais considerações devem também prevalecer quando o empregador é, como no caso em apreço, uma transportadora aérea operadora, podendo esta última, no exercício da sua atividade, ser habitualmente confrontada com divergências ou mesmo conflitos com os membros do seu pessoal ou com parte dele (v., neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2018, Krüsemann e o., C‑195/17, C‑197/17 a C‑203/17, C‑226/17, C‑228/17, C‑254/17, C‑274/17, C‑275/17, C‑278/17 a C‑286/17 e C‑290/17 a C‑292/17, EU:C:2018:258, n.os 41 e 42). Ora, medidas relativas às condições de trabalho e de remuneração do pessoal de uma transportadora aérea operadora fazem parte da gestão normal das atividades da referida transportadora (Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp, C‑28/20, EU:C:2021:226, n.o 29).

22      Assim, uma greve cujo objetivo se limita a obter de uma empresa de transporte aéreo um aumento do salário do pessoal de cabine constitui um evento inerente ao exercício normal da atividade dessa empresa, em especial quando a referida greve é organizada dentro de um quadro legal (v., neste sentido, Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp, C‑28/20, EU:C:2021:226, n.o 30).

23      Além disso, na medida em que tanto a política social numa sociedade‑mãe como a política do grupo por ela determinada podem ter incidência na política e na estratégia social das sociedades filiais desse mesmo grupo, não se pode considerar que uma greve desencadeada pelo pessoal de uma transportadora aérea operadora por solidariedade com a seguida pelo pessoal da sociedade‑mãe da qual essa transportadora é uma filial não é um evento inerente ao exercício normal da atividade desta última. Como a Comissão Europeia salientou nas suas observações escritas, não é raro nem imprevisível que os conflitos sociais se estendam a diferentes partes de um grupo de empresas durante negociações coletivas.

24      Em segundo lugar, uma greve motivada por reivindicações salariais e/ou sociais dos trabalhadores deve ser considerada um evento que não escapa inteiramente ao controlo efetivo da transportadora aérea em causa (v., neste sentido, Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp, C‑28/20, EU:C:2021:226, n.o 36), mesmo quando a greve é desencadeada por solidariedade com o pessoal grevista da sociedade‑mãe da qual essa transportadora é uma das filiais.

25      Com efeito, em primeiro lugar, uma vez que, para os trabalhadores, a greve constitui um direito garantido pelo artigo 28.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve considerar‑se que o facto de estes invocarem esse direito e, consequentemente, desencadearem um movimento nesse sentido é abrangido pelo domínio do previsível para qualquer entidade patronal, quando essa greve é precedida de um aviso prévio (v., neste sentido, Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp, C‑28/20, EU:C:2021:226, n.o 32).

26      Aliás, o Tribunal de Justiça já declarou, no n.o 18 do Acórdão de 7 de maio de 1991, Organisationen Danske Slagterier (C‑338/89, EU:C:1991:192), que uma greve precedida de aviso prévio previsto pela legislação nacional aplicável e em relação à qual foi anunciado poder abranger setores que afetam as atividades de uma empresa inicialmente não visada pela referida greve não constitui um evento anormal e imprevisível.

27      Por analogia, quando um sindicato apela à greve do pessoal de uma sociedade‑mãe, é previsível que o pessoal de outras entidades do grupo dirigido por essa sociedade‑mãe se junte ao movimento grevista por solidariedade ou para defender, nessa ocasião, os seus próprios interesses.

28      Em segundo lugar, uma vez que a realização de uma greve constitui um evento previsível para o empregador, este tem, em princípio, os meios para se preparar para ela e, sendo caso disso, para atenuar as suas consequências, pelo que mantém, em certa medida, o controlo dos acontecimentos. Uma vez que, como foi salientado no n.o 19 do presente acórdão, o conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, deve ser objeto de interpretação estrita, há que considerar que a escolha do termo «extraordinárias» demonstra a vontade do legislador da União de apenas incluir nesse conceito as circunstâncias sobre as quais a transportadora aérea operadora não tem nenhum controlo. Ora, à semelhança de qualquer empregador, essa transportadora confrontada com uma greve do seu pessoal, que é motivada por reivindicações relativas às condições salariais e/ou sociais, não pode alegar que não tem nenhum controlo sobre esse movimento (v., neste sentido, Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp, C‑28/20, EU:C:2021:226, n.os 35 e 36). O mesmo acontece quando uma greve é desencadeada pelo pessoal de uma transportadora aérea operadora por solidariedade com o pessoal da sua sociedade‑mãe.

29      Por conseguinte, para garantir o efeito útil da obrigação de indemnização consagrada no artigo 7.o, n.o 1, do Regulamento n.o 261/2004, uma greve do pessoal de uma transportadora aérea operadora não pode ser qualificada de «circunstância extraordinária», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do referido regulamento, quando a mesma greve está ligada a reivindicações salariais e/ou sociais do pessoal dessa transportadora, suscetíveis de ser tratadas no âmbito do diálogo social interno do grupo de sociedades ao qual pertence a referida transportadora. Esta conclusão não pode, aliás, ser posta em causa pelo caráter eventualmente irrazoável ou desproporcionado das reivindicações formuladas pelos grevistas, uma vez que, de qualquer modo, a determinação do nível dos salários recai no âmbito das relações de trabalho entre o empregador e os seus trabalhadores (v., neste sentido, Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp, C‑28/20, EU:C:2021:226, n.os 37 e 38).

30      Em terceiro lugar, como resulta do n.o 42 do Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp (C‑28/20, EU:C:2021:226), ao indicar, no considerando 14 do Regulamento n.o 261/2004, que podem sobrevir circunstâncias extraordinárias, em especial, em caso de greves que afetem o funcionamento da transportadora aérea operadora, o legislador da União pretendeu fazer referência às greves externas à atividade da transportadora aérea em causa. Daqui resulta que são designadamente suscetíveis de constituir «circunstâncias extraordinárias», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, daquele regulamento, movimentos grevistas desencadeados e seguidos por controladores aéreos ou pelo pessoal de um aeroporto.

31      Em contrapartida, uma greve desencadeada e seguida por membros do próprio pessoal de uma transportadora aérea constitui um evento «interno» dessa empresa, mesmo quando se trata de uma greve convocada pelos sindicatos, uma vez que estes atuam no interesse dos trabalhadores da referida empresa. Se, no entanto, tal greve tiver origem em reivindicações que só os poderes públicos podem satisfazer e que, por conseguinte, escapam ao controlo efetivo da transportadora aérea em causa, a mesma é suscetível de constituir uma «circunstância extraordinária», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 (Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp, C‑28/20, EU:C:2021:226, n.os 44 e 45).

32      A este respeito, não se pode considerar determinante o facto de uma greve se prolongar para além do período eventualmente mencionado no aviso prévio de greve, apesar de entretanto se ter chegado a um acordo com a sociedade‑mãe. Com efeito, mesmo admitindo que, ao abrigo do direito nacional, a ultrapassagem da duração inicialmente anunciada pelo sindicato que convocou a greve leve a classificar essa greve de ilegal, esta consideração não pode influir na classificação dessa greve nos termos do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 (v., neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2018, Krüsemann e o., C‑195/17, C‑197/17 a C‑203/17, C‑226/17, C‑228/17, C‑254/17, C‑274/17, C‑275/17, C‑278/17 a C‑286/17 e C‑290/17 a C‑292/17, EU:C:2018:258, n.o 46).

33      Como o Tribunal de Justiça já salientou, distinguir entre greves legais e ilegais, com base no direito nacional aplicável, para determinar se as mesmas devem ser qualificadas de «circunstâncias extraordinárias», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, teria como consequência fazer depender o direito a indemnização dos passageiros da legislação social própria de cada Estado‑Membro, prejudicando, assim, os objetivos do Regulamento n.o 261/2004, visados nos seus considerandos 1 e 4, de garantir um elevado nível de proteção dos passageiros e condições equivalentes de exercício das atividades de transportadora aérea no território da União Europeia (Acórdão de 17 de abril de 2018, Krüsemann e o., C‑195/17, C‑197/17 a C‑203/17, C‑226/17, C‑228/17, C‑254/17, C‑274/17, C‑275/17, C‑278/17 a C‑286/17 e C‑290/17 a C‑292/17, EU:C:2018:258, n.o 47).

34      Nestas condições, há que responder à primeira a quarta questões prejudiciais que o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que um movimento grevista destinado a fazer valer reivindicações salariais e/ou sociais dos trabalhadores, iniciado a pedido de um sindicato do pessoal de uma transportadora aérea operadora por solidariedade com o movimento convocado contra a sociedade‑mãe da qual essa transportadora é uma das filiais, que é seguido por uma categoria do pessoal dessa filial, cuja presença é necessária para operar um voo, e que se prolonga para além do termo inicialmente anunciado pelo sindicato que convocou a greve, apesar de entretanto se ter chegado a um acordo com a sociedade‑mãe, não está abrangido pelo conceito de «circunstâncias extraordinárias» na aceção desta disposição.

 Quando à quinta e sexta questões

35      Não há que responder à quinta e sexta questões prejudiciais, uma vez que assentam na premissa de que uma greve como a que está em causa no processo principal deve ser qualificada de «circunstância extraordinária», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004.

 Quanto às despesas

36      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

O artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91, deve ser interpretado no sentido de que um movimento grevista destinado a fazer valer reivindicações salariais e/ou sociais dos trabalhadores, iniciado a pedido de um sindicato do pessoal de uma transportadora aérea operadora por solidariedade com o movimento convocado contra a sociedademãe da qual essa transportadora aérea é uma das filiais, que é seguido por uma categoria do pessoal dessa filial, cuja presença é necessária para operar um voo, e que se prolonga para além do termo inicialmente anunciado pelo sindicato que convocou a greve, apesar de entretanto se ter chegado a um acordo com a sociedademãe, não está abrangido pelo conceito de «circunstâncias extraordinárias» na aceção desta disposição.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.