Language of document : ECLI:EU:C:2020:307

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 23 de abril de 2020(1)

Processo C806/18

JZ

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos)]

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, de segurança e de justiça — Diretiva 2008/115/CE — Artigo 11.o — Proibição de entrada — Nacional de país terceiro a quem é imposta uma decisão de proibição de entrada mas que nunca deixou o Estado‑Membro em causa — Pena de prisão»






1.        No presente pedido de decisão prejudicial, apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos), o Tribunal de Justiça é chamado, uma vez mais, a apreciar se as disposições da Diretiva 2008/115/CE (2) se opõem a uma disposição de direito penal nacional que sanciona uma situação irregular com uma pena de prisão.

2.        Embora, no caso em apreço, o Estado‑Membro em causa possa, em princípio, prever tal pena, a questão — e especificidade — que se coloca consiste em saber se o fez da maneira correta.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3.        O objetivo da Diretiva 2008/115 é definido da seguinte forma no seu artigo 1.o, com a epígrafe «Objeto»:

«A presente diretiva estabelece normas e procedimentos comuns a aplicar nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, no respeito dos direitos fundamentais enquanto princípios gerais do direito comunitário e do direito internacional, nomeadamente os deveres em matéria de proteção dos refugiados e de direitos do Homem.»

4.        O artigo 3.o da diretiva, com a epígrafe «Definições», estabelece o seguinte:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

2.      “Situação irregular”, a presença, no território de um Estado‑Membro, de um nacional de país terceiro que não preencha ou tenha deixado de preencher as condições de entrada […] permanência ou residência nesse Estado‑Membro;

3.      “Regresso”, o processo de retorno de nacionais de países terceiros, a título de cumprimento voluntário de um dever de regresso ou a título coercivo:

–        ao país de origem, ou

–        a um país de trânsito, ao abrigo de acordos de readmissão comunitários ou bilaterais ou de outras convenções, ou

–        a outro país terceiro, para o qual a pessoa em causa decida regressar voluntariamente e no qual seja aceite;

4.      “Decisão de regresso”, uma decisão ou ato administrativo ou judicial que estabeleça ou declare a situação irregular de um nacional de país terceiro e imponha ou declare o dever de regresso;

5.      “Afastamento”, a execução do dever de regresso, ou seja, o transporte físico para fora do Estado‑Membro;

6.      “Proibição de entrada”, uma decisão ou ato administrativo ou judicial que proíbe a entrada e a permanência no território dos Estados‑Membros durante um período determinado e que acompanha uma decisão de regresso;

[…]

8.      “Partida voluntária”, cumprimento do dever de regressar no prazo fixado na decisão de regresso;

[…]»

5.        O artigo 6.o da Diretiva 2008/115, com a epígrafe «Decisão de regresso», dispõe o seguinte:

«1.      Sem prejuízo das exceções previstas nos n.os 2 a 5, os Estados‑Membros devem emitir uma decisão de regresso relativamente a qualquer nacional de país terceiro que se encontre em situação irregular no seu território.

[…]

6.      A presente diretiva não obsta a que os Estados‑Membros tomem decisões de cessação da permanência regular a par de decisões de regresso, ordens de afastamento, e/ou proibições de entrada, por decisão ou ato administrativo ou judicial previsto no respetivo direito interno, sem prejuízo das garantias processuais disponíveis ao abrigo do capítulo III e de outras disposições aplicáveis do direito comunitário e do direito nacional.»

6.        O artigo 8.o da referida diretiva, com a epígrafe «Afastamento», determina o seguinte:

«1.      Os Estados‑Membros tomam todas as medidas necessárias para executar a decisão de regresso se não tiver sido concedido qualquer prazo para a partida voluntária, nos termos do n.o 4 do artigo 7.o, ou se a obrigação de regresso não tiver sido cumprida dentro do prazo para a partida voluntária concedido nos termos do artigo 7.o

[…]

3.      Os Estados‑Membros podem emitir uma ordem de afastamento por decisão ou ato administrativo ou judicial autónomo.»

7.        O artigo 11.o da diretiva, com a epígrafe «Proibição de entrada», tem a seguinte redação:

«1.      As decisões de regresso são acompanhadas de proibições de entrada sempre que:

a)      Não tenha sido concedido qualquer prazo para a partida voluntária; ou

b)      A obrigação de regresso não tenha sido cumprida.

Nos outros casos, as decisões de regresso podem ser acompanhadas da proibição de entrada.

2.      A duração da proibição de entrada é determinada tendo em devida consideração todas as circunstâncias relevantes do caso concreto, não devendo em princípio exceder cinco anos. Essa duração pode, contudo, ser superior a cinco anos se o nacional de país terceiro constituir uma ameaça grave para a ordem pública, a segurança pública ou a segurança nacional.

3.      Os Estados‑Membros devem ponderar a revogação ou a suspensão da proibição de entrada, se o nacional de país terceiro que seja objeto de proibição de entrada emitida nos termos do segundo parágrafo do n.o 1 provar que deixou o território de um Estado‑Membro em plena conformidade com uma decisão de regresso.

[…]»

8.        Nos termos do artigo 12.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da mesma diretiva, «as decisões de regresso e, se tiverem sido emitidas, as decisões de proibição de entrada e as decisões de afastamento são emitidas por escrito e contêm as razões de facto e de direito que as fundamentam, bem como informações acerca das vias jurídicas de recurso disponíveis».

 Direito neerlandês

9.        A Vreemdelingenwet 2000 (Lei dos Estrangeiros de 2000, de 23 de novembro de 2000 (Stb 2000, No 495), conforme alterada com efeitos a partir de 31 de dezembro de 2011 com vista à transposição da Diretiva 2008/115 (a seguir «Vw 2000»), estabelece no n.o 1 do seu artigo 61.o que o estrangeiro que não esteja, ou já não esteja, em situação de residência regular deve abandonar os Países Baixos por sua própria iniciativa, no prazo fixado no artigo 62.o desta lei, cujos n.os 1 e 2 transpõem os n.os 1 e 4 do artigo 7.o da Diretiva 2008/115.

10.      O artigo 66a, n.o 1, da Vw 2000, que se destina a transpor o artigo 11.o, n.o 2, da Diretiva 2008/115, prevê que uma decisão de proibição de entrada é tomada contra o estrangeiro que não tiver abandonado os Países Baixos por sua própria iniciativa, no prazo fixado.

11.      Por força do artigo 66a, n.o 4, da Vw 2000, a proibição de entrada tem uma duração determinada, de cinco anos no máximo, salvo se o estrangeiro constituir uma ameaça grave para a ordem pública, a segurança pública ou a segurança nacional. Esta duração é calculada a partir da data em que o estrangeiro tiver efetivamente abandonado os Países Baixos.

12.      Nos termos do artigo 66a, n.o 7, da Vw 2000, o estrangeiro sujeito a uma proibição de entrada não pode, em caso algum, residir regularmente:

«a)      se tiver sido condenado por sentença, transitada em julgado, por infrações puníveis com pena de prisão de, pelo menos, três anos;

b)      se representar um perigo para a ordem pública ou para a segurança nacional;

c)      se representar uma ameaça grave na aceção do n.o 4; ou

d)      se tiver de lhe ser recusada a residência por força de um tratado, ou no interesse das relações internacionais dos Países Baixos».

13.      Por força do artigo 197.o do Wetboek van Strafrecht (Código Penal), na versão resultante da Lei de 15 de dezembro de 2011 (Stb. 2011, n.o 663), um estrangeiro que permaneça nos Países Baixos apesar de saber ou de ter razões sérias para acreditar que foi declarado pessoa indesejada com fundamento numa disposição legal, ou que está sujeito a uma proibição de entrada em aplicação do artigo 66a, n.o 7, da Vw 2000, será punido, nomeadamente, com pena de prisão com duração máxima de seis meses.

 Matéria de facto, tramitação do processo e questão submetida

14.      Por decisão de 14 de abril de 2000, JZ foi declarado estrangeiro indesejado na aceção da lei então em vigor (3).

15.      Por despacho do Staatssecretaris van Veiligheid en Justitie (Secretário de Estado de Segurança e Justiça, Países Baixos), de 19 de março de 2013, a declaração de estrangeiro indesejado foi revogada a pedido de JZ com fundamento na alteração da Vw2000 com efeitos a partir de 31 de dezembro de 2011, na sequência da transposição da Diretiva 2008/115. Esse despacho decretou igualmente uma proibição de entrada válida por um período de cinco anos, aplicável a JZ, em aplicação do artigo 66a, n.o 7, da Vw 2000, sendo essa declaração de estrangeiro indesejado revogada a partir do momento em que a proibição de entrada entre em vigor. No entanto, nos termos do despacho, essa revogação não afetava a obrigação de saída de JZ, pelo que este tinha de deixar os Países Baixos pelos seus próprios meios sob pena de ser expulso. Por força do artigo 62a.o, n.o 2, da Vw 2000, este despacho vale como decisão de regresso.

16.      A título de fundamentação, o despacho refere, designadamente, que JZ foi condenado diversas vezes por vários crimes. Nos termos do ponto A4/3.3 da Vreemdelingencirculaire (circular relativa aos estrangeiros de 2000), qualquer suspeita ou condenação de um crime é considerada um perigo para a ordem pública. Uma vez que JZ representa um perigo para a ordem pública, deve deixar os Países Baixos imediatamente por força do artigo 62.o, n.o 2, alínea c), da Vw 2000. Neste contexto, foi emitida uma proibição de entrada nos termos do artigo 66a, n.o 1, alínea a), da Vw 2000. Consequentemente, à luz do artigo 66a, n.o 7, alínea b), da Vw 2000 e em razão da proibição de entrada, JZ não pode ter residência legal no país.

17.      O Gerechtshof Amsterdam (Tribunal de Recurso de Amesterdão, Países Baixos) constatou que as fases do procedimento de regresso foram concluídas. Contudo, JZ não deixou os Países Baixos depois de ter sido proferido o despacho de 19 de março de 2013. É facto assente que, em violação desse despacho, estava em Amesterdão em 21 de outubro de 2015. Nos termos do artigo 197.o do Código Penal, será punido o estrangeiro que permaneça nos Países Baixos apesar de saber ou de ter razões sérias para presumir que foi sujeito a uma proibição de entrada em aplicação do artigo 66a, n.o 7, da Vw 2000. Por conseguinte, o Gerechtshof Amsterdam condenou JZ a uma pena de prisão de dois meses.

18.      JZ interpôs recurso de cassação desse acórdão no Hoge Raad (Supremo Tribunal dos Países Baixos).

19.      Nestas circunstâncias, o Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos) decidiu suspender a instância e, por Decisão de 27 de novembro de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 20 de dezembro de 2018, submeteu a seguinte questão prejudicial à apreciação do Tribunal de Justiça:

«Uma norma de direito nacional que incrimina a permanência no território dos Países Baixos de um nacional de um país terceiro depois de lhe ter sido proibida a entrada em aplicação do artigo 66a, n.o 7, da [Vw] 2000 [Lei dos Estrangeiros de 2000] — quando se verifica que, nos termos do direito nacional, esse estrangeiro não tem o direito de permanecer nos Países Baixos e além disso se verifica que as fases do procedimento de regresso previsto na [Diretiva 2008/115] foram concluídas mas não houve um regresso efetivo — é compatível com o direito da União, em especial, com a declaração do Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 26 de julho de 2017 (Ouhrami/Países Baixos, C‑225/16, ECLI:EU:C:2017:590, n.o 49) de que a proibição de entrada prevista no artigo 11.o da [Diretiva 2008/115] só «produz efeitos» a partir do momento do regresso do estrangeiro ao seu país de origem ou a outro país terceiro?»

20.      JZ, os Governos checo, alemão e neerlandês, bem como a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. Todos eles se fizeram representar na audiência que decorreu em 6 de fevereiro de 2020.

 Apreciação

21.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, em substância, esclarecer se as disposições da Diretiva 2008/115 se opõem a uma regulamentação nacional que prevê a aplicação de uma pena de prisão a um nacional de país terceiro em situação irregular, quando o comportamento controvertido é definido por referência à imposição de uma proibição de entrada que ainda não produziu efeitos devido ao não abandono do território pela pessoa em causa.

 Privação de liberdade por força da Diretiva 2008/115

22.      São várias as ocasiões em que o Tribunal de Justiça tem sido chamado a apreciar legislação nacional à luz da Diretiva 2008/115 no que se refere à prisão de nacionais de países terceiros com fundamento em situação irregular.

23.      Pela sua própria natureza, a privação de liberdade de um indivíduo sob a forma de uma pena de prisão compromete, em princípio, o objetivo da Diretiva 2008/115, que consiste em providenciar o regresso ordenado da pessoa em questão. É por esta razão que o Tribunal de Justiça tem afirmado reiteradamente que os Estados‑Membros não podem aplicar uma regulamentação penal suscetível de pôr em causa a realização dos objetivos prosseguidos pela referida diretiva privando‑a, assim, da sua efetividade (4).

24.      Até ao momento da execução voluntária ou forçada da obrigação de regresso e, por conseguinte, do regresso efetivo do interessado ao seu país de origem, um país de trânsito ou outro país terceiro, na aceção do artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 2008/115, a situação irregular do interessado rege‑se pela decisão de regresso (5), que só produz efeitos a partir desse momento, proibindo o interessado, durante um certo período de tempo após o seu regresso, de entrar e permanecer no território dos Estados‑Membros (6).

25.      Como anteriormente expliquei (7), a jurisprudência do Tribunal de Justiça admite duas situações nas quais a Diretiva 2008/115 não se opõe à aplicação de uma pena de prisão a um nacional de um país terceiro com fundamento na irregularidade da sua permanência, designadamente quando tenha sido aplicado o procedimento de regresso instituído pela Diretiva 2008/115 e o nacional permaneça em situação irregular no referido território, sem motivo justificado para o não regresso (situação «Achughbabian» (8)), e quando o procedimento de regresso tenha sido aplicado e a pessoa em causa entre de novo no território desse Estado‑Membro em violação de uma proibição de entrada (situação «Celaj» (9)).

26.      Por conseguinte, a Diretiva 2008/115 estabelece um sistema completo a fim de garantir que um nacional de país terceiro em situação irregular abandona o território da União. Quando (i) abrangido pelo âmbito da referida diretiva, tal significa que o nacional de país terceiro está em situação irregular no território de um Estado‑Membro (10), (ii) esse Estado‑Membro não decidiu não aplicar a diretiva com fundamento nos motivos aí exaustivamente indicados (11) e (iii) esse ou essa nacional de país terceiro não goza do direito de livre circulação e (12), tal como definidos no artigo 2.o, n.o 5, do Regulamento (UE) 2016/399 (13), sendo, portanto, necessário providenciar o seu regresso (14). As obrigações que recaem sobre os Estados‑Membros por força do artigo 6.o e seguintes da Diretiva 2008/115 são contínuas e aplicam‑se ininterruptamente, no sentido de que surgem automaticamente quando as condições previstas nesses artigos estão preenchidas. Se, uma vez provado que o nacional de um país terceiro se encontra em situação irregular no território de um Estado‑Membro, esse Estado‑Membro não adotar uma decisão de regresso e, em vez disso, aplicar à pessoa em causa uma pena de prisão, estará a suspender, na prática, as suas obrigações previstas na diretiva (15).

27.      O caso mais recente no processo Ouhrami, que dizia respeito à natureza jurídica de uma proibição de entrada (16), completa este quadro. Até ao momento da execução voluntária ou forçada da obrigação de regresso e, por conseguinte, do regresso efetivo do interessado ao seu país de origem, um país de trânsito ou outro país terceiro, na aceção do artigo 3.o, n.o 3, da Diretiva 2008/115, a situação irregular do interessado rege‑se pela decisão de regresso (17), que só produz efeitos a partir desse momento, proibindo o interessado, durante um certo período de tempo após o seu regresso, de entrar e permanecer no território dos Estados‑Membros (18).

 A situação de JZ

28.      Com base nesta jurisprudência é possível extrair três conclusões provisórias para o caso em apreço.

29.      Em primeiro lugar, não se está perante uma «situação Celaj» (19), uma vez que não se verificou a reentrada no território dos Países Baixos. Com efeito, JZ nunca abandonou os Países Baixos.

30.      Em segundo lugar, o presente caso diz respeito a uma situação irregular inicial, regida pela decisão de regresso, e não, tal como no processo Ouhrami (20), a uma situação irregular posterior fruto de uma infração a uma proibição de entrada, na aceção do artigo 11.o da Diretiva 2008/115.

31.      Em terceiro lugar, quanto à «situação Achughbabian» (21), os Países Baixos podem, em princípio, prever a aplicação de uma pena de prisão a JZ com fundamento na irregularidade da sua permanência, uma vez que o procedimento de regresso instituído pela Diretiva 2008/115 foi aplicado e que JZ permanece em situação irregular neste território, sem motivo justificado de não regresso.

32.      Porém, não foi isto o que os Países Baixos fizeram. Embora tenha sido aplicado, sem sucesso, um procedimento de regresso contra JZ e este permaneça em situação irregular no território dos Países Baixos, sem motivo justificado de não regresso, a razão pela qual JZ é sancionado criminalmente e, consequentemente, privado de liberdade não é o procedimento de regresso infrutífero, mas sim o facto de lhe ter sido proibida a entrada no país. Por conseguinte, não se verifica uma «situação Achughbabian» no caso em apreço.

33.      Assim, o presente caso não diz respeito à questão de saber se um Estado‑Membro pode, numa situação como a que está em causa no processo principal, prever a aplicação de uma pena de prisão (sim, pode), mas sim à implementação efetiva dessa possibilidade pelo legislador neerlandês, na medida em que o artigo 197.o do Código Penal sanciona uma situação irregular com conhecimento da existência de uma proibição de entrada, que, em casos como o do processo principal, ainda não produz efeitos por falta de regresso inicial.

34.      Segundo JZ, decorre claramente da exposição de motivos da proposta de alteração do artigo 197.o do Código Penal que, com esta proposta, o Governo neerlandês pretendia apenas introduzir uma sanção por violação da proibição de entrada e não incriminar a permanência irregular, relativamente à qual o Governo neerlandês pretendia introduzir uma proposta legislativa separada. JZ alega ter sido efetivamente introduzida uma proposta nesse sentido em 7 de janeiro de 2013, que foi, porém, posteriormente retirada em 14 de maio de 2014 por razões políticas.

35.      Pelo contrário, segundo o Governo dos Países Baixos, o legislador neerlandês decidiu tornar a «permanência ilegal qualificada» (isto é, qualquer permanência ilegal de um estrangeiro que sabe ou tem razões sérias para acreditar que foi proibido de entrar nos Países Baixos em aplicação do artigo 66a, n.o 7, da Vw 2000) uma infração penal nos termos do artigo 197.o do Código Penal, ao passo que uma «permanência ilegal simples» não é punível ao abrigo da legislação neerlandesa.

36.      Não compete certamente ao Tribunal de Justiça resolver a questão da interpretação do artigo 197.o do Código Penal, que se afigura controverso a nível nacional.

37.      No entanto, a fim de guiar o órgão jurisdicional de reenvio e de dar uma resposta útil à sua questão, o Tribunal de Justiça deverá analisar se uma leitura do artigo 197.o do Código Penal, segundo a qual o comportamento controvertido pode ser definido por referência à imposição de uma proibição de entrada que ainda não produziu efeitos devido ao não abandono do território pela pessoa em causa é ou não compatível com o direito da União.

38.      Os Governos neerlandês e alemão defendem que se os Estados‑Membros podem, numa «situação Achughbabian», sancionar criminalmente uma situação irregular após um procedimento de regresso infrutífero, então, a fortiori, os Estados‑Membros apenas o poderão fazer, numa tal situação, se a pessoa em causa representar uma ameaça para a ordem pública, o que é comprovado pela aplicação de uma proibição de entrada. Neste contexto, os referidos governos apontam para a diferença entre a aplicação de uma proibição de entrada e a sua produção de efeitos. Afirma‑se que o direito penal nacional poderá sujeitar a prática de uma infração à existência de uma proibição de entrada.

39.      É, em meu entender, pacífico que se deve fazer uma distinção entre o momento de aplicação de uma proibição de entrada e o momento em que tal proibição produz efeitos. Além disso, conforme referido anteriormente, os Países Baixos podem, em determinadas circunstâncias, sancionar criminalmente a irregularidade da permanência. Trata‑se de matéria da sua competência no domínio do direito penal.

40.      A este respeito, gostaria de referir que a redação do artigo 197.o do Código Penal é infeliz no que se refere à letra da Diretiva 2008/115, pois torna imprecisa a distinção clara, feita por esta última entre uma decisão de regresso e uma proibição de entrada. Mesmo uma leitura complacente desta disposição obriga a piruetas intelectuais. JZ tem razão ao afirmar que esta disposição está longe de ser clara a este respeito. No entanto, ainda que esta disposição pertencente ao direito penal nacional não proceda à mesma distinção terminológica, como previsto pela Diretiva 2008/115, esta situação não me parece contrária à letra ou ao objetivo da referida diretiva. Não se pode negar que, apesar de o artigo 197.o do Código Penal estar redigido de uma forma algo confusa, não há qualquer indicação de que a sua aplicação, incluindo no caso em apreço, altere a interação entre uma decisão de regresso e uma proibição de entrada, prevista pela Diretiva 2008/115. Além disso, embora esta diretiva não se oponha à aplicação de uma sanção penal, esta não exige que o direito penal nacional reproduza integralmente a mesma formulação.

41.      A fim de eliminar quaisquer dúvidas possíveis (22), deve referir‑se que a situação do presente caso enquadra‑se perfeitamente no âmbito da Diretiva 2008/115 (23). Tendo em conta o facto de que o reino dos Países Baixos está, por força do artigo 6.o, n.o 1, da referida diretiva, sob uma obrigação permanente e contínua de emitir e aplicar ininterruptamente uma decisão de regresso, a prisão — temporária — de uma pessoa insere‑se no âmbito deste procedimento. Consequentemente, uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal não deve ser contrária à letra da Diretiva 2008/115.

42.      Caso, neste contexto, o Governo checo afirme que o presente processo não é abrangido pela Diretiva 2008/115, com o argumento de que esta diretiva não harmoniza as disposições nacionais que sancionam a irregularidade de uma permanência, cumpre‑me assinalar que, de um ponto de partida correto, o Governo checo chega à conclusão errada. É indiscutível que a Diretiva 2008/115 não harmoniza as disposições nacionais que sancionam a irregularidade de uma permanência. Porém, a Diretiva 2008/115 pode opor‑se a tais disposições, pois estas não devem comprometer a letra ou o objetivo da referida diretiva. Com efeito, isto constitui a própria essência da jurisprudência do Tribunal de Justiça acima resumida, a começar pelo Acórdão El Dridi (24). Neste sentido, gostaria de começar por relembrar que o Tribunal de Justiça tem sustentado reiteradamente que embora a competência penal dos Estados‑Membros no domínio da imigração clandestina e da residência ilegal não seja, em princípio, restringida pela Diretiva 2008/115, os Estados‑Membros não podem adotar uma regulamentação penal, suscetível de pôr em perigo a realização dos objetivos prosseguidos por uma diretiva e, por isso, privá‑la da sua eficácia (25).

43.      Por conseguinte, concluo provisoriamente que as disposições da Diretiva não se opõem a uma disposição de direito penal nacional como o artigo 197.o do Código Penal.

44.      Resta‑nos a questão da compatibilidade das disposições em causa com os direitos fundamentais da União Europeia, no que respeita à aparente falta de clareza desta última disposição.

45.      As disposições nacionais em causa no caso em apreço estão abrangidas pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/115 e, por conseguinte, pelo âmbito de aplicação do direito da União na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta. Tais disposições devem respeitar os princípios gerais do direito da União, incluindo os direitos fundamentais consagrados na Carta. A este respeito, as disposições nacionais podem ser tidas em conta para aumentar a eficácia da Diretiva 2008/115, incitando os nacionais de países terceiros a respeitar a decisão de regresso e a posterior proibição de entrada. Por outras palavras, ao introduzir a proibição de entrada, os Estados‑Membros asseguram o cumprimento do objetivo da referida diretiva. Em alternativa, pode igualmente considerar‑se que a regulamentação nacional em causa interfere potencialmente com a eficácia da Diretiva 2008/115, isto é, a situação em causa é semelhante à de uma derrogação ao direito da União (26). De acordo com este raciocínio, as situações em que a Diretiva 2008/115 permite aos Estados‑Membros privar um indivíduo, a quem a diretiva se aplica, de liberdade sob a forma de uma pena de prisão devem ser entendidas como exceções ao principal objetivo da referida diretiva. Deste modo, a Carta aplica‑se ao caso em apreço, independentemente da forma como se aborda a regulamentação nacional em questão.

46.      A este respeito, o artigo 52.o, n.o 1, da Carta estabelece que qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos, na observância do princípio da proporcionalidade. Na medida em que a Carta contém direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), o artigo 52.o, n.o 3, da Carta prevê que o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa convenção, especificando, contudo, que o direito da União pode conferir uma proteção mais ampla. Para efeitos da interpretação do artigo 6.o da Carta, deve, portanto, ter‑se em conta o artigo 5.o da CEDH como limiar mínimo de proteção.

47.      De acordo com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, qualquer privação de liberdade deve ser regular no sentido de que deve ter uma base legal no direito nacional, mas essa regularidade diz igualmente respeito à qualidade da lei, o que implica que uma legislação nacional que autoriza uma privação de liberdade deve ser suficientemente acessível, precisa e previsível na sua aplicação, de forma a evitar qualquer risco de arbitrariedade (27).

48.      Além disso, gostaria de recordar o n.o 1 do artigo 49.o da Carta, segundo o qual ninguém pode ser condenado por uma ação ou por uma omissão que, no momento da sua prática, não constituía infração perante o direito nacional ou o direito internacional. Isto inclui, em minha opinião, a obrigação de os Estados‑Membros formularem as suas disposições de direito penal de forma suficientemente precisa a fim de permitirem identificar e interpretar o âmbito e a aplicação da infração. Uma disposição de direito penal deve ser acessível e o seu sentido facilmente compreensível. Devem evitar‑se quaisquer dúvidas.

49.      No que diz respeito à compatibilidade com a Carta, gostaria de sublinhar que há menos espaço para uma leitura complacente da disposição nacional do que aquilo que era possível no que respeita à compatibilidade com a Diretiva 2008/115. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio analisar a compatibilidade da disposição em causa com os direitos fundamentais, com base na Carta, lida em conjugação com a CEDH, incluindo a jurisprudência acima referida. Se o órgão jurisdicional de reenvio pretender aplicar o artigo 197.o da Código Penal ao caso em apreço no processo principal, o referido órgão jurisdicional deve, na sequência da sua análise, chegar à conclusão de que da referida disposição resulta claramente qual o ato efetivamente controvertido. Por outras palavras, deve ficar claro que a violação da obrigação de deixar o território dos Países Baixos constitui, por si só, uma infração penal. Na ausência de tal constatação, o princípio da legalidade não é respeitado.

 Conclusão

50.      Tendo em conta as considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma à questão submetida pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal dos Países Baixos):

A Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regulamentação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que prevê a aplicação de uma pena de prisão ao nacional de país terceiro em situação irregular, quando o comportamento controvertido é definido por referência à imposição de uma proibição de entrada que ainda não produziu efeitos devido ao não abandono do território pela pessoa em causa, desde que a regulamentação seja suficientemente precisa para permitir a identificação e interpretação do âmbito e da aplicação da infração, o que compete ao órgão jurisdicional nacional verificar.


1      Língua original: inglês.


2      Diretiva 2008/118/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (JO 2008, L 348, p. 98).


3      Artigo 21.o da Vreemdelingenwet 1994 [Lei dos Estrangeiros de 1994]. Esta declaração de estrangeiro indesejado significava, no essencial, que tanto a permanência continuada nos Países Baixos como o regresso a esse país para aí permanecer após ter saído são puníveis se estiverem igualmente preenchidos os restantes elementos previstos no artigo 197.o do Código Penal.


4      V. Acórdãos de 28 de abril de 2011, El Dridi (C‑61/11 PPU, EU:C:2011:268, n.os 53 a 55); de 6 de dezembro de 2011, Achughbabian (C‑329/11, EU:C:2011:807, n.o 33); de 6 de dezembro de 2012, Sagor (C‑430/11, EU:C:2012:777, n.o 32); de 1 de outubro de 2015, Celaj (C‑290/14, EU:C:2015:640, n.o 21); e de 7 de junho de 2016, Affum (C‑47/15, EU:C:2016:408, n.o 63).


5      V. Acórdão de 26 de julho de 2017, Ouhrami (C‑225/16, EU:C:2017:590, n.o 49).


6      Ibidem.


7      V., mais em pormenor, as minhas Conclusões no processo Affum (C‑47/15, EU:C:2016:68, n.os 48 a 56).


8      V. Acórdão de 6 de dezembro de 2011, Achughbabian (C‑329/11, EU:C:2011:807, n.o 50 e primeiro travessão do dispositivo).


9      V. Acórdão de 1 de outubro de 2015, Celaj (C‑290/14, EU:C:2015:640, n.o 33 e dispositivo).


10      V. artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 2008/115.


11      V. artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2008/115.


12      V. artigo 2.o, n.o 3, da Diretiva 2008/115.


13      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, que estabelece o código da União relativo ao regime de passagem de pessoas nas fronteiras (Código das Fronteiras Schengen) (JO 2016, L 77, p. 1).


14      Sem prejuízo, claro, das exceções previstas no artigo 6.o, n.os 2 a 5, da Diretiva 2008/115.


15      V. as minhas Conclusões no processo Celaj (C‑290/14, EU:C:2015:285, n.o 50).


16      V. artigo 3.o, n.o 6, e artigo 11.o da Diretiva 2008/115.


17      V. Acórdão de 26 de julho de 2017, Ouhrami (C‑225/16, EU:C:2017:590, n.o 49).


18      Ibidem.


19      V. n.o 25 das presentes conclusões.


20      Acórdão de 26 de julho de 2017, Ouhrami (C‑225/16, EU:C:2017:590).


21      V. n.o 25 das presentes conclusões.


22      Na audiência, a Comissão pareceu indicar que uma situação como a do presente processo não era abrangida pelo âmbito da Diretiva 2008/115. O mesmo sucedeu com os Governos alemão e checo.


23      Como a Comissão salientou corretamente nas suas observações, o Reino dos Países Baixos não está sujeito à obrigação de adotar uma regulamentação penal que sancione uma situação irregular. Porém, se o fizer, terá de respeitar a diretiva, incluindo a jurisprudência do Tribunal de Justiça acima resumida.


24      Acórdão de 28 de abril de 2011, El Dridi (C‑61/11 PPU, EU:C:2011:268).


25      V., no essencial, Acórdão de 28 de abril de 2011, El Dridi (C‑61/11 PPU, EU:C:2011:268, n.os 54 e segs.).


26      Em relação a esta última hipótese, o Tribunal de Justiça já declarou que os direitos fundamentais da UE são aplicáveis, v. Acórdão de 30 de abril de 2014, Pfleger e o. (C‑390/12, EU:C:2014:281).


27      V., neste sentido, Acórdão do TEDH de 21 de outubro de 2013, Del Río Prada c. Espanha (CE:ECHR:2013:1021JUD004275009, §125).