Language of document : ECLI:EU:C:2022:414

DESPACHO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

17 de maio de 2022 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 99.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça — Procedimentos de recurso em matéria de celebração dos contratos de direito público de fornecimentos e de obras — Diretiva 89/665/CEE — Artigo 1.°, n.° 3 — Interesse em agir — Acesso aos procedimentos de recurso — Proponente excluído por uma decisão da entidade adjudicante que se tornou definitiva por não ter impugnado todos os fundamentos de exclusão da sua proposta — Falta de interesse em agir»

No processo C‑787/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), por Decisão de 25 de novembro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de dezembro de 2021, no processo

Estaleiros Navais de Peniche, SA

contra

Município de Aveiro,

Navalrocha — Sociedade de Construção e Reparações Navais, SA,

Navaltagus — Reparação e Construção Naval, SA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: N. Jääskinen, presidente de secção, M. Safjan e M. Gavalec (relator), juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: A. Calot Escobar,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de decidir por meio de despacho fundamentado, nos termos do artigo 99.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça,

profere o presente

Despacho

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.°, n.° 3, da Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos procedimentos de recurso em matéria de celebração dos contratos de direito público de fornecimentos e de obras (JO 1989, L 395, p. 33), conforme alterada pela Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007 (JO 2007, L 335, p. 31) (a seguir «Diretiva 89/665»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Estaleiros Navais de Peniche, SA, ao Município de Aveiro (Portugal) (a seguir «entidade adjudicante»), bem como ao agrupamento constituído pela Navalrocha — Sociedade de Construção e Reparações Navais, SA, e pela Navaltagus — Reparação e Construção Naval, SA (a seguir «agrupamento»), e que tem por objeto a decisão deste Município que excluiu a proposta da Estaleiros Navais de Peniche e adjudicou a este agrupamento um contrato público para a aquisição de um novo ferry elétrico.

 Quadro jurídico

3        O artigo 1.° da Diretiva 89/665 dispõe, no seu n.° 3:

«Os Estados‑Membros devem garantir o acesso ao recurso, de acordo com regras detalhadas que os Estados‑Membros podem estabelecer, a qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um determinado contrato e que tenha sido, ou possa vir a ser, lesada por uma eventual violação.»

4        Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, desta diretiva:

«Os Estados‑Membros asseguram que as medidas tomadas relativamente aos recursos a que se refere o artigo 1.° prevejam poderes para:

a)      Decretar, no mais curto prazo, mediante processo de urgência, medidas provisórias destinadas a corrigir a alegada violação ou a impedir que sejam causados novos danos aos interesses em causa, designadamente medidas destinadas a suspender ou a mandar suspender o procedimento de adjudicação do contrato público em causa ou a execução de quaisquer decisões tomadas pela entidade adjudicante;

b)      Anular ou mandar anular as decisões ilegais, incluindo suprimir as especificações técnicas, económicas ou financeiras discriminatórias que constem do convite à apresentação de propostas, dos cadernos de encargos ou de qualquer outro documento relacionado com o procedimento de adjudicação do contrato em causa;

c)      Conceder indemnizações aos lesados por uma violação.»

5        O artigo 2.°‑A, n.° 2, segundo parágrafo, da referida diretiva prevê:

«Considera‑se que os proponentes estão interessados se ainda não tiverem sido definitivamente excluídos. Uma exclusão é definitiva se tiver sido notificada aos proponentes interessados e se tiver sido considerada legal por uma instância de recurso independente ou já não puder ser objeto de recurso.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

6        A recorrente no processo principal apresentou uma proposta no âmbito do procedimento de adjudicação de um concurso público internacional aberto pela entidade adjudicante para aquisição de novo ferry elétrico para transporte entre S. Jacinto (Portugal) e o Forte da Barra (Portugal) (a seguir «procedimento controvertido»).

7        Por Decisão de 2 de julho de 2020, a entidade adjudicante excluiu essa proposta e adjudicou o concurso ao agrupamento.

8        A entidade adjudicante, em substância, adotou a sua decisão com base em três fundamentos, relativos ao facto de a recorrente no processo principal ter apresentado condições que violam aspetos da execução do contrato.

9        Em 4 de agosto de 2020, a recorrente no processo principal intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (Portugal) uma ação de contencioso pré‑contratual em cujo âmbito pediu a anulação da adjudicação do concurso ao agrupamento, bem como a condenação da entidade adjudicante à prática do ato de adjudicação do concurso a seu favor.

10      Para demonstrar a ilegalidade da Decisão de 2 de julho de 2020, a recorrente no processo principal, no âmbito dessa ação, impugnou unicamente o segundo e o terceiro fundamento de exclusão da proposta.

11      Por Sentença de 4 de março de 2021, o órgão jurisdicional de primeira instância salientou que a petição inicial era «totalmente omissa» quanto ao primeiro fundamento de exclusão da proposta da recorrente no processo principal. Daqui deduziu que esta decisão se tornou definitiva e que não podia, em consequência, condenar a entidade adjudicante à prática do ato de adjudicação do contrato à recorrente no processo principal.

12      No entanto, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto não afastou liminarmente a possibilidade de a recorrente no processo principal impugnar o ato de adjudicação do concurso ao agrupamento. Este órgão jurisdicional fez depender o reconhecimento do interesse em agir da recorrente no processo principal da condição de, em abstrato, esta última poder apresentar candidatura ao procedimento pré‑contratual que viesse a ser aberto. Devido ao caráter hipotético desse procedimento, este órgão jurisdicional julgou procedente a exceção de falta de interesse em agir da recorrente no processo principal.

13      Em sede de recurso de apelação, o Tribunal Central Administrativo do Norte (Portugal) bastou‑se com a verificação de que a recorrente no processo principal ficou definitivamente excluída do procedimento controvertido, por aquela se ter conformado com a sentença proferida em primeira instância e não a ter impugnado quanto à verificação da causa de exclusão do primeiro fundamento.

14      A recorrente no processo principal interpôs recurso extraordinário de revista no órgão jurisdicional de reenvio, o Supremo Tribunal Administrativo (Portugal). Segundo este órgão jurisdicional, é facto assente que a Decisão de 2 de julho de 2020 se tornou definitiva no que respeita à exclusão da proposta da recorrente no processo principal. Por conseguinte, apenas se discute a questão de saber se esta última tem interesse em agir para impugnar o ato de adjudicação do concurso ao agrupamento.

15      Foi neste contexto que o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O Direito da União [...], nomeadamente o número 3 do artigo 1.° da Diretiva [89/665], deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um concorrente que tenha sido excluído de um procedimento de adjudicação de um contrato público, por uma decisão da entidade adjudicante que se tornou definitiva, possa impugnar a respetiva decisão de adjudicação?

2)      No caso de uma resposta positiva à questão anterior, o Direito Europeu deve ser interpretado no sentido de que, para que aquela ação de impugnação seja admitida, é suficiente que o concorrente excluído alegue que, possivelmente, o procedimento de adjudicação será renovado em consequência de uma eventual sentença anulatória, e que ele terá, assim, uma nova chance de obter o direito de celebrar o contrato público em disputa, ou é necessário que exista uma certeza daquela renovação, e da possibilidade da sua participação no novo procedimento?»

 Pedido de tramitação acelerada e tramitação processual no Tribunal de Justiça

16      Por Despacho de 21 de dezembro de 2021, o órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido a tramitação acelerada, ao abrigo do artigo 105.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

17      Atendendo à decisão do Tribunal de Justiça de se pronunciar por meio de despacho fundamentado em conformidade com o artigo 99.° do Regulamento de Processo, não há que decidir sobre este pedido (v., neste sentido, Despacho de 13 de dezembro de 2018, Mennica Wrocławska, C‑491/18, não publicado, EU:C:2018:1042, n.os 26 a 28).

 Quanto às questões prejudiciais

18      Ao abrigo do artigo 99.° do Regulamento de Processo, quando a resposta a uma questão submetida a título prejudicial possa ser claramente deduzida da jurisprudência ou quando a resposta a essa questão não suscite nenhuma dúvida razoável, o Tribunal pode, a qualquer momento, mediante proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, decidir pronunciar‑se por meio de despacho fundamentado.

19      Há que aplicar esta disposição no âmbito do presente reenvio prejudicial.

20      Com as suas questões, que há que examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.°, n.° 3, da Diretiva 89/665 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um proponente que tenha sido excluído de um procedimento de adjudicação de um contrato público por uma decisão da entidade adjudicante que se tornou definitiva possa impugnar a decisão de adjudicação desse contrato, em especial quando esse proponente alegue que o contrato lhe poderá eventualmente ser adjudicado na hipótese de, em consequência de uma anulação daquela decisão, a entidade adjudicante decidir abrir um novo procedimento de adjudicação.

21      Importa recordar, em primeiro lugar, que, em conformidade com o disposto no artigo 2.°, n.° 1, alínea b), desta diretiva, os Estados‑Membros asseguram que as medidas tomadas relativamente aos recursos a que se refere o seu artigo 1.° prevejam poderes para anular ou mandar anular as decisões ilegais, incluindo suprimir as especificações técnicas, económicas ou financeiras discriminatórias que constem do convite à apresentação de propostas, dos cadernos de encargos ou de qualquer outro documento relacionado com o procedimento de adjudicação do contrato em causa.

22      Em segundo lugar, nos termos do artigo 1.°, n.° 3, da Diretiva 89/665, os Estados‑Membros devem garantir o acesso ao recurso, de acordo com regras detalhadas que podem estabelecer, a qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um determinado contrato e que tenha sido, ou possa vir a ser, lesada por uma eventual violação. Deste modo, tal disposição não obriga os Estados‑Membros a tornar os referidos processos de recurso acessíveis a qualquer pessoa que pretenda obter a adjudicação de um contrato público, mas permite‑lhes que exijam, além disso, que a pessoa em causa tenha sido lesada ou possa vir a ser lesada pela violação que alega (Acórdão de 19 de junho de 2003, Hackermüller, C‑249/01, EU:C:2003:359, n.° 18).

23      Chamado a interpretar a mesma disposição, o Tribunal de Justiça declarou que, no âmbito de um procedimento de adjudicação de um contrato público, os proponentes cuja exclusão é pedida têm um interesse legítimo equivalente na exclusão da proposta dos outros proponentes para efeitos da obtenção do contrato, independentemente do número de participantes no procedimento de adjudicação do contrato público em causa, do número de participantes que interpuseram recurso ou ainda da divergência dos fundamentos invocados por estes. Com efeito, a exclusão de um proponente pode conduzir a que ao outro seja diretamente adjudicado o contrato no âmbito do mesmo procedimento. Além disso, em caso de exclusão dos dois proponentes e de abertura de um novo procedimento de adjudicação de contrato público, cada um dos proponentes pode participar neste e, assim, obter indiretamente a adjudicação do contrato (v., neste sentido, Acórdãos de 4 de julho de 2013, Fastweb, C‑100/12, EU:C:2013:448, n.° 33; de 5 de abril de 2016, PFE, C‑689/13, EU:C:2016:199, n.os 24, 27 e 29; e de 24 de março de 2021, NAMA e o., C‑771/19, EU:C:2021:232, n.° 31).

24      Em terceiro lugar, o princípio jurisprudencial recordado no número anterior do presente despacho só é válido desde que a exclusão do proponente não se tenha tornado definitiva, nomeadamente depois de ter sido confirmada por uma decisão com força de caso julgado (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de dezembro de 2016, Bietergemeinschaft Technische Gebäudebetreuung und Caverion Österreich, C‑355/15, EU:C:2016:988, n.° 36; de 11 de maio de 2017, Archus e Gama, C‑131/16, EU:C:2017:358, n.os 57 e 58; e de 24 de março de 2021, NAMA e o., C‑771/19, EU:C:2021:232, n.° 42).

25      Ora, nos termos do artigo 2.°‑A, n.° 2, da Diretiva 89/665, a exclusão de um proponente é definitiva se lhe tiver sido notificada e se tiver sido considerada legal por uma instância de recurso independente ou já não puder ser objeto de recurso. Daqui resulta que o caráter ainda não definitivo da decisão de exclusão determina, para estes proponentes, a legitimidade ativa para impugnar a decisão de adjudicação (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia, C‑497/20, EU:C:2021:1037, n.° 74).

26      O interesse em agir de um proponente afastado de um procedimento de adjudicação de um contrato para impugnar a decisão de adjudicação desse contrato está assim intrinsecamente ligado à manutenção de um interesse em agir para impugnar a decisão que o excluiu desse procedimento. Por conseguinte, não tendo interesse em agir para impugnar a decisão que excluiu a sua proposta, um proponente afastado não pode alegar que conserva um interesse em agir para impugnar a decisão de adjudicação do contrato.

27      Semelhante interesse em agir não pode ser inferido do facto de o contrato poder eventualmente ser adjudicado ao referido proponente na hipótese de, em consequência de uma anulação daquela decisão, a entidade adjudicante decidir abrir um novo procedimento de adjudicação.

28      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que a entidade adjudicante excluiu a proposta da recorrente no processo principal com base em três fundamentos, dos quais apenas dois foram impugnados por esta última. Neste contexto, o órgão jurisdicional de primeira instância constatou que o fundamento de exclusão que não foi impugnado continuava a ser oponível à recorrente no processo principal, pelo que a sua exclusão do procedimento controvertido devia ser considerada definitiva. Resulta igualmente da decisão de reenvio que a recorrente no processo principal não impugnou esta apreciação do órgão jurisdicional de primeira instância, no âmbito do seu recurso.

29      Assim, uma vez que a recorrente no processo principal não impugnou todos os fundamentos de exclusão da sua proposta, a constatação do órgão jurisdicional de primeira instância segundo a qual a exclusão da sua proposta do procedimento de adjudicação controvertido estava justificada adquiriu força de caso julgado, tendo isto sido explicitamente confirmado pelo Supremo Tribunal Administrativo no seu pedido de decisão prejudicial. Por conseguinte, conforme resulta expressamente da decisão de reenvio, a decisão de exclusão da proposta da recorrente no processo principal tornou‑se definitiva, pelo que esta última não pode invocar um interesse em agir para impugnar a decisão de adjudicação do contrato.

30      Atendendo ao que precede, há que responder às questões submetidas que o artigo 1.°, n.° 3, da Diretiva 89/665 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um proponente que tenha sido excluído de um procedimento de adjudicação de um contrato público por uma decisão da entidade adjudicante que se tornou definitiva possa impugnar a decisão de adjudicação desse contrato. A este respeito, é indiferente que o proponente excluído alegue que o contrato lhe poderá eventualmente ser adjudicado na hipótese de, em consequência de uma anulação daquela decisão, a entidade adjudicante decidir abrir um novo procedimento de adjudicação.

 Quanto às despesas

31      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

O artigo 1.°, n.° 3, da Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos procedimentos de recurso em matéria de celebração dos contratos de direito público de fornecimentos e de obras, conforme alterada pela Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um proponente que tenha sido excluído de um procedimento de adjudicação de um contrato público por uma decisão da entidade adjudicante que se tornou definitiva possa impugnar a decisão de adjudicação desse contrato. A este respeito, é indiferente que o proponente excluído alegue que o contrato lhe poderá eventualmente ser adjudicado na hipótese de, em consequência de uma anulação daquela decisão, a entidade adjudicante decidir abrir um novo procedimento de adjudicação.

Feito no Luxemburgo, em 17 de maio de 2022.

O Secretário

 

O Presidente da Oitava Secção

A. Calot Escobar

 

N. Jääskinen


*      Língua do processo: português.