CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL
JULIANE KOKOTT
apresentadas em 29 de setembro de 2022 (1)
Processo C‑78/21
AS «PrivatBank»,
A,
B,
Unimain Holdings Limited
contra
Finanšu un kapitāla tirgus komisija
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Administratīvā apgabaltiesa (Tribunal Administrativo Regional, Letónia)]
«Reenvio prejudicial — Artigos 56.o e 63.o TFUE — Livre prestação de serviços — Serviços financeiros no domínio da livre circulação de capitais e pagamentos — Restrições — Proibição de uma instituição de crédito de estabelecer ou manter relações de negócio com pessoas sem ligação à Letónia — Justificação — Prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo — Artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE — Diretiva (UE) 2015/849 — Proporcionalidade»
I. Introdução
1. O regime de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo que vigora na União Europeia impõe certas exigências aos modelos de gestão do risco dos bancos. Entre elas conta‑se, nomeadamente, a obrigação de verificação da identidade do cliente antes do estabelecimento de uma relação de negócio ou da realização de certa operação e de recolher informações acerca da finalidade da relação de negócio. Se isso não for possível, as operações em causa não podem ser realizadas nem a relação de negócio estabelecida. A intensidade das medidas de diligência depende do perfil de risco do cliente, o qual, nos termos do vigésimo segundo considerando da Diretiva (UE) 2015/849 (2), deve ser determinado segundo uma abordagem holística baseada no risco.
2. No presente caso, a autoridade de supervisão letã, a Finanšu un kapitāla tirgus komisija (Comissão dos Mercados Financeiro e de Capitais, Letónia, a seguir «FKTK»), responsável pelo combate ao branqueamento de capitais, verificou a existência de falhas no modelo de gestão do risco de uma instituição de crédito sediada na Letónia, que subsistiram durante um determinado período de tempo. Segundo a FKTK, a referida instituição de crédito não estaria em condições de cumprir as medidas de diligência necessárias relativamente aos seus clientes. Por este motivo, a FKTK impôs a essa instituição de crédito a obrigação de não estabelecer relações de negócio ou de pôr‑lhes imediatamente termo quando verifique que a pessoa com quem foi estabelecida essa relação de negócio, em momento posterior ao da prolação da decisão pela FKTK, não tem ligação com a República da Letónia e o seu volume de movimentos de crédito mensais é superior a um determinado patamar. O que suscita a questão de saber se e, em caso afirmativo, em que circunstâncias e em que condições uma tal medida é compatível com as liberdades fundamentais.
II. Quadro jurídico
A. Direito da União
1. TFUE
3. Nos termos do artigo 56.o, primeiro parágrafo, TFUE, no âmbito das disposições seguintes, as restrições à livre prestação de serviços na União serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados‑Membros estabelecidos num Estado‑Membro que não seja o do destinatário da prestação.
4. Nos termos do artigo 63.o, n.o 1, TFUE, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados‑Membros e entre Estados‑Membros e países terceiros.
5. O artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE determina que o disposto no artigo 63.o não prejudica o direito de os Estados‑Membros de tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.
2. Diretiva 2015/849
6. A quarta diretiva relativa ao branqueamento de capitais, a Diretiva 2015/849, reformulou a terceira diretiva relativa ao branqueamento de capitais, a Diretiva 2005/60/CE (3). A quinta diretiva relativa ao branqueamento de capitais, a Diretiva 2018/843 (4), não se aplica ao presente caso, atendendo ao seu período de vigência.
7. O vigésimo segundo considerando da Diretiva 2015/849 tem o seguinte teor:
«O risco de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo não é sempre o mesmo em todos os casos, pelo que deverá ser utilizada uma abordagem holística baseada no risco. A abordagem baseada no risco não constitui uma opção demasiado permissiva para os Estados‑Membros e as entidades obrigadas. Implica a tomada de decisões baseadas em provas a fim de combater de modo mais eficaz os riscos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo a que a União e aqueles que nela operam estão expostos.»
8. O artigo 1.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2015/849 define o seu objeto:
«1. A presente diretiva visa prevenir a utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo.
2. Os Estados‑Membros devem assegurar a proibição do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.»
9. O artigo 5.o da Diretiva 2015/849 estatui o seguinte:
«Os Estados‑Membros podem aprovar ou manter em vigor, nas matérias reguladas pela presente diretiva, disposições mais rigorosas para prevenir o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo, dentro dos limites do direito da União.»
10. O artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2015/849 refere‑se à avaliação do risco pelos Estados‑Membros:
«1. Cada Estado‑Membro toma as medidas adequadas para identificar, avaliar, compreender e mitigar os riscos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo a que está exposto, bem como quaisquer preocupações conexas em matéria de proteção de dados, e mantém atualizada essa avaliação do risco.»
11. O artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2015/849 tem por objeto a avaliação do risco a realizar pelas instituições financeiras:
«1. Os Estados‑Membros asseguram que as entidades obrigadas tomam medidas adequadas para identificar e avaliar os seus riscos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, tendo em conta fatores de risco incluindo os associados aos seus clientes, a países ou zonas geográficas, produtos, serviços, operações ou canais de distribuição. Essas medidas devem ser proporcionadas à natureza e à dimensão das entidades obrigadas.»
12. O capítulo II da Diretiva 2015/849 regula a diligência quanto à clientela. Na secção 1, com a epígrafe «Disposições gerais», os artigos 13.o e 14.o preveem as medidas de diligência gerais quanto à clientela. Nos termos do artigo 13.o, n.o 1, as mesmas são compostas pela identificação do cliente [alínea a)] e do beneficiário efetivo [alínea b)], pela avaliação e, se necessário, a obtenção de informações sobre o objeto e a pretendida natureza da relação de negócio [alínea c)], bem como pela realização de uma vigilância contínua da relação de negócio [alínea d)].
13. O artigo 14.o, n.o 4, primeiro parágrafo, da Diretiva 2015/849 regula as consequências da impossibilidade de cumprir com os requisitos de diligência mencionados no artigo 13.o desta diretiva:
«4. Os Estados‑Membros proíbem a entidade obrigada que não esteja em condições de cumprir os requisitos de diligência quanto à clientela previstos no artigo 13.o, n.o 1, primeiro parágrafo, alíneas a), b) ou c), de efetuar operações através de uma conta bancária, de estabelecer uma relação de negócio ou de efetuar transações, exigindo‑lhe que ponha termo à relação de negócio e pondere comunicar uma operação suspeita à UIF sobre o cliente nos termos do artigo 33.o»
14. As secções 2 e 3 do capítulo II da Diretiva 2015/849 preveem, respetivamente, a diligência simplificada e a diligência reforçada quanto à clientela.
15. No que respeita à diligência simplificada, resulta do artigo 15.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2015/849 que se um Estado‑Membro ou uma entidade obrigada identificar áreas de risco mais baixo, ou quando uma entidade obrigada se tiver certificado de que a relação comercial ou a operação apresenta um grau de risco mais baixo, a mesma pode ser autorizada a aplicar medidas de diligência simplificada quanto à clientela. Quanto à correspondente avaliação de riscos, o artigo 16.o da Diretiva remete para os fatores de identificação de situações potencialmente de menor risco que figuram no anexo II.
16. No que respeita à diligência reforçada, resulta do artigo 18.o, n.o 1, da Diretiva 2015/849, que nos casos previstos nos artigos 19.o a 24.o e de pessoas singulares ou coletivas estabelecidas em países terceiros identificados pela Comissão como de alto risco, bem como noutros casos com risco mais elevado, como tal identificados pelos Estados‑Membros ou pelas entidades obrigadas, devem estas últimas aplicar medidas de diligência reforçada a fim de gerirem e mitigarem esses riscos de forma adequada. O artigo 18.o, n.o 3, remete, quanto à análise do risco, para os fatores indicativos de situações com um risco potencialmente mais elevado constantes do anexo III.
17. A secção 4 do capítulo VI da Diretiva 2015/849, o qual tem por epígrafe «Políticas, Procedimentos e Supervisão», regula as sanções. Nos termos do artigo 58.o, n.o 1, segunda frase, as sanções ou medidas previstas no âmbito da transposição da diretiva devem ser eficazes, proporcionadas e dissuasivas. O artigo 59.o, n.o 2, desta mesma diretiva enuncia sanções e medidas administrativas mínimas que os Estados‑Membros podem aplicar, sendo que na alínea c) se prevê, concretamente, a revogação ou suspensão da autorização caso a entidade obrigada dependa de autorização.
18. O artigo 59.o, n.o 4, da Diretiva 2015/849 permite, além disso, a aplicação de sanções administrativas, não previstas na diretiva:
«4. Os Estados‑Membros podem habilitar as autoridades competentes a imporem tipos suplementares de sanções administrativas, além dos referidos no n.o 2, alíneas a) a d), ou a imporem coimas que excedam os montantes referidos no n.o 2, alínea e), e no n.o 3.»
19. Os anexos II e III da Diretiva 2015/849 contêm listas não exaustivas dos fatores e tipos indicativos de, respetivamente, risco potencialmente mais baixo e risco potencialmente mais elevado. Nos termos do n.o 1, alínea c), e n.o 3, alínea a), do anexo II, os Estados‑Membros situam‑se numa zona geográfica de risco mais baixo. Nos termos do n.o 3, alínea b), do anexo III, refere‑se, a propósito dos fatores de risco geográfico potencialmente mais elevado, «Países identificados por fontes idóneas como estando caracterizados por níveis consideráveis de corrupção ou outra atividade criminosa».
B. Direito letão
20. O artigo 6.o, n.o 1, e n.o 1.2, ponto 2, da Noziedzīgi iegūtu līdzekļu legalizācijas un terorisma finansēšanas novēršanas likums (Lei de Prevenção do Branqueamento de Capitais e do Financiamento do Terrorismo, a seguir «Lei PBCFT»), de 17 de julho de 2008 (Latvijas Vestnesis 2008, n.o 116), dispõe que a instituição de crédito deve proceder à avaliação e à documentação dos riscos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa e, com base nessa avaliação, estabelece um sistema de controlo interno para a prevenção do branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa, tomando em consideração, em especial, os riscos nacionais e geográficos, nomeadamente, o risco de o cliente ou de o seu beneficiário efetivo estarem associados a um país ou a um território cujas circunstâncias económicas, sociais, legais ou políticas possam indicar um risco elevado de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa.
21. Além disso, os artigos 5.o, 6.o, n.o 13, e 7.o, n.o 1, ponto 3, da Finanšu un kapitāla tirgus komisijas likums (Lei relativa à Comissão dos Mercados Financeiro e de Capitais), de 1 de junho de 2000, Latvijas Vēstnesis, 2000, n.o 230/232), o artigo 45.o, n.o 1, ponto 1, da Lei PBCFT, e os artigos 991 e 113, n.o 1, ponto 4, da Kredîtiestazu likums Kredîtiestazu likums (Lei das Instituições de Crédito, de 5 de outubro de 1995, Latvijas Vēstnesis, 1995, n.o 163), dispõem que a FKTK deverá fiscalizar e controlar se os operadores dos mercados financeiros e de capitais satisfazem as exigências da Lei PBCFT e pode impor restrições, quer aos direitos e atividades de uma instituição de crédito, incluindo a suspensão total ou parcial dos serviços financeiros, quer ao cumprimento das obrigações.
III. Matéria de facto e pedido de decisão prejudicial
22. O AS «Privatbank» (a seguir «Privatbank») é uma instituição de crédito com sede social na Letónia. Os cidadãos cipriotas A e B, bem como a sociedade cipriota Unimain Holdings Limited, são acionistas do Privatbank.
23. Entre 17 e 30 de outubro de 2017 a FKTK procedeu a uma inspeção das atividades do Privatbank a fim de avaliar a sua conformidade com as exigências regulamentares em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, no âmbito da aplicação de medidas de diligência quanto à clientela ligada aos seus acionistas e à supervisão das suas operações.
24. No âmbito desta inspeção, a FKTK apurou que o Privatbank tinha violado, em especial, as exigências em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo previstas na Lei das Instituições de Crédito e na Lei PBCFT. Segundo a FKTK, o sistema de controlo interno do banco, quanto às medidas de diligência face à clientela e à supervisão das operações, não era suficientemente eficaz, há algum tempo, para assegurar o cumprimento pelo banco de todos os requisitos legais em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo nem para assegurar, no âmbito do banco, uma gestão eficaz dos riscos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo. Em particular, o Privatbank tinha criado condições mais favoráveis para uma parte dos clientes, cujos beneficiários efetivos eram seus acionistas, tanto na supervisão das operações dos clientes existentes como no registo de novos clientes nesse grupo.
25. Por Decisão de 13 de setembro de 2019, a FKTK, aplicou uma coima ao Privatbank e impôs‑lhe uma série de injunções (a seguir «decisão controvertida»). Uma dessas injunções, imposta até à execução das medidas previstas na decisão recorrida e à obtenção da aprovação da FKTK, consistiu na proibição de estabelecimento de relações de negócio ou na exigência de que pusesse imediatamente termo às relações de negócio quando se verificasse que a pessoa com quem foi estabelecida essa relação de negócio. após a adoção da decisão recorrida, preenchia um dos seguintes critérios:
– a pessoa singular não tem ligação com a República da Letónia e o seu volume de movimentos de crédito mensais é superior a 15 000 euros ou a atividade económica da pessoa coletiva não está ligada à República da Letónia e o seu volume de movimentos de crédito mensais é superior a 50 000 euros (n.o 4.4.1.2 da decisão controvertida);
– os beneficiários efetivos da sociedade são acionistas do banco ou pessoas a eles associadas (n.o 4.4.1.3 da decisão controvertida).
26. Foi igualmente imposta ao Privatbank a obrigação de garantir que o volume de movimentos de crédito mensais tanto dos clientes cujos beneficiários efetivos fossem acionistas do banco ou pessoas a eles associadas, como dos clientes pertencentes ao grupo de clientes ligados a esses clientes, não ultrapassasse o volume do crédito mensal médio do cliente correspondente para o ano de 2019, segundo os dados fornecidos pelo banco (n.o 4.4.2 da decisão controvertida).
27. O Privatbank interpôs no Administratīvā apgabaltiesa (Tribunal Administrativo Regional, Letónia) recurso de anulação da decisão controvertida relativo à infração declarada e à coima aplicada. A pessoa A, a pessoa B, e a sociedade Unimain Holdings Limited, interpuseram no mesmo tribunal recurso de anulação das injunções previstas nos n.os 4.4.1.2, 4.4.1.3 e 4.4.2 da decisão controvertida. Segundo os acionistas do Privatbank, a decisão controvertida viola os artigos 18.o e 63.o TFUE. Alegam que as restrições adotadas na decisão controvertida não resultam do exercício de u atividade ilícita nem têm fundamento à luz das proibições em matéria de prevenção do branqueamento de capitais em vigor na UE, incluindo na Letónia. As restrições aplicadas foram adotadas e produzem efeitos em relação a qualquer pessoa singular ou coletiva, mesmo quando atuem em conformidade com a lei. Ao obrigar o banco a colaborar única e exclusivamente com nacionais e empresas da República da Letónia, impõe‑se‑lhe que considere automaticamente todas as outras pessoas, incluindo os nacionais e empresas da União Europeia, como pessoas em si mesmas perigosas e de risco potencialmente elevado, uma vez que o banco não está autorizado a decidir de outro modo e a começar a colaborar com essas pessoas.
28. A FKTK contrapõe que a decisão controvertida não pode ser considerada uma restrição à livre circulação de capitais entre os Estados‑Membros, uma vez que as injunções se aplicam a uma única instituição de crédito e respeitam a um único grupo específico de clientes dessa instituição de crédito. A decisão controvertida não priva esses clientes do direito de depositar fundos em qualquer outra instituição de crédito autorizada na República da Letónia. O objetivo das injunções é prevenir as violações da regulamentação perpetradas pelo Privatbank e prevenir eventuais futuras infrações suscetíveis de ter consequências importantes, não apenas no que diz respeito ao risco de o banco se ver envolvido em branqueamento de capitais ou na tentativa de branqueamento de capitais, de contornar ou de não cumprir sanções internacionais, mas também no que se refere ao risco reputacional para o setor financeiro no seu todo. Destarte, a decisão controvertida constitui uma restrição admissível e proporcionada para efeitos do artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE.
29. Nestas circunstâncias, o Administratīvā apgabaltiesa (Tribunal Administrativo Regional), por Despacho de 11 de janeiro de 2021, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
1) Podem os empréstimos e créditos financeiros, bem como as operações em contas correntes e de depósitos junto de instituições financeiras (incluindo os bancos), referidos no anexo I da Diretiva [88/361/CEE] (5) ser igualmente considerados movimentos de capitais, no sentido do artigo 63.o, n.o 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia […]?
2) Uma restrição (que não resulta diretamente da legislação do Estado‑Membro) imposta pela autoridade competente de um Estado‑Membro a uma determinada instituição de crédito, que a proíbe de estabelecer relações de negócio e a obriga a pôr termo às que já existam com pessoas que não sejam nacionais da República da Letónia, constitui uma medida de um Estado‑Membro na aceção do artigo 63.o, n.o 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e, enquanto tal, implica uma restrição ao princípio da livre circulação de capitais entre os Estados‑Membros, reconhecido nessa disposição?
3) A restrição à livre circulação de capitais, garantida no artigo 63.o, n.o 1, [TFUE], justifica‑se para atingir o objetivo de prevenir a utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, enunciado no artigo 1.o da Diretiva 2015/849?
4) O meio escolhido pelo Estado‑Membro ‑ a obrigação imposta a uma determinada instituição de crédito de não estabelecer relações de negócio e de pôr termo às já existentes com pessoas que não sejam nacionais de um Estado‑Membro concreto (a República da Letónia) ‑ é adequado para a realização do objetivo enunciado no artigo 1.o da Diretiva [2015/849] e, consequentemente, constitui uma exceção prevista no artigo 65.o, n.o 1, alínea b), [TFUE]?
30. O órgão jurisdicional de reenvio, em resposta a um pedido de esclarecimentos do Tribunal de Justiça, apresentou em 10 de março de 2022 observações complementares quanto à matéria de facto, tendo nessa altura esclarecido que a medida enunciada no n.o 4.4.1.2. da decisão controvertida tem como critério decisivo não a nacionalidade letã, mas sim a ligação à Letónia.
31. No processo no Tribunal de Justiça, o Privatbank, os Governos letão e italiano e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas acerca das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio. Na audiência de 27 de abril de 2022 intervieram A e o., o Governo letão, a FKTK e a Comissão Europeia.
IV. Apreciação jurídica
32. Constitui objeto do pedido de decisão prejudicial a legalidade da injunção imposta ao Privatbank de não estabelecer ou não manter relações de negócio sempre que verifique que o parceiro dessa relação é uma pessoa sem ligação à Letónia. Estas restrições aplicam‑se apenas a partir de um certo volume de movimentos de crédito mensais: 15 000 euros, no caso de pessoas singulares, e 50 000 euros, no caso de pessoas coletivas (6).
33. O órgão jurisdicional de reenvio, em resposta a um pedido de esclarecimentos do Tribunal de Justiça, confirmou que a decisão controvertida tem como critério não a nacionalidade dos clientes em causa, mas sim a sua ligação à Letónia.
34. Começarei por me pronunciar acerca da questão das liberdades fundamentais aplicáveis (v. secção A) e seguidamente tomarei posição acerca da restrição a essas liberdades (v. secção B). Por fim, analisarei se o objetivo da prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo é suscetível de justificar essa restrição (v. secção C).
A. Primeira questão: as liberdades fundamentais que estão em causa
35. O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em primeiro lugar, se os empréstimos e créditos financeiros, bem como as operações em contas correntes e de depósitos junto de instituições financeiras, em especial com bancos, podem ser considerados movimentos de capitais, no sentido do artigo 63.o, n.o 1, TFUE.
36. Não havendo, nos Tratados, uma definição do conceito de «movimentos de capitais», o Tribunal de Justiça tem atribuído valor orientador à nomenclatura dos movimentos de capitais que figura no anexo I da Diretiva 88/361 (7). Segundo a introdução deste anexo, os movimentos de capitais enumerados na nomenclatura em causa entendem‑se como abrangendo o conjunto das operações necessárias à realização dos movimentos de capitais, bem como as operações de reembolso dos créditos ou empréstimos, sendo que a listagem em causa não tem natureza taxativa. Na rubrica VI do anexo I referem‑se «operações em contas correntes e de depósitos junto de instituições financeiras» e na rubrica VIII «empréstimos e créditos financeiros». De resto, dispõe este anexo, na secção com a epígrafe «Notas explicativas», que os bancos constituem «instituições financeiras». Além disso, o Tribunal de Justiça já decidiu que a atividade de concessão de créditos a título profissional se enquadra no âmbito da livre circulação de capitais (8).
37. Por conseguinte, importa responder à primeira questão no sentido de que os empréstimos e créditos financeiros, bem como as operações em contas correntes e de depósitos junto de instituições financeiras, tais como bancos, devem ser considerados «movimentos de capitais», no sentido do artigo 63.o, n.o 1, TFUE.
38. Tal como o Tribunal de Justiça já decidiu, a atividade de concessão de créditos a título profissional constitui, além disso, uma prestação de serviços, na aceção do artigo 56.o TFUE. A atividade de concessão de créditos a título profissional enquadra‑se, em princípio, tanto no âmbito da livre prestação de serviços, na aceção do artigo 56.o TFUE e seguintes, como no da livre circulação de capitais, na aceção do artigo 63.o TFUE e seguintes (9).
39. Deste modo, coloca‑se a questão de saber se importa apreciar ambas as liberdades fundamentais ou se, no caso do processo principal, uma delas cede perante a outra.
40. O Tribunal de Justiça entende que do artigo 57.o, primeiro parágrafo, TFUE, segundo o qual «[p]ara efeitos do disposto nos Tratados, consideram‑se “serviços” as prestações realizadas normalmente mediante remuneração, na medida em que não sejam reguladas pelas disposições relativas à livre circulação de mercadorias, de capitais e de pessoas», não se pode extrair uma subsidiariedade geral da livre prestação de serviços relativamente à livre circulação de capitais (10).
41. Efetivamente, o Tribunal de Justiça aprecia, em princípio, uma medida relacionada tanto com a livre prestação de serviços como com a livre circulação de capitais à luz de apenas uma dessas duas liberdades, se se revelar que, nas circunstâncias do caso, uma delas é totalmente secundária relativamente à outra e pode ser‑lhe subordinada (11). Já se não for percetível que uma das liberdades fundamentais é totalmente secundária relativamente à outra, importa apreciar ambas as liberdades (12).
42. O Tribunal de Justiça já decidiu, em alguns casos, que a atividade de concessão de crédito respeita sobretudo à livre prestação de serviços. Entendeu‑se que a diminuição dos fluxos financeiros transfronteiriços relacionados com estas prestações, constitui apenas uma consequência inelutável da restrição à livre prestação de serviços. Destarte, apreciou‑se apenas a livre prestação de serviços (13).
43. Mas não é esse o caso dos autos.
44. Aqui, a proibição de determinadas relações de negócio (14) afeta em igual medida tanto o recurso aos serviços financeiros prestados pelo Privatbank como os fluxos de capitais enquanto tais. Pois, em primeiro lugar, esta decisão, através do critério do montante do crédito, independentemente do eventual recurso a serviços de aconselhamento financeiro, relaciona‑se diretamente com a circulação de capitais. Em segundo lugar, o objetivo das restrições impostas é impedir os fluxos de dinheiro transfronteiriços cuja finalidade seja o encobrimento de atos de branqueamento de capitais. Em terceiro lugar, a decisão, ao estabelecer como critério o montante dos movimentos de crédito proíbe não apenas operações de crédito, mas todas as outras relações de negócio do Privatbank que incluam movimentos de capitais nas contas dos clientes afetados, relativamente às quais não é possível estabelecer de modo geral se se relacionam com a livre prestação de serviços ou com a livre circulação de capitais. De resto, é a própria Diretiva 2015/849 que assume que, no domínio da prevenção do branqueamento de capitais, relevam ambas as liberdades fundamentais (15).
45. Por estas razões partilho da opinião da Comissão e do Governo italiano, segundo a qual a restrição controvertida das relações de negócio do Privatbank, se encontra abrangida pelo âmbito de aplicação tanto das disposições que regulam a livre prestação de serviços como daquelas que tratam da livre circulação de capitais. Por conseguinte, irei seguidamente analisar as questões do órgão jurisdicional de reenvio à luz de ambas as liberdades fundamentais.
46. Deste modo, não há que determinar se e, eventualmente, em que medida as restrições à livre circulação de capitais seriam mais facilmente admissíveis, se só estivesse em causa essa livre circulação de capitais, como sugere, em especial, o artigo 65.o TFUE (16).
B. Segunda questão: restrição à livre prestação de serviços e à livre circulação de capitais
47. A obrigação de um banco, de não estabelecer ou manter relações de negócio com clientes sem ligação ao Estado‑Membro no qual o banco tem a sua sede social, não depende da nacionalidade dos clientes em causa. Por conseguinte, inexiste uma discriminação direta em razão da nacionalidade, mas apenas uma discriminação indireta, que é igualmente proibida (17), nos termos do artigo 56.o, primeiro parágrafo, e do artigo 63.o, n.o 1, TFUE.
48. Neste contexto, como referiu o Governo letão, entende‑se a ligação à Letónia como uma relação de natureza económica ou pessoal. Esta relação pode ser estabelecida através do domicílio, da detenção de propriedade no país ou de outros fatores. Também no caso de nacionais letões pode faltar a ligação à Letónia, por exemplo se estiverem domiciliados no estrangeiro e não tiverem qualquer tipo de relação com o seu país de origem.
49. Contudo, importa partir do princípio de que os nacionais letões terão com substancial maior frequência a necessária ligação à Letónia do que pessoas sem essa nacionalidade. Assim, o critério da ligação à Letónia conduz a que sejam essencialmente afetados clientes sem nacionalidade letã.
50. À verificação deste efeito indiretamente discriminatório não é oponível, como pretende a FKTK, a circunstância de as pessoas com ligação à Letónia e aquelas que não a têm não se encontrarem em situações comparáveis. O Tribunal de Justiça, em parte, já prescinde do critério da análise da comparabilidade objetiva, enquanto pressuposto adicional de uma discriminação (18). De resto, noutras ocasiões já manifestei as minhas reservas quanto à aplicação deste critério, visto que em última análise acaba apenas por conduzir a uma antecipação da análise das causas de justificação (19).
51. Assim, é manifesto que as pessoas com ligação à Letónia e as pessoas sem essa ligação não se encontram em situações iguais. Mas isto não é determinante para examinar a existência de uma restrição à livre prestação de serviços e à livre circulação de capitais. Pois caso se considerasse que a falta de ligação ao Estado‑Membro em causa constituiria, sem mais, diferença objetiva bastante entre os casos, estar‑se‑ia a esvaziar materialmente de conteúdo as liberdades fundamentais em causa. Efetivamente, elas destinam‑se, precisamente, a possibilitar o recurso à prestação de serviços transfronteiriça e a estimular os fluxos de capital para outros Estados‑Membros e países terceiros. Por isso obstam ‑ sem prejuízo da sua eventual justificação ‑ às restrições com fundamento na falta de ligação a certo Estado‑Membro.
52. O que importa apurar é, isso sim, se a restrição em causa pode eventualmente justificar‑se, atendendo às diferenças entre os clientes nacionais e os estrangeiros. De facto, o cumprimento do dever de diligência do Privatbank revela‑se mais difícil no caso dos clientes estrangeiros do que no caso dos nacionais, como referiu a FKTK durante a audiência. Só que este aspeto reporta‑se à justificação da medida e não à questão de saber se ela constitui ou não uma restrição à livre prestação de serviços e à livre circulação de capitais.
53. Também não convence a alegação do Governo letão, no sentido de que inexiste uma restrição pelo facto de os clientes afetados poderem recorrer aos serviços de qualquer outra instituição de crédito autorizada na Letónia. Com efeito, pertence à natureza da livre prestação de serviços e da livre circulação de capitais poderem os beneficiários decidir, por si mesmos, qual o banco com o qual querem estabelecer relações, a fim, por exemplo, de poderem usufruir de determinados produtos ou condições.
54. Também não constitui argumento contra o efeito restritivo da medida a circunstância de ela só afetar um número reduzido de clientes, mais concretamente os clientes do Privatbank sem ligação à Letónia e que ultrapassam o volume de movimentos de crédito fixado, nem a circunstância de a medida só vigorar durante um período de tempo limitado. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, também as restrições de reduzida importância, às liberdades fundamentais, são proibidas (20). Sem prejuízo disso mesmo, a medida aplica‑se potencialmente a todas as pessoas sem ligação à Letónia, que pretendem celebrar negócios com o Privatbank, em valor superior ao volume de movimentos de crédito estabelecido. Podem estar em causa muitos potenciais clientes.
55. Logo, uma imposição deste tipo, impedindo relações de negócio, restringe tanto a livre prestação de serviços como a livre circulação de capitais.
C. Terceira e quarta questões: justificação da restrição, em especial no que respeita à proporcionalidade
56. Através da terceira e quarta questões, que podem ser apreciadas conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pretende apurar se a restrição se justifica como medida para prevenir o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo (21) e enquanto exceção prevista no artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE.
57. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma restrição às liberdades fundamentais só pode ser admitida na condição, em primeiro lugar, de ser justificada por uma das razões previstas ou por uma razão imperiosa de interesse geral e, em segundo lugar, de respeitar o princípio da proporcionalidade. O que implica, em especial, que seja adequada para garantir, de forma coerente e sistemática, a realização do objetivo prosseguido e que não ultrapasse o que é necessário para o alcançar (22).
1. Quanto ao objetivo da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo
58. Segundo a FKTK e o Governo letão, o objetivo da restrição das relações de negócio do Privatbank consiste, em especial, em impedir infrações do banco às normas legais em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e prevenir novas violações da lei. Estas disposições legais visam prevenir a utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, em conformidade com o objetivo enunciado no artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2015/849.
59. O combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo constitui um objetivo legítimo, suscetível de justificar uma restrição às liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado (23). Uma vez que a Diretiva 2015/849 prevê uma harmonização mínima (24), podem os Estados‑Membros adotar, neste domínio, medidas nacionais mais abrangentes (25).
60. Além do objetivo da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, a restrição em causa prossegue o objetivo de fazer respeitar as regras da autoridade de supervisão financeira no domínio da prevenção do branqueamento de capitais. Assim, visa também atingir o objetivo do artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE (26), constituindo uma medida destinada a impedir infrações às disposições legais e regulamentares nacionais, em matéria de supervisão prudencial das instituições financeiras.
2. Quanto à adequação da medida
61. Uma regulamentação nacional só é apta a garantir a realização do objetivo invocado se responder verdadeiramente à intenção de o alcançar de uma forma coerente e sistemática (27).
62. Como referiu o Governo letão em audiência, um dos princípios fulcrais da Diretiva 2015/849 consiste na obrigação de os bancos terem de conhecer os respetivos clientes (princípio «know your customer»). É por este motivo que o artigo 8.o desta diretiva prevê medidas de diligência gerais para os bancos, cujo cumprimento compete aos Estados‑Membros fiscalizar, nos termos do artigo 7.o
63. É certo que a Diretiva 2015/849 parte do pressuposto de que os clientes de outros Estados‑Membros não representam um risco mais elevado (28). Porém, na prática, as instituições financeiras podem ter mais dificuldade em obter informações acerca de clientes que não exercem uma atividade económica no país em que abrem conta bancária e no qual não possuem nem residência, nem propriedade, e com o qual também não têm uma relação significativa. Uma vez que os bancos têm mais dificuldade em obter informações acerca da origem dos meios financeiros e dos negócios dos clientes no estrangeiro, os riscos acabam por ser potencialmente maiores. Ou seja, a distância geográfica do cliente relativamente ao banco pode favorecer o anonimato das transações, o que, por seu turno, aumenta o risco de branqueamento de capitais (29).
64. Tendo em conta as falhas do modelo de gestão do risco do Privatbank, previamente apuradas, e o risco identificado pela FKTK, de o banco não cumprir as obrigações de diligência relativamente aos seus clientes com domicílio no estrangeiro (30), parece‑me que a imposição controvertida constitui uma medida adequada para reduzir o risco de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo.
65. Além disso, a FKTK salientou, em audiência, que a realização de movimentos de crédito mensais consideravelmente elevados, por pessoas sem qualquer ligação à Letónia, constitui, em si mesma, um fator de risco. Ao fazer depender a medida controvertida do volume de movimentos de crédito mensais a FKTK podia, igualmente, controlar este risco.
66. Ao contrário do que entende a Comissão, a circunstância de a FKTK, através do critério do volume de movimentos de crédito, acabar por excluir da medida clientes do Privatbank sem ligação à Letónia com menor volume de movimentos de crédito mensais — dos quais, contudo, também pode advir risco de branqueamento de capitais —, não significa que essa medida não prossiga o objetivo almejado de forma coerente e sistemática.
67. Por um lado, os Estados‑Membros dispõem de margem de livre apreciação na escolha dos fatores de risco a considerar, como o revelam os anexos II e III da Diretiva 2015/849. Efetivamente, como é expressamente referido, as listas dos fatores e tipos de dados indicativos de risco potencialmente mais baixo ou mais elevado não são exaustivas. Confirma‑o também o artigo 5.o da desta diretiva, nos termos do qual os Estados‑Membros podem aprovar disposições mais rigorosas para prevenir o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo, dentro dos limites do direito da União.
68. Por outro lado, a Diretiva 2015/849 salienta, no seu vigésimo segundo considerando, que o risco de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo não é sempre o mesmo em todos os casos. Por conseguinte, a Diretiva prevê medidas de diligência simplificadas, quando o risco é reduzido (31) ou quando as atividades financeiras são exercidas de forma ocasional ou muito limitada (32). Além disso, prevê‑se o valor de 15 000 euros como o valor mínimo a partir do qual devem ser aplicadas medidas de diligência a transações ocasionais (33). Assim sendo, a opção por um volume de movimentos de crédito mensais de 15 000 euros, no caso de pessoas singulares, e de 50 000 euros, no caso de pessoas coletivas, não é desadequada, sendo, inclusivamente, mais moderada do que se fossem abrangidas todas as operações.
69. Resulta, de todo o exposto que uma restrição às relações de negócio como aquela que está em causa pode constituir um meio adequado para se atingir, de forma coerente e sistemática, o objetivo do combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. Para o efeito, tem‑se de demonstrar que o banco não consegue cumprir a diligência a que está obrigado, por causa da distância a que se encontra o cliente, e que a determinação do grupo de clientes afetado pela medida é feita segundo o risco de branqueamento de capitais identificado.
3. Quanto à necessidade da medida
70. O Estado‑Membro tem ainda de demonstrar que o objetivo prosseguido não pode ser alcançado através de medidas menos restritivas (34).
71. A Comissão manifestou reservas quanto à necessidade da proibição generalizada de estabelecimento ou de manutenção de relações de negócio com clientes sem ligação à Letónia. Segundo refere, esta medida não é antecedida por uma avaliação individual do risco, relativamente ao cliente concreto; é concebível a aplicação de medidas mais moderadas, como por exemplo o recurso a medidas de diligência reforçada, na aceção do artigo 18.o da Diretiva 2015/849.
72. Tal como foi referido de início, o regime das medidas de prevenção, nos termos da Diretiva 2015/849, assenta numa avaliação do risco segundo uma abordagem holística baseada no risco. Como foi recentemente referido pelo advogado‑geral G. Pitruzzella, esta avaliação do risco constitui o pressuposto da adoção de medidas adequadas de prevenção — isto é, medidas de diligência quanto à clientela — destinadas a evitar, ou pelo menos a entravar, o mais possível, o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo. Com efeito, sem essa avaliação do risco, não é possível ao Estado‑Membro, nem, quando aplicável, a uma entidade afetada, decidir em cada caso concreto quais as medidas a aplicar (35).
73. Neste contexto, a Diretiva 2015/849 faz a distinção entre três níveis de diligência (36) a aplicar pelas entidades obrigadas aos respetivos clientes, consoante o nível de risco apurado: medidas gerais, simplificadas e reforçadas (37).
74. Todos estes níveis de diligência têm, contudo, em comum, pressuporem uma avaliação do risco do cliente em causa e, por conseguinte, a adoção de medidas individuais em função dessa avaliação. Essa avaliação é relativa a situações concretas e não deve, portanto, ser realizada em abstrato (38).
75. A medida ora controvertida assemelha‑se à ordem de rutura de relações de negócio, a que se refere o artigo 14.o, n.o 4, primeiro parágrafo, da Diretiva 2015/849. Contudo, esta medida pressupõe que o banco não esteja em condições de cumprir, no caso concreto, os requisitos de diligência quanto à clientela previstos no artigo 13.o, n.o 1, primeiro parágrafo, alíneas a), a c). Ou seja, o cumprimento dos requisitos de diligência tem de ser impossível em relação a um cliente concreto. Confirma‑o a sistemática do artigo 14.o, n.o 4, primeiro parágrafo, parte final, onde consta explicitamente, a propósito da comunicação de operação suspeita, a menção «sobre o cliente». Segundo a exposição de motivos, relativa à adoção desta disposição na Terceira Diretiva relativa ao branqueamento de capitais, concretamente a Diretiva 2005/60(39), esta proposta destinava‑se a assegurar que se a identificação do cliente não pudesse ser assegurada de forma satisfatória, devia ser posto termo à relação (40).
76. Assim, tal como a Comissão, entendo que a medida controvertida não pode basear‑se no artigo 14.o, n.o 4, primeiro parágrafo, da Diretiva 2015/849. Pois não se refere a um cliente concreto, mas através dela impõem‑se as obrigações em causa, de forma generalizada, relativamente a um grupo de clientes definido segundo critérios gerais.
77. Esta medida não se reconduz a nenhuma das medidas de diligência relativamente a clientes, previstas na Diretiva 2015/849. Pois também no domínio da diligência reforçada, nela consagrada, o que está em causa é o reforço da abrangência e da natureza da fiscalização de uma certa relação de negócio. É o que ocorre, por exemplo, quanto à origem dos fundos aplicados no quadro da relação de negócio ou da transação. A aplicação destas medidas de diligência pressupõe, portanto, sempre, a constatação da verificação de um risco mais elevado, no caso concreto (41).
78. É certo que a diretiva também permite a tomada em consideração de fatores geográficos. Assim, faz‑se referência, no n.o 3, alínea b), do anexo III da diretiva, a «[p]aíses identificados por fontes idóneas como estando caracterizados por níveis consideráveis de corrupção ou outra atividade criminosa», enquanto fator possível de risco mais elevado (42). A restrição controvertida abrange, pelo menos potencialmente, clientes de tais países.
79. Mas sucede que abrange também, necessariamente, territórios de outros Estados‑Membros, os quais, na perspetiva da diretiva, se situam em zona de risco mais baixo [anexo II, n.o 1, alínea c) e n.o 3, alínea a), da diretiva].
80. O cerne da questão é, pois, saber se uma medida, que, através do amplo critério da «falta de ligação» à Letónia, é igualmente suscetível de abranger clientes que, nos termos da Diretiva 2015/849, não representam a priori um risco mais elevado de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, pode, ainda assim, ser considerada necessária.
81. No presente caso, segundo o alegado pelo Governo letão, já foram no passado aplicadas medidas mais moderadas, mas sem sucesso, já que não foram suficientemente eficazes para reduzir os riscos identificados. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio confirmar esta alegação.
82. Segundo a organização sistemática da Diretiva 2015/849, o nível seguinte, em caso de incumprimento grave, reiterado ou sistemático dos deveres de diligência relativamente à clientela, é a aplicação de sanções administrativas, nos termos do respetivo artigo 59.o, n.o 1.
83. Neste contexto, os Estados‑Membros dispõem de grande margem de manobra. Podem fixar um nível de proteção mais elevado do que o escolhido pelo legislador da União, autorizar ou impor medidas de diligência quanto à clientela diferentes das previstas por esta diretiva ou identificar outras situações que apresentem um risco mais elevado (43). Além disso, resulta do artigo 59.o, n.o 4, da diretiva, serem admissíveis sanções administrativas distintas daquelas que se encontram referidas neste artigo.
84. De resto, nos termos do artigo 59.o, n.o 2, alínea c), também é suscetível de ser aplicada a revogação ou suspensão da autorização, caso a entidade obrigada dependa de autorização.
85. Em comparação, afigura‑se que a proibição de estabelecer ou manter relações de negócio com pessoas sem ligação à Letónia constitui a medida mais moderada.
86. De resto, tanto a Comissão como o Governo letão confirmaram, em audiência, que as instituições financeiras na Letónia são confrontadas com particular frequência com o risco de branqueamento de capitais. O Governo letão salientou, a este propósito, que a República da Letónia, em face disso, já fez uso da faculdade de tomar outras medidas.
87. Segundo os dados em poder do Tribunal de Justiça, a situação caracteriza‑se por ter sido apurada a verificação de fatores de risco especiais e o Privatbank se encontrar ameaçado de revogação da respetiva autorização. Não parece haver um meio mais moderado e igualmente eficaz, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. Dentro deste circunstancialismo, considero necessária a proibição temporária de relações de negócio com pessoas sem ligação ao Estado‑Membro da autoridade de supervisão financeira (44).
4. Quanto à proporcionalidade em sentido estrito
88. Além da adequação e da necessidade, importa apreciar a proporcionalidade, em sentido estrito (45). Neste contexto, importa assegurar que a proibição de relações de negócio com clientes sem ligação à Letónia não afeta excessivamente os legítimos interesses do Privatbank e dos seus (potenciais) clientes. Trata‑se aqui de conciliar de forma equitativa os interesses do banco e dos clientes em causa, por um lado, e o objetivo da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, por outro lado.
89. A autoridade de supervisão letã ordenou a rutura e o não estabelecimento de relações de negócio entre o Privatbank e os clientes em causa apenas por um período de tempo limitado. A proibição de estabelecimento de relações de negócio aplicou‑se apenas a partir da prolação da decisão controvertida. Além disso, só foi necessário cessar as relações de negócio que tenham sido estabelecidas após a prolação desta decisão ‑ e, por conseguinte, em seu incumprimento. Acresce que ambas as imposições só se destinam a vigorar até à aplicação das medidas adicionais adotadas ao mesmo tempo, destinadas a colmatar as falhas detetadas na gestão de risco do Privatbank (46). Estas restrições temporárias assumem caráter disciplinador para o banco, já que ele próprio tem poderes para influenciar o momento em que se verifica o fim da sua vigência. A FKTK entende que já não se aplicam.
90. Além de tudo, a intensidade da medida que onera o Privatbank não é desproporcionada relativamente ao objetivo prosseguido, da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo. Por um lado, o Privatbank pôde manter relações de negócio preexistentes com clientes sem ligação à Letónia e com elevado volume de movimentos de crédito mensais, uma vez que a proibição apenas se aplicava a relações de negócio estabelecidas após a prolação da decisão controvertida. Por outro lado, o banco pôde estabelecer novas relações de negócio com clientes sem ligação à Letónia, desde que o volume de movimentos de crédito mensais fosse inferior àquele que foi fixado na decisão. Em comparação com estas restrições, a revogação da autorização do banco constituiria uma medida consideravelmente mais grave, sendo que a restrição controvertida acaba, justamente, por evitar a aplicação dessa medida mais grave (47).
91. De resto, o Privatbank é corresponsável, com culpa, pela situação de risco que obrigou à intervenção da autoridade de supervisão letã, já que segundo a FKTK, durante um período de tempo considerável, infringiu as regras em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo (48).
92. Também do prisma dos clientes os inconvenientes decorrentes da proibição de certas relações de negócio não superam as vantagens de um combate eficaz ao branqueamento de capitais. É certo que a livre circulação de capitais protege a livre escolha da instituição de crédito, mas não confere o direito ao estabelecimento de relações de negócio com um determinado banco, independentemente das circunstâncias concretas.
5. Conclusão quanto à terceira e à quarta questões
93. Por todo o exposto, a proibição de relações de negócio com clientes sem ligação ao Estado‑Membro, no qual o banco tem a sua sede social, não viola a livre prestação de serviços nem a livre circulação de capitais, desde que a medida em causa seja proporcional ao objetivo do combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se assim é, tomando em consideração todas as circunstâncias do caso concreto. Estas incluem, em especial, o risco de branqueamento que tiver sido apurado, a reincidência nas infrações do banco às regras em matéria de prevenção do branqueamento de capitais, as medidas já adotadas sem sucesso no passado, bem como a duração e a intensidade da restrição, em comparação com meios igualmente eficazes.
V. Conclusão
94. Em face das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda ao Administratīvā apgabaltiesa (Tribunal Administrativo Regional, Letónia) nos seguintes termos:
1. Os empréstimos e créditos financeiros, bem como as operações em contas correntes e de depósitos junto de instituições financeiras, tais como bancos, constituem «movimentos de capitais», no sentido do artigo 63.o, n.o 1, TFUE.
2. Uma injunção, através da qual a autoridade competente de um Estado‑Membro impõe a uma determinada instituição de crédito a proibição de estabelecer relações de negócio e a obriga a pôr termo às que tenham sido estabelecidas após a adoção da injunção, com pessoas sem ligação a esse Estado‑Membro, restringe a livre prestação de serviços, na aceção do artigo 56.o, primeiro parágrafo, bem como a livre circulação de capitais, na aceção do artigo 63.o, n.o 1, TFUE.
3. Essa restrição pode justificar‑se pelo objetivo da prevenção do branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo, constituindo uma exceção prevista no artigo 65.o, n.o 1, alínea b), TFUE. Isto pressupõe que o banco, por motivo da falta de ligação do cliente com o Estado‑Membro em causa, não consiga cumprir os seus deveres de diligência, e que a determinação do grupo de clientes afetado pela medida seja feita segundo o risco de branqueamento de capitais que se tenha apurado existir. Além disso, é necessário respeitar o princípio da proporcionalidade.
4. Na análise do respeito pelo princípio da proporcionalidade importa considerar:
– o risco de branqueamento de capitais apurado;
– a reincidência nas infrações do banco às regras em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e as medidas já adotadas sem sucesso no passado;
– a duração e a intensidade da restrição.