Language of document : ECLI:EU:C:2024:413

Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

J. RICHARD DE LA TOUR

apresentadas em 16 de maio de 2024 (1)

Processo C156/23 [Ararat] (i)

K,

L,

M,

N

contra

Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo rechtbank Den Haag, zittingsplaats Roermond (Tribunal de Primeira Instância de Haia, lugar da audiência em Roermond, Países Baixos)]

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular — Diretiva 2008/115/CE — Artigo 5.° — Princípio da não repulsão — Ato pelo qual a autoridade nacional competente indefere um pedido de autorização de residência previsto pelo direito nacional e remete para uma decisão de regresso anterior, que se tornou definitiva — Legalidade da execução da decisão de regresso — Obrigação de proceder a uma avaliação atualizada dos riscos incorridos em caso de afastamento — Artigo 13.° — Vias de recurso — Obrigação da autoridade judicial de declarar oficiosamente a violação do princípio da não repulsão — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 19.°, n.° 2 — Proteção em caso de afastamento — Artigo 47.° — Direito à ação»






I.      Introdução

1.        O respeito do princípio de não repulsão no contexto do regresso de um nacional de um país terceiro em situação irregular suscita uma problemática específica quando o Estado‑Membro não executa o mais rapidamente possível a decisão de regresso que proferiu a respeito desse nacional. Com efeito, embora, com o passar do tempo, essa decisão adquira caráter definitivo para esse nacional, em contrapartida, a apreciação na qual a decisão assenta, nomeadamente a avaliação dos riscos incorridos por este último em caso de afastamento para o país de destino previsto, torna‑se obsoleta.

2.        A este respeito, o juiz do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Ledi Bianku, alegava que «a questão da não repulsão e do papel dos tribunais na sua execução [é um assunto] particularmente difícil porque diz respeito a processos que tratam sobretudo dos direitos absolutos protegidos pela [Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (2)]. Além disso, os juízes, nacionais ou internacionais, devem pronunciar‑se sobre situações muito longínquas e das quais não têm necessariamente um conhecimento direto e completo. Além disso, os processos de não repulsão dizem geralmente respeito a situações flutuantes, situações que mudam» (3).

3.        O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 5.° e 13.° da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (4), que garantem, respetivamente, o respeito do princípio da não repulsão e uma proteção jurisdicional efetiva a esses nacionais.

4.        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe K, L, M e N, nacionais arménios, ao Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Secretário de Estado da Justiça e da Segurança, Países Baixos) (a seguir «Secretário de Estado»), a propósito da legalidade de um ato pelo qual este último indeferiu o seu pedido de autorização de residência previsto pelo direito neerlandês e no qual aquele remeteu para uma decisão de regresso anterior, que se tornou definitiva, para efeitos da retoma do procedimento de regresso.

5.        O referido pedido contém, em substância, duas questões.

6.        Primeiro, o Rechtbank Den Haag, zittingsplaats Roermond (Tribunal de Primeira Instância de Haia, lugar da audiência em Roermond, Países Baixos) pergunta ao Tribunal de Justiça se, numa situação em que uma autoridade nacional competente declara a situação irregular de um nacional de um país terceiro a respeito do qual foi adotada uma decisão de regresso anterior, que se tornou definitiva, essa autoridade está obrigada, antes da retoma do procedimento de regresso, a proceder a uma avaliação atualizada dos riscos incorridos por este último em caso de regresso ao país de destino previsto.

7.        Segundo, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se a autoridade judicial está obrigada, no âmbito da fiscalização da legalidade a que deve proceder e com base nos elementos de que dispõe, a declarar oficiosamente a violação do princípio da não repulsão quando a autoridade nacional competente não tenha procedido a essa avaliação.

8.        Nas presentes conclusões, irei propor ao Tribunal de Justiça que declare que, numa situação em que o procedimento de regresso tenha sido suspenso durante um período de tempo considerável, a autoridade nacional competente deve determinar, antes da execução da decisão de regresso anterior, se a situação do nacional de um país terceiro não se alterou ao ponto de existirem motivos sérios e comprovados para crer que, em caso de execução dessa decisão, este seria exposto a um risco de tortura ou de penas ou tratos desumanos ou degradantes no país de destino previsto. Exporei igualmente as razões pelas quais considero que, na falta dessa avaliação, o juiz nacional deve declarar oficiosamente a violação do princípio da não repulsão que não foi invocado por esse nacional, desde que disponha de elementos nesse sentido.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

9.        A Diretiva 2008/115 prevê no seu artigo 5.° que «[n]a aplicação da presente diretiva, os Estados‑Membros devem [...] respeitar o princípio da não repulsão».

10.      O artigo 6.°, n.os 1 e 6, desta diretiva tem a seguinte redação:

«1.      Sem prejuízo das exceções previstas nos n.os 2 a 5, os Estados‑Membros devem emitir uma decisão de regresso relativamente a qualquer nacional de país terceiro que se encontre em situação irregular no seu território.

[...]

6      A presente diretiva não obsta a que os Estados‑Membros tomem decisões de cessação da permanência regular a par de decisões de regresso, ordens de afastamento, e/ou proibições de entrada, por decisão ou ato administrativo ou judicial previsto no respetivo direito interno, sem prejuízo das garantias processuais disponíveis ao abrigo do Capítulo III e de outras disposições aplicáveis do direito comunitário e do direito nacional.»

11.      O artigo 9.°, n.° 1, alínea a), da referida diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros adiam o afastamento nos seguintes casos:

a)      O afastamento representa uma violação do princípio da não repulsão [...]»

12.      Por último, o artigo 13.°, n.os 1 e 2, da mesma diretiva tem a seguinte redação:

«1.      O nacional de país terceiro em causa deve dispor de vias de recurso efetivo contra as decisões relacionadas com o regresso a que se refere o n.° 1 do artigo 12.°, ou da possibilidade de requerer a sua reapreciação, perante uma autoridade judicial ou administrativa competente ou um órgão competente composto por membros imparciais que ofereçam garantias de independência.

2.      A autoridade ou o órgão acima mencionados são competentes para reapreciar as decisões relacionadas com o regresso a que se refere o n.° 1 do artigo 12.°, incluindo a possibilidade de suspender temporariamente a sua execução, a menos que a suspensão temporária já seja aplicável ao abrigo da legislação nacional.»

B.      Direito neerlandês

13.      O artigo 8:69 da Algemene wet bestuursrecht (Lei Geral do Direito Administrativo) (5), de 4 de junho de 1992, dispõe:

«1.      O órgão jurisdicional decide com base no recurso, na documentação apresentada, na instrução prévia e no exame do processo na audiência.

2.      O órgão jurisdicional completa oficiosamente os fundamentos de direito.

3.      O órgão jurisdicional pode completar oficiosamente os factos.»

III. Factos do litígio no processo principal e questões prejudiciais

14.      Em 16 de março de 2011, os recorrentes, uma família composta por duas irmãs, K e L, e os seus pais, M e N, todos de nacionalidade arménia, apresentaram um pedido de proteção internacional. Esse pedido foi indeferido por decisão de 9 de agosto de 2012. Além disso, os recorrentes foram notificados de uma decisão de regresso adotada após uma apreciação dos riscos por eles incorridos em caso de afastamento para a Arménia. Esta decisão tornou‑se definitiva.

15.      Em 10 de maio de 2016, os recorrentes apresentaram um pedido de autorização de residência previsto pelo direito neerlandês. Este pedido foi indeferido por decisão proferida em 16 de junho de 2016, que também se tornou definitiva na sequência do não provimento dos seus recursos.

16.      Em 18 de fevereiro de 2019, os recorrentes pediram um outro título de residência, igualmente previsto pelo direito neerlandês, a favor das crianças residentes de longa duração [«afsluitingsregeling langdurig verblijvende kinderen» (regime final para crianças residentes de longa duração)] (6). Por ato de 8 de outubro de 2019, o Secretário de Estado indeferiu o seu pedido e declarou, por um lado, o caráter irregular da sua situação, e, por outro, a validade da decisão de regresso adotada a seu respeito em 9 de agosto de 2012 (a seguir «ato controvertido»). Este ato foi confirmado em 12 de novembro de 2020 na sequência do indeferimento da reclamação apresentada pelos recorrentes.

17.      Os recorrentes interpuseram recurso dessa decisão de indeferimento para o rechtbank Den Haag, zittingsplaats Roermond (Tribunal de Primeira Instância de Haia, lugar da audiência em Roermond), que decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [ (7)], em conjugação com os artigo 4.° e o artigo 19.o, n.o 2, ambos da referida Carta, e com o artigo 5.o da Diretiva [2008/115], ser interpretado no sentido de que o órgão jurisdicional deve declarar oficiosamente o eventual incumprimento do princípio da não repulsão com base nas informações dos autos que lhe são comunicadas, complementadas ou clarificadas no decurso do processo contraditório que se desenrola perante o referido órgão jurisdicional? Depende o âmbito da referida obrigação do facto de o processo contraditório ter sido iniciado com um pedido de proteção internacional? Em caso afirmativo, o âmbito da referida obrigação é, por conseguinte, diferente consoante o risco da repulsão seja avaliado no contexto da admissão ou no contexto do regresso?

2)      Deve o artigo 5.° da Diretiva [2008/115], em conjugação com o artigo 19.°, n.° 2, da [Carta], ser interpretado no sentido de que se for tomada uma decisão de regresso no âmbito de um procedimento não iniciado por um pedido de proteção internacional, a avaliação da questão de saber se a proibição de repulsão se opõe ao regresso deve ter lugar antes da imposição de uma decisão de regresso? Em caso afirmativo, a constatação do risco de repulsão obsta à imposição de uma decisão de regresso ou constitui a mesma, nessa situação, um obstáculo à expulsão?

3)      Pode uma decisão de regresso voltar a produzir efeitos se a mesma tiver sido suspensa por um novo procedimento não iniciado por um pedido de proteção internacional, ou deve o artigo 5.° da Diretiva [2008/115], em conjugação com artigo 19.o, n.° 2, da [Carta], ser interpretado no sentido de que, no caso de o risco de repulsão não ter sido avaliado no procedimento que conduziu a uma nova declaração de situação irregular, se impõe a realização de uma nova avaliação do risco de repulsão e a adoção de uma nova decisão de regresso? É relevante para a resposta à referida pergunta o facto de não estar em causa uma decisão de regresso suspensa, mas uma decisão de regresso que não foi executada pelo nacional de país terceiro ou pelas autoridades durante um período considerável?»

18.      Apresentaram observações escritas os Governos Neerlandês, Alemão e Suíço, bem como a Comissão Europeia. O Governo Neerlandês e a Comissão, aos quais se juntaram os recorrentes, bem como o Governo Dinamarquês, participaram na audiência realizada em 21 de março de 2024, durante a qual responderam igualmente às perguntas para resposta oral feitas pelo Tribunal de Justiça.

IV.    Observação preliminar

19.      Antes de proceder ao exame das questões prejudiciais, parece‑me útil fazer uma observação preliminar relativa ao seu objeto, à sua admissibilidade e à ordem pela qual as examinarei.

20.      Penso que há que começar por responder à terceira questão, que diz respeito à fase administrativa do procedimento de regresso. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre os efeitos que a apresentação, por um nacional de um país terceiro, de um novo pedido de autorização de residência previsto pelo direito nacional tem sobre o procedimento de regresso instaurado a seu respeito, nomeadamente sobre a existência de uma obrigação de proceder a uma avaliação atualizada dos riscos incorridos em caso de afastamento, que incumbe à autoridade nacional competente.

21.      Seguidamente, caberá responder à primeira questão, que diz respeito mais especificamente à fase judicial do procedimento de regresso e à obrigação que incumbe à autoridade judicial de declarar oficiosamente a eventual violação do princípio da não repulsão no âmbito da fiscalização da legalidade a que deve proceder. Embora, neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio peça ao Tribunal de Justiça que interprete o artigo 5.° da Diretiva 2008/115, à luz do artigo 4.° e do artigo 19.°, n.° 2, da Carta, proponho examinar esta questão tendo em conta as disposições enunciadas no artigo 13.° da referida diretiva, que consagra o direito a uma proteção jurisdicional efetiva durante a execução desse procedimento.

22.      Por último, penso que não há que examinar a segunda questão prejudicial, uma vez que, além do caráter confuso da sua formulação, parece não ter nenhuma relação com o objeto do litígio no processo principal. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que precise determinadas modalidades relativas ao respeito do princípio da não repulsão no caso de uma decisão de regresso ainda não ter sido adotada. Ora, no presente processo, é pacífico que os recorrentes são objeto de uma decisão de regresso, que foi adotada em 9 de agosto de 2012. Esta decisão adquiriu caráter definitivo. Por conseguinte, o litígio no processo principal tem objeto o respeito deste princípio no contexto não da adoção de uma decisão de regresso mas sim da sua execução quando do de uma eventual retoma de um procedimento de regresso.

23.      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que esta questão é, por conseguinte, inadmissível, visto que convida o Tribunal de Justiça a formular uma opinião consultiva sobre uma questão hipotética, em violação da missão que lhe foi confiada no quadro da cooperação jurisdicional instituída pelo artigo 267.° TFUE (8).

V.      Análise

24.      Importa identificar o objeto do ato controvertido cuja legalidade é impugnada perante a autoridade judicial.

25.      O ato controvertido é um ato híbrido. É abrangido tanto pelo âmbito de aplicação do direito neerlandês, uma vez que nega aos recorrentes o benefício de um título de residência previsto por esse direito, como pelo direito da União, porque implica a reativação do procedimento de regresso inicialmente instaurado a seu respeito, ao declarar a validade da decisão de regresso adotada em 9 de agosto de 2012 (9).

26.      As questões dirigidas ao Tribunal de Justiça dizem respeito unicamente à legalidade da execução dessa decisão, visto que constitui uma decisão de regresso, na aceção do artigo 3.°, n.° 4, da Diretiva 2008/115 (10).

A.      Quanto à obrigação da autoridade nacional competente de proceder a uma avaliação atualizada dos riscos incorridos em caso de afastamento (terceira questão prejudicial)

27.      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se, numa situação em que uma autoridade nacional competente declara a situação irregular de um nacional de um país terceiro a respeito do qual foi adotada uma decisão de regresso anterior, que se tornou definitiva, o artigo 5.° da Diretiva 2008/115, em conjugação com o artigo 19.°, n.° 2, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que essa autoridade é obrigada a retomar o procedimento de regresso na fase de execução dessa decisão ou se é previamente obrigada a proceder a uma avaliação atualizada dos riscos incorridos por esse nacional em caso de afastamento para o país de destino previsto, tendo em conta o período considerável durante o qual esse procedimento esteve suspenso.

28.      Antes de mais, saliento que o direito da União, nomeadamente a Diretiva 2008/115, não contém disposições que determinem expressamente os efeitos que a apresentação, por um nacional de um país terceiro, de um pedido de título de residência previsto pelo direito nacional, e o seu indeferimento subsequente, devem ter numa decisão de regresso anteriormente adotada a seu respeito.

29.      Embora o Tribunal de Justiça tenha enunciado certos princípios no seu Acórdão de 15 de fevereiro de 2016, N (11)., este acórdão foi proferido num contexto factual diferente. Com efeito, no processo que deu origem a esse acórdão, o procedimento de regresso instaurado contra a pessoa em causa tinha sido interrompido devido à apresentação, não de um pedido de título de residência previsto pelo direito nacional, mas sim de um pedido de proteção internacional. No seu pedido de decisão prejudicial, o Raad van State (Conselho de Estado neerlandês, em formação jurisdicional) sublinhou que, em conformidade com a sua jurisprudência, a apresentação de tal pedido tinha por efeito tornar caduca de pleno direito qualquer decisão de regresso anteriormente adotada no âmbito desse processo. Ora, o Tribunal de Justiça considerou, pelo contrário, que quando um processo iniciado ao abrigo da Diretiva 2008/115, no âmbito do qual foi adotada uma decisão de regresso, foi interrompido devido à apresentação de um novo pedido de proteção internacional, os Estados‑Membros são obrigados, a partir do momento do indeferimento desse pedido, a retomar o referido procedimento, não no seu início, mas na fase em que foi interrompido (12). O Tribunal de Justiça baseou a sua apreciação nas exigências de eficácia impostas pelo legislador da União aquando da execução de um procedimento de regresso, nomeadamente na obrigação que incumbe aos Estados‑Membros de procederem ao afastamento o mais rapidamente possível.

30.      No processo principal, o Secretário de Estado parece ter retomado o procedimento de regresso anteriormente iniciado a respeito dos recorrentes, não no seu início, mas na fase em que tinha sido interrompido, declarando a validade da decisão de regresso anterior.

31.      Ora, em tal situação, a aplicação do princípio emanado do Acórdão de 15 de fevereiro de 2016, N (13)., embora responda às exigências de eficácia enunciadas, nomeadamente, no considerando 4 da Diretiva 2008/115, não garante o respeito do princípio da não repulsão.

32.      Em primeiro lugar, essa situação está ligada à natureza do título de residência solicitada. Embora, aquando do exame de um pedido de proteção internacional, a autoridade nacional competente esteja obrigada a respeitar o princípio da não repulsão, em conformidade com o artigo 21.°, n.° 1, da Diretiva 2011/95/EU (14), em contrapartida, segundo as indicações do órgão jurisdicional de reenvio, não é habitual na prática jurídica neerlandesa proceder oficiosamente a uma avaliação dos riscos incorridos por uma pessoa em caso de afastamento na sequência do indeferimento de um pedido de título de residência previsto pelo direito neerlandês.

33.      Em segundo lugar, essa situação está ligada à duração da suspensão do procedimento de regresso. No caso em apreço, embora o Secretário de Estado tenha adotado a decisão de regresso num momento em que o afastamento dos recorrentes para o seu país de origem era lícito à luz do princípio da não repulsão, afigura‑se, tendo em conta as indicações do órgão jurisdicional de reenvio, que esse procedimento foi interrompido durante sete anos, ou seja, um período de tempo considerável, antes que fosse retomado o curso do referido procedimento na sequência do indeferimento do último pedido de título de residência. É evidente que tal lapso de tempo implica muito provavelmente alterações quanto à situação do nacional em causa e/ou das circunstâncias que predominam no país de destino previsto.

34.      Ora, a Diretiva 2008/115 visa implementar uma política de afastamento e de repatriamento que seja não apenas eficaz, mas igualmente conduzida no respeito integral dos direitos fundamentais e da dignidade das pessoas em causa (15).

35.      Qualquer decisão de regresso adotada com fundamento no artigo 6.°, n.° 1, da Diretiva 2008/115 e executada com fundamento no artigo 8.°, n.° 1, desta diretiva deve respeitar os direitos garantidos pela Carta, entre os quais figuram o seu artigo 4.° e artigo 19.°, n.° 2 (16). Estes últimos proíbem a tortura, bem como as penas ou tratos desumanos ou degradantes, do mesmo modo que o afastamento para um Estado onde exista um risco sério de uma pessoa seja sujeita a esses tratos (17). Segundo o Tribunal de Justiça, essa proibição consagra «um dos valores fundamentais da União e dos seus Estados‑Membros» e reveste caráter absoluto, porque está estreitamente ligada ao respeito da dignidade humana referido no artigo 1.° da Carta (18).

36.      Neste contexto, o artigo 5.° da Diretiva 2008/115 exige que os Estados‑Membros respeitem o princípio da não repulsão «em todas as fases do procedimento» (19), e isso até ao afastamento (ou seja, o transporte físico para fora do Estado‑Membro (20)) da pessoa em causa. Em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, estes últimos são obrigados a permitir que as pessoas em causa invoquem qualquer alteração de circunstâncias ocorrida após a adoção dessa decisão de regresso, que seja suscetível de ter uma incidência significativa sobre a apreciação da sua situação à luz da Diretiva 2008/115, nomeadamente do seu artigo 5.° (21), exigindo o artigo 9.°, n.° 1, alínea a), da referida diretiva que adiem o afastamento quando este «representa uma violação do princípio da não repulsão».

37.      Numa situação em que o procedimento de regresso foi suspenso por um período de tempo considerável, é indispensável que a autoridade nacional competente proceda, antes de retomar o referido procedimento, a uma nova avaliação dos riscos incorridos pela pessoa em causa na hipótese de afastamento, avaliação essa distinta da que foi efetuada aquando da adoção da decisão de regresso anterior. Com efeito, uma suspensão do procedimento por um período tão longo exclui que a autoridade nacional competente possa retirar uma conclusão definitiva sobre os riscos incorridos por essa pessoa no país de destino previsto, sob pena de violar o princípio da não repulsão (22). Na falta dessa avaliação, a obrigação de regresso poderia já não satisfazer as condições de legalidade exigidas pelo direito da União e ser executada, apesar de existirem motivos sérios e comprovados para crer que a pessoa em causa correria um risco real de ser exposta a tortura ou a penas ou tratos desumanos ou degradantes em caso de afastamento para esse país.

38.      Na hipótese de esta nova avaliação confirmar as conclusões a que chegou a autoridade nacional competente aquando da adoção da decisão de regresso anterior, cabe‑lhe retomar o procedimento de regresso na fase em que o interrompeu e proceder à execução da obrigação de regresso.

39.      Na hipótese inversa, a autoridade nacional competente seria obrigada a adiar o afastamento da pessoa em causa para o país de destino previsto em conformidade com o artigo 9.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva 2008/115 (23). Contudo, nada se opõe a que proceda, em conformidade com as disposições previstas pelo direito nacional, ao reexame da decisão de regresso anterior ou a que adote uma nova decisão de regresso, desde que respeite as garantias materiais e processuais previstas por esta diretiva (24).

40.      Tendo em conta todos estes elementos, considero que, numa situação em que uma autoridade nacional competente declara a irregularidade da situação de um nacional de um país terceiro a respeito do qual foi adotada uma decisão de regresso anterior, que se tornou definitiva, o artigo 5.° da Diretiva 2008/115, em conjugação com o artigo 19.°, n.° 2, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que essa autoridade é obrigada, antes de retomar o procedimento de regresso, a determinar se, tendo em conta o período de tempo considerável durante o qual o procedimento esteve suspenso, a situação desse nacional não se alterou de tal forma que existem motivos sérios para crer que, em caso de execução da referida decisão, ficaria exposto a um risco de tortura ou de penas ou tratos desumanos ou degradantes no país de destino previsto.

B.      Quanto à obrigação da autoridade judiciária de declarar oficiosamente a violação do princípio da não repulsão (primeira questão prejudicial)

41.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se, numa situação em que um órgão jurisdicional é chamado a fiscalizar a legalidade de um ato pelo qual a autoridade nacional competente retoma o curso de um procedimento de regresso suspenso durante um período de tempo considerável sem ter, todavia, procedido a uma avaliação atualizada dos riscos incorridos pelo nacional de um país terceiro em caso de afastamento, o artigo 13.°, n.° 1, da Diretiva 2008/115, em conjugação com o artigo 5.° desta diretiva e com os artigos 4.°, 19.°, n.° 2, e 47.° da Carta, deve ser interpretado no sentido de que o órgão jurisdicional nacional está obrigado a declarar oficiosamente, no âmbito dessa fiscalização, com base nas informações dos autos que lhe são comunicadas, complementadas ou clarificadas no decurso do processo contraditório que lhe foi submetido, a violação do princípio da não repulsão que não tenha sido invocada por esse nacional.

42.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, seria inconcebível que a autoridade judicial se mantivesse em silêncio se um risco de violação do princípio da não repulsão pudesse estar iminente ou não ter sido avaliado e os nacionais de países terceiros, como no caso do processo principal, não se apercebessem desse risco e não o invocassem em apoio do seu pedido de título de residência ou no âmbito da sua impugnação da decisão que declara a irregularidade da sua situação ou da decisão de regresso (25).

43.      Solicitou igualmente ao Tribunal de Justiça que esclarecesse se o alcance desta obrigação difere consoante a decisão de regresso se baseie no indeferimento de um pedido de proteção internacional ou de um pedido de título de residência ao abrigo do direito nacional.

1.      Quanto à existência da obrigação

44.      O direito da União não exige, em princípio, que o juiz nacional examine oficiosamente um fundamento relativo à violação de disposições da União quando o exame desse fundamento o obrigue a sair dos limites do litígio tal como este último foi circunscrito pelas partes. Esta limitação do poder do juiz nacional justifica‑se pelo princípio segundo o qual a iniciativa processual pertence às partes. Consequentemente, este juiz só pode agir oficiosamente em casos excecionais em que o interesse público exija a sua intervenção (26).

45.      No que diz respeito à Diretiva 2008/115, o Tribunal de Justiça reconheceu o dever de exame oficioso que incumbe ao juiz nacional foi reconhecido pelo Tribunal de Justiça no que diz respeito aos requisitos de legalidade de uma medida de detenção ordenada quando da execução de um procedimento de regresso. No seu Acórdão de 8 de novembro de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Exame oficioso da detenção) (27) — para o qual o órgão jurisdicional de reenvio remete expressamente — o Tribunal de Justiça declarou que a autoridade judicial deve ter em consideração todos os elementos, nomeadamente factuais, levados ao seu conhecimento, completados ou clarificados no âmbito de medidas processuais que considere necessárias adotar com base no seu direito nacional, e, com base nesses elementos, identificar, se for caso disso, a inobservância de um requisito de legalidade decorrente do direito da União, mesmo que essa inobservância não tenha sido invocada pela pessoa em causa. Para o efeito, o Tribunal de Justiça fez referência à importância do direito à liberdade garantido no artigo 6.° da Carta, bem como à gravidade da ingerência nesse direito que constitui a detenção e à exigência de uma proteção jurisdicional de nível elevado (28). Além disso, estabeleceu uma distinção entre o contencioso relativo à detenção de um nacional de um país terceiro, que é rigorosamente enquadrado pelo legislador da União, e o contencioso administrativo, no qual a iniciativa e a delimitação do litígio pertencem às partes (29).

46.      Penso que este raciocínio pode ser alargado à situação em que o juiz constata, tendo em conta os elementos de prova que lhe são apresentados, que a execução de uma decisão de regresso adotada a respeito de um nacional de um país terceiro viola o princípio da não repulsão. Com efeito, por razões análogas às que expus nas minhas conclusões no processo que deu origem àquele acórdão (30), a proteção deste princípio exige que o órgão jurisdicional nacional possa declarar oficiosamente que a autoridade nacional competente não procedeu a uma avaliação atualizada dos riscos incorridos em caso de afastamento para o país de destino previsto na decisão de regresso.

47.      Nos n.os 35 e 36 das presentes conclusões, recordei a natureza e o alcance do princípio da não repulsão no contexto da execução de um procedimento de regresso. Referi o seu caráter imperativo e insisti na sua importância. Recordei igualmente que os Estados‑Membros são obrigados a garantir o respeito deste princípio «em todas as fases do procedimento», ou seja, tanto na fase administrativa, durante a qual as decisões relativas ao regresso são adotadas, como na fase judicial, durante a qual a legalidade destas decisões é examinada, uma vez que o procedimento de regresso só termina no momento do afastamento efetivo da pessoa em causa para o seu país de origem, um país de trânsito ou outro país.

48.      Acrescento que, por força do artigo 47.° da Carta, os Estados‑Membros devem assegurar uma proteção jurisdicional efetiva dos direitos individuais derivados da ordem jurídica da União (31). No que diz respeito à fiscalização da legalidade das decisões de regresso, o artigo 13.°, n.° 1, da Diretiva 2008/115 exige que os Estados‑Membros disponibilizem à pessoa em causa vias de recurso efetivo perante uma autoridade judicial ou administrativa competente. Em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as características dessa via de recurso devem ser determinadas em conformidade com o artigo 47.° da Carta e no respeito do princípio da não repulsão garantido no artigo 18.° e no artigo 19.°, n.° 2, da Carta (32). Assim, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, um recurso deve necessariamente ter efeito suspensivo quando for interposto de uma decisão de regresso cuja execução seja suscetível de expor o nacional de um país terceiro em causa a um risco real de ser submetido a tratos desumanos ou degradantes, assegurando assim, relativamente a esse nacional, o respeito das exigências que decorrem do artigo 19.°, n.° 2, e do artigo 47.° da Carta (33).

49.      Além disso, o artigo 13.°, n.° 2, da Diretiva 2008/115 prevê que a autoridade judicial ou administrativa perante a qual é impugnada a legalidade de uma decisão de regresso é competente para reapreciar essa decisão e, se for caso disso, adiar o afastamento (34). Trata‑se de uma disposição imperativa, como demonstra a utilização, na sua versão em língua inglesa, da expressão «shall have the power» (e não «may have the power»).

50.      As modalidades processuais assim definidas no artigo 13.°, n.os 1 e 2, da Diretiva 2008/115 têm por finalidade garantir que uma pessoa a respeito da qual foi adotada uma decisão de regresso não seja afastada para o país de destino previsto, quando os requisitos de legalidade enunciados no artigo 5.° desta diretiva, entre os quais o respeito do princípio da não repulsão, não estejam ou tenham deixado de estar preenchidos devido a circunstâncias posteriores à adoção dessa decisão.

51.      Ora, a proteção jurisdicional exigida pelo artigo 47.° da Carta não seria nem efetiva nem completa se o órgão jurisdicional nacional não fosse obrigado a declarar oficiosamente a violação do princípio da não repulsão sempre que os elementos de prova à sua disposição se inclinassem para demonstrar que a decisão de regresso assentaria numa apreciação obsoleta dos riscos, e a retirar daí todas as consequências para a execução dessa decisão ao exigir à autoridade nacional competente que procedesse a uma avaliação atualizada dos referidos riscos antes de a executar. Caso contrário, uma limitação da sua competência oficiosa poderia ter como consequência a execução dessa decisão, apesar de o interessado correr o risco de ser sujeito, no país de destino previsto, a tortura ou outras penas ou tratos desumanos ou degradantes, que são atos proibidos absolutamente pelo artigo 4.° da Carta.

52.      A este respeito, o Governo Neerlandês sustentou nas suas observações que a autoridade judicial deveria encaminhar a pessoa em causa para a autoridade responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional — a saber, o «órgão de decisão» na aceção do artigo 2.°, alínea f), da Diretiva 2013/32/UE (35) — para que esta autoridade pudesse avaliar os riscos incorridos em caso de afastamento. Apesar de a escolha da autoridade nacional competente para este efeito constituir uma questão de autonomia processual de cada Estado‑Membro e embora seja verdade, como sublinhou aquele Governo, que o órgão de decisão está dotado de meios adequados e de pessoal competente na matéria, não se pode, no entanto, exigir à pessoa em causa que apresente um pedido de proteção internacional para garantir o pleno respeito do princípio da não repulsão consagrado no artigo 5.° da Diretiva 2008/115.

53.      Além disso, sublinho que esta diligência implica necessariamente que a autoridade judicial esteja em condições de declarar a violação do princípio da não repulsão e seja capaz de apreciar, em grande medida, a natureza e a gravidade do tratamento a que a pessoa em causa poderá ser exposta no país de destino previsto, antes de a convidar a apresentar um pedido de proteção internacional. Com efeito, tal como o Governo Neerlandês alegou na audiência, embora esse pedido fosse então prioritário (36), conduziria, no caso em apreço, à suspensão, uma vez mais, do procedimento de regresso instaurado contra a pessoa em causa (37) e ao prolongamento do período durante o qual esta última se encontraria numa situação intermédia, no território do Estado‑Membro, sem direito nem título de residência.

54.      Tendo em conta todos estes elementos, considero que, numa situação em que um órgão jurisdicional é chamado a fiscalizar a legalidade de um ato pelo qual a autoridade nacional competente retoma o curso de um procedimento de regresso suspenso durante um período considerável sem ter, todavia, procedido a uma avaliação atualizada dos riscos incorridos pelo nacional de um país terceiro em caso de afastamento, o artigo 13.°, n.° 1, da Diretiva 2008/115, em conjugação com o artigo 5.° desta diretiva e com o artigo 4.°, o artigo 19.°, n.° 2, e o artigo 47.° da Carta, deve ser interpretado no sentido de que o órgão jurisdicional nacional é obrigado a declarar oficiosamente, no âmbito dessa fiscalização, com base nas informações dos autos que lhe são comunicadas, complementadas ou clarificadas no decurso do processo contraditório que lhe foi submetido, a violação do princípio da não repulsão que não tenha sido invocada por esse nacional.

2.      Quanto ao alcance da obrigação

55.      O órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que precise se o alcance da obrigação de declarar oficiosamente a violação do princípio da não repulsão difere consoante a decisão de regresso for motivada pelo indeferimento de um pedido de proteção internacional ou pelo indeferimento de um pedido de título de residência ao abrigo do direito nacional. Com efeito, segundo aquele órgão jurisdicional, a autoridade nacional competente é obrigada a respeitar este princípio sempre que examina um pedido de proteção internacional, em conformidade com o artigo 21.°, n.° 1, da Diretiva 2011/95; em contrapartida, não é habitual, na prática jurídica neerlandesa, que essa autoridade aprecie oficiosamente o cumprimento do referido princípio previamente ao indeferimento de um pedido de título de residência baseado no direito neerlandês.

56.      Penso que o papel da autoridade judicial, uma vez que se pronuncia sobre a legalidade de uma decisão de regresso adotada a respeito de um nacional de um país terceiro, e o alcance da obrigação que lhe incumbe de declarar oficiosamente uma violação do princípio da não repulsão não devem ser diferenciados consoante a natureza do título de residência solicitado e, em particular, consoante essa decisão for motivada pelo indeferimento de um pedido de proteção internacional ou pelo indeferimento de um pedido de autorização de residência baseado no direito nacional.

57.      Com efeito, decorre dos próprios termos do artigo 19.°, n.° 2, da Carta, e em especial da frase «[n]inguém pode ser afastado», que a proteção contra a repulsão se aplica plenamente a todos os nacionais de países terceiros, independentemente do seu estatuto ou dos motivos da sua repulsão.

58.      Além disso, o Tribunal de Justiça recordou, no seu Acórdão de 3 de junho de 2021, Westerwaldkreis (38), que o âmbito de aplicação da Diretiva 2008/115 é definido por referência apenas à situação irregular na qual se encontra um nacional de um país terceiro, independentemente dos motivos que estão na origem dessa situação ou das medidas suscetíveis de serem adotadas em relação a esse nacional (39). Assim, decorre do artigo 6.°, n.° 6, da Diretiva 2008/115 e do n.° 60 do Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi (40), que, embora a decisão de regresso possa ser tomada simultânea ou imediatamente depois da decisão de indeferimento de um pedido de proteção internacional, trata‑se, de facto, de duas decisões distintas, devendo qualquer decisão de regresso respeitar as garantias processuais previstas no capítulo III desta diretiva e as outras disposições pertinentes do direito da União e do direito nacional.

59.      O Acórdão de 6 de julho de 2023, Bundesamt für Fremdenwesen und Asyl (Refugiado que cometeu um crime grave) (41), ilustra perfeitamente esta situação. Neste acórdão, o Tribunal de Justiça entendeu que não se pode considerar que a revogação do estatuto de refugiado, em aplicação do artigo 14.°, n.° 4, da Diretiva 2011/95, implique uma tomada de posição a respeito da questão distinta de saber se essa pessoa pode ser afastada para o seu país de origem, e que as consequências, para o nacional de um país terceiro em causa, de um eventual regresso ao seu país de origem, devem ser tomadas em consideração, não no momento da adoção da decisão de revogar o estatuto de refugiado, mas sim, sendo caso disso, quando a autoridade competente pretenda adotar uma decisão de regresso em relação ao referido nacional de um país terceiro (42).

60.      Daqui decorre que o princípio da não repulsão deve ser respeitado sempre que um Estado‑Membro constate a irregularidade da situação de um nacional de um país terceiro no seu território nacional e adote uma decisão de regresso, independentemente da natureza dos motivos que levaram à adoção de uma decisão de regresso ou da forma que reveste o ato.

61.      Por conseguinte, penso que o papel da autoridade judicial, ao pronunciar‑se sobre a legalidade de uma decisão de regresso adotada relativamente a um nacional de um país terceiro, e o alcance da obrigação que lhe incumbe de declarar oficiosamente a violação do princípio da não repulsão não podem ser diferenciados consoante essa decisão seja motivada pelo indeferimento de um pedido de proteção internacional ou pelo indeferimento de um pedido de autorização de residência previsto pelo direito nacional.

VI.    Conclusão

62.      Atendendo a todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Rechtbank Den Haag, zittingsplaats Roermond (Tribunal de Primeira Instância de Haia, lugar da audiência em Roermond, Países Baixos) como segue:

1)      O artigo 5.° da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, em conjugação com o artigo 19.°, n.° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

deve ser interpretado no sentido de que:

numa situação em que uma autoridade nacional competente declara a irregularidade da situação de um nacional de um país terceiro a respeito do qual foi adotada uma decisão de regresso anterior, que se tornou definitiva, essa autoridade é obrigada, antes de retomar o procedimento de regresso, a determinar se, tendo em conta o período de tempo considerável durante o qual o procedimento esteve suspenso, a situação desse nacional não se alterou de tal forma que existem motivos sérios para crer que, em caso de execução da referida decisão, ficaria exposto a um risco de tortura ou de penas ou tratos desumanos ou degradantes no país de destino previsto.

2)      O artigo 13.°, n.° 1, da Diretiva 2008/115, em conjugação com o artigo 5.° desta diretiva e com o artigo 4.°, o artigo 19.°, n.° 2, e o artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais,

deve ser interpretado no sentido de que:

numa situação em que um órgão jurisdicional é chamado a fiscalizar a legalidade de um ato pelo qual a autoridade nacional competente retoma o curso de um procedimento de regresso suspenso durante um período de tempo considerável sem ter, todavia, procedido a uma avaliação atualizada dos riscos incorridos pelo nacional de um país terceiro em caso de afastamento, o órgão jurisdicional nacional é obrigado a declarar oficiosamente, no âmbito dessa fiscalização, com base nas informações dos autos que lhe são comunicadas, complementadas ou clarificadas no decurso do processo contraditório que lhe foi submetido, a violação do princípio da não repulsão que não tenha sido invocada por esse nacional.

O papel da autoridade judicial, ao pronunciar‑se sobre a legalidade de uma decisão de regresso adotada a respeito de um nacional de um país terceiro, e o alcance da obrigação que lhe incumbe de declarar oficiosamente a violação do princípio da não repulsão não podem ser diferenciados consoante essa decisão seja motivada pelo indeferimento de um pedido de proteção internacional ou pelo indeferimento de um pedido de título de residência previsto pelo direito nacional.


1      Língua original: francês.


i      O nome do presente processo é um nome fictício. Não corresponde ao nome verdadeiro de nenhuma das partes no processo.


2      Assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950.


3      Diálogo entre juízes, documentos do seminário de 27 de janeiro de 2017 sobre «Não repulsão como princípio do direito internacional e papel dos tribunais na sua aplicação», organizado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pp. 17 a 21, em especial p. 17.


4      JO 2008, L 348, p. 98.


5      Stb. 1992, n.° 315.


6      Nas suas observações, o Governo Neerlandês indicou que, ao abrigo deste regime nacional (igualmente denominado «kinderpardon», ou seja, um regime de indulgência a favor das crianças), as crianças que residem nos Países Baixos há muito tempo (e os seus familiares) podem, em determinadas condições, requerer uma autorização de residência com base no direito neerlandês.


7      A seguir «Carta».


8      V. Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, Stichting Rookpreventie Jeugd e o. (C‑160/20, EU:C:2022:101, n.° 84 e jurisprudência referida).


9      Recordo que, embora o artigo 12.° da Diretiva 2008/115 regule o conteúdo de uma decisão de regresso, os Estados‑Membros dispõem, em contrapartida, de um amplo poder discricionário quanto à forma (decisão ou ato, administrativo ou judicial) mediante a qual é possível adotar uma decisão de regresso, juntamente ou não com uma medida de afastamento [v., a este respeito, Manual de Regresso anexo à Recomendação (UE) 2017/2338 da Comissão, de 16 de novembro de 2017, que estabelece um Manual de Regresso comum a utilizar pelas autoridades competentes dos Estados‑Membros no exercício de atividades relacionadas com o regresso (JO 2017 L 339, p. 83), ponto 1.4, intitulado «Decisão de regresso»].


10      Por força desta disposição, entende‑se por «Decisão de regresso» uma decisão ou um ato administrativo ou judicial que estabeleça ou declare a situação irregular de um nacional de país terceiro e imponha ou declare o dever de regresso. Em conformidade com artigo 3.°, ponto 3, da mesma diretiva, essa obrigação de regresso obriga a pessoa em causa a voltar para o seu país de origem, para um país de trânsito ou para outro país terceiro para o qual a pessoa decida regressar voluntariamente e calem cujo território será seja admitida.


11      C‑601/15 PPU, EU:C:2016:84.


12      V. Acórdão de 15 de fevereiro de 2016 no processo C‑601/15 PPU N. (EU:C:2016:84, n.os 75 e 76 e jurisprudência referida).


13      C‑601/15 PPU, EU:C:2016:84.


14      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, que estabelece normas relativas às condições a preencher pelos nacionais de países terceiros ou por apátridas para poderem beneficiar de proteção internacional, a um estatuto uniforme para refugiados ou pessoas elegíveis para proteção subsidiária e ao conteúdo da proteção concedida (JO 2011, L 337, p. 9).


15      V. considerando 24 da Diretiva 2008/115, bem como Acórdão de 20 de outubro de 2022, Centre public d'action sociale de Liège (Revogação ou suspensão de uma decisão de regresso) (C‑825/21, EU:C:2022:810, n.° 49 e jurisprudência referida).


16      V. considerando 24 da Diretiva 2008/115.


17      V., neste sentido, Acórdão de 11 de março de 2021, Estado belga (Regresso do progenitor de um menor) (C‑112/20, EU:C:2021:197, n.° 35). V., igualmente, Acórdão Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Confiança mútua em caso de transferência) (C‑392/22, EU:C:2024:195, n.° 53 e jurisprudência referida).


18      V. Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.os 85 e 87).


19      V., nomeadamente, Acórdão de 22 de novembro de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Afastamento — Cannabis terapêutica) (C‑69/21, EU:C:2022:913, n.° 55).


20      V. artigo 3.°, ponto 5, da Diretiva 2008/115.


21      V. Acórdão de 19 de junho de 2018, Gnandi (C‑181/16, EU:C:2018:465, n.° 64).


22      A evolução da situação das mulheres no Afeganistão ou das pessoas registadas na Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) demonstra claramente que a passagem do tempo pode implicar alterações das circunstâncias suscetíveis de tornar (completamente) obsoleta a avaliação de risco que a autoridade nacional competente possa ter efetuado anteriormente.


23      V. manual citado na nota de rodapé 9 das presentes conclusões, ponto 9, intitulado «Adiamento do afastamento».


24      Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, se a autoridade nacional competente verificar que o nacional de um país terceiro em causa pode ser afastado, no respeito do princípio da não repulsão, para um país diferente do país de destino referido na decisão de regresso anterior, deve adotar uma nova decisão de regresso. No seu Acórdão de 14 de maio de 2020, Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság Dél‑alföldi Regionális Igazgatóság (C‑924/19 PPU e C‑925/19 PPU, EU:C:2020:367), o Tribunal de Justiça declarou, com efeito, que, ao alterar o país de destino mencionado na decisão de regresso anterior, a autoridade nacional competente introduz uma alteração substancial nessa decisão de regresso devendo considerar‑se que adotou uma nova decisão de regresso na aceção do artigo 3.°, n.° 4, da Diretiva 2008/115, contra a qual o nacional de um país terceiro em causa deve dispor de dias de recurso efetivas na aceção do artigo 13.°, n.° 1, desta diretiva (n.os 116, 120 e 123).


25      Esta interrogação do juiz de reenvio inscreve‑se na linha do reenvio prejudicial apresentado no processo Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Pessoas que se identificam com os valores da União) (C‑646/21), atualmente pendente, que tem por objeto saber em que medida jovens nacionais de países terceiros que adquiriram um estilo de vida ocidental, durante a sua estada no território de um Estado‑Membro, podem beneficiar de proteção internacional com o fundamento de que estariam expostas, em caso de regresso ao seu país de origem, a riscos de perseguição ou de ofensas graves, na aceção dos artigos 9.° e 15.° da Diretiva 2011/95. Esse reenvio prejudicial, relativo à situação de jovens iraquianas, foi apresentado depois de o Rechtbank Den Haag, zittingsplaats 's‑Hertogenbosch (Tribunal de Primeira Instância de Haia, lugar da audiência em’s‑Hertogenbosch, Países Baixos) ter retirado um pedido essencialmente idêntico no processo Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (C‑456/21), relativo a jovens afegãs.


26      Resulta, assim, da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o órgão jurisdicional nacional é obrigado a examinar oficiosamente o respeito de certas disposições do direito da União em matéria de proteção dos consumidores quando, na falta desse exame, o objetivo de uma proteção efetiva dos consumidores não pudesse ser alcançado (V. Acórdão de 14 de setembro de 2003, Tuk Tuk Travel, C‑83/22, EU:C:2023:664, n.os 45 a 47 e jurisprudência referida).


27      C‑704/20 e C‑39/21, EU:C:2022:858.


28      V. Acórdão de 8 de novembro de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Exame oficioso da detenção) (C‑704/20 e C‑39/21, EU:C:2022:858, n.° 88).


29      V. Acórdão de 8 de novembro de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Exame oficioso da detenção) (C‑704/20 e C‑39/21, EU:C:2022:858, n.° 92).


30      V. minhas Conclusões nos processos apensos Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Exame oficioso da detenção) (C‑704/20 e C‑39/21, EU:C:2022:489).


31      V. Acórdão de 8 de novembro de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Exame oficioso da detenção) (C‑704/20 e C‑39/21, EU:C:2022:858, n.° 81 e jurisprudência aí referida).


32      V. Acórdãos de 18 de dezembro de 2014, Abdida (C‑562/13, EU:C:2014:2453, n.os 45 e 46); de 19 de junho de 2018, Gnandi (C‑181/16, EU:C:2018:465, n.os 52 e 53); e de 30 de setembro de 2020, CPAS de Liège (C‑233/19, EU:C:2020:757, n.° 45).


33      V. Acórdão de 30 de setembro de 2020, CPAS de Liège (C‑233/19, EU:C:2020:757, n.° 46 e jurisprudência referida).


34      Na prática jurídica, o reexame de uma decisão que se tornou definitiva permite modificar essa decisão à luz de factos novos e substanciais ou de uma alteração de circunstâncias.


35      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional (JO 2013, L 180, p. 60).


36      O considerando 19 da Diretiva 2013/32 estabelece que «[a] fim de abreviar, em certos casos, a duração global do procedimento, os Estados‑Membros deverão ter a flexibilidade, conforme as necessidades nacionais, de dar prioridade à apreciação de certos pedidos em detrimento de outros, sem, contudo, derrogar aos prazos, princípios e garantias geralmente aplicáveis».


37      No Acórdão de 15 de fevereiro de 2016, N. (C‑601/15 PPU, EU:C:2016:84, n.os 75 e 76), o Tribunal de Justiça declarou que a apresentação de um pedido de proteção internacional por um nacional de um país terceiro que já foi objeto de um procedimento de regresso não tem por efeito tornar automaticamente nula qualquer decisão de regresso anterior, mas suspender o procedimento de regresso antes de este ser eventualmente retomado na fase em que foi interrompido.


38      C‑546/19, EU:C:2021:432.


39      V. Acórdão de 3 de junho de 2021, Westerwaldkreis (C‑546/19, EU:C:2021:432, n.° 45).


40      C‑181/16, EU:C:2018:465.


41      C‑663/21, EU:C:2023:540.


42      V. n.os 41 e 42 do acórdão.