Language of document : ECLI:EU:T:2021:260

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Décima Secção alargada)

12 de maio de 2021 (*)

«Direito institucional — Iniciativa de cidadania europeia — Trocas comerciais com os territórios sob ocupação militar — Recusa de registo — Falta manifesta de competências da Comissão — Artigo 4.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento (UE) n.o 211/2011 — Política comercial comum — Artigo 207.o TFUE — Política externa e de segurança comum — Artigo 215.o TFUE — Dever de fundamentação — Artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento (UE) n.o 211/2011»

No processo T‑789/19,

Tom Moerenhout, residente em Humbeek (Bélgica), e os outros recorrentes cujos nomes figuram em anexo (1), representados por G. Devers, advogado,

recorrentes,

contra

Comissão Europeia, representada por I. Martínez del Peral e S. Delaude, na qualidade de agentes,

recorrida,

que tem por objeto um pedido apresentado ao abrigo do disposto no artigo 263.o TFUE e destinado à anulação da Decisão (UE) 2019/1567 da Comissão, de 4 de setembro de 2019, sobre a proposta de iniciativa de cidadania intitulada «Assegurar a conformidade da política comercial comum com os Tratados da UE e o cumprimento do direito internacional» (JO 2019, L 241, p. 12),

O TRIBUNAL GERAL (Décima Secção alargada),

composto por: S. Papasavvas, presidente, A. Kornezov, E. Buttigieg, K. Kowalik‑Bańczyk (relatora) e G. Hesse, juízes,

secretário: M. Marescaux, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 14 de janeiro de 2021,

profere o presente

Acórdão

 Antecedentes do litígio

1        Os recorrentes, Tom Moerenhout e seis outros cidadãos cujos nomes figuram em anexo, estão na origem da proposta de iniciativa de cidadania europeia intitulada «Assegurar a conformidade da política comercial comum com os Tratados da UE e o cumprimento do direito internacional» (a seguir «proposta de ICE»), que foi enviada à Comissão Europeia em 5 de julho de 2019 para registo ao abrigo do artigo 4.o do Regulamento (UE) n.o 211/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, sobre a iniciativa de cidadania (JO 2011, L 65, p. 1).

2        A proposta de ICE tinha como objeto:

«Regular as transações comerciais com as entidades do ocupante estabelecidas ou que operam em territórios ocupados, através da retenção de produtos provenientes da entrada no mercado da UE.»

3        Nos termos da proposta de ICE, o seu objetivo era:

«A Comissão, enquanto guardiã dos Tratados, deve assegurar a coerência da política da União e o cumprimento dos direitos fundamentais e do direito internacional em todos os domínios do direito da UE, incluindo a política comercial comum. Deve propor atos jurídicos para impedir as entidades jurídicas da UE de importar produtos originários de colonatos ilegais nos territórios ocupados e exportar para esses territórios, a fim de preservar a integridade do mercado interno e não auxiliar nem apoiar a manutenção de tais situações ilegais.»

4        Em seguida, sob a epígrafe «disposições pertinentes dos Tratados e do direito internacional», os recorrentes citaram o artigo 2.o, o artigo 3.o, n.o 5, o artigo 6.o, n.o 3, e o artigo 21.o TUE, bem como o artigo 2.o, n.o 1, os artigos 3.o e 205.o, e o artigo 207.o, n.os 1 e 2, TFUE. Referiram‑se igualmente à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ao Regulamento (CE) n.o 2368/2002 do Conselho, de 20 de dezembro de 2002, relativo à aplicação do sistema de certificação do Processo de Kimberley para o comércio internacional de diamantes em bruto (JO 2002, L 358, p. 28), ao Regulamento (UE) 2019/125 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de janeiro de 2019, relativo ao comércio de determinadas mercadorias suscetíveis de serem utilizadas para aplicar a pena de morte ou infligir tortura ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (JO 2019, L 30, p. 1), aos Acórdãos de 30 de julho de 1996, Bosphorus (C‑84/95, EU:C:1996:312), e de 25 de fevereiro de 2010, Brita (C‑386/08, EU:C:2010:91), assim como a certas disposições e fontes de direito internacional, incluindo, nomeadamente, resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e pareceres do Tribunal Internacional de Justiça.

5        Pela Decisão (UE) 2019/1567, de 4 de setembro de 2019, sobre a proposta de iniciativa de cidadania intitulada «Assegurar a conformidade da política comercial comum com os Tratados da UE e o cumprimento do direito internacional» (JO 2019, L 241, p. 12; a seguir «decisão impugnada»), a Comissão recusou o registo da proposta de ICE.

6        A Comissão fundamentou esta recusa, nos considerandos 5 a 7 da decisão impugnada, do seguinte modo:

«(5)      Um ato jurídico que abranja o objeto da proposta de [ICE] só poderá ser adotado com base no artigo 215.o […] TFUE.

(6)      No entanto, um requisito prévio para a adoção de um ato jurídico com base no artigo 215.o […] TFUE é a adoção, em conformidade com o título V, capítulo 2, do Tratado [UE], de uma decisão que preveja a interrupção ou a redução, total ou parcial, das relações económicas e financeiras com o país terceiro em causa. A Comissão não tem competência para apresentar propostas de decisão nesse sentido. Na ausência de uma decisão correspondente, adotada em conformidade com o título V, capítulo 2, do Tratado [UE], a Comissão não tem competência para apresentar uma proposta de ato jurídico que deva ser adotado com base no artigo 215.o […] TFUE.

(7)      Por estas razões, a proposta de [ICE] está manifestamente fora do quadro das competências da Comissão para apresentar uma proposta de ato jurídico da União para efeitos de aplicação dos Tratados, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento [n.o 211/2011], em conjugação com [o] artigo 2.o, n.o 1[, desse regulamento].»

 Tramitação processual e pedidos das partes

7        Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 14 de novembro de 2019, os recorrentes interpuseram o presente recurso.

8        A Comissão apresentou a contestação em 30 de janeiro de 2020.

9        Os recorrentes apresentaram a réplica em 20 de abril de 2020.

10      A Comissão apresentou a tréplica em 9 de julho de 2020.

11      Sob proposta da Décima Secção, o Tribunal Geral decidiu, em aplicação do artigo 28.o do seu Regulamento de Processo, remeter o processo a uma formação de julgamento alargada.

12      Foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às questões colocadas pelo Tribunal Geral na audiência de 14 de janeiro de 2021.

13      Os recorrentes concluem pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão impugnada;

–        condenar a Comissão nas despesas.

14      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar os recorrentes nas despesas.

 Questão de direito

15      Os recorrentes invocam quatro fundamentos de recurso. O primeiro fundamento é relativo à violação do artigo 41.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais e do artigo 4.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 211/2011, na medida em que a Comissão desvirtuou a proposta de ICE ao ignorar a sua verdadeira finalidade, que dizia respeito a uma medida em matéria de política comercial comum. O segundo fundamento é relativo à violação do artigo 4.o, n.o 3, segundo parágrafo, deste regulamento, na medida em que a Comissão não cumpriu o seu dever de fundamentação da decisão impugnada. O terceiro fundamento é relativo à violação do artigo 4.o, n.o 2, alínea b), do referido regulamento, na medida em que a Comissão considerou erradamente que a ação requerida na proposta de ICE só podia ser adotada com base no artigo 215.o TFUE. O quarto fundamento é relativo à violação do artigo 4.o, n.o 2, alínea b), do mesmo regulamento, na medida em que a Comissão ignorou outras bases jurídicas com as quais a proposta de ICE está manifestamente relacionada.

16      O Tribunal Geral considera oportuno começar por examinar o segundo fundamento, relativo à insuficiência de fundamentação da decisão impugnada.

17      No âmbito deste fundamento, os recorrentes formulam, em substância, três alegações relativas à fundamentação da decisão recorrida.

18      Em primeiro lugar, a Comissão não explicitou por que razão considerou que o artigo 207.o, n.o 2, TFUE não constituía uma base jurídica adequada para a ação requerida na proposta de ICE, apesar da menção expressa a essa disposição e ao Regulamento 2019/125 na referida proposta. Com efeito, os recorrentes consideram que resultava da proposta de ICE que esta visava uma medida abrangida pela política comercial comum.

19      Em segundo lugar, uma vez que a Comissão considerou que apenas o artigo 215.o TFUE relativo a medidas adotadas em matéria de política externa e de segurança comum (PESC) podia constituir uma base jurídica adequada para a proposta de ICE, devia ter explicitado as razões por que considerou que o objetivo preponderante da referida proposta era uma medida no domínio da PESC, e não uma medida relativa à política comercial comum.

20      Em terceiro lugar, a Comissão não fez a distinção entre os dois números do artigo 215.o TFUE. Ora, a referência global a este artigo como base jurídica para a medida visada pela proposta de ICE não permitia conhecer a razão pela qual a proibição prevista pela referida proposta devia ser abrangida por medidas restritivas contra países (com fundamento no n.o 1 do referido artigo), em vez de medidas restritivas contra pessoas (com fundamento no n.o 2 do mesmo artigo).

21      A Comissão contesta a argumentação dos recorrentes alegando, em substância, que a decisão impugnada está suficientemente fundamentada.

22      A este respeito, há que recordar que, no que respeita ao processo de registo de uma proposta de iniciativa de cidadania ao abrigo do artigo 4.o do Regulamento n.o 211/2011, cabe à Comissão examinar se tal proposta preenche os requisitos de registo estabelecidos no n.o 2 desse artigo.

23      Em especial, entre estes requisitos, o artigo 4.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 211/2011 prevê que uma proposta de iniciativa de cidadania é registada pela Comissão, desde que «não [esteja] manifestamente fora da competência da Comissão para apresentar uma proposta de ato jurídico da União para efeitos de aplicação dos Tratados». Apenas quando uma proposta de iniciativa de cidadania, tendo em conta o seu objeto e os seus objetivos, tais como resultam das informações obrigatórias e, eventualmente, suplementares que tenham sido fornecidas pelos organizadores em aplicação do anexo II deste regulamento, estiver manifestamente fora do quadro das competências em que a Comissão pode apresentar uma proposta de ato jurídico da União Europeia para efeitos de aplicação dos Tratados, é que esta pode recusar o registo desta proposta de iniciativa de cidadania ao abrigo desta disposição (Acórdãos de 12 de setembro de 2017, Anagnostakis/Comissão, C‑589/15 P, EU:C:2017:663, n.o 50, e de 7 de março de 2019, Izsák e Dabis/Comissão, C‑420/16 P, EU:C:2019:177, n.o 54).

24      Nos termos do artigo 4.o, n.o 3, segundo parágrafo, do Regulamento n.o 211/2011, caso se recuse a registar uma proposta de iniciativa de cidadania, a Comissão informa os organizadores dos fundamentos dessa recusa.

25      Segundo a jurisprudência, o facto de uma proposta de iniciativa de cidadania não ser registada é suscetível de afetar a própria efetividade do direito dos cidadãos de apresentarem uma iniciativa de cidadania, consagrado no artigo 24.o, primeiro parágrafo, TFUE. Por conseguinte, uma tal decisão deve indicar claramente os fundamentos que justificam a referida recusa (v. Acórdão de 3 de fevereiro de 2017, Minority SafePack — one million signatures for diversity in Europe/Comissão, T‑646/13, EU:T:2017:59, n.o 17 e jurisprudência referida).

26      Com efeito, o cidadão que apresentou uma proposta de iniciativa de cidadania deve ser capaz de compreender as razões por que a Comissão não a registou, pelo que, caso seja apresentada uma tal proposta, cabe à Comissão não só apreciá‑la mas também especificar os vários fundamentos da decisão de recusa, tendo em conta o seu impacto no exercício efetivo do direito consagrado pelo Tratado. Tal decorre da própria natureza deste direito, que, como referido no considerando 1 do Regulamento n.o 211/2011, deve reforçar a cidadania europeia e melhorar o funcionamento democrático da União através da participação dos cidadãos na vida democrática da União (v. Acórdão de 3 de fevereiro de 2017, Minority SafePack — one million signatures for diversity in Europe/Comissão, T‑646/13, EU:T:2017:59, n.o 18 e jurisprudência referida).

27      A concretização dos objetivos, recordados no considerando 2 do Regulamento n.o 211/2011, de incentivar a participação dos cidadãos na vida democrática e de tornar a União mais acessível, ficaria seriamente comprometida na falta de uma fundamentação completa numa decisão de recusa (Acórdão de 3 de fevereiro de 2017, Minority SafePack — one million signatures for diversity in Europe/Comissão, T‑646/13, EU:T:2017:59, n.o 29).

28      O dever de informar os organizadores a respeito dos fundamentos de recusa de registo da sua proposta de ICE, tal como previsto no artigo 4.o, n.o 3, segundo parágrafo, do Regulamento n.o 211/2011, constitui a expressão específica, no que respeita à iniciativa de cidadania europeia, do dever de fundamentação dos atos jurídicos consagrado no artigo 296.o TFUE (Acórdão de 12 de setembro de 2017, Anagnostakis/Comissão, C‑589/15 P, EU:C:2017:663, n.o 28).

29      Segundo jurisprudência constante, a fundamentação exigida por esta última disposição deve ser adaptada à natureza do ato em causa e revelar, de forma clara e inequívoca, o raciocínio da instituição, autora do ato, por forma a permitir aos interessados conhecer as justificações da medida tomada e ao órgão jurisdicional competente exercer a sua fiscalização. A exigência de fundamentação deve ser apreciada em função das circunstâncias do caso concreto, designadamente do conteúdo do ato, da natureza dos fundamentos invocados e do interesse que os destinatários do ato ou outras pessoas direta e individualmente afetadas pelo mesmo podem ter em obter explicações. Não se exige que a fundamentação especifique todos os elementos de facto e de direito pertinentes, na medida em que a questão de saber se a fundamentação de um ato satisfaz as exigências do artigo 296.o TFUE deve ser apreciada tendo em conta, não apenas do seu teor, mas também o seu contexto e do conjunto das regras jurídicas que regem a matéria em causa (Acórdão de 2 de abril de 1998, Comissão/Sytraval e Brink’s France, C‑367/95 P, EU:C:1998:154, n.o 63; v., igualmente, Acórdão de 1 de julho de 2008, Chronopost e La Poste/UFEX e o., C‑341/06 P e C‑342/06 P, EU:C:2008:375, n.o 88 e jurisprudência referida).

30      Assim, embora seja verdade que as instituições não são obrigadas, na fundamentação das decisões que adotam, a tomar posição sobre todos os argumentos que os interessados invocam perante elas no decurso de um procedimento administrativo, não é menos verdade que devem expor os factos e as considerações jurídicas que revistam uma importância essencial na economia das suas decisões (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de julho de 2008, Bertelsmann e Sony Corporation of America/Impala, C‑413/06 P, EU:C:2008:392, n.o 169, e de 6 de setembro de 2012, Storck/IHMI, C‑96/11 P, não publicado, EU:C:2012:537, n.o 21).

31      É à luz destes princípios que é necessário examinar se a Comissão fundamentou suficientemente a decisão impugnada.

32      No caso em apreço, tal como foi recordado no n.o 6, supra, a Comissão declarou, na decisão impugnada, que um ato jurídico que abranja o objeto da proposta de ICE só podia ser adotado com base no artigo 215.o TFUE (considerando 5) e que não tinha competência para apresentar uma proposta de ato jurídico com essa base (considerando 6). Explicou que a proposta de ICE estava, portanto, manifestamente fora do quadro das suas competências, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 211/2011, em conjugação com o artigo 2.o, n.o 1, do referido regulamento (considerando 7).

33      Assim, resulta da fundamentação que figura na decisão impugnada que a Comissão baseou a sua recusa no fundamento relativo, em substância, ao facto de não ser competente para submeter uma proposta de ato jurídico que pudesse dar resposta ao objeto da proposta de ICE, sendo a única base jurídica aplicável, segundo a Comissão, o artigo 215.o TFUE.

34      Todavia, há que constatar que, como alegam os recorrentes, a decisão impugnada não especifica as razões pelas quais a Comissão considerou que apenas um ato adotado com fundamento no artigo 215.o TFUE podia responder ao objetivo da proposta de ICE. Além disso, mesmo que resulte implicitamente dos termos da decisão impugnada que a Comissão considerou que as outras disposições invocadas pelos recorrentes na sua proposta de ICE, nomeadamente o artigo 207.o TFUE, não podiam constituir uma base jurídica adequada para a medida visada pela proposta de ICE, a Comissão não explicitou melhor o seu raciocínio a este respeito.

35      Assim, o caráter suficiente de uma tal fundamentação constante da decisão impugnada deve ser apreciado com base nas considerações seguintes.

36      Em primeiro lugar, a decisão impugnada baseava‑se na manifesta falta de competência da Comissão para submeter uma proposta de ato jurídico que possa dar resposta ao objeto e ao objetivo da proposta de ICE. Esta manifesta falta de competência explicava‑se pelo facto de que Comissão considerou que a ação proposta era exclusivamente abrangida pela PESC.

37      Por conseguinte, a apreciação feita pela Comissão quanto ao objeto e aos objetivos da proposta de ICE em conformidade com a jurisprudência referida no n.o 23, supra, e, consequentemente, quanto à base jurídica aplicável, tinha uma importância essencial na economia da decisão impugnada, na aceção da jurisprudência recordada no n.o 30, supra. Daqui resulta que, contrariamente aos argumentos da Comissão, esta devia fornecer, na decisão impugnada, uma explicação relativa à sua análise da base jurídica adequada.

38      Ora, é evidente que a fundamentação apresentada pela Comissão na decisão impugnada, que se limita, em substância, a invocar o artigo 215.o TFUE como o único fundamento jurídico possível de um ato que permite responder ao objeto da proposta de ICE, não permite compreender o raciocínio relativo à escolha desta base jurídica. A referência, no considerando 6 da decisão impugnada, à falta de competência da Comissão para adotar uma «decisão que preveja a interrupção ou a redução, total ou parcial, das relações económicas e financeiras com o país terceiro em causa», a qual retoma a redação do artigo 215.o, n.o 1, TFUE, não fundamenta em caso algum esta apreciação. Com efeito, há que observar que a Comissão não explicitou por que razão considerava que a medida prevista na proposta de ICE devia ser necessária e exclusivamente considerada como um ato que previa a interrupção ou a redução das relações comerciais com um ou vários países terceiros na aceção do artigo 215.o, n.o 1, TFUE.

39      Em segundo lugar, o conteúdo da proposta de ICE constitui um elemento de contexto pertinente, na aceção da jurisprudência referida no n.o 29, supra, para apreciar o caráter suficiente da fundamentação da decisão impugnada. (v., neste sentido, Acórdão de 12 de setembro de 2017, Anagnostakis/Comissão, C‑589/15 P, EU:C:2017:663, n.os 29 e 36 a 39).

40      No caso em apreço, na proposta de ICE, os recorrentes referiram‑se expressamente, e por várias vezes, à política comercial comum, bem como às disposições relativas a este domínio.

41      Com efeito, por um lado, os recorrentes indicaram, na secção da proposta de ICE relativa ao seu objetivo, que a Comissão devia assegurar a «coerência da política da União e o cumprimento dos direitos fundamentais e do direito internacional em todos os domínios do direito da UE, incluindo a política comercial comum» (n.o 3, supra), e, na secção relativa ao objeto da referida proposta, a adoção de uma medida para «regular as transações comerciais» com os territórios sob ocupação (n.o 2, supra).

42      Por outro lado, na secção «disposições pertinentes dos Tratados e do direito internacional» da proposta de ICE, os recorrentes citaram várias disposições relativas à política comercial comum (n.o 4, supra). Em especial, mencionaram o artigo 207.o, n.os 1 e 2, TFUE, que prevê, nomeadamente, que as medidas que definem o quadro em que é executada a política comercial da União são adotadas pelo Parlamento Europeu e o Conselho, por meio de regulamentos adotados de acordo com o processo legislativo ordinário, bem como o artigo 3.o TFUE, do qual resulta que a política comercial comum é um domínio de competência exclusiva da União. Além disso, indicaram dois regulamentos adotados em matéria de política comercial comum, os quais regulam a troca de certos tipos de produtos provenientes de países terceiros, condicionando‑os, nomeadamente, a um regime de autorização, bem como dois acórdãos do Tribunal de Justiça relativos à aplicação de atos da União no âmbito deste domínio.

43      Por conseguinte, resultava das informações contidas na proposta de ICE que os recorrentes pretendiam que a Comissão submetesse uma proposta de ato de política comercial comum com fundamento no artigo 207.o TFUE.

44      A Comissão salienta, corretamente, que não era obrigada a mencionar na decisão impugnada a irrelevância de cada uma das disposições e alegadas fontes de direito mencionadas pelos recorrentes na proposta de ICE.

45      No entanto, tendo em conta as referências expressas e reiteradas à política comercial comum na proposta de ICE, e nomeadamente ao artigo 207.o TFUE, cabia à Comissão, no caso em apreço, explicitar as razões que a levaram a concluir, de maneira implícita, que a medida visada pela proposta de ICE, atendendo o seu objeto e objetivo, não era abrangida por este domínio e não podia, por conseguinte, ser adotada com fundamento no artigo 207.o TFUE. Ora, a decisão impugnada não contém nenhuma fundamentação a este respeito.

46      Além disso, na medida em que a decisão impugnada se baseou, em substância, na consideração de que a proposta de ICE não era manifestamente da competência da Comissão, a apreciação segundo a qual a referida proposta não podia estar relacionada com a política comercial comum reveste uma importância essencial na economia da decisão impugnada. Com efeito, diversamente da PESC, a política comercial comum é um domínio no qual a Comissão está autorizada a formular uma proposta de ato da União com fundamento no artigo 207.o TFUE.

47      Em terceiro lugar, o caráter suficiente ou não da fundamentação da decisão impugnada deve ser igualmente apreciado tendo em conta os objetivos do artigo 11.o, n.o 4, TUE, do artigo 24.o, primeiro parágrafo, TFUE e do Regulamento n.o 211/2011, que consistem em incentivar a participação dos cidadãos na vida democrática e em tornar a União mais acessível. Conforme recordado nos n.os 25 a 27, supra, em razão desses objetivos, a Comissão deve claramente revelar os fundamentos que justificam a recusa em registar uma proposta de iniciativa de cidadania.

48      Ora, na falta de fundamentação completa, a eventual apresentação de uma nova proposta de ICE, tendo em conta as objeções da Comissão sobre a admissibilidade da proposta, ficaria seriamente comprometida, do mesmo modo que a concretização dos objetivos recordados no considerando 2 do Regulamento n.o 211/2011, para incentivar a participação dos cidadãos na vida democrática e em tornar a União mais acessível (Acórdão de 3 de fevereiro de 2017, Minority SafePack — one million signatures for diversity in Europe/Comissão, T‑646/13, EU:T:2017:59, n.o 29). Com efeito, só expondo de forma adequada as razões que a levaram a considerar que a medida visada pela proposta de ICE era exclusivamente abrangida pela PESC e não estava relacionada com a política comercial comum é que a Comissão teria cumprido o objetivo de incentivar a participação dos cidadãos na vida democrática, em conformidade com o artigo 11.o, n.o 4, TUE e com o artigo 24.o, primeiro parágrafo, TFUE, bem como com os objetivos do Regulamento n.o 211/2011.

49      Tendo em conta as considerações precedentes, e sem que seja necessário examinar a questão de saber se a Comissão deveria igualmente ter especificado, na decisão impugnada, qual o parágrafo do artigo 215.o TFUE aplicável à medida visada pela proposta de ICE, há que concluir que a decisão impugnada não contém elementos suficientes que permitam aos recorrentes conhecer as razões da recusa de registo da proposta de ICE e ao Tribunal exercer a sua fiscalização sobre a legalidade dessa recusa. Consequentemente, esta decisão não cumpre o dever de fundamentação que decorre do artigo 296.o TFUE e do artigo 4.o, n.o 3, segundo parágrafo, do Regulamento n.o 211/2011.

50      Daqui resulta que há que julgar procedente o segundo fundamento e anular a decisão impugnada, sem que seja necessário examinar os outros fundamentos invocados pelos recorrentes.

 Quanto às despesas

51      Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão ficado vencida, há que condená‑la nas despesas, em conformidade com os pedidos dos recorrentes.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Décima Secção alargada)

decide:

1)      A Decisão (UE) 2019/1567 da Comissão, de 4 de setembro de 2019, sobre a proposta de iniciativa de cidadania intitulada «Assegurar a conformidade da política comercial comum com os Tratados da UE e o cumprimento do direito internacional», é anulada.

2)      A Comissão Europeia é condenada nas despesas.

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 12 de maio de 2021.

Assinaturas


*      Língua do processo: francês.


1      A lista dos outros recorrentes é anexada apenas à versão notificada às partes.