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Processo C321/21 P

Ryanair DAC

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 28 de setembro de 2023

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílios de Estado — Artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE — Mercado dinamarquês do transporte aéreo — Auxílio concedido pelo Reino da Dinamarca em benefício de uma companhia aérea no âmbito da pandemia de COVID‑19 — Quadro temporário relativo a medidas de auxílio estatal — Garantia pública que tem por objeto uma linha de crédito renovável — Decisão da Comissão Europeia de não levantar objeções — Auxílio destinado a remediar os danos sofridos por uma única vítima — Princípios da proporcionalidade e da não discriminação — Liberdades de estabelecimento e de livre prestação de serviços»

1.        Auxílios concedidos pelos Estados — Proibição — Derrogações — Auxílios compatíveis com o mercado interno — Auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários — Garantia sobre uma linha de crédito renovável em benefício de uma única companhia aérea no âmbito da pandemia de COVID19 — Inclusão — Garantia que não beneficia o conjunto das companhias aéreas prejudicadas — Falta de pertinência

[Artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE]

(cf. n.os 18‑33)

2.        Recurso de decisão do Tribunal Geral — Fundamentos — Apreciação errada dos factos e dos elementos de prova — Inadmissibilidade — Fiscalização pelo Tribunal de Justiça da apreciação dos factos e dos elementos de prova — Exclusão, salvo em caso de desvirtuação — Fundamento relativo à desvirtuação dos factos — Necessidade de indicar de forma precisa os elementos desvirtuados e demonstrar os erros de análise que levaram a essa desvirtuação — Necessidade de a desvirtuação resultar de forma manifesta dos documentos dos autos

[Artigo 256, n.° 1, segundo parágrafo, TFUE; Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 58.°, primeiro parágrafo; Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, artigo 168.°, n.° 1, alínea d)]

(cf. n.os 53‑59)

3.        Auxílios concedidos pelos Estados — Proibição — Derrogações — Auxílios compatíveis com o mercado interno — Auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários — Garantia sobre uma linha de crédito renovável em benefício de uma única companhia aérea no âmbito da pandemia de COVID19 — Avaliação da proporcionalidade à luz do montante do auxílio

[Artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE]

(cf. n.os 63‑67, 71‑74)

4.        Auxílios concedidos pelos Estados — Proibição — Derrogações — Auxílios compatíveis com o mercado interno — Auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários — Garantia sobre uma linha de crédito renovável em benefício de uma única companhia aérea no âmbito da pandemia de COVID19 — Compatibilidade da garantia com o mercado interno apesar do seu caráter exclusivo — Requisitos

(Artigo 107.° TFUE)

(cf. n.os 89‑96)

5.        Direito da União Europeia — Princípios — Igualdade de tratamento — Discriminação em razão da nacionalidade — Proibição ao abrigo do artigo 18.° TFUE — Caráter subsidiário em relação às regras específicas de não discriminação previstas pelo Tratado FUE — Artigo 107.°, n.os 2 e 3, TFUE que prevê essas regras específicas

(Artigos 18.° e 107.°, n.os 2 e 3, TFUE)

(cf. n.os 97‑100)

6.        Auxílios concedidos pelos Estados — Proibição — Derrogações — Auxílios compatíveis com o mercado interno — Auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários — Garantia sobre uma linha de crédito renovável em benefício de uma única companhia aérea no âmbito da pandemia de COVID19 — Auxílio compatível com o mercado interno ao abrigo do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE — Avaliação do auxílio à luz da livre prestação de serviços e da liberdade de estabelecimento — Requisitos

[Artigos 49.°, 56.°, e 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE]

(cf. n.os 118‑124)

7.        Auxílios concedidos pelos Estados — Proibição — Derrogações — Auxílios compatíveis com o mercado interno — Auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários — Garantia sobre uma linha de crédito renovável em benefício de uma única companhia aérea no âmbito da pandemia de COVID19 — Apreciação à luz do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE — Decisão da Comissão que declara a compatibilidade do auxílio com o mercado interno sem dar início ao procedimento formal de investigação — Violação dos direitos processuais das partes interessadas — Requisitos — Partes interessadas que devem demonstrar a existência de dúvidas quanto à compatibilidade do auxílio com o mercado interno

[Artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE]

(cf. n.os 131‑140)

8.        Auxílios concedidos pelos Estados — Decisão da Comissão de não levantar objeções a respeito de um regime de auxílios ou de uma medida de auxílio — Dever de fundamentação — Alcance

[Artigo 107.°, n.° 2, alínea b), e n.° 296, TFUE]

(cf. n.os 144‑149)

Resumo

Em abril de 2020, o Reino da Dinamarca e o Reino da Suécia notificaram à Comissão Europeia duas medidas de auxílio distintas em benefício da companhia aérea SAS AB, que consistiam, cada uma, numa garantia sobre uma linha de crédito renovável no montante máximo de 1,5 mil milhões de coroas suecas (a seguir «medidas em causa»). Estas medidas visavam indemnizar parcialmente a SAS pelo dano resultante da anulação ou da reprogramação dos seus voos na sequência da instauração de restrições em matéria de deslocações no contexto da pandemia de COVID‑19.

A notificação da medida de auxílio sueca seguiu‑se imediatamente à aprovação pela Comissão, nos termos do artigo 107.°, n.° 3, alínea b), TFUE (1), de um regime sueco de garantias de empréstimos destinados a apoiar certas companhias aéreas suecas no contexto da pandemia de COVID‑19 (2). A este respeito, a Suécia tinha confirmado que a SAS, que tinha dificuldades em obter empréstimos das instituições de crédito ao abrigo do regime sueco de garantias de empréstimos, beneficiaria quer de um auxílio ao abrigo desse regime, quer da nova garantia notificada, mas não das duas medidas simultaneamente.

Por Decisões de 15 de abril de 2020 (3) e de 24 de abril de 2020 (4), a Comissão qualificou as medidas em causa de auxílios de Estado compatíveis com o mercado interno ao abrigo do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE. Em conformidade com esta disposição, os auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários são compatíveis com o mercado interno.

A companhia aérea Ryanair interpôs recursos de anulação dessas decisões, que, no entanto, foram julgados improcedentes por dois acórdãos do Tribunal Geral (5).

O Tribunal de Justiça (6) negou provimento aos recursos interpostos pela Ryanair desses acórdãos, que confirma, neste contexto, que as medidas de auxílio adotadas para dar uma resposta às consequências da pandemia de COVID‑19 podem ser legalmente reservadas a uma única empresa, ainda que os seus concorrentes sejam igualmente afetados por essa pandemia.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Antes de mais, o Tribunal de Justiça confirma a análise do Tribunal Geral segundo a qual um auxílio concedido ao abrigo do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE e destinado a fazer face a um acontecimento extraordinário pode, como no caso em apreço, ser limitado a uma única empresa, com exclusão de todas as outras empresas prejudicadas.

A este respeito, o Tribunal de Justiça salienta que não resulta de modo algum dos termos do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE, lido à luz do seu objetivo, que só pode ser declarado compatível com o mercado interno um auxílio que seja concedido a todas as empresas que tenham sofrido danos causados por um acontecimento extraordinário.

É certo que, se, no momento da apreciação de uma medida de auxílio ao abrigo desta disposição, a Comissão devesse concluir que a seleção do beneficiário não é conforme com o objetivo destinado a compensar as desvantagens causadas de forma direta por um acontecimento extraordinário e que responde assim a outras considerações que lhe são alheias, a referida medida não pode ser declarada compatível com o mercado interno.

Todavia, o simples facto de um auxílio só ser concedido a uma única empresa, entre várias empresas potencialmente prejudicadas por um acontecimento extraordinário, não implica, no entanto, que este auxílio vise necessariamente outros objetivos com exclusão do prosseguido pelo artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE ou que seja concedido de forma arbitrária.

Neste contexto, o Tribunal de Justiça julga igualmente improcedente a argumentação da Ryanair relativa ao facto de que o objeto desta disposição pressupõe que o Estado‑Membro em causa atue como «seguradora em último recurso» que oferece a mesma proteção a todas as empresas expostas a determinados acontecimentos extraordinários, uma vez que tal interpretação não resulta da redação nem do objetivo do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE.

Por conseguinte, o Tribunal Geral não cometeu um erro de direito ao considerar que, não obstante o facto de as medidas em causa não terem beneficiado todas as empresas que sofreram danos causados pela pandemia de COVID 19, a Comissão podia qualificá‑las de auxílios compatíveis com o mercado interno ao abrigo do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE.

Por outro lado, contrariamente ao que a Ryanair sustentava, o facto de a Comissão ter declarado o regime sueco de garantias de empréstimos compatível com o mercado interno com base no artigo 107.°, n.° 3, alínea b), TFUE não a impedia de declarar a nova garantia notificada pelo Reino da Suécia compatível com o mercado interno ao abrigo do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE. Com efeito, um acontecimento como a pandemia de COVID‑19 que tanto pode ser qualificado de «acontecimento extraordinário», na aceção desta última disposição, como de acontecimento que dá origem a uma «perturbação grave da economia», na aceção da primeira, o Tratado FUE não se opõe a uma aplicação concomitante das referidas disposições, desde que as respetivas condições de aplicação estejam reunidas.

Em seguida, no âmbito da fiscalização da proporcionalidade, ao mesmo tempo que confirma que um auxílio individual concedido ao abrigo do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE não pode ser superior às perdas sofridas pelo seu beneficiário devido ao acontecimento extraordinário em causa, o Tribunal de Justiça rejeita as acusações da Ryanair segundo as quais o Tribunal Geral devia ter tido em conta uma possível sobrecompensação da SAS relativamente aos danos sofridos pelas outras companhias aéreas que operam na Suécia e na Dinamarca. Quanto a este ponto, o Tribunal de Justiça sublinha, por um lado, que o facto de saber se, ou em que medida, outras companhias também sofreram danos devido à pandemia de COVID‑19 é claramente irrelevante para efeitos da apreciação de uma eventual sobrecompensação a favor da SAS. Como o Reino da Dinamarca e o Reino da Suécia não estavam, por outro lado, obrigados a ter em conta a totalidade dos danos causados pela pandemia de COVID‑19 ou a fazer beneficiar do auxílio todas as empresas prejudicadas, a autorização de conceder, ao abrigo do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE, um auxílio apenas em benefício da SAS não pode ser subordinada à circunstância de a Comissão demonstrar que os danos causados por esta pandemia só prejudicavam esta empresa.

Além disso, foi com razão que o Tribunal Geral considerou que, no caso de um auxílio sob a forma de uma garantia sobre uma linha de crédito, o montante do auxílio concedido ao beneficiário que a Comissão deve ter em conta para determinar a existência de uma eventual sobrecompensação corresponde, em princípio, à diferença da taxa concedida ao referido beneficiário com, ou na inexistência, da garantia na data da adoção da sua decisão. Em contrapartida, para efeitos dessa determinação, a Comissão não deve ter em conta uma eventual vantagem que o beneficiário dela retirou indiretamente, como a vantagem concorrencial que resulta, se for caso disso, do facto de ser o único beneficiário do auxílio.

O Tribunal de Justiça confirma igualmente a conclusão do Tribunal Geral segundo a qual as medidas em causa não são contrárias ao princípio da não discriminação pelo simples facto do seu caráter intrinsecamente exclusivo, uma vez que o direito da União permite aos Estados‑Membros conceder auxílios individuais, desde que todos os requisitos previstos no artigo 107.° TFUE estejam preenchidos.

A este respeito, o Tribunal de Justiça recorda que, embora o artigo 107.°, n.° 1, TFUE consagre o princípio da incompatibilidade com o mercado interno das medidas que preenchem os requisitos enunciados nesta disposição, entre as quais figura a exigência de seletividade, não deixa de ser verdade que os n.os 2 e 3 desse mesmo artigo preveem certas derrogações ao referido princípio. Daqui resulta que os auxílios de Estado que são concedidos para efeitos de um objetivo reconhecido por essas derrogações e dentro dos limites do que é necessário e proporcionado à realização desse objetivo não podem ser considerados incompatíveis com o mercado interno apenas à luz das características ou dos efeitos que são inerentes a qualquer auxílio de Estado, ou seja, nomeadamente, por razões ligadas ao facto de o auxílio ser seletivo ou a falsear a concorrência.

Neste contexto, o Tribunal de Justiça julga, além disso, improcedente a alegação da Ryanair segundo a qual o Tribunal Geral cometeu um erro de direito na medida em que não aplicou o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade consagrado no artigo 18.° TFUE, mas examinou as medidas em causa à luz do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE. Com efeito, em conformidade com jurisprudência constante, o artigo 18.° TFUE apenas se destina a ser aplicado autonomamente em situações reguladas pelo direito da União para as quais o Tratado FUE não preveja regras específicas de não discriminação. Ora, segundo o Tribunal de Justiça, as derrogações previstas no artigo 107.°, n.os 2 e 3, TFUE constituem tais regras específicas.

O Tribunal Geral também não cometeu um erro de direito ao julgar improcedente as acusações da Ryanair relativas à violação das disposições relativas à livre prestação de serviços e à liberdade de estabelecimento. A este respeito, o Tribunal de Justiça salienta que, para demonstrar que as medidas em causa constituíam, pelo facto de só beneficiarem a SAS, um entrave à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços, a Ryanair devia ter demonstrado que produziam efeitos restritivos que iam além dos que são inerentes a um auxílio de Estado concedido em conformidade com os requisitos previstos no artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE. No entanto, na sua argumentação, a Ryanair limitou‑se a criticar a escolha da SAS como única beneficiária das medidas em causa e as consequências dessa escolha, apesar de esta última ser inerente ao caráter seletivo dessas medidas.

Por último, o Tribunal de Justiça julga improcedente o fundamento relativo ao facto de o Tribunal Geral ter ignorado as exigências de fundamentação das decisões da Comissão de não levantar objeções às medidas em causa e, consequentemente, os dois recursos da Ryanair na sua totalidade.


1       Em conformidade com esta disposição, os auxílios destinados a fomentar a realização de um projeto importante de interesse europeu comum, ou a sanar uma perturbação grave da economia de um Estado‑Membro podem ser considerados compatíveis com o mercado interno.


2       Decisão C(2020) 2366 final, relativa ao auxílio de Estado SA.56812 (2020/N) Suécia ‑ COVID‑19: Regime de garantias de empréstimos a favor das companhias aéreas (JO 2020, C 269, p. 1).


3       Decisão C(2020) 2416 final da Comissão, de 15 de abril de 2020, relativa ao auxílio de Estado SA.56795 (2020/N) Dinamarca ‑ Indemnização dos danos causados à SAS pela pandemia de COVID‑19 (JO 2020, C 220, p. 7).


4       Decisão C(2020) 2784 final da Comissão, de 24 de abril de 2020, relativa ao auxílio de Estado SA.57061 (2020/N) ‑ Suécia ‑ Indemnização dos danos causados à SAS pela pandemia de COVID‑19 (JO 2020, C 220, p. 9).


5       Acórdãos de 14 de abril de 2021, Ryanair/Comissão (SAS, Dinamarca; COVID‑19) (T‑378/20, EU:T:2021:194) e Ryanair/Comissão (SAS, Suécia; COVID‑19) (T‑379/20, EU:T:2021:195).


6       É negado provimento ao recurso interposto do Acórdão no processo T‑379/20 pelo Acórdão do Tribunal de Justiça no processo C‑320/21 P. É negado provimento ao recurso interposto do Acórdão no processo T‑378/20 pelo Acórdão do Tribunal de Justiça no processo C‑321/21 P.