Language of document : ECLI:EU:C:2011:112

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

3 de Março de 2011 (*)

«Concorrência – Artigos 101.° TFUE, 102.° TFUE e 106.° TFUE – Regime de reembolso complementar de despesas de saúde – Convenção colectiva – Inscrição obrigatória num organismo segurador determinado – Exclusão expressa de qualquer possibilidade de dispensa de inscrição – Conceito de empresa»

No processo C‑437/09,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo tribunal de grande instance de Périgueux (França), por decisão de 27 de Outubro de 2009, entrado no Tribunal de Justiça em 9 de Novembro de 2009, no processo

AG2R Prévoyance

contra

Beaudout Père et Fils SARL,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, J.‑J. Kasel, A. Borg Barthet, E. Levits (relator) e M. Safjan, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: R. Şereş, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 30 de Setembro de 2010,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da AG2R Prévoyance, por J. Barthélémy e O. Barraut, avocats,

–        em representação da Beaudout Père et Fils SARL, por F. Uroz, avocat,

–        em representação do Governo francês, por J. Gstalter, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo belga, por J.‑C. Halleux e C. Pochet, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo alemão, por J. Möller e N. Graf Vitzthum, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por F. Castillo de la Torre e P. J. O. Van Nuffel, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 11 de Novembro de 2010,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 81.° CE e 82.° CE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a AG2R Prévoyance (a seguir «AG2R»), instituição de previdência regida pelo Código da Segurança Social francês, à Beaudout Père et Fils SARL (a seguir «Beaudout»), relativo à recusa desta sociedade de aderir ao regime de reembolso complementar de despesas de saúde gerido pela AG2R para o sector da panificação artesanal francesa.

 Legislação nacional

3        Em França, as despesas de saúde ligadas a uma doença ou a um acidente efectuadas pelos trabalhadores são parcialmente reembolsadas pelo regime básico da segurança social. A parte restante das despesas a cargo do segurado pode ser objecto de um reembolso parcial através de um seguro complementar de saúde.

4        A inscrição dos trabalhadores de um determinado sector de actividade para serem abrangidos por essa cobertura pode ser prevista por um acordo ou por uma convenção colectiva celebrado pelos representantes dos empregadores e dos trabalhadores.

5        Assim, nos termos do artigo L 911‑1 do Código da Segurança Social:

«Se não forem instituídas por disposições legislativas ou regulamentares, as garantias colectivas de que beneficiam os trabalhadores, antigos trabalhadores e seus beneficiários em complemento das que resultem da organização da segurança social serão determinadas por convenções colectivas ou acordos colectivos, ou através da ratificação pela maioria dos interessados de um projecto de acordo proposto pelo dirigente da empresa, ou por decisão unilateral escrita do dirigente da empresa entregue por este a cada um dos interessados.»

6        O artigo L 912‑1 do Código da Segurança Social organiza o sistema de inscrição obrigatória num regime de reembolso complementar de despesas de saúde. Este artigo dispõe:

«Quando os acordos profissionais ou interprofissionais mencionados no artigo L 911‑1 prevêem a mutualização dos riscos cuja cobertura organizam com um ou vários organismos mencionados no artigo 1.° da Lei n.° 89‑1009, de 31 de Dezembro de 1989, que reforça as garantias oferecidas aos segurados contra certos riscos, ou com uma ou várias instituições mencionadas no artigo L 370‑1 do Código dos Seguros, aos quais aderem então obrigatoriamente as empresas abrangidas pelo âmbito de aplicação destes acordos, estes incluirão uma cláusula que fixa em que condições e com que periodicidade podem ser reexaminadas as modalidades de organização da mutualização dos riscos. A periodicidade do novo exame não pode exceder cinco anos.

Quando os acordos mencionados no parágrafo anterior são aplicados a uma empresa que, antes da data da sua entrada em vigor, aderiu ou subscreveu um contrato num organismo diferente do previsto nos acordos para garantir os mesmos riscos a um nível equivalente, serão aplicáveis as disposições do segundo parágrafo do artigo L 132‑23 do Código do Trabalho.»

7        Nos termos do artigo 1.° da Lei n.° 89‑1009, de 31 de Dezembro de 1989, conforme alterada pela Lei n.° 94‑678, de 8 de Agosto de 1994 (JORF n.° 184, de 10 de Agosto de 1994), as actividades de previdência só podem ser levadas a cabo pelas companhias de seguros, as instituições de previdência regidas pelo Código da Segurança Social ou pelo Código Rural e as mutualidades.

8        A este respeito, o artigo L 931‑1 do Código da Segurança Social precisa que as instituições de previdência são pessoas de direito privado com fins não lucrativos, administradas paritariamente por membros aderentes e membros participantes definidos no artigo L 931‑3 deste código. Essas instituições têm nomeadamente por objecto cobrir os riscos de lesões corporais relacionadas com os acidentes e doenças.

9        Nos termos do artigo L 932‑9, quinto parágrafo, do Código da Segurança Social, a instituição de previdência à qual foi confiada a gestão de um regime de previdência não tem a possibilidade de suspender as garantias nem de denunciar a adesão de uma empresa a esse regime por falta de pagamento das cotizações devidas a essa instituição.

10      Segundo o artigo L 132‑23 do Código do Trabalho, no caso de convenções sectoriais ou acordos profissionais ou interprofissionais passarem a aplicar‑se na empresa depois da celebração de convenções ou de acordos negociados em vigor, as disposições destas convenções ou acordos serão consequentemente adaptadas.

11      O artigo L 133‑8 do Código do Trabalho prevê:

«A pedido de uma das organizações referidas no artigo L. 133‑1 ou por iniciativa do Ministro do Trabalho, as disposições de uma convenção sectorial ou de um acordo profissional ou interprofissional, que preencha as condições específicas determinadas na secção anterior, podem ser tornadas obrigatórias para todos os assalariados e empregadores abrangidos pelo âmbito de aplicação da referida convenção ou do referido acordo, mediante decreto do Ministro do Trabalho, após parecer fundamentado da comissão nacional da negociação colectiva prevista no artigo L. 136‑1.

Sendo‑lhe apresentado o pedido mencionado no parágrafo anterior, o Ministro do Trabalho deve, obrigatoriamente e nos mais breves prazos, dar início ao procedimento de extensão.

A extensão dos efeitos e das sanções da convenção ou do acordo será feita pelo período de tempo e nas condições previstas pela referida convenção ou pelo referido acordo.

Todavia, o Ministro do Trabalho pode excluir da extensão, após parecer fundamentado da comissão nacional da negociação colectiva, as cláusulas que estejam em contradição com os diplomas legislativos e regulamentares em vigor e as cláusulas que, podendo ser excluídas da convenção ou do acordo sem modificar a sua estrutura, não correspondam à situação do sector ou dos sectores no âmbito de aplicação considerado. Nestas mesmas condições, o Ministro pode estender, sem prejuízo da aplicação dos diplomas legislativos e regulamentares em vigor, as cláusulas que são incompletas à luz dos referidos diplomas.»

12      Pelo aditamento de 24 de Abril de 2006 à convenção colectiva nacional de 19 de Março de 1978, relativo ao estabelecimento de um regime de «reembolso complementar das despesas de saúde» no sector da panificação artesanal (a seguir «aditamento n.° 83»), o sindicato dos empresários da panificação e os diferentes sindicatos de trabalhadores desse sector convencionaram o seguinte:

«Artigo 1.° – Âmbito de aplicação

O presente aditamento é aplicável às empresas que integram o âmbito de aplicação da Convenção Colectiva das Empresas Artesanais da Panificação e da Panificação‑Pastelaria.

Artigo 2.° – Adesão – Inscrição

A partir da data da entrada em vigor do presente aditamento, as empresas devem inscrever os seus trabalhadores num organismo segurador mediante a assinatura de um boletim de inscrição específico.

[…]

Artigo 3.° – Beneficiários

O presente aditamento institui um regime ‘de reembolso complementar de despesas de saúde’ obrigatório em benefício de todos os trabalhadores das empresas referidas no artigo 1.° do presente aditamento que tenham um mês de antiguidade numa mesma empresa.

Quando o trabalhador atingir a antiguidade exigida, poderá beneficiar do regime retroactivamente a partir da data de entrada na empresa.

[…]

Artigo 4.° – Garantias

As garantias do presente regime são estabelecidas com base na legislação e regulamentação do seguro de doença em vigor no momento da sua celebração. Serão revistas, eventualmente, o mais rapidamente possível no caso de alteração desses diplomas.

Estão cobertos todos os actos e despesas correntes durante o período de garantia que tenham sido objecto de um reembolso e de um desconto individualizado do regime de base da segurança social a título da legislação ‘doença’, ‘acidentes de trabalho/doenças profissionais’ e ‘maternidade’, bem como os actos e despesas não tomados a cargo por esse regime, expressamente mencionados no quadro das garantias que figuram em anexo ao presente aditamento.

[…]

Artigo 5.° – Cotização e repartição

A cotização do regime ‘reembolso complementar das despesas de saúde’ é expressa numa taxa da Tabela Mensal da Segurança Social (TMSS).

Para o ano de 2007, a taxa aplicada pela TMSS equivale a uma cotização de 40 [euros] por trabalhador e por mês para o regime geral e de 32 [euros] para o regime Alsácia‑Mosela.

Esta mesma percentagem será mantida em 2008.

Depois do segundo ano de aplicação do regime, a cotização será reexaminada pelas partes signatárias, em função dos resultados do regime e da evolução das despesas de saúde e das legislações e regulamentações fiscais, sociais e do seguro de doença.

[...]

A cotização é repartida à razão de 50% a cargo do empregador e 50% a cargo do trabalhador.

[...]

A comissão paritária reúne‑se, pelo menos, uma vez por ano para examinar os resultados do regime, bem como todas as estatísticas ou elementos relativos a este regime de que a comissão pode ter necessidade.

[...]

Artigo 13.° – Designação do organismo segurador

A AG2R Prévoyance [...] é designada como organismo segurador do presente regime [...]

As modalidades de organização da mutualização do regime serão reexaminadas pela Comissão Nacional Paritária do sector [...] no prazo de cinco anos a contar da data de entrada em vigor do presente aditamento.

[…]

Artigo 14.° – Cláusula de migração

A adesão de todas as empresas abrangidas pelo âmbito de aplicação da Convenção Colectiva Nacional das Empresas Artesanais da Panificação e Panificação‑Pastelaria ao regime ‘reembolso complementar das despesas de saúde’ e a inscrição dos trabalhadores dessas empresas no organismo segurador designado têm carácter obrigatório a partir da entrada em vigor fixada no artigo 16.° do presente aditamento.

Para este efeito, as empresas abrangidas receberão um contrato de adesão e boletins de inscrição.

Estas disposições também serão aplicáveis às empresas que têm um contrato de [cobertura] complementar [das despesas de] saúde com outro organismo segurador com garantias idênticas ou superiores às definidas no presente aditamento.

[…]»

13      Em conformidade com o seu artigo 16.°, o aditamento n.° 83 entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2007.

14      O aditamento n.° 1, de 6 de Setembro de 2006, ao aditamento n.° 83 prevê no seu artigo 1.°, designadamente, que o organismo segurador mantém a cobertura das despesas de saúde durante um período mínimo de doze meses em benefício das pessoas cobertas devido a um segurado falecido, a partir do seu falecimento, sem contrapartida de cotização.

15      O artigo 2.° do aditamento n.° 5, de 21 de Julho de 2009, ao aditamento n.° 83 inseriu o artigo 4.° bis sob a epígrafe «Manutenção dos direitos do regime de reembolso complementar de despesas de saúde». Este artigo 4.° bis tem a seguinte redacção:

«Em caso de ruptura ou de fim do último contrato de trabalho que não seja consequência de uma falta grave e que dê direito a uma indemnização do regime obrigatório de seguro de desemprego, o trabalhador beneficia da manutenção das garantias do regime de reembolso complementar de despesas de saúde previsto pelo aditamento n.° 83 […]

[…]

A manutenção das garantias vigorará desde o dia seguinte à data do final do contrato de trabalho sob reserva de ter sido regularmente declarado pela empresa ao organismo segurador designado.

A manutenção de garantias aplica‑se durante um período máximo igual à duração do último contrato de trabalho do trabalhador da empresa, considerado em meses inteiros, com o limite de 9 meses.

[…]

A manutenção das garantias nestes termos é financiada pelas cotizações das empresas e dos trabalhadores em actividade […]»

16      Nos termos do artigo 1.° da Portaria de 16 de Outubro de 2006, relativa à extensão de um aditamento à convenção colectiva nacional das empresas artesanais da panificação e panificação‑pastelaria:

«As disposições do aditamento n.° 83 tornam‑se obrigatórias para todos os empregadores e para todos os trabalhadores abrangidos pelo âmbito de aplicação da convenção colectiva nacional da panificação‑pastelaria (empresas artesanais) de 19 de Março de 1976 […]»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

17      A Beaudout está inscrita desde 10 de Outubro de 2006, a título do seguro complementar de despesas de saúde, numa companhia de seguros diferente da AG2R.

18      Tendo recusado aderir ao regime gerido por esta última, a Beaudout foi demandada pela AG2R no órgão jurisdicional de reenvio a fim de lhe ser ordenado regularizar a sua adesão e pagar as cotizações em atraso.

19      A título incidental, a demandada no processo principal colocou em causa a legalidade do aditamento n.° 83.

20      Depois de ter rejeitado os seus argumentos respeitantes à compatibilidade desse aditamento com o direito interno, o órgão jurisdicional de reenvio comparou o litígio que lhe foi submetido com o processo que deu origem ao acórdão do Tribunal de Justiça de 21 de Setembro de 1999, Albany (C‑67/96, Colect., p. I‑5751).

21      Esse órgão jurisdicional verificou que, contrariamente ao fundo de pensões em causa naquele processo, em que a inscrição era obrigatória com possibilidade de isenções, o regime de seguro complementar de cuidados de saúde em causa no processo principal não foi objecto de nenhuma isenção de inscrição, tanto no aditamento n.° 83 como no artigo L 912‑1 do Código da Segurança Social.

22      Considerando que, nestas condições, a solução do litígio que lhe foi submetido necessita da interpretação do direito da União, o tribunal de grande instance de Périgueux decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«A organização de um dispositivo de inscrição obrigatória num regime complementar de cuidados de saúde, como o previsto [no] artigo L 912‑1 do Código da Segurança Social, e um aditamento, tornado vinculativo pelas autoridades públicas a pedido das organizações representativas dos empregadores e dos trabalhadores de um determinado sector, que prevê que a inscrição num organismo único, designado para gerir um regime complementar de cuidados de saúde, sem dar qualquer possibilidade, às empresas do sector em causa, de serem dispensadas da inscrição, estão em conformidade com o disposto nos artigos 81.° CE e 82.° CE ou são susceptíveis de atribuir ao organismo designado uma posição dominante constitutiva de um abuso?»

 Apreciação do Tribunal

23      A título preliminar, importa sublinhar que, embora a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio se limite a pedir ao Tribunal de Justiça que interprete à luz das circunstâncias existentes no processo principal os artigos 81.° CE e 82.° CE, aos quais correspondem actualmente os artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE, que se referem ao comportamento das empresas, decorre da decisão de reenvio que esse órgão jurisdicional pergunta, no essencial, se a decisão dos poderes públicos de tornar obrigatório, a pedido das organizações representativas dos empregadores e dos trabalhadores de um determinado sector de actividade, um acordo resultante de negociações colectivas que prevê a inscrição obrigatória num regime de reembolso complementar das despesas de saúde gerido por um organismo designado, sem possibilidade de isenção, é compatível com o direito da União.

24      Ora, há que recordar que o artigo 101.° TFUE, em conjugação com o artigo 4.°, n.° 3, TUE, impõe aos Estados‑Membros a obrigação de não tomarem ou manterem em vigor medidas, de natureza legislativa ou regulamentar, susceptíveis de eliminar o efeito útil das regras de concorrência aplicáveis às empresas (v., designadamente, acórdãos Albany, já referido, n.° 65; de 21 de Setembro de 1999, Brentjens’, C‑115/97 a C‑117/97, Colect., p. I‑6025, n.° 65; e Drijvende Bokken, C‑219/97, Colect., p. I‑6121, n.° 55).

25      Além disso, nos termos do artigo 106.°, n.° 1, TFUE, a que correspondia anteriormente o artigo 86.°, n.° 1, CE, no que respeita às empresas públicas e às empresas a que concedam direitos especiais ou exclusivos, os Estados‑Membros não tomarão nem manterão qualquer medida contrária ao disposto nos Tratados, designadamente ao disposto nos artigos 18.° TFUE e 101.° TFUE a 109.° TFUE inclusive, sem prejuízo do disposto no artigo 106.°, n.° 2, TFUE.

26      Ora, o Tribunal de Justiça tem por missão interpretar todas as disposições do direito da União de que os órgãos jurisdicionais nacionais necessitam para decidir os litígios que lhes são submetidos, ainda que essas disposições não sejam expressamente referidas nas questões que lhe são apresentadas por esses órgãos jurisdicionais (v., neste sentido, acórdãos de 8 de Março de 2007, Campina, C‑45/06, Colect., p. I‑2089, n.° 31, e de 5 de Março de 2009, Kattner Stahlbau, C‑350/07, Colect., p. I‑1513, n.os 25 e 26).

27      Assim, para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, há que considerar que a questão por ele submetida tem por objecto a interpretação dos artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE, em conjugação, respectivamente, com os artigos 4.°, n.° 3, TUE e 106.° TFUE.

 Quanto à interpretação do artigo 101.° TFUE, em conjugação com o artigo 4.°, n.° 3, TUE

28      Para responder a esta parte da questão prejudicial tal como reformulada, há que examinar, em primeiro lugar, se a decisão das organizações representativas dos empregadores e dos trabalhadores de um sector profissional de designar um organismo encarregado da gestão de um regime de reembolso complementar de despesas de saúde e de pedir aos poderes públicos que tornem obrigatória a inscrição nesse regime de todos os trabalhadores desse sector é susceptível de ser abrangida pelo conceito de acordo entre empresas, de decisões de associações de empresas ou de práticas concertadas como proibidos pelo artigo 101.°, n.° 1, TFUE.

29      A este respeito, importa, em primeiro lugar, recordar que o Tribunal de Justiça entende que os acordos celebrados no âmbito de negociações colectivas entre parceiros sociais destinados à melhoria das condições do emprego e do trabalho devem ser considerados, pela sua natureza e objecto, como não abrangidos pelo artigo 101.°, n.° 1, TFUE (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Albany, n.° 60; Brentjens’, n.° 57; Drijvende Bokken, n.° 47; acórdãos de 12 de Setembro de 2000, Pavlov e o., C‑180/98 a C‑184/98, Colect., p. I‑6451, n.° 67; e de 21 de Setembro de 2000, van der Woude, C‑222/98, Colect., p. I‑7111, n.° 22).

30      Assim, há que examinar se a natureza e o objecto de um acordo como o que está em causa no processo principal justificam que não seja abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 101.°, n.° 1, TFUE.

31      Resulta das considerações do órgão jurisdicional de reenvio, por um lado, que o acordo em causa no processo principal foi celebrado sob a forma de um aditamento a uma convenção colectiva e resulta, por conseguinte, de uma negociação colectiva entre a organização representativa dos empregadores e as representativas dos trabalhadores no sector da panificação artesanal francesa.

32      Por outro lado, quanto ao seu objecto, esse acordo institui, num determinado sector, um regime de reembolso complementar das despesas de saúde que contribui para a melhoria das condições de trabalho dos trabalhadores não apenas ao garantir‑lhes os meios necessários para fazer face às despesas ligadas a uma doença, a um acidente de trabalho, a uma doença profissional ou ainda a uma maternidade mas igualmente ao reduzir as despesas que, não existindo uma convenção colectiva, deveriam ser suportadas pelos trabalhadores.

33      Esta consideração não é posta em causa pela circunstância de a inscrição nesse acordo ser obrigatória para todas as empresas do sector de actividade em questão de um Estado‑Membro, não estando prevista a isenção de filiação, contrariamente ao acordo em causa no processo que deu origem ao acórdão Albany, já referido.

34      Com efeito, por um lado, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça não teve em consideração as possibilidades de isenção de filiação no fundo de pensões em causa nesse processo para interpretar o artigo 85.°, n.° 1, do Tratado CE, ao qual corresponde actualmente o artigo 101.°, n.° 1, TFUE.

35      Por outro lado, decorre dos n.os 26 e 27 do acórdão van der Woude, já referido, que está excluída do âmbito de aplicação do artigo 101.°, n.° 1, TFUE uma convenção colectiva relativa a um regime de seguro de doença que designa um único organismo em caso de subscrição desse regime, excluindo assim qualquer possibilidade de inscrição em organismos concorrentes.

36      Por conseguinte, há que declarar que um acordo como o aditamento n.° 83 não é abrangido, devido à sua natureza e ao seu objecto, pelo artigo 101.°, n.° 1, TFUE.

37      Em segundo lugar, resulta de jurisprudência constante que, se, em si mesmo, o artigo 101.° TFUE diz unicamente respeito ao comportamento das empresas e não visa medidas legislativas ou regulamentares emanadas dos Estados‑Membros, não é menos certo que esse artigo, lido em conjugação com o artigo 4.°, n.° 3, TUE, impõe aos Estados‑Membros que não tomem ou mantenham em vigor medidas, mesmo de natureza legislativa ou regulamentar, susceptíveis de eliminar o efeito útil das regras de concorrência aplicáveis às empresas. É o que acontece quando um Estado‑Membro impõe ou favorece a celebração de acordos contrários ao artigo 101.° TFUE ou reforça os seus efeitos, ou retira à sua própria regulamentação o carácter estatal, delegando em operadores privados a responsabilidade de tomar decisões de intervenção de interesse económico (v., neste sentido, acórdãos de 18 de Junho de 1998, Comissão/Itália, C‑35/96, Colect., p. I‑3851, n.os 53 e 54; Corsica Ferries France, C‑266/96, Colect., p. I‑3949, n.os 35, 36 e 49; e Albany, já referido, n.° 65).

38      A este respeito, deve observar-se que, na medida em que decorre do n.° 36 do presente acórdão que um acordo como o aditamento n.° 83 não é abrangido pelo artigo 101.°, n.° 1, TFUE, os poderes públicos têm a liberdade de o tornar obrigatório para pessoas que não lhe estão formalmente vinculadas (v., por analogia, acórdãos, já referidos, Albany, n.° 66; Brentjens’, n.° 66; e Drijvende Bokken, n.° 56).

39      Assim, há que responder à primeira parte da questão, como foi reformulada, que o artigo 101.° TFUE, em conjugação com o artigo 4.°, n.° 3, TUE, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à decisão dos poderes públicos de tornar obrigatório, a pedido das organizações representativas dos empregadores e dos trabalhadores de um determinado sector de actividade, um acordo resultante de negociações colectivas que prevê a inscrição obrigatória num regime de reembolso complementar de despesas de saúde de todas as empresas do sector em causa, sem possibilidade de isenção.

 Quanto à interpretação do artigo 102.° TFUE, em conjugação com o artigo 106.° TFUE

 Quanto à qualificação de empresa na acepção do artigo 102.° TFUE

40      Em relação à interpretação do artigo 102.° TFUE, há que determinar se uma instituição como a AG2R é uma empresa na acepção desta disposição.

41      A este respeito, cumpre recordar que, no contexto do direito da concorrência da União, o conceito de empresa abrange qualquer entidade que exerça uma actividade económica, independentemente do estatuto jurídico dessa entidade e do seu modo de financiamento (v., designadamente, acórdãos de 23 de Abril de 1991, Höfner e Elser, C‑41/90, Colect., p. I‑1979, n.° 21, e de 11 de Dezembro de 2007, ETI e o., C‑280/06, Colect., p. I‑10893, n.° 38).

42      Resulta de jurisprudência constante que constitui uma actividade económica qualquer actividade consistente em oferecer bens ou serviços num dado mercado (v., designadamente, acórdão de 22 de Janeiro de 2002, Cisal, C‑218/00, Colect., p. I‑691, n.° 23).

43      No presente caso, decorre do artigo L 931‑1 do Código da Segurança Social que a AG2R, enquanto instituição de previdência abrangida pelo referido código, é uma pessoa de direito privado com fins não lucrativos e cujo objectivo é a cobertura de lesões corporais relacionadas com acidentes e doenças. Deste modo, por um lado, por força do artigo L 932‑9 deste mesmo código, essa instituição não pode suspender as garantias nem denunciar a adesão de uma empresa devido à falta de pagamento das cotizações pela empresa. Por outro lado, embora as empresas abrangidas pela convenção colectiva nacional das empresas artesanais da panificação e panificação‑pastelaria sejam obrigadas a aderir ao regime gerido pela AG2R, daí decorre, correlativamente, que a AG2R é obrigada, por seu turno, nos termos do aditamento n.° 83, a segurar todos os trabalhadores dessas empresas, independentemente do risco a cobrir, e isso em contrapartida de uma taxa única de cotização, suportada em partes iguais pelo empregador e pelo trabalhador, sem ter em conta a dimensão da empresa ou a remuneração do trabalhador segurado.

44      Portanto, na medida em que prevê uma protecção social complementar obrigatória para todos os trabalhadores de um sector económico, um regime de reembolso complementar das despesas de saúde como o em causa no processo principal tem um objectivo social.

45      Todavia, a finalidade social de um regime de seguro não é por si só suficiente para excluir que a actividade em causa seja qualificada de actividade económica (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Albany, n.° 86; Pavlov e o., n.° 118; Cisal, n.° 37; e Kattner Stahlbau, n.° 42).

46      Há ainda que analisar, em particular, por um lado, se se pode considerar que este regime aplica o princípio da solidariedade e, por outro, em que medida está sujeito ao controlo do Estado que o estabeleceu, elementos que são susceptíveis de excluir o carácter económico de uma dada actividade (v., neste sentido, acórdão Kattner Stahlbau, já referido, n.° 43 e jurisprudência aí referida).

–       Quanto à aplicação do princípio da solidariedade

47      No que se refere à aplicação do princípio da solidariedade, decorre de uma apreciação global do regime em causa no processo principal, em primeiro lugar, que este é financiado por cotizações de montante fixo e, portanto, a taxa não é proporcional ao risco segurado.

48      Com efeito, em conformidade com o artigo 5.°, segundo parágrafo, do aditamento n.° 83, a cotização é fixada num montante uniforme de 40 euros, suportado em parte pelo empregador e em parte pelo trabalhador.

49      Deste modo, este regime não tem em consideração elementos como a idade, o estado de saúde ou ainda os riscos específicos inerentes ao posto de trabalho ocupado pelo trabalhador segurado.

50      Por conseguinte, a natureza das prestações concedidas pela AG2R assim como a extensão da cobertura concedida não são proporcionais ao montante das cotizações pagas.

51      Em segundo lugar, as prestações são, em determinados casos, concedidas independentemente do pagamento das cotizações devidas. Isso resulta, antes de mais, do artigo 3.°, segundo parágrafo, do aditamento n.° 83, que dispõe que o benefício do regime é reconhecido retroactivamente quando o trabalhador atingiu a antiguidade mínima de um mês exigida para aderir ao referido regime. Em seguida, nos termos do artigo 4.° bis desse aditamento, a cobertura das despesas de saúde é, em princípio, mantida durante um certo período depois da ruptura do contrato de trabalho do segurado. Por último, o artigo 1.° do aditamento n.° 1, de 6 de Setembro de 2006, ao aditamento n.° 83 prevê a manutenção da referida cobertura em proveito das pessoas beneficiárias do segurado falecido durante um período que vai, pelo menos, até doze meses após o seu falecimento.

52      Tendo em consideração todos estes elementos, afigura‑se que um regime de reembolso complementar de despesas de saúde como o que está em causa no processo principal se caracteriza por um elevado grau de solidariedade.

–       Quanto ao controlo do Estado

53      Para determinar se a qualificação de empresa que exerce uma actividade económica é aplicável a um organismo como o que está em causa no processo principal, há que analisar o âmbito do controlo exercido pelo Estado relativamente às modalidades de funcionamento desse regime.

54      No caso em apreço, em primeiro lugar, em conformidade com o artigo L 911‑1 do Código da Segurança Social, é reconhecida aos parceiros sociais a faculdade de determinarem eles próprios, mediante convenções ou acordos colectivos, as garantias colectivas de que beneficiam os trabalhadores, antigos trabalhadores e seus beneficiários em complemento das que resultam da organização da segurança social.

55      Em segundo lugar, o artigo L 912‑1 deste mesmo código refere que esses acordos incluem uma cláusula que fixa em que condições e com que periodicidade as modalidades de organização da mutualização dos riscos podem ser reexaminadas pelos parceiros sociais.

56      Em terceiro lugar, por força do artigo L 133‑8 do Código do Trabalho, é necessário um decreto ministerial para tornar obrigatórias as disposições desses acordos a todos os trabalhadores e empregadores aos quais são aplicáveis.

57      É neste quadro regulamentar que a missão de controlo das modalidades de funcionamento do regime em causa no processo principal é atribuída, com determinadas reservas, aos representantes dos empregadores e dos trabalhadores do sector da panificação artesanal.

58      Neste contexto, o aditamento n.° 83 reconhece um papel preponderante a esses representantes, na medida em que, nos termos do seu artigo 13.°, segundo parágrafo, uma comissão paritária composta também por representantes dos empregadores e dos trabalhadores é encarregada de reexaminar, num prazo de cinco anos a contar da entrada em vigor desse aditamento, as modalidades de organização da mutualização do regime em causa. Além disso, o artigo 5.°, quarto parágrafo, do referido aditamento prevê que o montante da cotização por ele fixado será reexaminado pelas partes signatárias uma vez decorrido o segundo ano de aplicação do regime. Este mesmo artigo determina que a comissão paritária examinará anualmente os resultados do regime.

59      Todavia, outras características relativas à designação da AG2R como gestor do regime de reembolso complementar de despesas de saúde podem levar a considerar que esse organismo dispõe de uma determinada autonomia.

60      Em primeiro lugar, o artigo L 911‑1 do Código da Segurança Social prevê que as garantias colectivas complementares de que beneficiam os trabalhadores podem ser estabelecidas de diferentes modos. A via da convenção colectiva é, neste contexto, uma escolha dos parceiros sociais, sabendo‑se que esta disposição permite igualmente a organização desta cobertura à escala de uma empresa, e não de todo um sector profissional.

61      Em segundo lugar, nos termos do artigo 1.° da Lei n.° 89‑1009, conforme alterada pela Lei n.° 94‑678, as actividades de previdência podem ser confiadas não apenas a instituições de previdência e mutualidades mas também a companhias de seguros.

62      Decorre destes elementos que não existe a obrigação legal de os parceiros sociais designarem a AG2R para assegurar a gestão de um regime de reembolso complementar das despesas de saúde como o que está em causa no processo principal nem a obrigação de a AG2R tomar efectivamente a cargo a gestão desse regime.

63      Neste contexto, a Beaudout alega nas suas observações que existem outras instituições de previdência e companhias de seguros que, antes da designação da AG2R pelo aditamento n.° 83, ofereciam serviços essencialmente idênticos aos prestados por esse organismo.

64      Assim, coloca‑se a questão, por um lado, das circunstâncias em que a AG2R foi designada pelo aditamento n.° 83 e, por outro, da margem de negociação de que esse organismo pode dispor quanto às modalidades do seu compromisso e da repercussão desses elementos no modo de funcionamento do regime em causa considerado globalmente.

65      Com efeito, em função dessas circunstâncias e dessa margem de negociação, que compete ao órgão jurisdicional de reenvio examinar, pode concluir‑se que a AG2R, embora sem fins lucrativos e agindo com fundamento no princípio da solidariedade, é uma empresa que exerce uma actividade económica que foi escolhida pelos parceiros sociais, com base em considerações financeiras e económicas, dentre outras empresas com as quais está em concorrência no mercado dos serviços de previdência que propõe.

 Quanto à aplicabilidade do artigo 106.°, n.° 2, TFUE

66      Dado que a AG2R deve ser considerada uma empresa que exerce uma actividade económica, na acepção do artigo 102.° TFUE, a decisão dos poderes públicos de tornarem obrigatória a inscrição num regime de reembolso complementar de despesas de saúde a todo o sector da panificação artesanal francesa, sem nenhuma possibilidade de isenção, implica necessariamente a concessão a esse organismo do direito exclusivo de receber e de gerir as cotizações pagas pelos empregadores e trabalhadores desse sector no âmbito desse regime. Portanto, esse organismo pode ser considerado uma empresa titular de direitos exclusivos na acepção do artigo 106.°, n.° 1, TFUE (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Albany, n.° 90; Brentjens’, n.° 90; e Drijvende Bokken, n.° 80).

67      Dado que, devido a esses direitos exclusivos, as empresas do sector da panificação artesanal francesa não têm a possibilidade de cotizar para um regime de reembolso complementar de despesas de saúde gerido por outro organismo, a AG2R detém o monopólio legal sobre uma parte substancial do mercado comum e pode considerar‑se que ocupa uma posição dominante na acepção do artigo 102.° TFUE (v., por analogia, acórdão Pavlov e o., já referido, n.° 126).

68      Todavia, segundo jurisprudência assente, o simples facto de criar uma posição dominante através da concessão de direitos exclusivos, na acepção do artigo 106.°, n.° 1, TFUE, não é, enquanto tal, incompatível com o artigo 102.° TFUE. Um Estado‑Membro só viola as proibições estabelecidas por estas duas disposições quando a empresa em causa seja levada, pelo simples exercício dos direitos exclusivos que lhe foram conferidos, a explorar a sua posição dominante de forma abusiva ou quando esses direitos sejam susceptíveis de criar uma situação em que essa empresa seja levada a cometer tais abusos (v. acórdãos, já referidos, Höfner e Elser, n.° 29; Albany, n.° 93; Brentjens’, n.° 93; e Drijvende Bokken, n.° 83).

69      Existe essa prática abusiva contrária ao artigo 106.°, n.° 1, TFUE, nomeadamente, quando um Estado‑Membro confere a uma empresa um direito exclusivo de exercer certas actividades e cria uma situação em que essa empresa não está manifestamente em condições de satisfazer a procura que o mercado representa para esse tipo de actividades (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Höfner e Elser, n.° 31, e Pavlov e o., n.° 127).

70      A este respeito, a recusa da Beaudout de aderir ao regime gerido pela AG2R assenta na alegação de que as companhias de seguros oferecem garantias superiores às prestações da AG2R.

71      Todavia, é necessário sublinhar, por um lado, que a impossibilidade das empresas do sector da panificação artesanal francesa se dirigirem a outros organismos para obter um cobertura em matéria de reembolso complementar das despesas de saúde em benefício dos seus trabalhadores, bem como a restrição da concorrência que daí resulta, decorrem directamente do direito exclusivo conferido à AG2R (v., por analogia, acórdãos, já referidos, Albany, n.° 97; Brentjens’, n.° 97; e Drijvende Bokken, n.° 87).

72      Por outro lado, como salientou o advogado‑geral no n.° 98 das suas conclusões, não decorre dos autos enviados pelo órgão jurisdicional de reenvio nem das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça que as prestações da AG2R não correspondem às necessidades das empresas em questão.

73      Nestas condições, cumpre ainda verificar se a AG2R está encarregada da gestão de um serviço de interesse económico geral na acepção do artigo 106.°, n.° 2, TFUE.

74      Com efeito, como decorre dos n.os 47 a 52 do presente acórdão, o regime de reembolso complementar das despesas de saúde como o gerido pela AG2R é caracterizado por um elevado grau de solidariedade. De resto, o aditamento n.° 83 impõe à AG2R condições específicas, nomeadamente financeiras, para garantir a perenidade da cobertura concedida aos segurados.

75      No entanto, a Beaudout alega que a introdução de um mecanismo que autoriza isenções de inscrição não põe em perigo o equilíbrio financeiro do organismo gestor do regime em causa no processo principal.

76      A este respeito, convém recordar que decorre da jurisprudência que, para que as condições de aplicação do artigo 106.°, n.° 2, TFUE se encontrem reunidas, não é necessário que o equilíbrio financeiro ou a viabilidade económica da empresa encarregada da gestão de um serviço de interesse económico geral sejam ameaçados. Basta que, sem os direitos exclusivos controvertidos, se obste ao cumprimento das missões específicas confiadas à empresa, tal como estas são definidas pelas obrigações e imposições que sobre ela impendem, ou que a manutenção de tais direitos seja necessária para permitir ao seu titular cumprir as missões de interesse económico geral que lhe foram confiadas, em condições economicamente aceitáveis (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Albany, n.° 107; Brentjens’, n.° 107; e Drijvende Bokken, n.° 97).

77      Ora, há que referir que, no caso de supressão da cláusula de migração e, através dela, do direito exclusivo de a AG2R gerir o regime de reembolso complementar das despesas de saúde para a totalidade das empresas do sector da panificação artesanal francesa, este organismo, apesar de estar obrigado, por força do aditamento n.° 83, a oferecer uma cobertura aos trabalhadores dessas empresas nas condições definidas pelo referido aditamento, corre o risco de ser confrontado com o abandono dos segurados que têm riscos restritos, uma vez que estes iriam para as empresas que lhes oferecem garantias comparáveis, mesmo melhores, por cotizações menos elevadas. Nestas condições, a parte crescente dos «maus riscos» que incumbiria à AG2R cobrir provocaria um aumento do custo das garantias, de modo que esse organismo já não poderia propor uma cobertura da mesma qualidade a um preço aceitável.

78      É o que se verifica, por maioria de razão, no caso de um regime que, como o que está em causa no processo principal, se caracteriza por um grau elevado de solidariedade, devido, designadamente, ao carácter fixo das cotizações e à obrigação de aceitar todos os riscos.

79      Com efeito, tais obrigações, que tornam o serviço prestado pelo organismo em causa menos competitivo do que um serviço comparável prestado por companhias de seguros não sujeitas a essas obrigações, contribuem para justificar o direito exclusivo desse organismo de gerir tal regime, sem ser possível nenhuma dispensa de isenção de inscrição.

80      Portanto, a supressão de uma cláusula de migração como a prevista pelo aditamento n.° 83 pode conduzir a uma impossibilidade de o organismo em causa cumprir as missões de interesse económico geral que lhe foram confiadas em condições economicamente aceitáveis.

81      Por conseguinte, há que responder à segunda parte da questão tal como reformulada que, na medida em que a actividade que consiste na gestão de um regime de reembolso complementar de despesas de saúde como o que está em causa no processo principal deva ser qualificada de económica, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, os artigos 102.° TFUE e 106.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que não se opõem, nas circunstâncias existentes no processo principal, a que os poderes públicos confiem a um organismo de previdência o direito exclusivo de gerir esse regime, sem nenhuma possibilidade de as empresas do sector de actividade em causa ficarem isentas da inscrição no referido regime.

 Quanto às despesas

82      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O artigo 101.° TFUE, em conjugação com o artigo 4.°, n.° 3, TUE, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à decisão dos poderes públicos de tornar obrigatório, a pedido das organizações representativas dos empregadores e dos trabalhadores de um determinado sector de actividade, um acordo resultante de negociações colectivas que prevê a inscrição obrigatória num regime de reembolso complementar de despesas de saúde de todas as empresas do sector em causa, sem possibilidade de isenção.

2)      Na medida em que a actividade que consiste na gestão de um regime de reembolso complementar de despesas de saúde como o que está em causa no processo principal deva ser qualificada de económica, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, os artigos 102.° TFUE e 106.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que não se opõem, nas circunstâncias existentes no processo principal, a que os poderes públicos confiem a um organismo de previdência o direito exclusivo de gerir esse regime, sem nenhuma possibilidade de as empresas do sector de actividade em causa ficarem isentas da inscrição no referido regime.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.