Language of document : ECLI:EU:T:2020:434

Processos apensos T515/13 RENV e T719/13 RENV

Reino de Espanha e o.

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Oitava Secção alargada) de 23 de setembro de 2020

«Auxílios de Estado — Auxílio concedido pelas autoridades espanholas a favor de certos agrupamentos de interesse económico (AIE) e dos seus investidores — Regime fiscal aplicável a certos acordos de locação financeira para aquisição de navios (regime espanhol de leasing fiscal) — Decisão que declara o auxílio em parte incompatível com o mercado interno e que ordena a sua recuperação parcial — Caráter seletivo — Dever de fundamentação — Recuperação do auxílio — Igualdade de tratamento — Confiança legítima — Segurança jurídica»

1.      Processo judicial — Intervenção — Intervenção no processo de remessa de uma parte que apenas interveio no processo de recurso para o Tribunal de Justiça — Admissibilidade

(Regulamento de Processo do Tribunal Geral, artigo 217.°, n.° 1)

(cf. n.os 64, 65)

2.      Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Caráter seletivo da medida — Medidas fiscais a favor de certos agrupamentos de interesse económico e dos seus investidores — Regime fiscal aplicável a certos acordos de locação financeira para a aquisição de navios — Sistema assente na obtenção de uma autorização prévia baseada em critérios vagos que requerem uma interpretação da administração fiscal — Critérios vagos que não podem ser considerados objetivos — Caráter discricionário de jure da regulamentação — Inclusão

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 81‑102)

3.      Auxílios concedidos pelos Estados — Afetação das trocas comerciais entre EstadosMembros — Violação da concorrência — Critérios de apreciação — Medidas fiscais a favor de certos agrupamentos de interesse económico e dos seus investidores — Regime fiscal aplicável a certos acordos de locação financeira para a aquisição de navios — Mercado aberto ao comércio entre EstadosMembros — Redução de preços suscetível de falsear a concorrência no mercado da aquisição e da venda de navios

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 103‑107)

4.      Atos das instituições — Fundamentação — Dever — Alcance — Decisão da Comissão em matéria de auxílios de Estado — Fiscalização jurisdicional

[artigo 296.°, n.° 2, TFUE; carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 41.°, n.° 2, alínea c)]

(cf. n.os 118‑132)

5.      Auxílios concedidos pelos Estados — Recuperação de um auxílio ilegal — Medidas fiscais a favor de certos agrupamentos de interesse económico e dos seus investidores — Medidas semelhantes a outro regime objeto de uma injunção de recuperação — Diferença de tratamento — Justificação objetiva

(Artigo 108.° TFUE)

(cf. n.os 139‑146)

6.      Auxílios concedidos pelos Estados — Recuperação de um auxílio ilegal — Auxílio concedido em violação das regras processuais do artigo 108.° TFUE — Eventual confiança legítima dos beneficiários — Proteção — Condições e limites — Circunstâncias excecionais — Inexistência

(Artigo 108.° TFUE)

(cf. n.os 155‑176)

7.      Auxílios concedidos pelos Estados — Recuperação de um auxílio ilegal — Princípio da segurança jurídica — Condições e limites — Circunstâncias excecionais — Inexistência

(Artigo 108.° TFUE)

(cf. n.os 193‑206)

8.      Auxílios concedidos pelos Estados — Recuperação de um auxílio ilegal — Determinação do beneficiário do auxílio — Critério — Gozo efetivo

(Artigo 108.°, n.° 2, TFUE)

(cf. n.os 217‑220)

Resumo

O regime fiscal espanhol aplicável a certos acordos de locação financeira celebrados por estaleiros navais constitui um regime de auxílios

Os auxílios de Estado ilegais concedidos a esse título devem ser recuperados junto dos seus beneficiários

Em 2006, foram apresentadas à Comissão Europeia várias denúncias relativas à aplicação do «sistema de arrendamento fiscal espanhol» (a seguir «SAF») a certos acordos de locação financeira, na medida em que permitia às companhias marítimas beneficiarem de uma redução de preço de 20 % a 30 % para a compra de navios construídos por estaleiros navais espanhóis. Segundo a Comissão, o objetivo do SAF era conceder vantagens fiscais a agrupamentos de interesse económico (a seguir «AIE») e aos investidores que neles participavam, os quais transferiam em seguida uma parte dessas vantagens para as companhias marítimas que adquiriam um navio novo.

Na decisão controvertida (1), adotada em julho de 2013, a Comissão considerou que o SAF constituía um auxílio de Estado (2) sob a forma de uma vantagem fiscal seletiva que era parcialmente incompatível com o mercado interno. Na medida em que esse regime de auxílios tinha sido executado desde 1 de janeiro de 2002 em violação da obrigação de notificação (3), ordenou às autoridades nacionais que recuperassem esses auxílios junto dos investidores, a saber, os membros dos AIE.

Em setembro de 2013, o Reino de Espanha, a Lico Leasing, SA e a Pequeños y Medianos Astilleros Sociedad de Reconversión, SA (a seguir «recorrentes») interpuseram recursos de anulação da decisão controvertida. No seu Acórdão de 17 de dezembro de 2015, Espanha e o./Comissão (4) (T‑515/13 e T‑719/13, EU:T:2015:1004), o Tribunal Geral declarou que a vantagem obtida pelos investidores dos AIE não era seletiva e que a fundamentação relativa aos critérios de distorção da concorrência e da afetação das trocas comerciais era insuficiente. Por conseguinte, a decisão controvertida foi anulada sem que fosse necessário decidir sobre os outros fundamentos e argumentos apresentados pelas recorrentes. Chamado a decidir em sede de recurso, o Tribunal de Justiça anulou o acórdão do Tribunal Geral, no seu Acórdão de 25 de julho de 2018, Comissão/Espanha e o. (5) (C‑128/16 P, EU:C:2018:591). Com efeito, o Tribunal de Justiça considerou que, na sua análise do caráter seletivo das medidas fiscais, o Tribunal Geral tinha feito uma má aplicação das disposições do Tratado relativas aos auxílios de Estado e que, contrariamente ao que o mesmo havia concluído, a decisão da Comissão não pecava por falta de fundamentação. Tendo sublinhado que o Tribunal Geral não se pronunciara sobre a totalidade dos fundamentos invocados perante ele, o Tribunal de Justiça considerou que o litígio não estava em condições de ser julgado e, por conseguinte, devolveu os processos ao Tribunal Geral.

No seu Acórdão, proferido em sede de remessa, de 23 de setembro de 2020, Espanha e o./Comissão (T‑515/13 RENV e T‑719/13 RENV), o Tribunal Geral negou provimento aos recursos interpostos pelas recorrentes.

O Tribunal Geral examinou, em primeiro lugar, a qualificação das medidas fiscais como auxílios de Estado. Neste contexto, começou por verificar se a Comissão podia concluir que as vantagens concedidas a título do sistema SAF, considerado no seu todo, tinham caráter seletivo. Após recordar a jurisprudência sobre a seletividade decorrente do poder discricionário das administrações nacionais quando exercem as suas competências fiscais (6), o Tribunal Geral observou que o benefício do regime fiscal em causa era concedido pela administração fiscal no âmbito de um regime de autorização prévia assente em critérios vagos que implicavam uma interpretação cujo exercício não era objeto de nenhuma limitação. Assim, a administração fiscal podia fixar a data de início da amortização em função de circunstâncias definidas em termos que lhe conferiam uma margem de discricionariedade importante. Segundo o Tribunal Geral, a existência destes aspetos discricionários era suscetível de favorecer os beneficiários relativamente a outros sujeitos passivos que se encontravam numa situação factual e jurídica comparável. Em especial, outros AIE poderiam não ter beneficiado da amortização antecipada nas mesmas condições. Além disso, para rejeitar o argumento de que a autorização tinha sido concedida na prática a todos os AIE que operavam no setor em questão, o Tribunal Geral sublinhou que, tendo em conta o caráter discricionário de jure da regulamentação, pouco importa que a sua aplicação tenha ou não sido discricionária de facto. O Tribunal Geral deduziu daí que, visto que uma das medidas que permitiam beneficiar do SAF no seu conjunto era seletiva, a saber, a autorização da amortização antecipada, a Comissão não havia cometido nenhum erro ao considerar que o sistema era seletivo no seu conjunto. O Tribunal Geral sublinhou, em seguida, que o mercado da aquisição e da venda de navios estava aberto ao comércio entre Estados‑Membros e que uma redução de 20 % a 30 % do preço de um navio ameaçava falsear a concorrência nesse mercado em que operavam os AIE. Assim, estavam preenchidos os requisitos relativos ao risco de distorção da concorrência e de afetação das trocas comerciais entre Estados‑Membros. Consequentemente, o Tribunal Geral julgou improcedente o fundamento relativo a um erro na qualificação de uma medida como auxílio de Estado.

O Tribunal Geral examinou, em segundo lugar, a recuperação dos auxílios ilegais e julgou improcedentes os diferentes fundamentos invocados pelas recorrentes a este respeito. Em especial, afastou a alegada violação do princípio da confiança legítima. Com efeito, as recorrentes não tinham conseguido demonstrar que haviam obtido da Comissão garantias precisas, incondicionais e concordantes das quais resultava que o regime em causa não estava abrangido pelo conceito de auxílio de Estado. Por outro lado, o Tribunal Geral concluiu que a Comissão tinha tomado devidamente em conta na decisão controvertida a exigência de segurança jurídica, o que a levou a limitar no tempo a recuperação dos auxílios ilegais. Com efeito, a recuperação dos auxílios foi limitada aos auxílios concedidos após a publicação da decisão sobre os AIE fiscais franceses, que tinha posto termo a uma situação de insegurança jurídica decorrente da Decisão Brittany Ferries (7). A este respeito, o Tribunal Geral conclui que a Comissão não cometeu nenhum erro ao considerar que a publicação dessa decisão fizera cessar a insegurança jurídica uma vez que na referida decisão um regime comparável ao SAF tinha sido qualificado de auxílio de Estado. Além disso, o Tribunal Geral sublinhou que a validade desta conclusão não era posta em causa por circunstâncias posteriores, como uma alegada inação da Comissão relativamente ao regime em causa.

Por último, o Tribunal Geral julgou igualmente improcedente o fundamento relativo à violação dos princípios aplicáveis à recuperação. As recorrentes criticavam a decisão controvertida na medida em que ordenava a recuperação da totalidade do auxílio junto dos investidores (os membros dos AIE) apesar de uma parte da vantagem fiscal ter sido transferida para as companhias marítimas. Com efeito, a Comissão tinha decidido que as companhias marítimas não eram as beneficiárias do auxílio, pelo que a ordem de recuperação visava única e integralmente os investidores, únicos beneficiários da totalidade do auxílio devido à transparência fiscal dos AIE. O Tribunal Geral declarou que a Comissão não errou ao ordenar a recuperação da totalidade do auxílio junto dos investidores, apesar de estes terem transferido parte da vantagem para outros operadores, uma vez que estes não eram considerados beneficiários do auxílio. Com efeito, foram os investidores que beneficiaram efetivamente do auxílio, uma vez que a regulamentação aplicável não lhes impunha a transferência de uma parte do auxílio para terceiros.


1      Decisão 2014/200/UE da Comissão, de 17 de julho de 2013, relativa ao auxílio estatal SA.21233 C/2011 (ex NN/11, ex CP 137/06) concedido por Espanha — Regime fiscal aplicável a certos acordos de locação financeira também conhecido por Sistema de arrendamento fiscal espanhol (JO 2014, L 114, p. 1).


2      Na aceção do artigo 107.°, n.° 1, TFUE.


3      Prevista no artigo 108.°, n.° 3, TFUE.


4      V. CP 150/15.


5      V. CP 115/18.


6      Acórdãos do Tribunal de Justiça de 26 de setembro de 1996, França/Comissão (C‑241/94, EU:C:1996:353, n.° 23); de 29 de junho de 1999, DM Transport (C‑256/97, EU:C:1999:332, n.° 27); de 18 de julho de 2013, P (C‑6/12, EU:C:2013:525, n.° 27); e de 25 de julho de 2018, Comissão/Espanha e o. (C‑128/16 P, EU:C:2018:591, n.° 55). Acórdãos do Tribunal Geral de 28 de setembro de 2008, Hotel Cipriani e o./Comissão (T‑254/00, T‑270/00 e T‑277/00, EU:T:2008:537, n.° 97), e de 20 de setembro de 2019, Port autonome du Centre et de l’Ouest e o./Comissão (T‑673/17, não publicado, EU:T:2019:643, n.° 188).


7      A Decisão Brittany Ferries, adotada em 2001, podia ter levado os operadores económicos a considerarem que os benefícios fiscais como os concedidos no âmbito do SAF eram suscetíveis de constituir medidas gerais que não eram auxílios de Estado. No entanto, segundo a Comissão, a situação de insegurança jurídica terminou com a adoção de uma decisão sobre os AIE fiscais franceses, publicada em 30 de abril de 2007, que deveria ter levado um operador prudente e avisado a considerar que um regime semelhante ao SAF poderia constituir um auxílio de Estado.