Edição provisória
CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
NICHOLAS EMILIOU
apresentadas em 8 de fevereiro de 2024 (1)
Processo C‑425/22
MOL Magyar Olaj‑ és Gázipari Nyrt.
contra
Mercedes‑Benz Group AG
[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Kúria (Supremo Tribunal, Hungria)]
«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) n.° 1215/2012 — Competência em matéria extracontratual — Ação de indemnização por infração ao direito da concorrência — Danos sofridos pelas filiais — Lugar onde ocorreu o facto danoso — Sede da sociedade‑mãe — Unidade económica»
I. Introdução
1. Em 2016, a Comissão Europeia adotou uma decisão em que concluiu que, ao concertar os preços brutos de tabela para camiões médios e pesados, várias empresas, incluindo a Mercedes‑Benz Group AG (a seguir «recorrida»), infringiram a proibição estabelecida, nomeadamente, no artigo 101.° TFUE (2). A referida decisão deu origem a uma série de ações de indemnização, algumas das quais a reenvios prejudiciais nos quais foi solicitado ao Tribunal de Justiça que esclarecesse a correta interpretação das regras de competência do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 (3), para determinar em que órgãos jurisdicionais podem ser intentadas essas ações (4).
2. O presente pedido surgiu num contexto semelhante e solicita a interpretação do referido regulamento no que respeita à questão de saber se, em suma, uma sociedade‑mãe pode invocar o conceito de unidade económica do direito da concorrência para determinar a competência dos órgãos jurisdicionais do lugar da sua sede para conhecer e decidir do seu pedido de indemnização por danos sofridos pelas suas filiais.
3. Mais concretamente, a MOL Magyar Olaj‑ és Gázipari Nyrt. (a seguir «recorrente»), estabelecida na Hungria, exerce o controlo sobre as sociedades pertencentes ao grupo MOL, estabelecidas em vários Estados‑Membros. Estas filiais adquiriram indiretamente camiões à recorrida a preços que foram alegadamente distorcidos devido à infração ao direito da concorrência declarada na Decisão da Comissão acima referida. No processo principal, a recorrente pede aos órgãos jurisdicionais húngaros que condenem a recorrida, com sede na Alemanha, no pagamento de uma indemnização correspondente à diferença paga em excesso, devido à infração das regras da concorrência.
4. Em conformidade com o Regulamento n.° 1215/2012, a determinação da competência é regida pela regra geral do domicílio do requerido (5). Esta regra tem várias exceções, entre as quais uma aplicável às ações em matéria extracontratual (como a que está em causa no processo principal), segundo a qual a competência pode também ser atribuída aos tribunais, nomeadamente, do lugar onde ocorreu o alegado dano (6).
5. Os tribunais de primeira e de segunda instância consideraram que esta regra de competência especial não podia, contudo, ser aplicada no processo principal e que, por conseguinte, os órgãos jurisdicionais húngaros não tinham competência internacional para conhecer do pedido da recorrente. Em suma, tal deve‑se ao facto de os camiões em causa não terem sido adquiridos pela recorrente, mas sim pelas suas filiais (que foram, de facto, as entidades que sofreram os danos sob a forma do preço artificialmente aumentado). Nestas circunstâncias, a Kúria (Supremo Tribunal, Hungria) pretende agora que seja esclarecida a questão de saber se essa competência pode ser determinada com base no facto de a sede da recorrente se situar na Hungria. Pergunta igualmente se o facto de algumas das filiais em causa ainda não fazerem parte do grupo da recorrente no momento da aquisição dos camiões em questão é pertinente para esta apreciação.
6. A questão do órgão jurisdicional de reenvio parece basear‑se na afirmação da recorrente de que a sua sede é o lugar em que, em última instância, foi sofrido o dano, uma vez que a recorrente e as filiais afetadas pertencem à mesma unidade económica.
7. Como explicarei mais pormenorizadamente nas presentes conclusões, este conceito foi desenvolvido no direito da concorrência e utilizado, nomeadamente, para reforçar a sua aplicação. Foi invocado, especialmente, para efeitos de imputação de responsabilidade a uma requerida por uma infração que, na realidade, foi cometida por outra pessoa, desde que ambas as sociedades façam parte da mesma unidade económica. Nesta perspetiva, a questão central que se coloca no presente processo é a de saber se este conceito pode também ser invocado para determinar a competência em relação a um pedido de indemnização, independentemente de a requerente ser a pessoa (coletiva) que sofreu inicialmente o dano subjacente.
II. Quadro jurídico
8. O considerando 15 do Regulamento n.° 1215/2012 afirma que «[s]s regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar‑se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. [...]».
9. Por força do considerando 16 do Regulamento n.° 1215/2012, «[o] foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado‑Membro que não seria razoavelmente previsível para ele [...]».
10. O capítulo II do Regulamento n.° 1215/2012 contém regras de competência. A secção 1 deste capítulo estabelece disposições gerais, incluindo o artigo 4.°, n.° 1, que dispõe que «[s]em prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado‑Membro.»
11. Por força do artigo 5.°, n.° 1, que faz parte da mesma secção: «[a]s pessoas domiciliadas num Estado‑Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado‑Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do [capítulo II].»
12. A secção 2 do capítulo II do Regulamento n.° 1215/2012 diz respeito a «competências especiais». Contém, entre outros, o artigo 7.°, n.° 2, ao abrigo do qual as pessoas domiciliadas num Estado‑Membro podem ser demandadas noutro Estado‑Membro, «[e]m matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso».
III. Matéria de facto, processo nacional e questões prejudiciais
13. Na sua Decisão de 19 de julho de 2016, a Comissão Europeia concluiu que a recorrida, com sede na Alemanha, juntamente com outras sociedades, tinha participado num cartel, entre 17 de janeiro de 1997 e 18 de janeiro de 2011, ao concertar os preços brutos de tabela para camiões médios e para camiões pesados no Espaço Económico Europeu (a seguir «EEE»), o que constituía uma infração continuada às proibições estabelecidas no artigo 101.° TFUE e no artigo 53.° do Acordo EEE (7). A Comissão concluiu que a infração abrangeu a totalidade do EEE.
14. A recorrente é uma sociedade estabelecida na Hungria. Exerce o controlo sobre as sociedades pertencentes ao grupo MOL. A recorrente é acionista maioritária ou, dito de outro modo, tem o poder de controlo exclusivo sobre várias sociedades, tais como a MOLTRANS, com sede na Hungria; a INA, com sede na Croácia; a Panta e a Nelsa, com sede em Itália; a ROTH, com sede na Áustria, e a SLOVNAFT, com sede na Eslováquia. Durante o período da infração identificado pela Decisão da Comissão, estas filiais adquiriram indiretamente à recorrida, quer em regime de propriedade quer em regime de locação financeira, 71 camiões em diferentes Estados‑Membros.
15. A recorrente pediu, perante o Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria) (a seguir «tribunal de primeira instância»), a condenação da recorrida no pagamento de 530 851 euros, acrescidos de juros e despesas, alegando ser este o montante que as suas filiais tinham pago em excesso em consequência do comportamento anticoncorrencial declarado na Decisão da Comissão. Invocando o conceito de unidade económica, reclamou direitos indemnizatórios das filiais contra a recorrida. Para o efeito, procurou determinar a competência dos órgãos jurisdicionais húngaros com base no artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, alegando que a sua sede, como centro dos interesses económicos e patrimoniais do grupo, era o lugar em que, em última instância, tinha ocorrido o facto danoso, na aceção desta disposição.
16. A recorrida invocou uma exceção de incompetência dos órgãos jurisdicionais húngaros.
17. O tribunal de primeira instância julgou procedente esta exceção e observou que a regra de competência especial prevista no artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 deve ser interpretada de forma estrita e só pode ser aplicada se existir um vínculo particularmente estreito entre o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se e o objeto do litígio. Considerou que não foi a recorrente que pagou os preços artificialmente aumentados, mas sim as suas filiais (que foram, por conseguinte, prejudicadas pela distorção da concorrência em causa). Pelo contrário, o dano sofrido pela recorrente era puramente financeiro, o que não permite considerar a sua sede como o lugar onde ocorreu o facto danoso, na aceção do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, e não pode resultar na determinação da competência do órgão jurisdicional húngaro.
18. Esta posição foi confirmada em sede de recurso por despacho do Fővárosi Ítélőtábla (Tribunal Superior de Budapeste‑Capital, Hungria) (a seguir «tribunal de segunda instância»). Este órgão jurisdicional declarou que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a teoria da unidade económica só é aplicável para determinar a responsabilidade pela infração ao direito da concorrência e que, em suma, não se aplica ao lesado para efeitos de atribuição de competência. Remetendo para o Acórdão CDC Hydrogen Peroxide (8), acrescentou que a competência ao abrigo do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 deve ser determinada por referência à sede da sociedade que sofreu o dano e não à sede da sua sociedade‑mãe.
19. A recorrente interpôs recurso de cassação para a Kúria (Supremo Tribunal), que é o órgão jurisdicional de reenvio. Pede a anulação do despacho proferido pelo tribunal de segunda instância e que se determine o prosseguimento do processo perante os órgãos jurisdicionais que anteriormente dele conheceram. Alegou, em substância, que a teoria da unidade económica é relevante para efeitos da declaração de competência no presente contexto e que, como única sociedade detentora do controlo do grupo, é diretamente atingida pelo funcionamento rentável ou deficitário das sociedades do grupo.
20. Na sua contestação, a recorrida afirmou que a recorrente não adquiriu nenhum dos camiões objeto do cartel e, por conseguinte, não sofreu qualquer dano. Além disso, alegou que a teoria da unidade económica não é aplicável para determinar a competência e que esta abordagem não encontra apoio na jurisprudência do Tribunal de Justiça.
21. Nestas circunstâncias, a Kúria (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) Quando uma sociedade‑mãe intenta uma ação de indemnização devido a um comportamento anticoncorrencial de outra empresa a fim de obter uma indemnização pelos danos causados por esse comportamento exclusivamente às suas filiais, é a sede da sociedade‑mãe, como lugar onde ocorreu o facto danoso na aceção do artigo 7.°, ponto 2, do [Regulamento n.° 1215/2012] que determina o foro competente?
2) Para efeitos da aplicação do artigo 7.°, ponto 2, do [Regulamento n.° 1215/2012], é relevante, o facto de, no momento das diversas aquisições objeto do litígio, nem todas as filiais pertencerem ao grupo de sociedades da empresa‑mãe?»
22. A recorrente, a recorrida, o Governo Checo e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.
IV. Análise
23. Com o seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio procura, em primeiro lugar, determinar se, quando uma sociedade‑mãe intenta uma ação de indemnização pelo prejuízo sofrido exclusivamente pelas suas filiais, devido a um acordo colusório para a fixação e o aumento dos preços (infringindo, assim, o artigo 101.° TFUE) (9), a competência de um órgão jurisdicional pode ser determinada com base no facto de a sede da sociedade‑mãe ser o lugar onde «ocorreu o facto danoso», nos termos do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1215/2012. Em segundo lugar, o referido órgão jurisdicional interroga‑se igualmente sobre se a resposta a esta questão é afetada pelo facto de que, no momento em que as filiais compraram os bens em causa, algumas delas ainda não faziam parte do grupo da recorrente.
24. Antes de abordar estas questões (C), apresentarei algumas observações introdutórias sobre a regra de competência especial em causa e, nomeadamente, sobre a natureza do dano que pode levar à sua aplicação. (A). Recordarei ainda a clarificação a que o Tribunal de Justiça procedeu relativamente aos critérios de conexão que determinam que órgão jurisdicional deve ser demandado no contexto específico das ações de indemnização por violação do artigo 101.° TFUE (como a que está pendente no órgão jurisdicional de reenvio) (B).
A. Quanto à regra de competência em causa e à natureza do dano
25. Na esfera jurídica da União, a questão de saber qual o órgão jurisdicional que tem competência internacional para apreciar um processo em que esteja em causa um elemento transfronteiriço é resolvida de acordo com as regras estabelecidas no Regulamento n.° 1215/2012. Como já foi brevemente referido, a regra geral estabelecida por este regulamento é a do domicílio do requerido (10).
26. Esta regra comporta várias exceções sob a forma de regras de competência especiais e exclusivas que descrevem as situações em que o requerido pode ou deve ser demandado nos órgãos jurisdicionais de outro Estado‑Membro.
27. O presente processo diz respeito a uma das regras de competência especial, a saber, a estabelecida no artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, que atribui competência (alternativa, facultativa), em matéria extracontratual, «ao tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso».
28. Tendo início com o Acórdão Bier e ao longo da sua jurisprudência posterior, o Tribunal de Justiça tem abordado o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso» no sentido de que abrange duas categorias: primeira, o lugar do evento causal relevante (o lugar onde decorreu a atividade causal); e segunda, o lugar da materialização do dano (o lugar onde o dano se manifestou) (11). Consequentemente, ao abrigo do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, o requerido pode ser demandado nos tribunais de qualquer um desses lugares, consoante o que o requerente escolher (12).
29. Esta regra de competência baseia‑se na existência de um vínculo particularmente estreito entre o litígio e o órgão jurisdicional que o vai conhecer, «nomeadamente por razões de proximidade do litígio e de facilidade de administração das provas» (13), dada a importância, nas ações de responsabilidade extracontratual, de estabelecer o nexo de causalidade entre o dano alegado e a sua causa (14).
30. Simultaneamente, esta regra constitui uma derrogação à regra geral segundo a qual a competência tem por base o domicílio do requerido. Por conseguinte, deve ser interpretada de maneira estrita (15).
31. A este respeito, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, embora o «lugar onde ocorreu o facto danoso» possa também englobar o lugar onde o facto danoso (causal) teve consequências tangíveis (v., supra, n.° 28), tal não permite determinar a competência de um órgão jurisdicional apenas com base no facto de que, embora seja da competência desse órgão jurisdicional, a vítima sofre consequências danosas de um facto que causou já um dano noutro lugar (16).
32. Com efeito, tendo em conta que essas consequências danosas se farão inevitavelmente sentir, em última instância, no domicílio do requerente, a solução contrária estaria em conflito com a exigência de um vínculo estreito entre o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se e o objeto do litígio, pois não existe qualquer razão intrínseca para supor que o domicílio do requerente é, por si só, o lugar mais adequado para facilitar o processo judicial, na medida em que aí se encontrariam prontamente disponíveis os elementos de prova relativos à existência e à extensão do dano. Além disso, permitiria, em muitos casos, que o requerente demandasse o requerido nos órgãos jurisdicionais do seu domicílio, invertendo assim, efetivamente, a regra geral do domicílio do requerido, de acordo com a sua vontade (17).
33. Pelas mesmas razões (que exigem, no fundo, que o órgão jurisdicional demandado ao abrigo do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 seja o tribunal do lugar do dano inicial), o Tribunal de Justiça declarou que o «lugar onde ocorreu o facto danoso», nos termos desta disposição, não abrange o lugar onde os bens de um lesado indireto são afetados (18).
34. O Tribunal de Justiça chegou a esta conclusão num processo em que duas sociedades francesas, com sede em Paris, criaram filiais na Alemanha para desenvolver um projeto imobiliário. No entanto, os bancos alemães retiraram o seu financiamento, o que levou à insolvência dessas filiais. As sociedades‑mãe francesas procuraram demandar os bancos alemães em Paris, alegando que este era o lugar onde sofreram o prejuízo financeiro daí resultante.
35. A resposta dada pelo Tribunal de Justiça nesse acórdão é, a meu ver, diretamente pertinente para o presente processo. À semelhança dos factos em causa no processo Dumez, resulta dos autos que o dano invocado pela recorrente não é um dano que a afete diretamente, mas sim um dano que foi inicialmente sofrido pelas suas filiais e que só a poderia afetar «por ricochete» (19). Com efeito, é indiscutível que a recorrente não adquiriu (direta ou indiretamente) quaisquer camiões à recorrida nem sucedeu nos direitos das filiais afetadas, com base numa cessão dos créditos relevantes ou de outra forma (20).
36. É certo, como observa a recorrente, que no Acórdão Tibor‑Trans (que dizia respeito ao mesmo comportamento colusório que o declarado na Decisão da Comissão em causa no presente processo), o Tribunal de Justiça distinguiu este processo do cenário do processo Dumez. A particularidade dos factos no processo Tibor‑Trans consiste no facto de a recorrente, um utilizador final dos camiões, não ter adquirido nenhum camião diretamente à recorrida, mas tê‑lo feito através de um concessionário. No entanto, isso não impediu o Tribunal de Justiça de considerar que o pedido da recorrente neste processo dizia respeito a um dano direto, uma vez que esse dano foi considerado a consequência imediata de uma infração ao artigo 101.° TFUE, dado que o preço excessivo resultante do acordo colusório foi repercutido na recorrente pelos concessionários (21).
37. Esta repercussão pode ocorrer no âmbito de uma cadeia de abastecimento em que a alegada vítima adquire os bens (ou serviços) objeto do cartel (22). No entanto, não se alega que tal tenha ocorrido no processo principal. Pelo contrário, a recorrente parece apresentar como seu o dano inicial sofrido pelas suas filiais.
38. Estas considerações indicam que, como já foi referido, a recorrente atua como vítima indireta. Solicita uma indemnização por um prejuízo que já tinha afetado, e antes de mais, uma pessoa coletiva distinta. Nesta perspetiva, entendo a primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que pergunta se, apesar desse facto, é possível determinar a competência com base no critério de conexão da sede social da recorrente, uma vez que a recorrente e as filiais afetadas constituem uma unidade económica.
39. Antes de abordar esta questão, há que explicar por que razão a sede social da recorrente é invocada como o critério de conexão aplicável em primeiro lugar. Tal exige, por sua vez, que se explique que critérios de conexão foram identificados pelo Tribunal de Justiça como sendo pertinentes para efeitos da aplicação da regra de competência em causa, no âmbito específico das ações de indemnização por infração ao artigo 101.° TFUE.
B. Quanto aos critérios de conexão no âmbito dos pedidos de indemnização por infração ao artigo 101.° TFUE
40. No presente ponto, examinarei em primeiro lugar a jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça (1) antes de abordar o convite da Comissão para que o Tribunal de Justiça clarifique um aspeto específico da mesma (2).
1. Jurisprudência pertinente
41. Voltando às duas categorias de lugares que podem constituir o «lugar onde ocorreu o facto danoso» na aceção do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, como descrito no n.° 28 das presentes conclusões, o Tribunal de Justiça declarou que o tribunal competente de acordo com a primeira categoria (evento causal do prejuízo) é, em substância, o tribunal do lugar onde o cartel foi definitivamente constituído (23).
42. No que respeita à segunda categoria, a saber, o lugar da materialização do dano (onde se produziu), a regra aplicável é mais complexa.
43. Inicialmente, no Acórdão CDC Hydrogen Peroxide, o Tribunal de Justiça declarou que esse lugar é a sede social da vítima. Justificou esta abordagem salientando que a apreciação relevante depende de fatores especificamente relacionados com a situação da recorrente (a alegada vítima) (24).
44. Esta solução foi objeto de algumas críticas. Em primeiro lugar, foi salientado que o Tribunal de Justiça parece ter adotado o lugar do prejuízo financeiro como o critério de conexão válido (25). Em segundo lugar, foi observado que o facto de a sede social da vítima ser o critério de conexão pode não se coadunar com a exigência de proximidade entre o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se e o objeto do litígio. Foi observado, nomeadamente, que, embora não se possa excluir que alguns elementos de prova possam estar disponíveis na sede das vítimas, o dano sofrido num determinado contexto será normalmente estabelecido através da comparação dos preços do cartel com os preços hipotéticos de mercado, que podem geralmente ser estabelecidos com base em dados económicos relativos ao mercado afetado (26).
45. Seja como for, a jurisprudência do Tribunal de Justiça evoluiu. Ao desenvolver a sua jurisprudência, o Tribunal de Justiça sublinhou a ligação entre o mercado afetado pelo comportamento anticoncorrencial e o lugar onde os requerentes alegam ter sofrido danos. Esta evolução foi analisada em pormenor, nomeadamente pelo advogado‑geral J. Richard de la Tour nas suas Conclusões no processo Volvo (27). Para efeitos do presente processo, basta observar que, por um lado, o Acórdão Tibor‑Trans parece ter querido dizer que o lugar da materialização do dano é o mercado afetado pelo comportamento anticoncorrencial em causa (sem mais especificações) (28). Por outro lado, o Tribunal de Justiça esclareceu no Acórdão Volvo (que constitui o elemento pertinente mais recente) que, no âmbito de uma ação de indemnização resultante de um acordo de fixação e de aumento dos preços, o «lugar da materialização do dano» é o lugar, no mercado afetado, onde foram adquiridos os bens objeto do cartel (29). Esse critério de conexão parece, assim, identificar o lugar alegado pela recorrente como o lugar onde lhe foram infligidos os danos específicos, dentro do território mais vasto afetado pela distorção da concorrência em causa (30).
46. Simultaneamente, o Tribunal de Justiça reafirmou, no mesmo acórdão, a pertinência permanente da sede social da alegada vítima, no caso de várias aquisições efetuadas em lugares diferentes (31). Daqui decorre, a meu ver, que o critério de conexão da sede da vítima deve ser aplicado a título subsidiário, quando a multiplicidade de aquisições efetuadas em vários lugares não permite determinar o órgão jurisdicional competente com base no critério de conexão principal do (único) lugar da(s) aquisição(ões) (32).
47. A Comissão considera que, embora o lugar da sede social possa estar situado no mercado afetado (como no caso do processo Volvo), a jurisprudência existente deixa margem para dúvidas sobre se esse critério de conexão também pode ser aplicado quando a sede social da vítima está situada fora do mercado afetado. Na sua opinião, tal constituiria uma violação dos princípios da proximidade, da previsibilidade do foro competente e da coerência entre o foro e a lei aplicável. Por conseguinte, convida o Tribunal de Justiça a aproveitar esta oportunidade para excluir esse cenário e confirmar que o critério de conexão principal é, como entendo o argumento, o do mercado afetado.
48. Abordarei esta questão adiante.
2. Quanto à sede social da alegada vítima e ao mercado afetado
49. Em primeiro lugar, e como já foi referido, o Tribunal de Justiça esclareceu no Acórdão Volvo que o mercado afetado não é necessariamente um critério de conexão suficientemente específico para determinar a competência. Com efeito, quando o acordo colusório produziu efeitos em todo o território da União, o artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 não permite que seja intentada uma ação de indemnização em qualquer lugar da União (33). Na realidade, o órgão jurisdicional competente deve ser determinado com base numa ligação mais específica (principalmente o lugar da aquisição).
50. Em segundo lugar, os factos do processo Volvo levaram a concluir que tanto o lugar das aquisições como a sede social da vítima estavam situados não só num Estado‑Membro mas também no mesmo lugar no Estado‑Membro em questão. Com efeito, a vítima tinha a sua sede social em Córdova, que era também o lugar onde adquiriu os camiões objeto do cartel. Além disso, a Espanha, como observou o Tribunal de Justiça, fazia (necessariamente) parte do mercado afetado (mais amplo) (que abrange a totalidade do EEE), como definido na respetiva decisão da Comissão (34).
51. Por outras palavras, ambos os tipos de critérios de conexão específicos (lugar da aquisição e sede social da vítima) diziam respeito, em todo o caso, ao mesmo mercado afetado (e aos mesmos segmentos locais e nacionais deste último). Nesta perspetiva, a conclusão do Tribunal de Justiça afigura‑se (ou pelo menos pode ser vista como) enquadrada pela premissa de partida de que ambas as categorias dos critérios de conexão foram consideradas nesse contexto factual (35).
52. Isto deixa em aberto a questão de saber se se poderia chegar a uma solução contrária num contexto factual diferente, em que a sede social da recorrente se situa fora do mercado afetado (36)(e em que o mercado não abrange todo o território da União).
53. À primeira vista, concordo com a Comissão que, se fosse determinada a competência de um órgão jurisdicional fora do mercado afetado por um determinado comportamento anticoncorrencial para conhecer de um pedido de indemnização alegadamente resultante desse comportamento, tal não se coadunaria com os desenvolvimentos abordados supra, em que o Tribunal de Justiça começou a sublinhar a ligação entre o mercado afetado e o alegado lugar do dano. Na mesma ordem de ideias, nas suas Conclusões no processo flyLAL, o advogado‑geral M. Bobek considerou «impossível conceber que a competência seja atribuída, com base [na regra de competência em causa] e no “lugar onde o dano se materializou”, a tribunais fora dos mercados afetados pela violação» (37).
54. Dito isto, e para responder ao convite da Comissão, considero que a exclusão absoluta da pertinência de um determinado elemento, na falta de um conjunto concreto de circunstâncias de facto, é um exercício delicado que deve ser realizado com prudência e, por maioria de razão tendo em conta a jurisprudência mais recente.
55. O cenário que a Comissão pretende excluir pode, a meu ver e depois do Acórdão Volvo, surgir no caso de várias aquisições em locais diferentes efetuadas no Estado‑Membro A, por um requerente com sede social no Estado‑Membro B, em que o Estado‑Membro B está fora do mercado afetado pelo comportamento anticoncorrencial relevante. Para evitar este resultado, teria de se excluir a aplicação da solução concebida no Acórdão Volvo a um tal contexto transfronteiriço (38).
56. Outro exemplo de que nos lembramos é a situação dos adquirentes indiretos que alegam que um custo adicional resultante de um acordo colusório foi repercutido sobre eles. Como já foi referido, o Tribunal de Justiça declarou no Acórdão Tibor‑Trans que esse dano é considerado direto, para efeitos de aplicação do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 (39). Nesta perspetiva, não se pode excluir que o critério de conexão pertinente possa, nas circunstâncias específicas de uma cadeia de abastecimento complexa, apontar para um território fora do mercado afetado pelo comportamento anticoncorrencial que alegadamente causou o dano (40).
57. Seja como for, esta questão não está, enquanto tal, em causa perante o órgão jurisdicional de reenvio, como reconhece a Comissão. Embora estes desenvolvimentos expliquem, em certa medida, a razão pela qual a recorrente invoca a sua sede social para determinar a competência dos órgãos jurisdicionais húngaros, a recorrente invoca‑a num contexto que difere significativamente dos que estão em causa nos processos acima referidos. A recorrente pretende alargar a aplicação deste critério de conexão para determinar a competência em relação ao seu pedido, no qual solicita uma indemnização pelos danos sofridos exclusivamente por outros membros da unidade económica da recorrente.
58. Nesta perspetiva, e para recordar, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o conceito de unidade económica pode ser aplicado, além da imputação de responsabilidade por infração ao direito da concorrência a um determinado requerido (que constitui a modalidade da sua aplicação tradicional, como explicarei adiante), para efeitos de determinação da competência, independentemente da pessoa (coletiva) que sofreu inicialmente o dano alegado.
59. Examinarei este ponto de seguida.
C. Dano sofrido por uma filial: pode a sede da sociedade‑mãe ser o «lugar onde ocorreu o facto danoso»?
60. Para me debruçar sobre a questão do órgão jurisdicional de reenvio, começarei por abordar o conceito de unidade económica (1) e explicar por que razão deve ser dada uma resposta negativa à primeira questão prejudicial (2). Embora a resposta sugerida torne desnecessário dar uma resposta à segunda questão prejudicial, abordá‑la‑ei sucintamente por uma questão de exaustividade (3).
1. Quanto ao conceito de unidade económica
61. O conceito de unidade económica (ou de entidade económica única) foi desenvolvido na jurisprudência do Tribunal de Justiça para designar, no fundo, o termo «empresa» que figura nos artigos 101.° e 102.° TFUE e que é «crucial» (41) no domínio do direito da concorrência, uma vez que este direito rege, enquanto tal, não as pessoas coletivas e singulares, mas as «empresas» (42). Neste contexto, uma empresa pode, nalguns casos, corresponder a uma pessoa singular ou coletiva, mas pode, noutros casos, abranger várias delas (43).
62. Naquilo que releva para o presente processo, considera‑se geralmente que uma sociedade‑mãe e a sua filial constituem uma unidade económica quando, no fundo, esta última está sujeita a uma influência determinante exercida pela primeira e não age de forma autónoma (44). Nessa situação, todo o grupo será considerado uma «empresa» à qual se aplicam as regras do direito da concorrência que, no seu conjunto, deve respeitar, o que desencadeia uma responsabilidade solidária (45).
63. Daqui decorrem consequências importantes para a aplicação de certas regras materiais do direito da concorrência, afetando igualmente a atribuição de responsabilidade por infrações ao direito da concorrência.
64. No que respeita, em primeiro lugar, ao aspeto do direito material, e para dar um exemplo, os acordos celebrados entre pessoas que fazem parte de uma unidade económica não são abrangidos pelo artigo 101.° TFUE (46), porque, em substância, a coordenação no seio do grupo não pode afetar a concorrência, uma vez que, desde logo, não existe concorrência no seio da unidade.
65. Em segundo lugar, no que se refere à aplicação, o conceito de unidade económica afeta fundamentalmente a lógica que rege a atribuição de responsabilidade por infração ao direito da concorrência. Mais importante ainda, dá à Comissão (ou a uma autoridade nacional da concorrência) a possibilidade de responsabilizar, em princípio, uma sociedade‑mãe por uma infração deste tipo, embora esta tenha sido efetivamente cometida pela sua filial (47). Além disso, o Tribunal de Justiça esclareceu que, quando uma sociedade‑mãe e a sua filial constituem uma unidade económica e quando apenas a sociedade‑mãe foi referida na decisão da Comissão e punida por uma prática anticoncorrencial, pode ser intentada uma ação de indemnização contra qualquer uma delas, sob certas condições (48). O Tribunal de Justiça explicou, em substância, que o conceito de «empresa», na aceção do artigo 101.° TFUE, não pode ter um alcance diferente consoante seja invocado no contexto da aplicação pública ou privada do direito da concorrência (49).
66. Nesta perspetiva, a recorrente alega que, uma vez que a infração ao direito da concorrência desencadeia a responsabilidade solidária de toda a unidade económica, o que significa que um membro pode responder pelos atos de outro membro, deve aplicar‑se uma imagem espelhada (ou invertida) do mesmo princípio, como entendo o argumento, para fazer valer pedidos por infração ao direito da concorrência que afetem um membro da unidade económica. Nas palavras da recorrente (que parecem inspirar‑se nas conclusões do Tribunal de Justiça, parafraseadas no número anterior), o conceito de unidade económica não pode ter um significado diferente consoante a empresa em causa atue como requerente ou requerida. No âmbito do presente processo, esta afirmação significa que uma sociedade‑mãe pode fazer valer um pedido pendente no processo principal, independentemente do facto de o dano ter sido sofrido pelas suas filiais. Consequentemente, continuando a seguir o argumento da recorrente, a sede social da sociedade‑mãe deve ser considerada o «lugar da materialização do dano» para efeitos da aplicação do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012.
67. Considero que, a um nível mais geral (não relacionado com questões de competência), o Tribunal de Justiça rejeitou a ideia de «aplicação invertida» do conceito de unidade económica, ao declarar que este conceito não se aplica no âmbito (obviamente diferente) de uma ação de indemnização, a título da responsabilidade extracontratual da União Europeia baseada no artigo 340.°, segundo parágrafo, TFUE. No processo União Europeia/Guardian Europe, o Tribunal de Justiça rejeitou as críticas à abordagem da decisão do Tribunal Geral que, no fundo, excluiu a alegação de uma sociedade‑mãe de que tinha sofrido lucros cessantes devido ao pagamento de uma coima, aplicada pela Comissão e posteriormente anulada em parte, quando o encargo da coima era, na realidade, suportado pelas filiais. O Tribunal de Justiça subscreveu a rejeição pelo Tribunal Geral de um entendimento «invertido» do conceito de unidade económica e explicou que uma ação que invoque a responsabilidade extracontratual da União «rege[‑se] por normas processuais gerais, [...] independentes da lógica da responsabilidade na perspetiva do direito dos cartéis» (50).
68. Dito isto, e independentemente de se poder obter uma solução diferente quanto ao mérito no âmbito de uma ação de indemnização privada (51), observo que o advogado‑geral Szpunar rejeitou recentemente um argumento semelhante e explicou de forma convincente que o conceito de unidade económica não pode incidir sobre a interpretação das normas que regem a citação e a notificação de atos no interior da União(52) e não permite que uma ação de indemnização por danos destinada a uma sociedade‑mãe possa ser validamente citada ou notificada à sua filial.(53)
69. No âmbito destes desenvolvimentos mais gerais, cabe examinar se o conceito de unidade económica pode ser utilizado na aplicação do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, a fim de, em substância, conceder um forum actoris a uma alegada vítima indireta de um comportamento que infringe o artigo 101.° TFUE.
2. Pode o conceito de unidade económica afetar o alcance do lugar da materialização do dano?
70. De acordo com as posições expressas pela recorrida, pelo Governo Checo e pela Comissão, sou de opinião que se deve responder a esta questão pela negativa.
71. Em primeiro lugar, resulta dos pontos anteriores das presentes conclusões que a posição contrária da recorrente não encontra simplesmente qualquer apoio na jurisprudência do Tribunal de Justiça.
72. Em segundo lugar, a adoção desta posição seria contrária aos princípios subjacentes à regra de competência em causa. Prejudicaria a sua lógica de proximidade e a exigência conexa de apreciação individual dos critérios de conexão (a). Nas circunstâncias do presente processo, também contrariaria a exigência de previsibilidade do foro competente e o objetivo de coerência entre o foro e a lei aplicável (b).
73. Por último, para responder às preocupações da recorrente, explicarei que esta conclusão não prejudica a eficácia da aplicação dos direitos decorrentes da infração ao direito da concorrência (c).
a) Exigência de proximidade e de apreciação individual
74. Como expliquei supra, os órgãos jurisdicionais cuja competência possa ser determinada com base no artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 são considerados os mais bem colocados «nomeadamente por razões de proximidade do litígio e de facilidade de administração das provas» (54).
75. Nesta perspetiva, reconheço certamente a complexidade da recolha de provas em ações de indemnização transfronteiriças (55), incluindo no âmbito de pedidos (ou contestações) que argumentam que o custo adicional resultante de um acordo colusório foi repercutido (56).
76. Dito isto, a localização da sede da sociedade‑mãe não faculta imediatamente qualquer ligação significativa, indicando por que razão seria mais adequada para esse fim em comparação (especialmente) com o lugar da aquisição (57).
77. A este respeito, a solução defendida pela recorrente é incompatível com a exigência segundo a qual os critérios de conexão devem ser apreciados individualmente para cada vítima. Isto foi claramente afirmado no Acórdão CDC Hydrogen Peroxide, que dizia respeito a uma ação relacionada com vários direitos de indemnização que tinham sido cedidos a uma única sociedade (58).
78. É certo, como salienta a recorrente, que, no Acórdão Volvo, o Tribunal de Justiça utiliza o termo «empresa» para designar as recorrentes, que eram as alegadas vítimas das práticas anticoncorrenciais em causa nesses processos. No entanto, não creio que essas referências tenham sido feitas para complementar os desenvolvimentos acima referidos, em que o Tribunal de Justiça matizou a definição de «lugar da materialização do dano» para ter em conta a especificidade do contencioso em matéria de direito da concorrência (acrescentando à definição de «requerente» nesse contexto).
79. Em primeiro lugar, a utilização que o Tribunal de Justiça dá ao termo «empresa», como acima descrito, consta já do Acórdão CDC Hydrogen Peroxide, que é anterior a estes desenvolvimentos. Mais importante ainda, como observam a Comissão e a República Checa, resulta de uma leitura mais atenta tanto do Acórdão CDC Hydrogen Peroxide como do Acórdão Volvo que este termo não é utilizado no sentido específico do direito da concorrência, mas no seu sentido comum e como sinónimo de «sociedade» ou de «pessoa coletiva» (59). Além disso, se se chegasse a uma conclusão diferente, tal estaria em conflito direto com a necessidade de apreciação individual, que foi uma das principais conclusões do Acórdão CDC Hydrogen Peroxide, e que foi posteriormente recordada no Acórdão Volvo (60).
80. Além disso, como referem a recorrida, o Governo Checo e a Comissão, a mesma «abordagem individual» para a definição da alegada vítima de um comportamento anticoncorrencial foi adotada pelo legislador da União na Diretiva 2014/104 (61). A adoção deste instrumento foi entendida como um marco importante na contribuição para a eficácia da aplicação privada dos direitos decorrentes de violações do direito da concorrência (62). Para o efeito, esta diretiva estabelece regras para a articulação, nomeadamente, entre a aplicação das regras de concorrência em ações de indemnização para assegurar que quem sofra danos causados por uma infração ao direito da concorrência possa exercer efetivamente o direito a pedir a reparação integral desses danos pela empresa responsável (63).
81. Nesta perspetiva, é significativo que o legislador da União não tenha considerado oportuno definir de forma mais ampla o conceito de «lesado» (64) de modo que incluísse não só as vítimas diretas mas também as indiretas (65). Se tal não foi considerado necessário no âmbito de um instrumento especificamente concebido para reforçar a aplicação privada do direito da concorrência, não vejo razão para adotar tal abordagem no âmbito do Regulamento n.° 1215/2012, que, como observa, em substância, a própria recorrente, é um ato de aplicação geral que rege qualquer tipo de litígio abrangido pelo seu âmbito de aplicação (e a adoção dessa abordagem prejudicaria os aspetos do funcionamento da competência em causa que acabei de mencionar, bem como os que abordarei adiante).
b) Quanto ao objetivo de coerência entre o foro competente e a lei aplicável e a exigência de um elevado grau de certeza jurídica do foro competente
82. Na jurisprudência acima analisada, o Tribunal de Justiça sublinhou a importância da coerência entre o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se e a lei aplicável, por um lado, e a exigência de previsibilidade do foro competente, por outro lado.
83. Relativamente ao primeiro ponto, o Tribunal de Justiça observa que a determinação do lugar da materialização do dano como estando situado no mercado afetado está em conformidade com o objetivo de coerência entre a lei aplicável e a ação judicial, como enunciado no considerando 7 do «Regulamento Roma II», uma vez que, por força deste regulamento, a lei aplicável às ações de responsabilidade civil por violação do direito da concorrência é a lei do país em que o mercado seja afetado ou seja suscetível de ser afetado (66).
84. No que respeita ao segundo aspeto, o Tribunal de Justiça justificou no Acórdão Volvo o critério de conexão (subsidiário) da sede da vítima, referindo‑se ao facto de que «as demandadas, membros do acordo, não podem ignorar a circunstância de os adquirentes dos bens em questão estarem estabelecidos no mercado afetado pelas práticas colusórias» (67).
85. Além das questões suscitadas na alínea anterior relativas à proximidade e à apreciação individual, a invocação da sede social da sociedade‑mãe nas circunstâncias do presente processo parece não proceder em ambos os casos.
86. É certo que a sede da recorrente se situa no mercado afetado, como definido pela Decisão da Comissão (o que é a consequência natural do âmbito pan‑europeu do cartel em causa). No entanto, já expliquei que, de acordo com o Acórdão Volvo, tem de ser aplicado um critério mais específico, como o lugar de aquisição ou a sede social da vítima direta.
87. Resulta dos autos que as aquisições respetivas pelas diferentes filiais foram efetuadas em vários Estados‑Membros (entre os quais, mas não exclusivamente, a Hungria) (68), cuja lei se torna, assim, aplicável por força do artigo 6.°, n.° 3, alínea a), do Regulamento Roma II. Nestas circunstâncias, o objetivo de assegurar a coerência com a lei aplicável não pode ser prosseguido (admitindo que os pedidos referentes a um prejuízo sofrido fora da Hungria devem ser decididos pelos tribunais húngaros).
88. No que diz respeito à previsibilidade do foro competente, se a competência fosse determinada com base no lugar da sede da sociedade‑mãe, tal acarretaria o risco associado de transformar o foro competente assim determinado num alvo móvel. Com efeito, sempre que se tivesse lugar uma operação que levasse à alteração da pessoa que controla uma dada filial, o tribunal competente no presente contexto mudaria em função da sede da nova sociedade‑mãe(69). A segunda questão prejudicial ilustra bastante bem esse risco, uma vez que revela que algumas das filiais afetadas não pertenciam, no momento das aquisições, ao grupo da recorrente. A este respeito, embora se possa arguir que, quando se trata de determinar o lugar específico «da materialização do dano», a prossecução da previsibilidade do foro se torna até certo ponto ilusória (no âmbito de um cartel pan‑europeu), tal não justifica que se abandone completamente essa prossecução e que lhe seja acrescentado um grau de incerteza adicional.
89. Esclarecido este ponto, importa ainda abordar o argumento da recorrente segundo o qual a exclusão da aplicação do conceito de unidade económica nas presentes circunstâncias põe seriamente em causa a possibilidade para as vítimas de um comportamento anticoncorrencial de fazerem valer os seus direitos.
c) Quanto à eficácia da aplicação dos direitos
90. A recorrente explica detalhadamente as dificuldades com que, em seu entender, a vítima de um comportamento anticoncorrencial se depara quanto à aplicação transfronteiriça dos direitos conexos. Observa, nomeadamente, que os infratores dificultam sistematicamente essa aplicação, suscitando, nomeadamente, exceções de incompetência internacional dos órgãos jurisdicionais chamados a pronunciar‑se. Considera, em substância, que essas dificuldades podem ser evitadas (no caso específico do cartel de camiões em causa) se a competência for centralizada para a totalidade dos danos sofridos em diferentes lugares por diferentes membros de uma unidade económica e se essa competência centralizada se basear na sede social da sociedade‑mãe. A situação atual afeta, na sua opinião, a eficácia da aplicação dos direitos subjacentes, pois uma vítima que exerce a sua atividade em diferentes Estados‑Membros (como é o seu caso, se bem entendi o argumento) tem de instaurar um processo judicial em cinco Estados‑Membros diferentes apenas porque os camiões foram adquiridos pelas suas filiais. Além disso, refere os custos acrescidos que esta fragmentação dos processos judiciais acarreta e observa que, uma vez que a maioria dos infratores está estabelecida nos Estados‑Membros fundadores (ou nos que aderiram «primeiro»), as regras atuais implicam que as vítimas devem iniciar o processo judicial nesse Estado‑Membro, embora possam estar estabelecidas nos outros Estados‑Membros.
91. Para abordar, em primeiro lugar, esta última observação, parece‑me que a recorrente critica, em substância, se bem entendi o argumento, a regra principal do domicílio do requerido que rege o Regulamento n.° 1215/2012. Com efeito, esta regra acarreta inconvenientes para os requerentes (aliás, para qualquer requerente), pois é o requerente que deve «deslocar‑se» ao domicílio do requerido e cumprir as regras processuais aplicáveis (e não vice‑versa). No entanto, foi assim que o Regulamento n.° 1215/2012 foi concebido (em conformidade com uma regra há muito estabelecida nos sistemas jurídicos nacionais) (70).
92. Em segundo lugar, há que observar que este regulamento inverte esta regra geral no que diz respeito a certas categorias de requerentes, considerados como partes mais fracas, conferindo‑lhes uma proteção reforçada sob a forma da possibilidade de demandarem no lugar do seu domicílio (ou trabalho) (71). As alegadas vítimas de um comportamento anticoncorrencial não se encontram, enquanto tal, entre essas categorias (a menos que atuem, num determinado processo, como consumidores). Este statu quo é independente do facto de existir um interesse público em assegurar o respeito do direito da concorrência e de, para promover esse interesse, o legislador da União ter decidido adotar certas regras comuns no domínio da aplicação privada desse direito (72). O que é relevante para o presente processo é que esta escolha não tem nenhum equivalente nas regras de competência «protetoras», como atualmente concebidas no Regulamento n.° 1215/2012.
93. Em terceiro lugar, contrariamente a estas regras protetoras, a regra de competência em causa assenta numa lógica fundamentalmente diferente, como foi acima explicado. Daqui resulta que os interesses respetivos dos requerentes e dos requeridos devem ser considerados equivalentes. Além disso, tratando‑se de uma exceção à regra geral, deve ser interpretada de forma estrita.
94. Em quarto lugar, no Acórdão CDC Hydrogen Peroxide, o Tribunal de Justiça foi, porém, ao ponto de criar um forum actoris para a vítima (direta) de um cartel de preços e esse forum actoris foi confirmado, a título subsidiário, no Acórdão Volvo. Como observa a Comissão, o Tribunal de Justiça declarou igualmente no Acórdão CDC Hydrogen Peroxide que o órgão jurisdicional da sede da vítima pode decidir quanto à totalidade dos danos invocados (73) (o que parece ser a consequência lógica da escolha da sede social da vítima como critério de conexão).
95. Em quinto lugar, como já foi explicado e como a Comissão recorda, a vítima pode intentar a ação não só contra a sociedade‑mãe destinatária da respetiva decisão da Comissão que declara a infração mas também contra uma filial da unidade económica dessa sociedade‑mãe, sob certas condições (74). Tal cria a possibilidade de um foro adicional (consoante a localização da filial) e pode, por conseguinte, facilitar ainda mais a aplicação dos direitos.
96. Por último, se um determinado requerente considerar que a centralização da competência é a sua primeira prioridade, a via de recurso universal é sempre oferecida nos órgãos jurisdicionais da sede do requerido. Esta escolha implica certamente o inconveniente da «deslocação», mas não pode ser criticada por conduzir a uma fragmentação dos processos judiciais.
97. Nestas circunstâncias, não vejo de que forma as atuais regras de competência impedem fundamentalmente as alegadas vítimas de um comportamento anticoncorrencial de fazer valer os seus direitos e qual é exatamente o defeito do atual regime do Regulamento n.° 1215/2012 que torna necessário aplicar o conceito «inverso» de unidade económica para alargar o alcance do conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso», nos termos do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 (e, mais especificamente, do lugar da materialização do dano, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça supraexaminada.
98. Tendo em conta as considerações acima expostas, concluo que a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso», nos termos do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, não engloba a sede da sociedade‑mãe que intenta uma ação de indemnização por danos causados às suas filiais pelo comportamento anticoncorrencial de um terceiro e na qual se alega que essa sociedade‑mãe e essas filiais fazem parte da mesma unidade económica.
3. Segunda questão prejudicial: relevância do momento da aquisição (e do momento da aquisição das filiais)
99. Tendo em consideração a minha conclusão anterior, não há necessidade de abordar a segunda questão prejudicial, através da qual o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a possibilidade de uma sociedade‑mãe invocar a sua sede social (e o conceito de unidade económica) para determinar a competência é afetada pelo facto de algumas das filiais lesadas só terem sido adquiridas pela recorrente depois de terem pago os preços artificialmente aumentados e de terem sofrido o prejuízo correspondente.
100. Dito isto, o mérito desta questão pode, a meu ver, ser abordado de uma forma bastante rápida. A este respeito, concordo com a recorrente que esta questão diz respeito ao mérito do pedido e é, portanto, irrelevante para a fase de determinação da competência (75).
101. Com efeito, se se admitisse que o conceito de unidade económica transforma a sede da recorrente no critério de conexão aplicável para efeitos do artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012, teria de se observar que o problema suscitado pela segunda questão prejudicial está relacionado com o alcance dos danos que a recorrente pode reclamar (a saber, se também pode pedir com êxito uma indemnização pelo prejuízo sofrido pelas filiais antes da sua aquisição pela recorrente). Este aspeto concerne o mérito, e não a questão da competência.
V. Conclusão
102. Tendo em conta o acima exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pela Kúria (Tribunal Supremo, Hungria) do seguinte modo:
O artigo 7.°, ponto 2, do Regulamento n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (reformulação)
deve ser interpretado no sentido de que
a expressão «lugar onde ocorreu o facto danoso» não abrange a sede da sociedade‑mãe que intenta uma ação de indemnização por danos causados exclusivamente às filiais dessa sociedade‑mãe pelo comportamento anticoncorrencial de um terceiro e na qual se alega que essa sociedade‑mãe e essas filiais fazem parte da mesma unidade económica.