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CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 21 de setembro de 2023 (1)

Processo C442/22

P sp. z o.o.

contra

Dyrektor Izby Administracji Skarbowej w Lublinie,

sendo interveniente:

Rzecznik Małych i Średnich Przedsiębiorców

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Naczelny Sąd Administracyjny (Supremo Tribunal Administrativo, Polónia)]

«Reenvio prejudicial — Imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Devedor de imposto ao abrigo do artigo 203.o da Diretiva IVA — Fatura relativa a operações fictícias (fatura falsa) — Determinação do emitente da fatura — Emissão de uma fatura por um terceiro não autorizado — Emissão de uma fatura falsa por um trabalhador sem o conhecimento do empregador — Imputação do ato ilícito cometido por um terceiro — Critério da boa‑fé — Culpa em matéria de seleção e de supervisão de um sujeito passivo»






I.      Introdução

1.        O presente pedido de decisão prejudicial inscreve‑se no contexto do tema da luta contra a fraude que domina já há anos a legislação em matéria de IVA. Este pedido diz novamente respeito à extensão da «responsabilidade de uma empresa» envolvida, de alguma forma, na fraude ao IVA cometida por outro sujeito passivo. Como é sabido, para tal basta o facto de que a empresa devia saber que, com a sua operação, participava numa operação implicada numa fraude ao IVA (2). Neste caso, pode ser‑lhe recusada a dedução do imposto pago a montante ou uma isenção, e eventualmente também ambos (3).

2.        No caso em apreço, surge agora uma terceira possibilidade: uma dívida fiscal adicional devido a uma menção do imposto injustificada. Trata‑se, a este respeito, da responsabilidade de uma empresa pelos seus trabalhadores que, sem o seu conhecimento, contribuíram deliberadamente de forma organizada e ilícita para que outros sujeitos passivos pudessem cometer uma fraude ao IVA (provavelmente acompanhada de uma fraude ao imposto sobre o rendimento). Os funcionários das estações de serviço recolhiam os talões de caixa deitados ao lixo e, em seguida, emitiam novas faturas através de um segundo «sistema de reservas» com os litros de combustível aí indicados e vendiam‑nas aos interessados. Estes utilizavam os montantes relativos às entregas de combustível (que nunca se realizaram) para a dedução do imposto pago a montante no âmbito da declaração de IVA e, provavelmente, também para a dedução das despesas profissionais no âmbito da declaração de imposto sobre o rendimento. O Estado polaco conseguiu detetar esta fraude, mas não conseguiu recuperar a totalidade do prejuízo sofrido em matéria de IVA junto dos autores da fraude. Por conseguinte, a Administração Tributária acionou, uma vez mais, a empresa que, embora corretamente tributada pelas suas próprias operações, aparentemente emitiu as faturas falsas.

3.        A questão crucial que aqui se coloca é, por isso, a de saber se as dívidas de IVA de uma empresa se alteram, quando os seus funcionários tiverem colaborado numa fraude ao IVA cometida por um terceiro através da emissão de faturas falsa sem nome da empresa. Por conseguinte, trata‑se, de «sancionar» (por meio da responsabilidade) o sujeito passivo (empregador) pelo comportamento ilícito dos seus próprios trabalhadores, que participaram numa fraude ao IVA cometida por um terceiro. Este é um território desconhecido, porque a responsabilidade por dívidas fiscais decorrentes de faturas inexatas se referiu sempre a uma conduta inadequada da própria empresa. Por outro lado, até à data, a «responsabilidade» pela participação numa fraude ao IVA cometida por um terceiro esteve sempre associada à falta da diligência necessária no que respeita à realização de operações no âmbito de uma cadeia de transações. No entanto, no caso em apreço, nada pode ser censurado à empresa no que respeita às operações efetivamente realizadas.

4.        É certo que a luta contra a fraude fiscal é um dos principais desafios num sistema de fiscalidade indireta com dedução do imposto pago a montante. Todos estão de acordo quanto à importância desta luta contra a fraude. No entanto, tem de haver limites, desde logo no que diz respeito aos direitos fundamentais das empresas em causa. O Tribunal de Justiça pode agora precisar esses limites.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

5.        O quadro jurídico do direito da União é definido pela Diretiva 2006/112/CE relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «Diretiva IVA») (4). O artigo 203.o da Diretiva IVA regula a dívida fiscal através da sua menção numa fatura, dispondo o seguinte:

«O IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa fatura.»

B.      Direito polaco

6.        A Polónia transpôs a Diretiva IVA através da Lei de 11 de março de 2004 relativa ao Imposto sobre Bens e Serviços (Ustawa o podatku od towarów i usług, Dz. U. de 2011, n.o 177, posição 1054, conforme alterada — a seguir «Lei do IVA»). O artigo 108.o, n.o 1, da Lei do IVA dispõe o seguinte:

«Sempre que uma pessoa coletiva, uma entidade sem personalidade jurídica ou uma pessoa singular emita uma fatura que indique o montante do imposto, tem a obrigação de pagar esse imposto.»

III. Matéria de facto e pedido de decisão prejudicial

7.        A recorrente, a sociedade P sp. z o. o. (a seguir «P»), exerceu de 2001 a 2015 uma atividade de venda de combustíveis e uma atividade de construção, promoção e arrendamento de espaços comerciais. A sociedade P mantinha uma contabilidade completa, era sujeito passivo registado para efeitos de IVA e tinha ao seu serviço, em média, catorze funcionários.

8.        Na sequência de uma inspeção fiscal efetuada pela Urząd Skarbowy (Repartição das Finanças), foi apurado que, entre janeiro de 2010 e abril de 2014, tinham sido emitidas, em nome da sociedade P, 1 679 faturas de IVA falsas (as chamadas faturas «em branco», que não refletem a venda efetiva de mercadorias) com um valor total de IVA de 1 497 847 zlótis (PLN) (cerca de 335 000 euros) às entidades que liquidaram o IVA mencionado nessas faturas. Estas faturas falsas não foram registadas no registo de vendas da P e o IVA não foi pago ao Estado nem foi liquidado pela sociedade.

9.        Na sequência das constatações da inspeção fiscal, o presidente do conselho de administração da P levou a cabo o seu próprio inquérito interno neste processo, no qual se concluiu que as faturas de IVA «em branco» tinham sido emitidas e utilizadas sem o seu conhecimento nem o consentimento do conselho de administração da sociedade por um funcionário da sociedade (a seguir «P.K.»).

10.      P. K. tinha sido contratada para trabalhar na estação de serviço da P como chefe de loja entre 25 de novembro de 2005 e 24 de maio de 2014, data em que foi despedida por violação das suas obrigações profissionais. Uma das suas obrigações era assegurar a gestão da caixa registadora, proceder à faturação e preparar os documentos para o chefe da contabilidade.

11.      Resulta das declarações de P. K. que, desde 2010, emitiu faturas relativas a talões de caixa recolhidos pelos funcionários da estação de serviço que geria. Os talões de caixa eram recolhidos dos caixotes do lixo. Os talões referentes a cada fatura eram guardados na sala da caldeira, organizados por ano, para que as faturas emitidas em nome da estação de serviço a respeito das operações fictícias não incluíssem quantidades de combustível superiores às efetivamente vendidas pela estação de serviço. Este procedimento não deveria causar prejuízo à P. As faturas falsas eram arquivadas num computador no escritório (num ficheiro de acesso restrito).

12.      P. K. emitia essas faturas num formato diferente do das faturas verdadeiras, sempre na ausência do seu adjunto e não imprimia as cópias das faturas para não haver um «arquivo em papel». P. K. também não transmitia as faturas ao gabinete de contabilidade. P. K. utilizava os dados da P identificando‑a como emitente da fatura e utilizando o seu número NIP [número de identificação para efeitos de IVA — NIF]. Constam das faturas a assinatura e o carimbo de P. K. e, a partir de 2014, uma assinatura digital sem carimbo. Todos os funcionários da estação de serviço que colaboraram neste procedimento beneficiaram do mesmo. Os funcionários recebiam dinheiro com base nos litros de combustível indicados nos talões de caixa que entregavam e que eram utilizados para emitir as faturas falsas. A forma exata como estas faturas foram emitidas não é clara. De acordo com as declarações da P, é provável que não tenha ocorrido por computador, nem nas instalações da estação de serviço.

13.      Na sequência das verificações da inspeção fiscal, a Repartição de Finanças adotou uma decisão que fixava, relativamente à P, o montante da dívida fiscal de IVA referente ao período compreendido entre janeiro de 2010 e abril de 2014. A P interpôs recurso desta decisão. O órgão de recurso (Dyrektor Izby Administracji Skarbowej, Diretor da Administração Tributária) confirmou‑a por decisão de 31 de outubro de 2017.

14.      Com base nas circunstâncias apuradas, ambas as autoridades consideram, sem serem contestadas pelas partes, que as faturas falsas documentavam entregas de bens e prestações de serviços que, na realidade, não tinham sido efetuadas. Estas faturas simulavam a efetiva realização dessas transações para permitir a terceiros obter o reembolso do imposto de modo fraudulento.

15.      Essas autoridades consideraram que a P, na qualidade de empregador, não tinha exercido a devida diligência para evitar a emissão de faturas de IVA falsas. As obrigações de P.K. não estavam corretamente fixadas por escrito. As suas funções eram amplas e incluíam a habilitação para emitir faturas de IVA para talões de caixa fora do sistema BOS em formato Excel sem autorização adicional da parte do empregador. Uma vez que o presidente do conselho de administração da P sabia que as faturas eram emitidas relativamente aos talões de caixa nas estações de serviço, isto é, sem controlo contabilístico, podia e devia ter previsto que isso facilitava a emissão de faturas falsas. Foi a falta de adequada supervisão e de organização que teve por consequência que o presidente da sociedade só descobriu a prática em questão após um controlo da autoridade fiscal.

16.      Segundo as autoridades administrativas, P. K. não era um terceiro em relação a P, mas chefe de loja numa estação de serviço pertencente à P, uma funcionária habilitada a emitir faturas e responsável por uma equipa de funcionários. Além disso, as referidas autoridades declararam que, apesar das medidas destinadas a excluir das liquidações os contraentes que utilizavam essas faturas falsas de IVA, tinha havido perdas fiscais que não foram evitadas em tempo útil.

17.      Por Sentença de 23 de fevereiro de 2018, o Wojewódzki Sąd Administracyjny (Tribunal Administrativo do Voivodato, Polónia) negou provimento ao recurso da P contra a decisão do Dyrektor Izby Administracji Skarbowej w Lublinie (Diretor da Administração Tributária de Lublin), acolhendo a argumentação do órgão de recurso. P interpôs recurso de cassação da decisão, supra, no Naczelny Sąd Administracyjny (Supremo Tribunal Administrativo, Polónia). Este suspendeu a instância e submeteu duas questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 267.o TFUE:

1.      Deve o artigo 203.o da [Diretiva IVA] ser interpretado no sentido de que, numa situação em que o funcionário de um sujeito passivo de IVA emitiu uma fatura falsa mencionando o IVA, na qual indicou os dados do seu empregador como sujeito passivo, sem o conhecimento nem o consentimento deste, deve considerar‑se que a pessoa que menciona o IVA na fatura, obrigada ao pagamento do IVA:

—      é o sujeito passivo de IVA cujos dados foram ilegalmente utilizados na fatura ou

—      o funcionário que mencionou ilegalmente o IVA na fatura, utilizando os dados da entidade que é sujeito passivo de IVA?

2.      Para responder à questão de saber quem deve ser considerada, na aceção do artigo 203.o [da Diretiva IVA], a pessoa que menciona o IVA na fatura, obrigada a pagar o IVA nas circunstâncias mencionadas no ponto 1), é importante determinar se o sujeito passivo de IVA, que contratou o funcionário que mencionou ilegalmente na fatura de IVA os dados do empregador, pode ser acusado de falta da devida diligência na supervisão desse funcionário?

18.      No processo no Tribunal de Justiça, apresentaram observações escritas a P, a Administração Tributária polaca, o Provedor de Justiça polaco para as pequenas e médias empresas e a Comissão Europeia. Em conformidade com o artigo 76.o, n.o 2, do Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça decidiu não realizar audiência.

IV.    Apreciação jurídica

A.      Quanto às questões prejudiciais e à metodologia de análise seguida

19.      Ambas as questões prejudiciais, que importa examinar em conjunto, suscitam, em substância, a questão de saber quais os riscos que uma sociedade sujeita ao IVA deve suportar, nos termos da legislação em matéria de IVA, se tiver sido enganada pelos seus trabalhadores. No presente caso, estes emitiam, sem o conhecimento da sociedade, faturas falsas em seu nome e vendiam‑nas a terceiros, por sua própria conta, com vista a uma fraude fiscal.

20.      A este respeito, coloca‑se novamente (5) a questão da interpretação do artigo 203.o da Diretiva IVA. Este artigo destina‑se a evitar o risco de uma dedução injustificada do imposto pago a montante pelo destinatário da fatura através de uma dívida de imposto correspondente do emitente da fatura. Por conseguinte, importa esclarecer, em primeiro lugar, quem é o emitente da fatura neste sentido — o emitente da fatura ou aquele que é designado como emitente na fatura (v., a este respeito, infra, ponto B.). Se for simplesmente aquele que emitiu a fatura, coloca‑se então a questão das condições de imputação do comportamento (ilícito) de outrem (terceiro) ao emitente aparente da fatura (v., a este respeito, infra, ponto C.).

B.      Emitente de uma fatura na aceção do artigo 203.o da Diretiva IVA

1.      Sentido e finalidade do artigo 203.o da Diretiva IVA

21.      Segundo o artigo 203.o da Diretiva IVA, o IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa fatura. Como o Tribunal de Justiça já declarou a este respeito (6), o artigo 203.o da Diretiva IVA abrange «apenas» o IVA indevidamente faturado, ou seja, o IVA que não é legalmente devido, mas que, não obstante, foi mencionado numa fatura.

22.      O sentido e a finalidade do artigo 203.o da Diretiva IVA consistem em combater o risco de perda de receitas fiscais, que pode resultar da invocação de uma dedução injustificada (7) pelo destinatário da fatura com base na mesma (8). A situação do caso vertente exemplifica esse risco.

23.      É certo que o exercício do direito à dedução está limitado apenas aos impostos que correspondam a uma operação submetida ao IVA (9). Porém, há um risco de perda de receita fiscal quando o destinatário de uma fatura em que é mencionado indevidamente o IVA ainda a pode utilizar para exercer o direito a dedução, em conformidade com o artigo 168.o da Diretiva IVA (10). Com efeito, não é de excluir que a Administração Tributária não possa determinar em tempo oportuno que considerações jurídico‑substantivas se opõem ao exercício do direito à dedução formalmente existente.

24.      Assim, o artigo 203.o da Diretiva IVA visa, em caso de menção errada do IVA, um paralelismo entre a dedução do imposto a montante do destinatário da fatura e a dívida de imposto do emitente da fatura, como o que existiria no caso de uma fatura correta para o fornecedor e o destinatário da entrega (11). De acordo com o teor do artigo 203.o da Diretiva IVA, não é, todavia, necessário que o destinatário da fatura tenha efetivamente procedido à dedução do imposto a montante. Basta que exista o risco de que tal operação possa (injustamente) ser efetuada.

25.      Em última análise, o emitente da fatura é, por conseguinte, responsável, independentemente da culpa, pelo risco (abstrato), de que o destinatário da fatura possa, com base nesta fatura (errada), proceder à dedução injustificada do imposto a montante. Não se trata, consequentemente, de uma verdadeira dívida fiscal, mas de uma responsabilidade pelo risco do emitente da fatura, como o Tribunal de Justiça já precisou (12).

26.      Esta responsabilidade ocorre não apenas no caso de erro sobre a taxa exata do imposto (na fatura menciona‑se a taxa regular do imposto em vez da taxa reduzida), mas também especialmente no caso de liquidação do imposto sobre operações fictícias (13).

27.      O artigo 203.o da Diretiva IVA constitui, assim, uma situação abstrata de responsabilidade pelo risco que torna o emitente da fatura responsável, independentemente de culpa, pelo risco que criou com a faturação falsa de operações fictícias. A consequência é que ele próprio é devedor do IVA incorretamente mencionado.

2.      Limites inerentes à situação de responsabilidade pelo risco

28.      No entanto, esta situação abstrata de responsabilidade pelo risco, que faz recair sobre o emitente de uma fatura, independentemente de culpa, o IVA incorretamente mencionado, tem limites. Para que esta responsabilidade não seja arbitrária à luz dos direitos fundamentais da pessoa em causa (a P invoca, nomeadamente, o artigo 17.o da Carta), é necessária tanto uma razão objetiva [isto é, um risco de perda das receitas fiscais — v., a este respeito, infra, ponto a)], como uma imputabilidade subjetiva do risco [v., a este respeito, infra, ponto b)].

a)      Necessidade de um risco

29.      Como o Tribunal de Justiça declarou recentemente, a situação de responsabilidade pelo risco referida no artigo 203.o da Diretiva IVA não ocorre se o risco de perda das receitas de IVA estiver excluído per se (14). O Tribunal de Justiça confirmou esta situação num caso em que se provou que as faturas erradas só eram emitidas em relação a consumidores finais, que não podem invocar o direito à dedução (15).

30.      Tal risco está igualmente excluído per se, desde que a Administração Tributária, como no caso em apreço, já tenha descoberto a fraude organizada cometida pelos funcionários da P, de modo que os compradores das faturas falsas são conhecidos e pode ser‑lhes recusado com êxito e de forma definitiva a dedução do imposto pago a montante. Segundo o pedido de decisão prejudicial, o Estado polaco conseguiu fazê‑lo até certo ponto. Nesta medida, já não se coloca a questão da aplicabilidade do artigo 203.o da Diretiva IVA, mas, quando muito, a questão da sanção dos vendedores e dos compradores das faturas falsas. No entanto, tal trata‑se geralmente de uma questão de direito penal e não de direito fiscal. Como o Tribunal de Justiça já salientou (16), o artigo 203.o da Diretiva IVA não tem caráter de sanção.

31.      Uma dívida fiscal adicional do emitente da fatura (quer se trate da P ou de P. K.) nesse caso conduziria a um «enriquecimento do Estado» em consequência de uma fraude ao IVA. Tal ultrapassa manifestamente o que é necessário para lutar contra a fraude. Além disso, seria um resultado curioso se um Estado de direito pudesse, devido a uma fraude ao IVA detetada, apresentar receitas fiscais mais elevadas do que sem essa fraude. Com efeito, visto que não poderia ser exercido o direito de dedução do imposto pago a montante, as receitas de IVA na Polónia aumentariam, apesar de não ter sido realizada nenhuma operação. Este resultado também não seria compatível com a natureza de uma regra de responsabilidade (a este respeito, com mais pormenores, supra, n.os 22 e segs.).

32.      Assim, o Tribunal de Justiça declarou muito cedo que, embora a Diretiva IVA não preveja nenhuma disposição sobre a regularização, pelo emitente da fatura, do IVA indevidamente faturado (17), cabe aos Estados‑Membros fornecer uma solução a este respeito (18). Para chegar a esta solução, o Tribunal de Justiça já desenvolveu duas abordagens que os Estados‑Membros devem ter em consideração.

33.      Assim, a fim de assegurar a neutralidade do IVA, cabe, por um lado, aos Estados‑Membros prever, na sua ordem jurídica interna, a possibilidade de regularização de qualquer imposto indevidamente faturado, desde que o emitente da fatura demonstre a sua boa (19). Por outro lado, o princípio da neutralidade do IVA exige que este imposto possa ser regularizado quando é indevidamente faturado, não podendo esta regularização ser sujeita pelos Estados‑Membros à boa‑fé do emitente da referida fatura, quando o emitente da fatura tenha eliminado por completo, em tempo útil, o risco de perda de receitas fiscais (20).

34.      Para estes últimos não pode ser relevante a razão pela qual o risco de perda de receitas fiscais está excluído — ou seja, se o emitente da fatura o eliminou ativamente ou se a Administração Tributária o conseguiu eliminar (21). Com efeito, as medidas que os Estados‑Membros têm a faculdade de tomar para garantir o exato recebimento do imposto e evitar a fraude não devem exceder o necessário para atingir tais objetivos. Não poderão, por isso, ser utilizadas de forma que ponham em causa a neutralidade do IVA, que constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA instituído pela legislação da União na matéria (22). Isto aplica‑se especialmente numa situação abstrata de responsabilidade pelo risco (v., a este respeito, n.os 26 e segs., supra).

35.      Por conseguinte, a questão da responsabilidade da P pelas faturas falsas emitidas por P. K. apenas se coloca visto que a dedução do imposto pago a montante pelos compradores não pôde ser evitada e, portanto, uma vez que continua a existir um prejuízo para as receitas fiscais da Polónia.

b)      Imputação subjetiva: emitente de uma fatura

36.      Uma vez que esse prejuízo ainda existe, este deve ser igualmente imputado à P, dado que o artigo 203.o da Diretiva IVA abrange apenas o emitente dessas faturas. No presente caso, a particularidade reside no facto de o prestador constante da fatura (no caso em apreço, a P), que geralmente emite a fatura, não ter, precisamente, criado essa fatura. Esta foi criada por P. K., usando simplesmente o nome do seu empregador. No entanto, ainda que tenha sido utilizado um formato de faturação diferente, estas faturas parecem ter sido emitidas pela P. Foram utilizados o seu nome, a sua assinatura e o seu número de identificação fiscal.

37.      Se P. K. fosse um completo estranho que se tivesse servido, mais ou menos por acaso, dos dados da P para criar e vender faturas falsas (também já houve casos assim), a resposta seria inequívoca. Na falta de imputação do comportamento desse terceiro, a responsabilidade da P seria arbitrária e desproporcionada e, por conseguinte, a P nunca seria considerada — como salienta igualmente a Administração Tributária — o emitente dessas faturas.

38.      Porém, diferentemente da emissão de faturas falsas por um terceiro desconhecido, existe no caso em apreço uma certa proximidade entre o emitente efetivo da fatura (P. K.) e o emitente aparente da fatura (P), devido à relação de trabalho então existente. P. K. utilizou deliberadamente o conhecimento adquirido na P sobre as quantidades de combustível, cujos talões de compra eram deitados ao lixo, os elementos de faturação relativos à P e o seu número de identificação fiscal.

39.      Por outro lado, porém, é pacífico que esta venda (ilícita) de faturas falsas em nome da P ocorreu sem o conhecimento e a vontade da P e também não estava abrangida pelo âmbito das funções atribuídas à luz do direito do trabalho ou por uma procuração legal.

40.      A questão decisiva consiste em saber quem é, nesse caso, o emitente da fatura na aceção do artigo 203.o da Diretiva IVA. Por conseguinte, há que determinar se, e em que condições, os atos delituosos dos seus trabalhadores (no caso em apreço, sob a forma de criminalidade organizada) podem ser imputados a um empregador ou se este pode exonerar‑se a este respeito com base na sua boa‑fé.

41.      Em conformidade com a redação do artigo 203.o da Diretiva IVA, o IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa fatura. Basta que qualquer pessoa — isto é, não é necessário que seja um sujeito passivo — mencione o imposto numa fatura. A diretiva pressupõe igualmente uma ação («mencionem»). No entanto, o imposto não foi mencionado pela P, mas pela sua funcionária P. K. Segundo a redação da Diretiva IVA, P. K. é devedora do imposto que mencionou erradamente. A P é só aparentemente o emitente da fatura.

42.      O sentido e a finalidade acima expostos (n.os 22 e segs.) de uma responsabilidade pelo risco opõem‑se a que se acione a responsabilidade do «emitente aparente» juntamente com o emitente. O artigo 203.o da Diretiva IVA não visa sancionar ou duplicar as receitas fiscais, mas salvaguardar o risco de perda de receitas fiscais. Consequentemente, só pode ser considerada emitente uma única pessoa, na aceção do artigo 203.o da Diretiva IVA. Isto resulta igualmente da possibilidade de retificação que o próprio Tribunal de Justiça reconhece ao emitente culposo. Assim, os Estados‑Membros devem prever a possibilidade de regularização pelo emitente da fatura de qualquer imposto indevidamente faturado, desde que este demonstre a sua boa‑fé (23). Todavia, tal pressupõe que a pessoa saiba igualmente a quem emitiu as faturas incorretas. Ora, a P não conhece os compradores das faturas. Só P. K. tem esse conhecimento.

43.      Por conseguinte, uma vez que ainda existe um risco de perda (ou prejuízo) das receitas fiscais polacas, P. K., na qualidade de emitente das faturas falsas, é, em princípio, devedor do IVA indevidamente mencionado nessas faturas.

C.      Imputação do comportamento ilícito de um terceiro

44.      Só assim não será se o comportamento ilícito de P. K. puder, de alguma forma, ser imputado ao sujeito passivo (no caso em apreço, a P). Concretamente, a Administração Tributária polaca invoca uma espécie de «culpa em matéria de supervisão». Uma vez que a P sabia que P. K. também podia emitir faturas manualmente fora do sistema de faturação habitual, a P deveria saber que eram emitidas faturas falsas. Na ausência de medidas de supervisão adequadas, o comportamento de P. K. deve ser imputado à P.

1.      Imputação de um comportamento ilícito de um terceiro por força do «princípio» de proibição da fraude?

45.      Esta abordagem da Polónia aproxima‑se um pouco da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à recusa da dedução do imposto pago a montante (ou da isenção ou, eventualmente, de ambas ao mesmo tempo), quando o sujeito passivo sabia ou devia saber que, com a sua aquisição, participava numa operação implicada numa fraude ao IVA (24).

46.      Segundo o Tribunal de Justiça, esse sujeito passivo deve, para efeitos da Diretiva IVA, ser considerado participante nessa fraude, ou seu facilitador, independentemente da questão de saber se retira ou não benefícios da revenda dos bens ou da utilização dos serviços no âmbito das operações tributadas por si efetuadas a jusante (25). Cabe, portanto, às autoridades e aos órgãos jurisdicionais nacionais recusar o benefício do direito a dedução se se demonstrar, à luz de elementos objetivos, que este direito é invocado fraudulenta ou abusivamente (26). Nesta base, o Tribunal de Justiça desenvolveu mesmo um «princípio» específico «de proibição da fraude» manifestamente aplicável em matéria de IVA (27).

47.      Independentemente do facto de esta jurisprudência ser muito ampla e suscitar questões adicionais (28), não está aqui em causa a invocação por parte da P de um direito à dedução do imposto pago a montante ou de uma isenção, isto é, de direitos com valor patrimonial. A P simplesmente não pretende ser responsável pela vantagem económica realizada por um terceiro (o comprador das faturas falsas, com o qual não tem relação). Não se trata, portanto, de combater a fraude no interior de uma cadeia de transações, mas sim de responsabilizar (29) «todos».

48.      No entanto, segundo a redação do artigo 203.o da Diretiva IVA, o mero conhecimento (ou a obrigação de saber) que um terceiro emite e vende faturas falsas utilizando o seu próprio nome não pode dar origem a uma responsabilidade. A luta contra a criminalidade não é da responsabilidade de «todos», mas sim do Estado‑Membro. Na ausência de uma razão de imputação específica em relação a esse terceiro (30), não pode ser recusada ao sujeito passivo nenhuma «vantagem» (isenção e/ou dedução do imposto pago a montante) e, por maioria de razão, não é possível imputar a «qualquer pessoa» uma responsabilidade (através de uma dívida fiscal adicional).

2.      Imputação do comportamento ilícito dos seus próprios trabalhadores com base no critério da má

49.      Por conseguinte, a solução não decorre da jurisprudência acima referida relativa à luta contra a fraude, mas do princípio da neutralidade e da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 203.o da Diretiva IVA. Assim, a fim de assegurar a neutralidade do IVA, cabe aos Estados‑Membros prever, na sua ordem jurídica interna, a possibilidade de regularização de qualquer imposto indevidamente faturado, desde que o emitente da fatura — que, como a Comissão corretamente salienta nas suas observações, não tem de ser um empresário — demonstre a sua boa (31).

50.      É certo que tal diz respeito ao emitente de uma fatura, o que não é o caso da P. No entanto, esta abordagem pode — como a Comissão também parece considerar — ser aplicada àquele que, aparentemente, deve ser considerado emitente de uma fatura (emitente aparente). Com efeito, se este último tiver agido de boa‑fé, é vítima e não autor do crime e não pode ser abrangido pelo artigo 203.o da Diretiva IVA. Pelo contrário, se o emitente aparente não tiver agido de boa‑fé e o comportamento do emitente da fatura lhe puder ser imputado como seu (devido a uma proximidade ou a uma responsabilidade especial), também lhe pode ser imputada a responsabilidade como emitente da fatura errada.

51.      Há que ter em consideração que, no caso em apreço, a atividade ilícita do trabalhador, nomeadamente a emissão e a venda de faturas falsas, não estava diretamente relacionada com o cargo que lhe foi atribuído na empresa P ao abrigo da sua relação laboral. Pelo contrário, este cargo apenas lhe oferecia a oportunidade de exercer essa atividade, que, todavia, lhe era proibida pelo direito do trabalho. Por conseguinte, contrariamente ao que acontece quando os funcionários emitem faturas (eventualmente incorretas) relativas às entregas de combustível durante a operação, a emissão destas faturas não pode ser automaticamente imputada à P. A este respeito, deve distinguir‑se entre a emissão de faturas em nome da P (no âmbito das competências decorrentes da relação laboral) e a emissão de faturas sob o nome da P (quase no âmbito da criminalidade organizada e sem o seu conhecimento).

52.      Não obstante, como sublinha com razão a Administração Tributária, existe uma certa proximidade ou responsabilidade do empregador pelos seus trabalhadores. É, por conseguinte, essencial saber segundo que critérios se pode falar de um empregador de boa‑fé.

3.      Quanto ao critério da boafé no âmbito do artigo 203.o da Diretiva IVA

53.      A boa‑fé está excluída quando o empregador tinha conhecimento das ações do seu trabalhador e não interveio, apesar de o poder ter feito. Neste caso, o empregador torna suas tais ações de forma consciente. Este deve, então, ser considerado, devido à aparência das faturas falsas com a qual é conscientemente conivente, o único emitente dessas faturas. No entanto, esta não é a situação do caso em apreço.

54.      O Tribunal já desenvolveu critérios de imputação no contexto da redução das subvenções agrícolas por incumprimento das exigências em matéria de subvenção por um terceiro (contratante). O Tribunal de Justiça considerou que, em caso de incumprimento por um terceiro, que executou trabalhos por ordem do beneficiário das ajudas, o beneficiário pode ser responsabilizado por esse incumprimento se tiver agido deliberadamente ou por negligência na escolha do terceiro, na vigilância deste ou nas instruções que lhe foram dadas. Isto acontece independentemente do caráter deliberado ou negligente do comportamento do referido terceiro (32). No entanto, isto não pode ser aplicado tel quel à presente situação. Por um lado, no que respeita à emissão de faturas falsas, P. K. não foi encarregada pela P, tendo agido deliberadamente à margem do seu «mandato». Por outro, a P também não enriqueceu com recursos estatais, que lhe devam ser retirados por falta de realização do objetivo.

55.      Não obstante, é possível recorrer à ideia de culpa própria em matéria de seleção e de supervisão (no caso em apreço, do empregador) referida na jurisprudência do Tribunal de Justiça, se o empregador for um sujeito passivo na aceção da legislação em matéria de IVA. Com efeito, os sujeitos passivos ocupam uma posição especial no funcionamento do sistema do IVA. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça também os designa como cobradores de impostos por conta do Estado (33).

56.      O sistema de IVA estruturado de forma indireta é particularmente vulnerável ao abuso, precisamente devido à desarticulação existente entre as autoridades fiscais e os devedores do imposto. A dedução do imposto pago a montante por um sujeito passivo numa cadeia de transações aumenta ainda mais este risco. No entanto, o legislador é o principal responsável pela prevenção deste risco sistémico de fraude.

57.      Tal é particularmente verdade numa União em que o Estado de direito assume especial relevância. Assim, o Tribunal de Justiça sublinha, cada vez mais, que a União agrupa Estados que respeitam e partilham dos valores comuns referidos no artigo 2.o TUE (34). Entre os valores em que se funda a União, enunciados no artigo 2.o TUE, figura, nomeadamente, o princípio do Estado de direito. Por conseguinte, um Estado‑Membro não pode transferir unilateralmente esse risco que ele próprio criou para sujeitos de direito privado. A luta contra a fraude fiscal é, antes de mais, uma tarefa do Estado, e não de um particular. Como a Comissão sublinha com razão nas suas observações, a proteção das receitas fiscais também não pode levar à cobrança do IVA a um sujeito passivo que nada tem que ver com a fraude (no caso em apreço, a venda de faturas falsas).

58.      No entanto, na qualidade de credor fiscal num sistema fiscal indireto, o Estado depende obrigatoriamente da colaboração dos sujeitos passivos como cobradores de impostos. Embora estes sejam obrigados a participar gratuitamente na cobrança do IVA, não é desproporcionado exigir uma certa diligência, mas não excessiva, a este respeito. Por conseguinte, enquanto cobrador de impostos por conta do Estado, um sujeito passivo não pode, nomeadamente, fechar os olhos e aceitar deliberadamente uma fraude ao IVA. Tal aplica‑se igualmente à imputação, ao abrigo do direito da União, das ações fraudulentas dos seus próprios trabalhadores.

59.      Como já referi nas minhas Conclusões no processo de recuperação das ajudas agrícolas, a legislação de alguns Estados‑Membros desconhece o princípio da imputação da conduta incorreta de auxiliares, independentemente de culpa própria, no domínio da responsabilidade extracontratual (35). Por conseguinte, nos termos do direito da União, um comitente não é automaticamente responsável, por força de um eventual princípio de direito não escrito, pela conduta incorreta do seu pessoal auxiliar da mesma forma que o é pelo seu próprio comportamento, mas apenas uma vez que possa ser pessoalmente culpado no que se refere à seleção ou à fiscalização do seu pessoal.

60.      No contexto do artigo 203.o da Diretiva IVA, isto significa que a P deve ser considerada como estando de boa‑fé enquanto não lhe puder ser imputada culpa própria. Por conseguinte, uma «obrigação de saber» geral não é, por si só, suficiente para dar origem a culpa própria, tal acontecendo apenas se a P for pessoalmente responsável por uma negligência na seleção ou na supervisão dos seus trabalhadores. No caso em apreço, não se verifica culpa em matéria de seleção, pelo que só é possível existir culpa em matéria de supervisão.

61.      A questão da existência dessa culpa no caso em apreço é da competência exclusiva do órgão jurisdicional de reenvio. Todavia, trata‑se de um critério diferente do estabelecido pela jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de recusa da dedução do imposto pago a montante ou da isenção do IVA em cadeias de transações «fraudulentas». Concretamente, como indício de boa‑fé, pode ser tido em conta o facto de se e de que modo o sujeito passivo cooperou com a Administração Tributária para determinar a dimensão da criminalidade organizada (o prejuízo foi causado principalmente pelos compradores das faturas falsas).

62.      Contrariamente ao que parece sugerir a Repartição de Finanças, é irrelevante a este respeito que as obrigações de P. K. não tenham sido fixadas por escrito. A existência ou não de uma definição escrita das obrigações reduz apenas de forma marginal o risco de um comportamento ilícito por parte do trabalhador. Por esta razão, contrariamente ao que sustenta o Provedor de Justiça nas suas observações, não é relevante saber se a emissão de faturas faz ou não parte, em princípio, das obrigações do trabalhador. Quem, na qualidade de trabalhador, pretender emitir faturas falsas pode fazê‑lo em qualquer momento, independentemente de a emissão das faturas corretas fazer ou não parte das suas funções.

63.      Além disso, o facto de as faturas normais poderem e terem sido emitidas por P. K. fora do sistema BOS não significa que o empregador deveria ter previsto que os seus trabalhadores emitiriam e revenderiam faturas falsas. Uma vez que a contabilidade (dentro e fora do sistema BOS) não apresenta, até ao momento, irregularidades, dos pontos mencionados pela Repartição de Finanças não decorre nenhuma culpa em matéria de supervisão. Como a P salienta com razão nas suas observações, é difícil para um particular (enquanto empregador) impedir este tipo de «criminalidade organizada» por parte de P. K., dos outros funcionários e dos compradores das faturas.

64.      A este respeito, haverá provavelmente que distinguir consoante tenha havido ou não uma razão concreta ou indicações concretas — como corretamente refere a Comissão — para uma supervisão particular. Na ausência de uma razão concreta, deveria, em todo o caso, exigir‑se a um sujeito passivo que dispusesse de um simples sistema interno de gestão de riscos, não podendo o sujeito passivo confiar cegamente nos seus trabalhadores. Todavia, logo que o sujeito passivo disponha de indicações concretas, também lhe podem ser exigidas medidas de supervisão mais específicas, e até a intervenção das autoridades judiciárias. Trata‑se, em última análise, de uma apreciação global à luz de todas as circunstâncias que compete ao órgão jurisdicional de reenvio realizar.

V.      Conclusão

65.      Por conseguinte, proponho que se responda às questões prejudiciais submetidas pelo Naczelny Sąd Administracyjny (Supremo Tribunal Administrativo, Polónia) do seguinte modo:

O artigo 203.o da Diretiva 2006/112/CE relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado deve ser interpretado no sentido de que o emitente aparente de uma fatura relativa a operações fictícias só é devedor do imposto aí mencionado se (1) a dedução do imposto pago a montante ainda não podia ser recusada ao destinatário da fatura, (2) a emissão da fatura por um terceiro lhe for imputável com base numa responsabilidade especial (ou na proximidade) e (3) não estiver de boa‑fé. A este respeito, a boa‑fé só pode ser excluída em caso de culpa própria do emitente aparente. No caso de um sujeito passivo, esta culpa pode igualmente verificar‑se na seleção ou na supervisão culposamente errada dos seus trabalhadores.


1      Língua original: alemão.


2      Acórdãos de 24 de novembro de 2022, Finanzamt M (Âmbito do direito à dedução) (C‑596/21, EU:C:2022:921, n.o 25), de 11 de novembro de 2021, Ferimet (C‑281/20, EU:C:2021:910, n.os 46 e 47), de 20 de junho de 2018, Enteco Baltic (C‑108/17, EU:C:2018:473, n.o 94), de 22 de outubro de 2015, PPUH Stehcemp (C‑277/14, EU:C:2015:719, n.o 48), de 13 de fevereiro de 2014, Maks Pen (C‑18/13, EU:C:2014:69, n.o 27), de 6 de setembro de 2012, Mecsek‑Gabona (C‑273/11, EU:C:2012:547, n.o 54), de 6 de dezembro de 2012, Bonik (C‑285/11, EU:C:2012:774, n.o 39), e de 6 de julho de 2006, Kittel e Recolta Recycling (C‑439/04 e C‑440/04, EU:C:2006:446, n.o 56).


3      Quanto ao problema resultante do excesso de compensação do dano sofrido, v., desde logo, as minhas Conclusões no processo Vetsch Int. Transporte (C‑531/17, EU:C:2018:677, n.os 39 e segs.).


4      Diretiva do Conselho, de 28 de novembro de 2006 (JO 2006, L 347, p. 1), na versão aplicável aos anos controvertidos (2010 a 2014).


5      Mais recentemente, no Acórdão de 8 de dezembro de 2022, Finanzamt Österreich (IVA erradamente faturado aos consumidores finais) (C‑378/21, EU:C:2022:968), o Tribunal de Justiça abordou pormenorizadamente a interpretação do artigo 203.o da Diretiva IVA.


6      Acórdão de 8 de dezembro de 2022, Finanzamt Österreich (IVA erradamente faturado aos consumidores finais) (C‑378/21, EU:C:2022:968, n.os 21 e 23).


7      Uma vez que o Tribunal de Justiça refere, no mesmo excerto, que o artigo 203.o da Diretiva IVA visa prevenir o risco de perda de receitas fiscais «que resulta do direito à dedução», tal é um pouco impreciso; v. Acórdãos de 8 de dezembro de 2022, Finanzamt Österreich (IVA erradamente faturado aos consumidores finais) (C‑378/21, EU:C:2022:968, n.o 20), de 29 de setembro de 2022, Raiffeisen Leasing (C‑235/21, EU:C:2022:739, n.o 36), de 8 de maio de 2019, EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:374, n.o 32), de 11 de abril de 2013, Rusedespred (C‑138/12, EU:C:2013:233, n.o 24), e de 31 de janeiro de 2013, Stroy trans (C‑642/11, EU:C:2013:54, n.o 32). Não está em causa o direito à dedução do imposto pago a montante, mas apenas o risco decorrente de uma dedução injustificada. Este parece ser sempre o entendimento, dado que uma dedução justificada do imposto pago a montante não pode constituir um risco de perda de receitas fiscais.


8      Neste sentido, expressamente, Acórdãos de 18 de março de 2021, P (Cartões de combustível) (C‑48/20, EU:C:2021:215, n.o 27), de 8 de maio de 2019, EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:374, n.o 32), de 11 de abril de 2013, Rusedespred (C‑138/12, EU:C:2013:233, n.o 24), de 31 de janeiro de 2013, Stroy trans (C‑642/11, EU:C:2013:54, n.o 32), de 31 de janeiro de 2013, LVK (C‑643/11, EU:C:2013:55, n.os 35 e 36), e de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.os 28 e segs.).


9      Acórdão de 13 de dezembro de 1989, Genius (C‑342/87, EU:C:1989:635, n.o 13).


10      Neste sentido, expressamente, Acórdão de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.os 28 e segs.), com referência ao Acórdão de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 57).


11      V., a este respeito, também as minhas Conclusões no processo EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:35, n.os 31 e segs.).


12      Neste sentido, expressamente, Acórdão de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 61).


13      V., a título de mero exemplo, Acórdão de 8 de maio de 2019, EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:374, n.o 26) em conjugação com as minhas Conclusões no processo EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:35, n.os 30 e segs.). Em relação a este aspeto, Acórdão de 18 de março de 2021, P (Cartões de combustível) (C‑48/20, EU:C:2021:215, n.o 30). Já antes, Acórdão de 15 de outubro de 2002, Comissão/Alemanha (C‑427/98, EU:C:2002:581, n.o 41). Em termos semelhantes, Acórdão de 29 de setembro de 2022, Raiffeisen Leasing (C‑235/21, EU:C:2022:739, n.o 35).


14      Acórdão de 8 de dezembro de 2022, Finanzamt Österreich (IVA erradamente faturado aos consumidores finais) (C‑378/21, EU:C:2022:968, n.os 24 e 25). Em sentido semelhante, desde logo, Acórdão de 11 de abril de 2013, Rusedespred (C‑138/12, EU:C:2013:233, n.os 24 e 32 segs. — para o caso em que a Administração Tributária podia recusar, desde logo, definitivamente a dedução do imposto pago a montante).


15      Acórdão de 8 de dezembro de 2022, Finanzamt Österreich (IVA erradamente faturado aos consumidores finais) (C‑378/21, EU:C:2022:968, n.o 25).


16      Acórdão de 31 de janeiro de 2013, Stroy trans (C‑642/11, EU:C:2013:54, n.o 34). Em sentido semelhante, Acórdão de 2 de julho de 2020, Terracult (C‑835/18, EU:C:2020:520, n.o 37).


17      Neste sentido, expressamente, Acórdãos de 18 de março de 2021, P (Cartões de combustível) (C‑48/20, EU:C:2021:215, n.o 30), de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken (C‑35/05, EU:C:2007:167, n.o 38), e de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 48).


18      Acórdãos de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 35), de 6 de novembro de 2003, Karageorgou e o. (C‑78/02 a C‑80/02, EU:C:2003:604, n.o 49), de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 49), e de 13 de dezembro de 1989, Genius (C‑342/87, EU:C:1989:635, n.o 18).


19      Acórdãos de 18 de março de 2021, P (Cartões de combustível) (C‑48/20, EU:C:2021:215, n.o 31), de 2 de julho de 2020, Terracult (C‑835/18, EU:C:2020:520, n.o 27), de 8 de maio de 2019, EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:374, n.o 33), de 31 de janeiro de 2013, Stroy trans (C‑642/11, EU:C:2013:54, n.o 33), de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 36), e de 13 de dezembro de 1989, Genius (C‑342/87, EU:C:1989:635, n.o 18).


20      Acórdãos de 2 de julho de 2020, Terracult (C‑835/18, EU:C:2020:520, n.o 28), de 8 de maio de 2019, EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:374, n.o 33), de 31 de janeiro de 2013, LVK (C‑643/11, EU:C:2013:55, n.o 37), de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 37), de 6 de novembro de 2003, Karageorgou e o. (C‑78/02 a C‑80/02, EU:C:2003:604, n.o 50), e de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 58).


21      V. Acórdão de 11 de abril de 2013, Rusedespred (C‑138/12, EU:C:2013:233, n.o 24 — recusa por parte da Administração Tributária). Neste sentido, igualmente Acórdão de 6 de novembro de 2003, Karageorgou e o. (C‑78/02 a C‑80/02, EU:C:2003:604, n.o 52 — um montante que não pode ser IVA não põe em risco as receitas fiscais).


22      Acórdão de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 39), v., por analogia, Acórdão de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 59 e jurisprudência referida).


23      Acórdãos de 18 de março de 2021, P (Cartões de combustível) (C‑48/20, EU:C:2021:215, n.o 31), de 2 de julho de 2020, Terracult (C‑835/18, EU:C:2020:520, n.o 27), de 8 de maio de 2019, EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:374, n.o 33), de 31 de janeiro de 2013, Stroy trans (C‑642/11, EU:C:2013:54, n.o 33), de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 36), e de 13 de dezembro de 1989, Genius (C‑342/87, EU:C:1989:635, n.o 18).


24      V. Acórdãos de 24 de novembro de 2022, Finanzamt M (Âmbito do direito à dedução) (C‑596/21, EU:C:2022:921, n.o 25), de 11 de novembro de 2021, Ferimet (C‑281/20, EU:C:2021:910, n.os 46 e 47), de 20 de junho de 2018, Enteco Baltic (C‑108/17, EU:C:2018:473, n.o 94), de 22 de outubro de 2015, PPUH Stehcemp (C‑277/14, EU:C:2015:719, n.o 48), de 13 de fevereiro de 2014, Maks Pen (C‑18/13, EU:C:2014:69, n.o 27), de 6 de setembro de 2012, Mecsek‑Gabona (C‑273/11, EU:C:2012:547, n.o 54), de 6 de dezembro de 2012, Bonik (C‑285/11, EU:C:2012:774, n.o 39), e de 6 de julho de 2006, Kittel e Recolta Recycling (C‑439/04 e C‑440/04, EU:C:2006:446, n.o 56).


25      Acórdãos de 24 de novembro de 2022, Finanzamt M (Âmbito do direito à dedução) (C‑596/21, EU:C:2022:921, n.o 25), e de 11 de novembro de 2021, Ferimet (C‑281/20, EU:C:2021:910, n.os 46 e 47 e jurisprudência referida).


26      Acórdãos de 24 de novembro de 2022, Finanzamt M (Âmbito do direito à dedução) (C‑596/21, EU:C:2022:921, n.o 24), e de 11 de novembro de 2021, Ferimet (C‑281/20, EU:C:2021:910, n.o 45 e jurisprudência referida).


27      Acórdão de 24 de novembro de 2022, Finanzamt M (Âmbito do direito à dedução) (C‑596/21, EU:C:2022:921, n.os 20 e 29).


28      É o que demonstram os intermináveis pedidos de decisão prejudicial sobre esta temática — v., a título de exemplo, recentemente Acórdãos de 24 de novembro de 2022, Finanzamt M (Âmbito do direito à dedução) (C‑596/21, EU:C:2022:921), de 15 de setembro de 2022, HA.EN. (C‑227/21, EU:C:2022:687), e de 11 de novembro de 2021, Ferimet (C‑281/20, EU:C:2021:910).


29      Neste sentido, expressamente, Acórdão de 19 de setembro de 2000, Schmeink & Cofreth e Strobel (C‑454/98, EU:C:2000:469, n.o 61).


30      No âmbito da sua jurisprudência em matéria de luta contra a fraude, o Tribunal de Justiça parece colocar esse terceiro na cadeia de transações existente e na invocação de uma «vantagem» no âmbito desta cadeia de transações.


31      Acórdãos de 18 de março de 2021, P (Cartões de combustível) (C‑48/20, EU:C:2021:215, n.o 31), de 2 de julho de 2020, Terracult (C‑835/18, EU:C:2020:520, n.o 27), de 8 de maio de 2019, EN.SA. (C‑712/17, EU:C:2019:374, n.o 33), de 31 de janeiro de 2013, Stroy trans (C‑642/11, EU:C:2013:54, n.o 33), de 18 de junho de 2009, Stadeco (C‑566/07, EU:C:2009:380, n.o 36), e de 13 de dezembro de 1989, Genius (C‑342/87, EU:C:1989:635, n.o 18).


32      Acórdão de 27 de fevereiro de 2014, van der Ham e van der Ham‑Reijersen van Buuren (C‑396/12, EU:C:2014:98, n.o 53). V., a este respeito, também as minhas Conclusões no processo van der Ham e van der Ham‑Reijersen van Buuren (C‑396/12, EU:C:2013:698, n.os 73 e segs.).


33      Acórdãos de 20 de outubro de 1993, Balocchi (C‑10/92, EU:C:1993:846, n.o 25), e de 21 de fevereiro de 2008, Netto Supermarkt (C‑271/06, EU:C:2008:105, n.o 21).


34      Acórdão de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal) (C‑619/18, EU:C:2019:531, n.os 42 e 43).


35      V., as minhas Conclusões no processo van der Ham e van der Ham‑Reijersen van Buuren (C‑396/12, EU:C:2013:698, n.o 76).