Language of document : ECLI:EU:C:2019:244

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

ELEANOR SHARPSTON

apresentadas em 21 de março de 2019(1)

Processo C526/17

Comissão Europeia

contra

República Italiana

«Incumprimento de Estado — Diretiva 2004/18/CE, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços — Concessão de obras públicas — Prorrogação de uma concessão existente para a construção e gestão de uma autoestrada sem publicação de um anúncio de concurso»






1.        Em 1969, foi adjudicado um contrato de concessão de obras públicas, sem procedimento de contratação pública, para a construção de uma autoestrada entre Livorno e Civitavecchia, na costa oeste de Itália. Este contrato foi posteriormente alterado por novos contratos em 1987, 1999 e 2009. Nenhum dos novos contratos foi precedido de um procedimento de contratação pública.

2.        A Comissão Europeia instaurou uma ação por incumprimento contra a República Italiana nos termos do artigo 258.o TFUE. Considera que o contrato celebrado em 2009 constituiu uma alteração substancial do contrato inicial e que, por conseguinte, deveria ter sido realizado um procedimento de contratação pública em conformidade com a Diretiva 2004/18/CE (2). A República Italiana contesta esta alegação.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3.        O artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2004/18 define os «contratos de empreitada de obras públicas» como «contratos públicos que têm por objeto quer a execução, quer conjuntamente a conceção e a execução, quer ainda a realização, por qualquer meio, de trabalhos relacionados com uma das atividades na aceção do anexo I [(3)] ou de uma obra que satisfaça as necessidades especificadas pela entidade adjudicante». O artigo 1.o, n.o 2, estabelece ainda que «por “obra” entende‑se o resultado de um conjunto de trabalhos de construção ou de engenharia civil destinado a desempenhar, por si só, uma função económica e técnica». O artigo 1.o, n.o 3, define «concessão de obras públicas» como «um contrato com as mesmas características que um contrato de empreitada de obras públicas, com exceção de que a contrapartida das obras a efetuar consiste quer unicamente no direito de exploração da obra, quer nesse direito acompanhado de um pagamento».

4.        O artigo 2.o da Diretiva 2004/18 dispõe que «as entidades adjudicantes tratam os operadores económicos de acordo com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação e agem de forma transparente».

5.        O artigo 56.o dispõe que as normas que regulam as concessões de obras públicas «aplicam‑se a todos os contratos de concessão de obras públicas celebrados pelas entidades adjudicantes, cujo valor seja igual ou superior a 5.150.000 euros» (4).

6.        O artigo 58.o dispõe que:

«1.      As entidades adjudicantes que desejem recorrer à concessão de obras públicas darão a conhecer a sua intenção através de um anúncio.

2.      Os anúncios relativos às concessões de obras públicas devem conter as informações indicadas no anexo VII C e, se necessário, outras informações consideradas úteis pela entidade adjudicante, em conformidade com o formulário‑tipo adotado pela Comissão nos termos do n.o 2 do artigo 77.o

3.      Os anúncios serão publicados de acordo com os n.os 2 a 8 do artigo 36.o

4.      O artigo 37.o, relativo à publicação dos anúncios, é igualmente aplicável às concessões de obras públicas.»

7.        O artigo 61.o estabelece que:

«A presente diretiva não se aplica às obras complementares que não estejam previstas no projeto inicial da concessão nem no contrato inicial mas que, na sequência de uma circunstância imprevista, se tornem necessárias para a execução da obra tal como se encontra descrita no contrato, e que a entidade adjudicante atribua ao concessionário, desde que a adjudicação seja feita ao operador económico que executa esta obra:

–        quando estas obras complementares não possam ser, técnica ou economicamente, separadas do contrato inicial sem inconveniente grave para a entidade adjudicante, ou

–        quando estas obras, embora possam ser separadas da execução do contrato inicial, sejam absolutamente necessárias ao seu acabamento.

Contudo, o montante acumulado dos contratos adjudicados para as obras complementares não deve ultrapassar 50 % do montante da obra inicial que foi objeto da concessão.»

8.        O artigo 80.o, n.o 1, dispõe que «os Estados‑Membros devem pôr em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente diretiva até 31 de janeiro de 2006».

 Contexto factual e processual

 Contrato de 1969

9.        Em 23 de outubro de 1969, foi celebrado um contrato de concessão de obras públicas entre a entidade adjudicante Azienda Nazionale delle Strade («ANAS») e o operador económico Società Autostrada Tirenica («SAT») (5) (a seguir «contrato de 1969»).

10.      O artigo 1.o, n.o 1, do referido contrato descrevia o seu objetivo como a construção e gestão da autoestrada A 12, desde Livorno (Cecina) até Civitavecchia (a seguir «autoestrada») (6). O artigo 1.o, n.o 2, especificava que o comprimento total da autoestrada seria de «cerca de 237 km».

11.      O artigo 7.o estabelecia que «a concessão terminará no final do trigésimo ano após o início da exploração de toda a autoestrada; em qualquer caso, sem prejuízo das disposições do artigo 5.o, n.os 5 e 6, o prazo não pode exceder trinta anos contados a partir da data em que as obras descritas no plano de execução de obras gerais, referido no artigo 5.o, n.os 1 e 2, estejam concluídas».

 Contrato de 1987

12.      Em 14 de outubro de 1987 foi celebrado um novo contrato entre as mesmas partes (a seguir «contrato de 1987»). Segundo o Governo italiano, esse contrato substituiu o artigo 7.o do contrato de 1969 pela seguinte disposição:

«A duração da presente concessão é fixada em trinta anos a partir da data em que toda a autoestrada esteja aberta ao trânsito.»

 Contrato de 1999

13.      Em 7 de outubro de 1999 foi celebrado um novo contrato entre as mesmas partes (a seguir «contrato de 1999»). O seu artigo 2.o, n.o 1, previa que:

«O presente contrato regulará entre a autoridade concedente e a concessionária a exploração do troço de 36,6 km entre Livorno e Cecina, aberto ao trânsito em 3 de julho de 1993 e que constitui parte integrante da A 12, autoestrada Livorno‑Civitavecchia, cuja concessão para a construção e exploração foi concedida à S.A.T.»

14.      Além disso, o artigo 2.o, n.o 3, previa que:

«Quando estiverem preenchidos os requisitos jurídicos e factuais para a continuação do programa de construção em relação ao qual a concessão foi concedida, será acrescentada uma adenda para estabelecer um quadro contratual para a construção e a exploração de dois troços adicionais: Cecina‑Grosseto e Grosseto‑Civitavecchia.»

15.      O artigo 23.o, sob a epígrafe «Prazo da concessão», estabelecia que «a concessão termina em 31 de outubro de 2028».

 Contrato de 2009

16.      Em 11 de março de 2009 foi ainda celebrado um novo contrato entre as mesmas partes (a seguir «contrato de 2009»). Os considerandos deste contrato previam, nomeadamente, que:

«[E]m 7 de outubro de 1999, foi celebrado um novo contrato entre a ANAS e a SAT, aprovado pelo Decreto de 21 de dezembro de 1999, registado no Tribunal de Contas em 11 de abril de 2000, que substituiu o contrato anterior, de 23 de outubro de 1969, e a respetiva adenda de 14 de outubro de 1987, e que, nomeadamente, estabelecia que a concessão devia terminar em 31 de outubro de 2028».

17.      A cláusula 1.4 estabelecia que «[a]s partes acordam que não dispõem de qualquer direito, interesse ou reclamação, presente ou futuro, no que respeita ao contrato de 7 de outubro de 1999, ou de qualquer ato ou medida adotados antes da celebração do presente contrato».

18.      A cláusula 2.1 dispunha que:

«O presente contrato único regulará plena e exclusivamente a relação entre a autoridade concedente e o concessionário no que se refere à conceção, construção e exploração de todas as obras anteriormente atribuídas ao abrigo do contrato de concessão celebrado com a ANAS em 7 de outubro de 1999:

a)      A 12, Livorno — Cecina (Rosignano) 36,6 km (aberta ao trânsito em 3 de julho de 1993);

b)      Cecina (Rosignano) — Grosseto, 110,5 km;

c)      Grosseto — Civitavecchia, 95,5 km, num total de 242,6 km.»

19.      A primeira parte da cláusula 4.1 previa que:

«[T]endo em conta os períodos em que a execução das obras foi suspensa, conforme referido no preâmbulo e no artigo 143.o do Decreto‑Lei n.o 163/2006, a concessão para a conclusão da autoestrada Cecina (Rosignano) — Civitavecchia terminará em 31 de dezembro de 2046.»

20.      A segunda parte da cláusula 4.1 previa que «se a autoridade concedente não tiver aprovado o projeto final e o respetivo plano económico‑financeiro (EFP) para a execução do troço Cecina — Civitavecchia em 31 de dezembro de 2012, as partes determinarão as respetivas consequências económico‑financeiras, incluindo os custos de investimento incorridos, com referência à cessação da concessão na data inicialmente prevista, ou seja, 31 de outubro de 2028».

 Progressos das obras de construção

21.      Os considerandos do contrato de 2009 indicam que as obras de construção da autoestrada foram suspensas em virtude do artigo 11.o da Lei n.o 287, de 28 de abril de 1971 (7), e do artigo 18.o‑A do Decreto‑Lei n.o 376, de 13 de agosto de 1975 (8), posteriormente convertido na Lei n.o 492, de 16 de outubro de 1975 (9). Essa suspensão foi levantada posteriormente pelos artigos 9.o e 14.o da Lei n.o 531/1982, adotada em 12 de agosto de 1982 (10).

22.      É facto assente que o primeiro troço da autoestrada, que abrange 36,6 km de Livorno a Cecina (Rosignano), foi aberto ao trânsito em 3 de julho de 1993. O segundo e o terceiro troços de autoestrada, respetivamente de Cecina (Rosignano) a Grosseto e de Grosseto a Civitavecchia, não foram construídos nessa altura. Apenas pequenos troços foram, entretanto, concluídos (11).

23.      Os considerandos do contrato de 2009 indicam ainda que as obras de construção na autoestrada foram suspensas de novo nos termos do artigo 55.o, n.o 12, da Lei n.o 449, de 27 de dezembro de 1997 (12), e que essa suspensão foi levantada pela Lei n.o 443, de 21 de dezembro de 2001 (13). Segundo o Governo italiano, a Lei n.o 286, de 24 de novembro de 2006, e a Lei n.o 101, de 6 de junho de 2008, requeriam ainda que os contratos de concessão existentes fossem consolidados. Foi nesta base que o contrato de 2009 foi celebrado.

24.      Nem a Comissão nem o Governo italiano forneceram informações sobre eventuais alterações à legislação italiana que possam afetar a validade do contrato de concessão (14).

 Procedimento précontencioso

25.      Em 2009, a Comissão recebeu uma denúncia relativa à prorrogação do prazo (de 31 de outubro de 2028 a 31 de dezembro de 2046) para o contrato de concessão de obras adjudicadas à SAT. A Comissão deu seguimento a essa denúncia, que foi registada sob o número 2009/4154. A troca de comunicações entre a Comissão e a Itália indica que a Itália se comprometeu a reduzir o prazo em três anos, para 2043, e a submeter a adjudicação de todas as obras de construção da autoestrada a um processo de contratação pública. Com base neste compromisso, a Comissão decidiu não prosseguir com a denúncia n.o 2009/4154.

26.      Afigura‑se que a SAT afetou aproximadamente 30 % do valor das obras a empresas sob o seu controlo, em duas tranches, num montante total de, respetivamente, 34 724 661 euros e 117 323 225 euros, respetivamente em 15 de dezembro de 2009 e 30 de março de 2012.

27.      Em 22 de abril de 2014, a Comissão enviou um ofício à Itália declarando a sua posição oficial de que, ao prorrogar o prazo do contrato de concessão através do contrato de 2009, sem recorrer a um procedimento de contratação pública, a Itália tinha violado a Diretiva 2004/18, nomeadamente os seus artigos 2.o e 58.o, e que o artigo 61.o da mesma diretiva não era aplicável ao caso concreto.

28.      Em junho de 2014, a Itália ofereceu‑se para colocar a concurso 70 % das obras e reiterou a sua proposta de reduzir o prazo da concessão em três anos.

29.      Em 17 de outubro de 2014 a Comissão enviou à Itália um parecer fundamentado. Recusou‑se a aceitar que 30 % das obras não estivessem sujeitas a um procedimento de contratação pública. A Comissão considerou que a prorrogação do contrato até 2046 tinha sido o equivalente à adjudicação de um novo contrato e que «como a ANAS tinha celebrado um contrato com a SAT que prorrogou a data de termo da concessão para a A 12, autoestrada Civitavecchia‑Livorno, de 31 de outubro de 2028 para 31 de dezembro de 2046, sem publicação prévia de um anúncio de concurso, a República Italiana não tinha cumprido as obrigações que lhe incumbiam por força dos artigos 2.o e 58.o da Diretiva 2004/18/CE».

30.      Na sequência do parecer fundamentado, a Itália propôs vários compromissos com o objetivo de resolver o litígio com a Comissão. Assim:

–        em 27 de outubro de 2014, a Itália enviou à Comissão um projeto de contrato com uma redução de três anos do prazo e um compromisso de submeter a concurso a adjudicação a terceiros de 100 % das obras;

–        em 26 de junho de 2015, a Itália enviou à Comissão um projeto de contrato com uma redução de seis anos do prazo e um compromisso de submeter a concurso a adjudicação de 100 % das obras;

–        em 22 de julho de 2015, a Itália enviou à Comissão um projeto de contrato que propunha uma redução do prazo de 2046 para 2040 e a adjudicação de 100 % das obras através de um procedimento de contratação pública. Além disso, a SAT ficaria privada do seu contrato se não adjudicasse essas obras a terceiros, e a data do termo do prazo seria antecipada para 2028 se o projeto de contrato não fosse aprovado até 28 de fevereiro de 2017;

–        em 24 de julho de 2015, a Itália apresentou novas explicações sobre a razão pela qual tinha sido necessário prorrogar o prazo, indicando que os atrasos nas obras tinham sido causados, nomeadamente, por falta de fundos públicos e preocupações relativas à segurança pública.

31.      Em 8 de março de 2016, a Comissão solicitou à Itália que tomasse todas as medidas necessárias para terminar o contrato de concessão de obras públicas até 31 de outubro de 2028, conforme já previsto pelo contrato de 1999.

32.      Em resposta, em 18 de novembro de 2016, a Itália enviou provas à Comissão, sob a forma de ato notarial, em como a SAT se tinha comprometido a submeter a concurso todas as obras. A Itália suscitou igualmente a possibilidade de antecipar a data do termo do prazo de concessão de 2046 para 2038.

 Procedimento contencioso

33.      A Comissão considerou as respostas da Itália inadequadas. Por conseguinte, intentou uma ação por incumprimento, nos termos do artigo 258.o TFUE, em 4 de setembro de 2017, destinado a obter a declaração de que, «ao prorrogar o termo do contrato de empreitada relativo à autoestrada A 12 Civitavecchia‑Livorno até 31 de dezembro de 2046, sem publicação de qualquer anúncio de concurso, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 2.o e 58.o da Diretiva 2004/18/CE […], com a redação que lhe foi dada posteriormente». Além disso, a Comissão solicitou a condenação da República Italiana nas despesas do processo.

34.      A Comissão e o Governo italiano apresentaram observações escritas, e o Governo italiano apresentou uma resposta escrita a uma questão escrita do Tribunal de Justiça, em relação à qual a Comissão apresentou as suas observações.

35.      Essa questão dizia respeito aos investimentos já realizados pela SAT na construção da autoestrada e aos investimentos estimados até 2028, juntamente com o investimento total relativamente ao qual foi alegado que a SAT não receberia uma remuneração adequada se a concessão terminasse em 2028. Na sua resposta de 3 de outubro de 2018 ao Tribunal de Justiça, o Governo italiano explicou que:

i)      Entre 2009 e 2017, a SAT investiu 253,136 milhões de euros em dois troços de autoestrada, de Cecina (Rosignano) a San Pietro em Palazzi, e de Tarquina Sud a Civitavecchia, tendo ambos, desde então, sido abertos ao trânsito.

ii)      No plano económico e financeiro a partir de 2011, com base no contrato de 2009, estava estimado que a SAT investiria 3 411,7 milhões de euros para finalizar a autoestrada até 2028, dos quais os 253,136 milhões de euros identificados supra abrangiam as obras planeadas para o período de 2009 a 2015. Se o contrato terminasse em 2028, a SAT não iria auferir o valor estimado de 1 135,7 milhões de euros durante o período de 2028 a 2046.

iii)      No plano económico e financeiro a partir de 2016, com base nos compromissos propostos pela Itália à Comissão durante o procedimento pré‑contencioso, o investimento total a efetuar pela SAT até 2023 seria de 1 400 milhões de euros. Dado que já foram investidos 253,136 milhões de euros, estão por investir 1 146,86 milhões de euros. Se o contrato terminasse em 2028, a SAT não iria auferir o valor estimado de 505,185 milhões de euros entre 2028 e 2038 (uma vez que esta é uma das datas para o termo da concessão que a Itália tinha proposto durante o procedimento pré‑contencioso) (15).

36.      Nas suas observações de 25 de outubro de 2018 sobre a referida resposta escrita, a Comissão salientou que o calendário de investimentos utilizado pelo Governo italiano não coincidia com o calendário especificado na pergunta do Tribunal de Justiça. A Comissão também observou que, de acordo com o próprio sítio web da SAT, o troço de autoestrada de Cecina (Rosignano) a San Pietro in Palazzi tinha sido aberto em 2012, e o de Tarquina Sud a Civitavecchia em 2016. A Comissão observou que tinha sido indicado que o troço total de autoestrada agora concluído era de 54,6 km. Tal representa mais 18 km para além dos 36,6 km concluídos em 1993. Por último, a Comissão observou que, de acordo com artigos da imprensa, o Governo italiano tinha desistido da continuação das obras da autoestrada planeada em 2017, preferindo, ao invés, renovar as estradas existentes (16).

37.      Foi realizada uma audiência em 12 de dezembro de 2018, na qual a Itália e a Comissão apresentaram novas observações e responderam às questões do Tribunal de Justiça.

 Observações preliminares

 Quanto à aplicabilidade da Diretiva 2004/18

38.      A Itália contesta a aplicabilidade da Diretiva 2004/18 a um contrato inicialmente celebrado em 1969, antes do desenvolvimento de qualquer jurisprudência ou de direito derivado aplicável em matéria de contratação pública.

39.      Não partilho as dúvidas da Itália. Embora um contrato inicial possa estar fora do âmbito das regras de contratação pública, isso não significa que todas as alterações ao contrato devam também ficar fora do âmbito das regras de contratação pública.

40.      No Acórdão Belgacom (17), o Tribunal de Justiça declarou que «o princípio da segurança jurídica, que é um princípio geral do direito da União, é suscetível de justificar que os efeitos jurídicos de um contrato sejam respeitados incluindo, da forma estabelecida neste princípio, no caso de um contrato celebrado antes de o Tribunal de Justiça se ter pronunciado sobre as implicações do direito primário relativamente aos contratos deste tipo e que, a posteriori, se revela ser contrário a algumas destas implicações».

41.      Por conseguinte, apesar de o Tribunal de Justiça ter também estabelecido que os princípios fundamentais da contratação pública são aplicáveis, em determinadas circunstâncias, aos contratos formalmente excluídos do âmbito de aplicação do direito da União em matéria de contratação pública (18), esses princípios fundamentais (neste caso, em especial, os princípios da igualdade de tratamento e da transparência) não se podem aplicar a um contrato celebrado antes de os princípios em questão terem sido estabelecidos pelo Tribunal de Justiça.

42.      O primeiro instrumento jurídico da União a regular a adjudicação de concessões de obras públicas foi a Diretiva 89/440/CEE do Conselho, de 18 de julho de 1989, que alterou a Diretiva 71/305/CEE, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas (19). Esta diretiva devia ser transposta até 19 de julho de 1990 (20). Por conseguinte, é evidente que não podia ser aplicada ao contrato de 1969.

43.      No entanto, o Tribunal de Justiça também declarou que, quando um contrato foi celebrado antes da adoção de legislação da União em matéria de contratação pública, e, portanto, permanece fora do âmbito de aplicação da referida legislação, tanto ratione materiae como temporis, qualquer alteração substancial ao contrato deve ser apreciada à luz da legislação da União em vigor no momento da alteração. Em particular, quando a vontade das partes for renegociar os termos essenciais do contrato, a aplicação das regras da União em matéria de contratação pública pode ser justificada. Em ações por incumprimento (como a presente), o ónus da prova recai sobre a Comissão (21).

44.      É pacífico que o contrato em causa está abrangido pela definição de um contrato de concessão de obras públicas na aceção do artigo 1.o, n.o 3, da Diretiva 2004/18. Além disso, ultrapassa claramente o limiar estabelecido no artigo 56.o da referida diretiva, conforme alterada. Por conseguinte, o contrato de 2009 também é abrangido ratione materiae pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2004/18, sendo também abrangido ratione temporis.

45.      Daqui resulta que qualquer alteração imposta pelo contrato de 2009 deve ser avaliada ao abrigo da Diretiva 2004/18. Conforme explicado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão pressetext Nachrichtenagentur (22), o elemento decisivo é saber se a alteração pode ser considerada «substancial».

46.      Saliento igualmente que, apesar de poderem ser levantadas questões sobre se os contratos de 1987 e 1999 respeitavam o direito da União em matéria de contratação pública, não há razão para o Tribunal de Justiça abordar essas questões no presente processo. A Comissão só contestou a conformidade do contrato de 2009 com o direito da União. Por conseguinte, referir‑me‑ei ao e, se for caso disso, interpretarei os contratos precedentes nas presentes conclusões apenas na medida em que possam contribuir para a compreensão da questão de saber se o contrato de 2009 introduziu alterações substanciais na relação contratual entre a ANAS e a SAT.

 Apreciação jurídica

 Processo da Comissão

47.      Impende sobre a Comissão o ónus da prova de cada uma das alegações que faz neste processo (23). Por conseguinte, é importante clarificar a acusação feita pela Comissão contra a Itália.

48.      A Comissão alega que a Itália violou os artigos 2.o e 58.o da Diretiva 2004/18 ao não realizar um procedimento de contratação pública para efetuar uma alteração substancial a um contrato (24). A base factual para a alegação é relativamente concisa, nomeadamente, que o contrato de 2009 prorrogou o prazo da concessão de obras públicas de 2028, a data limite estabelecida no contrato de 1999, para 2046. O Governo italiano critica a simplicidade desta alegação. Na sua opinião, a data de 2028, fixada pelo contrato de 1999, dizia respeito apenas a um dos troços da autoestrada, ao passo que os restantes troços estavam sujeitos a um prazo a ser fixado numa data posterior. No entanto, o Governo italiano admite que o contrato de 2009 estabelece agora o prazo para toda a concessão da autoestrada em 2046.

49.      Não creio que esta argumentação do Governo italiano afete a admissibilidade do procedimento da Comissão. A posição da Comissão foi comunicada de forma clara, permitindo assim ao Governo italiano organizar a sua defesa relativamente à «legislação comunitária em vigor no termo do prazo indicado pela Comissão ao Estado‑Membro em causa para se conformar com o seu parecer fundamentado» (25).

50.      O Tribunal de Justiça só pode proceder à análise jurídica das infrações alegadas quando tiver uma visão clara das disposições contratuais em vigor. É, por conseguinte, necessário analisar o objeto do contrato original de 1969 e, em especial, a data de cessação que estabeleceu, e, em seguida, analisar as alterações introduzidas pelos contratos subsequentes.

 Interpretação dos contratos

51.      O artigo 7.o do contrato de 1969 previa o que pode ser qualificado como um prazo variável de «até 30 anos» para a concessão, a partir da «conclusão da totalidade da autoestrada de Livorno para Civitavecchia». Este prazo foi alterado pelo contrato de 1987 de modo a ser um prazo exato de 30 anos, em vez de «até 30 anos».

52.      A fixação de uma data de cessação definitiva (2028) no contrato de 1999 aplica‑se a todo o contrato (a interpretação em sentido «lato»), ou apenas ao primeiro troço de autoestrada de Livorno para Cecina (Rosignano), que foi aberta ao trânsito em 1993, mas que abrange apenas 36,6 km, dos 240 km projetados para toda a autoestrada (a interpretação «restritiva»)? Embora normalmente não devam existir dúvidas quanto à data de cessação de um contrato, existem aqui dúvidas sobre quais os aspetos do contrato de 1969 abrangidos por esta nova data de cessação.

53.      O Governo italiano prefere a interpretação restritiva; a Comissão, a interpretação em sentido lato.

54.      A favor de uma interpretação restritiva está o facto de o artigo 2.o, n.o 1, do contrato de 1999 prever expressamente que o referido contrato só é válido para o primeiro troço de autoestrada de Livorno para Cecina, enquanto o artigo 2.o, n.o 3, prevê que devem ser acordadas as condições necessárias para os restantes dois troços de autoestrada depois de ter sido adotada a legislação que permita a continuação das obras nesses troços. Esta interpretação conduz, por conseguinte, à conclusão de que o contrato de 1999 apenas se aplica a esse primeiro troço de autoestrada, e não à totalidade da estrada.

55.      A favor de uma interpretação em sentido lato está o facto de o artigo 23.o do contrato de 1999 prever que a concessão termina em 2028, sem aparentemente estabelecer qualquer distinção entre os diferentes troços da autoestrada. Tal parece ser fundamentado pelos considerandos do contrato de 2009, que explicam que os contratos de 1969 e 1987, que se aplicavam à totalidade da autoestrada sem distinção, tinham de ser alterados pelo contrato de 1999 de molde a pôr fim à concessão em 2028 (26).

56.      A segunda parte da cláusula 4.1 do contrato de 2009 prevê expressamente que a data de cessação «inicial» de 2028 se aplica aos restantes troços de Cecina (Rosignano) a Civitavecchia (27). A primeira parte da cláusula 4.1 do contrato de 2009 também estabelece uma nova data de cessação em 2046, igualmente sem fazer qualquer distinção entre os diferentes troços da autoestrada (28).

57.      Por último, a resposta do Governo italiano à questão colocada pelo Tribunal de Justiça e as observações da Comissão sobre o assunto tornaram claro que foram realizadas obras nos restantes troços de autoestrada antes da adoção do contrato de 2009. Esta circunstância milita contra o favorecimento de uma interpretação restritiva.

58.      Por conseguinte, prefiro a interpretação em sentido lato do contrato de 1999, apresentada pela Comissão; e considero que o artigo 23.o do contrato de 2009 alterou o prazo de cessação da concessão para a totalidade da autoestrada de 2028, conforme estabelecido pelo Contrato de 1999, para 2046.

59.      No entanto, mesmo que fosse escolhida a interpretação mais restritiva, saliento que o contrato de 2009 altera a data de cessação também para o segundo e terceiro troços da autoestrada. Isto pode ser entendido com base no artigo 2.o, n.o 3, do contrato de 1999, que previa que as condições para o segundo e terceiro troços da autoestrada fossem estabelecidas em data posterior.

60.      Nestes termos, as datas de cessação especificadas nos contratos de 1969 e 1987 deixaram posteriormente de ser aplicáveis a qualquer parte da autoestrada. Por conseguinte, a fixação de uma data de cessação no contrato de 2009 constituiu uma alteração também para o segundo e terceiro troços da autoestrada.

61.      Neste contexto, recordo que a tese de que um contrato celebrado anteriormente não pode ser contestado ao abrigo de legislação posterior, ou com base em princípios jurídicos estabelecidas posteriormente, deve ser considerada uma exceção, a qual, em conformidade com jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, deve ser interpretada restritivamente (29). Deste modo, uma vez que o contrato de 1969 foi alterado pelo Contrato de 1999, não pode ser posteriormente alterado para condições mais favoráveis em conformidade com o contrato original.

62.      Assim, considero que, tendo alterado os contratos de 1969 e 1987 no contrato de 1999, ao determinar que as condições do contrato seriam acordadas numa fase posterior, o Governo italiano não pode alegar que essas condições, definidas pelo contrato de 2009, correspondem mais ou menos às condições originais dos contratos de 1969 e 1987 e, por esta razão, devem ser excluídas das obrigações da contratação pública.

63.      No entanto, mesmo que o que se pode designar como uma abordagem «muito restritiva» fosse adotada, de modo a que as disposições do contrato de 2009 relativamente ao segundo e terceiro troços da autoestrada fossem comparadas apenas com as condições estabelecidas nos contratos de 1969 e 1987, não deixa de ser verdade que a data de cessação foi alterada de um período variável de 30 anos para um período definitivo de 37 anos. Assim, mesmo escolhendo essa interpretação muito restritiva, o essencial das alegações da Comissão permanece intacto. As condições do contrato foram alteradas.

64.      Limito‑me a acrescentar que, na medida em que existem dificuldades e incertezas sobre a redação adequada, e o significado, dos diferentes contratos, a ANAS, e através desta o Governo italiano, devem assumir a responsabilidade dos textos contratuais que foram acordados. Em caso de dúvida, um texto ambíguo não deve automaticamente ser interpretado a seu favor.

65.      Passo agora à questão de saber se as alterações introduzidas pelo contrato de 2009 podem ser consideradas substanciais.

 Alterações substanciais

66.      O Tribunal de Justiça estabeleceu uma lista não exaustiva de circunstâncias e condições em que uma alteração deve ser considerada como substancial. Assim, o Tribunal de Justiça declarou no Acórdão pressetext Nachrichtenagentur, já referido, que uma alteração pode ser considerada substancial quando:

–        apresenta características substancialmente diferentes das do contrato inicial e seja, consequentemente, suscetível de demonstrar a vontade das partes de renegociar os termos essenciais do contrato; ou

–        se introduzida no procedimento de adjudicação inicial, teria permitido admitir ou aceitar outros proponentes; ou

–        alarga o contrato, numa medida importante, a serviços inicialmente não previstos; ou

–        modifica o equilíbrio económico do contrato a favor do adjudicatário de uma forma que não estava prevista nos termos do contrato inicial (30).

67.      Na minha opinião, dois dos critérios para a alteração substancial que o Tribunal de Justiça estabeleceu no Acórdão pressetext Nachrichtenagentur estão preenchidos no caso em apreço. As partes pretendiam claramente renegociar os termos essenciais do contrato. Fizeram‑no de uma forma que veio alterar o equilíbrio económico a favor do adjudicatário.

68.      Começo por analisar se a data de cessação de um contrato pode ser considerada um «termo essencial do contrato» que «modifica o equilíbrio económico». Os contratos controvertidos constituem uma concessão de obras públicas. Quanto mais tempo o concessionário puder explorar essa concessão, mais poderá gerar lucros quando as obras estiverem concluídas e tiver recuperado os custos de construção através das portagens cobradas pela utilização da autoestrada.

69.      O prazo negociado entre as partes é, em minha opinião, muito claramente um aspeto essencial de qualquer contrato que rege semelhante concessão. O período de exploração de 29 anos do contrato de 1999 (até 2028) foi prorrogado por um período adicional de 18 anos no contrato de 2009 (até 2046). Deve considerar‑se que isto constitui uma alteração aos termos essenciais e, ao mesmo tempo, uma alteração do equilíbrio económico do contrato a favor do concessionário.

70.      É verdade que, se se adotar a abordagem muito restritiva, e o período de exploração fixo de 37 anos no contrato de 2009 for, por conseguinte, comparado com o período variável de exploração de 30 anos no contrato de 1969, torna‑se mais difícil determinar qual dos dois é mais benéfico do ponto de vista económico para o concessionário.

71.      No entanto, já expus acima as razões pelas quais considero que a interpretação mais restritiva não é facilmente justificada pelos textos. (31) Além disso, sempre que — como aqui — há uma alteração que de qualquer modo altera fundamentalmente o contrato, considero que cabe ao Governo italiano demonstrar que essa alteração não deve, contudo, ser considerada uma «alteração substancial» na aceção do Acórdão pressetext Nachrichtenagentur (32). Não considero que o Governo italiano o tenha feito aqui.

72.      Além disso, se o Tribunal de Justiça concluísse que apenas o primeiro troço da autoestrada (cerca de 36 km), tinha sido objeto de alterações substanciais, a alegação da Comissão continuaria a ser comprovada relativamente a esse setor.

73.      Não me parece que seja importante o facto de o primeiro troço da autoestrada constituir apenas 15 % de um compromisso contratual maior para a construção de 240 km de autoestrada. Tal não pode afetar a conclusão de que as obrigações relativas à contratação pública não foram cumpridas.

74.      Por conseguinte, considero que o contrato de 2009 constituiu uma alteração substancial ao regime contratual preexistente e devia ter sido, portanto, sujeito a um procedimento de contratação pública.

75.      Passo agora à questão de saber se o Governo italiano pode invocar quaisquer fundamentos que o isentem dessa obrigação.

 Fundamentos de isenção

76.      O Governo italiano referiu‑se a elementos de facto e de direito que ocorreram desde 1969, nomeadamente fatores externos fora do controlo da SAT que contribuíram para o atraso na construção da autoestrada e, por conseguinte, para a possibilidade de exploração da concessão. O Governo italiano alega que foi necessária uma prorrogação do período de exploração a fim de «garantir o equilíbrio do contrato». Alega que se o período de exploração não tivesse sido prorrogado, esse equilíbrio teria sido prejudicado.

77.      Não aceito este argumento por duas razões.

78.      Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça já deixou claro que «nem 1) o facto de a alteração substancial dos termos de um contrato público ser motivada não pela vontade deliberada da entidade adjudicante e do adjudicatário de renegociar os termos do contrato, mas da sua vontade de alcançar um acordo extrajudicial relativo às dificuldades objetivas surgidas no âmbito da execução do referido contrato, nem 2) o caráter objetivamente aleatório de certas realizações podem justificar que essa alteração seja decidida sem respeitar o princípio da igualdade de tratamento de que devem beneficiar todos os operadores potencialmente interessados num contrato público» (33).

79.      Em segundo lugar, resulta claramente dos factos que resumi acima (34) que os atrasos na construção da autoestrada se ficaram a dever, sobretudo, a determinadas iniciativas legislativas desenvolvidas pelo próprio Governo italiano. Independentemente das razões para a introdução da legislação em causa, não deixa de ser verdade que o Governo italiano fez uma escolha explícita ao adotar uma legislação que afetava diretamente a capacidade da SAT para construir e explorar a autoestrada de acordo com o calendário inicialmente previsto.

80.      Decorre da jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que «um Estado‑Membro não pode invocar dificuldades práticas ou administrativas para justificar o incumprimento das obrigações e a inobservância dos prazos determinados numa diretiva. O mesmo sucede quanto às dificuldades financeiras, que compete aos Estados‑Membros superar tomando as medidas apropriadas para tal» (35). Por conseguinte, embora o Governo italiano possa ter tido razões perfeitamente válidas para tomar as medidas que afetaram a concessão de obras públicas previamente adjudicadas, e embora o Governo italiano possa ter pretendido atenuar o impacto dessa legislação na SAT prorrogando o período de exploração, não o poderia ter feito em violação da legislação da União em matéria de contratação pública.

81.      O Governo italiano argumenta ainda que a inexistência de um procedimento de contratação pública em 2009 (derrogando assim o princípio da igualdade de tratamento) pode ser justificada por referência ao direito da SAT de invocar os princípios da segurança jurídica e da confiança legítima.

82.      Ao argumentar assim, o Governo italiano parece apoiar‑se num argumento a contrario fundado no Acórdão do Tribunal de Justiça Promoimpresa e o., onde o Tribunal de Justiça decidiu que «as concessões em causa nos processos principais foram adjudicadas quando já se previa que os contratos que apresentavam um interesse transfronteiriço certo deviam ser sujeitos a uma obrigação de transparência, pelo que o princípio da segurança jurídica não pode ser invocado para justificar uma diferença de tratamento proibida nos termos do artigo 49.o TFUE» (36).

83.      Pelo que entendi, o Governo italiano baseia‑se, a este respeito, no facto (indiscutível) de que o contrato de 1969 foi celebrado antes de as regras e os princípios da União em matéria de contratação pública se tornarem aplicáveis, de forma a invocar que deveria, por conseguinte, permanecer isento de controlo ao abrigo da legislação da União. No entanto, a questão não é de saber se o contrato de 1969 está em conformidade com as regras relevantes da União, mas antes de saber se o contrato de 2009 está (37).

84.      Além disso, tal como a Comissão observou com razão, o princípio da segurança jurídica não pode «ser invocado para dar a um contrato uma extensão contrária aos princípios da igualdade de tratamento e de não discriminação, bem como ao dever de transparência que deles decorre. É indiferente, a este respeito, que esta extensão possa constituir uma solução razoável idónea para pôr termo a um litígio surgido entre as partes em causa, por razões totalmente independentes da sua vontade, a respeito do âmbito do contrato que as vincula» (38). A meu ver, não há qualquer razão para não aplicar essa máxima ao contrato de 1969.

85.      A própria natureza da uma concessão é o facto de o risco dever ser transferido para o concessionário (39). Assim, em contraste com outros tipos de contrato, o concessionário (no caso em apreço, a SAT) deve aceitar o elemento inerente de risco futuro ao celebrar o contrato inicial. A prudência comercial comum assegurará que a necessidade de ter em conta esse risco irá afetar a proposta apresentada e/ou as negociações detalhadas para o próprio contrato.

86.      Importa salientar que o Tribunal de Justiça efetivamente entendeu que as disposições do caderno de encargos inicial do procedimento de contratação pública podem permitir expressamente alterações substanciais subsequentes (40).

87.      Neste contexto, o Governo italiano podia ter procurado argumentar que o artigo 2.o, n.o 3, do contrato de 1999, segundo o qual as condições contratuais inerentes ao segundo e terceiro troços da autoestrada deviam ser concluídas numa fase posterior «quando os requisitos jurídicos e factuais para a continuação do programa de construção para o qual tinha sido concedida uma concessão estivessem preenchidos» deviam ser tratadas como uma reserva análoga a uma reserva no caderno de encargos.

88.      Na minha opinião, esse não pode ser o caso por duas razões.

89.      Em primeiro lugar, não existia «caderno de encargos» inicial resultante de um procedimento de contratação pública, uma vez que nenhum dos contratos em causa foi sujeito a este procedimento.

90.      Em segundo lugar, o direito de utilizar semelhante reserva como base para uma posterior alteração substancial deve ser considerado uma exceção ao princípio geral de que todos os elementos necessários resultantes de um procedimento de contratação pública devem estar refletidos no caderno de encargos elaborado pela entidade adjudicante. De acordo com jurisprudência assente, as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva. Seria inaceitável que um contrato, que foi inicialmente isento de obrigações relativas à contratação pública, pudesse posteriormente, ser «complementado» mediante a inclusão de uma reserva que introduzisse uma alteração substancial numa altura em que esse contrato estaria de outra forma sujeito a obrigações relativas à contratação pública ao abrigo da legislação da União.

91.      Assim, ainda que o contrato de 1999 fosse interpretado no sentido de que continha uma reserva para futuras alterações, essa reserva não podia servir de fundamento para exonerar o contrato de 2009 da obrigação de conformidade com a Diretiva 2004/18.

92.      Por último, não considero que a Itália possa basear‑se no artigo 61.o da Diretiva 2004/18, que permite alterações no que diz respeito às «obras complementares». A alteração substancial entre 1999 e 2009 não teve como objetivo as obras iniciais a empreender pelo concessionário, mas o tempo concedido à SAT para obter lucro das mesmas após a sua conclusão. Esta alteração não está abrangida pelo âmbito do artigo 61.o ratione materiae.

93.      Na minha opinião, a alteração do prazo da concessão introduzida pela cláusula 4.1 do contrato de 2009 constitui uma alteração substancial, conforme definida no Acórdão pressetext Nachrichtenagentur (41), já referido, independentemente de tal ser examinado em relação ao contrato de 1999 (como alega a Comissão) ou em relação ao contrato de 1969 (a abordagem proposta pelo Governo italiano). A celebração do contrato de 2009, sem seguir um procedimento de contratação pública constitui, portanto, uma violação da obrigação de igualdade de tratamento do artigo 2.o da Diretiva 2004/18 e da obrigação de publicar um anúncio de concurso, prevista no artigo 58.o da mesma.

 Despesas

94.      Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Uma vez que considero que o Tribunal de Justiça deve julgar procedente o pedido da Comissão Europeia, a República Italiana deve ser condenada nas despesas.

 Conclusão

95.      Por conseguinte, à luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que:

1)      declare que a prorrogação, de 2028 para 2046, do prazo de concessão de obras públicas para a construção e gestão da autoestrada A 12, introduzida em 2009, constituiu uma alteração substancial do contrato de 1999 celebrado entre a entidade adjudicante Azienda Naztionale delle Strade e a concessionária Società Autostrada Tirenica; e que, ao não sujeitar esta alteração a um procedimento de contratação pública, a República Italiana não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 2.o e 58.o da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, conforme alterada;

2)      condene a República Italiana nas despesas.


1      Língua original: inglês.


2      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO 2004, L 134, p. 114), revogada pela Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos (JO 2014, L 94, p. 65).


3      O anexo I contém a «construção de estradas».


4      Conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.o 1422/2007 da Comissão, de 4 de dezembro de 2007, que altera as Diretivas 2004/17/CE e 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativamente aos limiares de valor aplicáveis nos processos de adjudicação dos contratos públicos (JO 2007, 317, p. 34).


5      Em rigor, o mar Tirreno (il mar Tirreno), do qual o operador económico retira o seu nome, é a parte do Mediterrâneo na costa oeste da Itália que é delimitada a sul pela Sicília, a oeste pela Sardenha e pela Córsega, e a norte pela Ilha de Elba, incluindo o Golfo di Follonica. As águas a partir daí até Livorno, por si só, fazem parte do mar da Ligúria. V. sítio Web do Istituto idrografico della Marina (http://www.marina.difesa.it).


6      O conceito de autoestrada, tal como é utilizado nas presentes conclusões, é definido no artigo 1.o, n.o 2, do contrato de 1969 como «estrada com duas faixas de rodagem, cada uma das quais com 7,5 metros, com um separador central e ladeada por uma faixa de emergência».


7      Legge n.o 287, Modifiche ed integrazioni todos’attuale legislazione autostradale (Lei n.o 287, que altera e complementa a legislação relativa às autoestradas), GURI n.o 137, de 1 de junho de 1971.


8      Decreto‑legge n.o 376, Provvedimenti per il rilancio dell’economia riguardanti le esportazioni, l’edilizia e le opere pubbliche (Decreto‑Lei n.o 376, que estabelece medidas de recuperação económica para exportações, construção e obras públicas), GURI n.o 218, de 18 de agosto de 1975.


9      Legge n.o 492, Conversione in legge, con modificazioni, del decreto‑legge 13 agosto 1975, n.o 376, concernente provvedimenti per il rilancio dell’economia riguardanti le esportazioni, l’edilizia e le opere pubbliche (Conversão em lei, com alterações, do Decreto‑Lei n.o 376, de 13 de agosto de 1975, relativo a medidas destinadas a relançar a economia relativa às exportações, construção e obras públicas), GURI n.o 276, de 17 de outubro de 1975.


10      Legge n.o 531, Piano decennale per la viabilità di grande comunicazione e misure di riassetto del settore autostradale (Lei n.o 531, Introdução de um plano decenal para a viabilidade dos grandes eixos rodoviários e medidas de reestruturação no setor das autoestradas), GURI n.o 223, de 14 de agosto de 1982.


11      V. n.o 36, infra.


12      Legge n.o 449, Misure per la stabilizzazione della finanza pubblica (Lei n.o 449, que introduz medidas para estabilizar as finanças públicas), GURI n.o 302, de 30 de dezembro de 1997.


13      Legge n.o 443 Delega al Governo in materia di infrastrutture ed Insediamenti produttivi strategici ed Altri interventi per il rilancio delle attività produttive (Lei n.o 443, que estabelece uma delegação ao Governo para infraestruturas e instalações de produção estratégicas, bem como outras intervenções para o relançamento das atividades de produção), GURI n.o 299, de 27 de dezembro de 2001.


14      Afigura‑se que o itinerário proposto para a construção desta autoestrada deu lugar a controvérsia e que foram levantadas questões sobre, nomeadamente, o seu impacto ambiental (v. wikivisually.com). Não me envolvo nesse debate nas presentes conclusões.


15      V. n.o 30, supra.


16      A Comissão mencionou um artigo no Il Fato quotidiano, com data de 15 de abril de 2017, que anexou às suas observações.


17      Acórdão de 14 de novembro de 2013 (C‑221/12, EU:C:2013:736, n.o 40 e jurisprudência referida).


18      V., no que diz respeito ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, Acórdão de 7 de dezembro de 2000, Telaustria e Telefonadress (C‑324/98, EU:C:2000:669, n.o 60).


19      JO 1989, L 210, p. 1. A Diretiva 71/305 foi subsequentemente substituída pela Diretiva 93/37/CEE do Conselho, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas (JO 1993, L 199, p. 54), que, por sua vez, foi substituída pela Diretiva 2004/18.


20      V. artigo 3.o da Diretiva 89/440.


21      Acórdão de 5 de outubro de 2000, Comissão/França (C‑337/98, EU:C:2000:543, n.os 41 a 45).


22      Acórdão de 19 de junho de 2008 (C‑454/06, EU:C:2008:351); v. também n.os 66 e segs., infra.


23      V., nomeadamente, Acórdãos de 25 de maio de 1982, Comissão/Países Baixos (C‑96/81, EU:C:1982:192, n.o 6), e de 11 de julho de 2018, Comissão/Bélgica (C‑356/15, EU:C:2018:555, n.o 25).


24      V. n.o 27, supra.


25      Acórdão de 9 de novembro de 1997, Comissão/Itália (C‑365/97, EU:C:1999:544, n.o 32).


26      V. n.o 16, supra.


27      V. n.o 20, supra.


28      V. n.o 19, supra.


29      Acórdão de 13 de janeiro de 2005, Comissão/Espanha (C‑84/03, EU:C:2005:14, n.o 58).


30      Acórdão de 19 de junho de 2008 (C‑454/06, EU:C:2008:351, n.os 34 a 37). Este processo dizia respeito à aplicação da Diretiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas (JO 1992, L 209, p. 1), mas não vejo nenhuma razão válida para aplicar um critério diferente no que diz respeito a «alterações substanciais» no contexto da Diretiva 2004/18. V. também Acórdãos de 5 de outubro de 2000, Comissão/França (C‑337/98, EU:C:2000:543, n.o 46), e de 11 de julho de 2013, Comissão/Países Baixos (C‑576/10, EU:C:2013:510, n.o 46).


31      V. n.os 63 e 64, supra.


32      Acórdão de 19 de junho de 2008 (C‑454/06, EU:C:2008:351, n.os 34 a 37).


33      Acórdão de 7 de setembro de 2016, Finn Frogne (C‑549/14, EU:C:2016:634, n.o 32).


34      V. n.os 21 a 23, supra.


35      Acórdão de 18 de outubro de 2012, Comissão/Reino Unido (C‑301/10, EU:C:2012:633, n.o 66 e jurisprudência referida).


36      Acórdão de 14 de julho de 2016 (C‑458/14 e C‑67/15, EU:C:2016:558, n.o 73).


37      V. n.o 46, supra.


38      Acórdão de 14 de novembro de 2013,  Belgacom (C‑221/12, EU:C:2013:736, n.o 40).


39      Acórdão de 10 de março de 2011, Privater Rettungsdienst und Krankentransport Stadler (C‑274/09, EU:C:2011:130, n.os 24 a 26).


40      Acórdão de 7 de setembro de 2016, Finn Frogne (C‑549/14, EU:C:2016:634, n.os 36 e 37).


41      Acórdão de 19 de junho de 2008 (C‑454/06, EU:C:2008:351, n.os 34 a 37).