Language of document : ECLI:EU:T:2002:112

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Primeira Secção Alargada)

3 de Maio de 2002 (1)

«Pesca - Regulamento (CE) n.° 1162/2001 - Recuperação da unidade populacional de pescada - Sociedade de armação de pesca - Recurso de anulação - Pessoa a quem um acto diz individualmente respeito - Admissibilidade»

No processo T-177/01,

Jégo-Quéré et Cie SA, com sede em Lorient (França), representada por A. Creus Carreras, B. Uriarte Valiente e A. Agustinoy Guilayn, advogados,

recorrente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por T. van Rijn e A. Bordes, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrida,

que tem por objecto um pedido de anulação dos artigos 3.°, alínea d), e 5.° do Regulamento (CE) n.° 1162/2001 da Comissão, de 14 de Junho de 2001, que estabelece medidas para a recuperação da unidade populacional de pescada nas subzonas CIEM III, IV, V, VI e VII e nas divisões CIEM VIII a, b, d, e, bem como as respectivas condições para o controlo das actividades dos navios de pesca (JO L 159, p. 4),

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Primeira Secção Alargada),

composto por: B. Vesterdorf, presidente, K. Lenaerts, J. Azizi, N. J. Forwood e H. Legal, juízes,

secretário: D. Christensen, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 16 de Abril de 2002,

profere o presente

Acórdão

Enquadramento jurídico e factual

1.
    O Regulamento (CEE) n.° 3760/92 do Conselho, de 20 de Dezembro de 1992, que institui um regime comunitário da pesca e da aquicultura (JO L 389, p. 1), alterado, no seu artigo 15.°, a possibilidade de a Comissão adoptar medidas urgentes quando a conservação dos recursos haliêuticos está ameaçada de perturbações graves e inesperadas.

2.
    No mês de Dezembro de 2000, a Comissão e o Conselho, alertados pelo Conselho Internacional para a Exploração do Mar (CIEM), consideraram urgente a execução dum plano de recuperação da unidade populacional de pescada.

3.
    O Regulamento (CE) n.° 1162/2001 da Comissão, de 14 de Junho de 2001, que estabelece medidas para a recuperação da unidade populacional de pescada nas subzonas CIEM III, IV, V, VI e VII e nas divisões CIEM VIII a, b, d, e, bem como as respectivas condições para o controlo das actividades dos navios de pesca (JO L 159, p. 4, a seguir «regulamento»), adoptado para o efeito, tem por finalidade principal a diminuição imediata das capturas de juvenis de pescada. O regulamento é aplicável aos navios de pesca que operam nas zonas nele definidas e impõe-lhes uma malhagem mínima, que varia segundo as zonas, para as diferentes técnicas de pesca à rede, qualquer que seja a espécie visada pelo navio em causa. O dispositivo não abrange os navios com menos de doze metros que efectuem saídas não superiores a 24 horas.

4.
    Quanto às disposições pertinentes para o presente litígio (a seguir «disposições impugnadas»), o artigo 3.°, alínea d), do regulamento proíbe a utilização de «qualquer rede rebocada pelo fundo a que esteja fixado um saco de malhagem inferior a 100 mm por qualquer meio diferente de uma costura na parte da rede anterior ao saco». Quanto ao artigo 5.° do regulamento, o mesmo define, no seu n.° 1, as zonas geográficas em que se aplicam as disposições do regulamento e estabelece, no seu n.° 2, relativamente a todas estas zonas, proibições respeitantes ao uso, à imersão e à calagem de redes rebocadas, segundo a respectiva malhagem, e obrigações de amarragem e arrumação, bem como, para cada uma das zonas, as proibições respeitantes ao uso, imersão e calagem das artes fixas, segundo a respectiva malhagem, e as obrigações respeitantes à sua amarragem e arrumação. No que respeita às redes rebocadas, as proibições aplicam-se às malhas compreendidas entre 55 mm e 99 mm; quanto às artes fixas, aplicam-se, segundo as zonas, às malhas inferiores a 100 mm ou a 120 mm.

5.
    A Jégo-Quéré et Cie SA (a seguir «sociedade Jégo-Quéré» ou «recorrente») é uma sociedade de armação de pesca estabelecida em França e que exerce de modo permanente no sul da Irlanda, na zona CIEM VII referida no artigo 5.°, n.° 1, alínea a), do regulamento, uma actividade de pesca dirigida à pescada, espécie que representa, em média, 67,3% das suas capturas. Possui quatro navios de mais de trinta metros e utiliza redes com uma malhagem de 80 mm.

Tramitação processual

6.
    Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 2 de Agosto de 2001, a sociedade Jégo-Quéré interpôs um recurso, com fundamento no artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, com vista a obter a anulação dos artigos 3.°, alínea d), e 5.°, do regulamento.

7.
    Em requerimento separado, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 30 de Outubro de 2001, a Comissão suscitou, ao abrigo do artigo 114.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância, uma questão prévia de inadmissibilidade. A recorrente apresentou observações sobre esta questão prévia em 14 de Dezembro de 2001.

8.
    Por decisão do Tribunal de 14 de Março de 2002, o processo foi atribuído à Primeira Secção Alargada.

9.
    Com base no relatório preliminar do juiz-relator, o Tribunal de Primeira Instância (Primeira Secção Alargada) decidiu iniciar a fase oral para decidir quanto à questão prévia de inadmissibilidade suscitada pela recorrida.

10.
    As partes foram ouvidas em alegações e deram resposta às questões orais colocadas pelo Tribunal na audiência de 16 de Abril de 2002.

Pedidos das partes

11.
    Na sua questão prévia de inadmissibilidade, a recorrida conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    declarar o recurso inadmissível;

-    condenar a recorrente nas despesas.

12.
    Nas suas observações sobre a questão prévia de inadmissibilidade, a recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    reservar a decisão da questão prévia até à decisão de mérito, ou, a título subsidiário, na sequência da fase oral, declarar o recurso admissível;

-    condenar a Comissão nas despesas.

Quanto à admissibilidade

Argumentos das partes

13.
    A Comissão suscita uma questão prévia de inadmissibilidade fundamentada no facto de o regulamento não dizer individualmente respeito à sociedade Jégo-Quéré na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, e, por conseguinte, não ter legitimidade para interpor recurso de anulação das disposições impugnadas.

14.
    A Comissão sustenta que o regulamento tem carácter geral, nomeadamente no que respeita às disposições impugnadas que não prevêem qualquer derrogação. Remete a este propósito para a jurisprudência segundo a qual as disposições, que se aplicam a situações determinadas objectivamente e implicam efeitos jurídicos relativamente a categorias de pessoas consideradas de forma geral e abstracta, são de natureza regulamentar, independentemente do facto de poderem dizer individualmente respeito a certos operadores económicos (acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 21 de Fevereiro de 1995, Campo Ebro e o./Conselho, T-472/93, Colect., p. II-421, n.os 31 e 32, e de 22 de Fevereiro de 2000, ACAV e o./Conselho, T-138/98, Colect., p. II-341, n.° 60). A recorrida acrescenta que as derrogações previstas pelo regulamento, que não são objecto do presente recurso, também têm carácter geral e não constituem de modo algum um «feixe de decisões individuais» (na acepção dos acórdãos do Tribunal de Justiça de 13 de Maio de 1971, International Fruit Company e o./Comissão, 41/70 a 44/70, Colect., p. 131, n.° 21, e de 6 de Novembro de 1990, Weddel/Comissão, C-354/87, Colect., p. I-3847, n.° 23).

15.
    A Comissão alega que as disposições impugnadas não dizem individualmente respeito à sociedade Jégo-Quéré porque a proibição geral de malhagens inferiores a certa medida aplica-se a todos os operadores que pescam no mar céltico, qualquer que seja a espécie visada. Sublinha que apenas uma parte da zona CIEM VII é abrangida pelo artigo 5.° do regulamento e que o artigo 6.° do mesmo regulamento permite, sem prejuízo de controlos, a utilização de redes de malhagem compreendida entre 70 mm e 90 mm. A recorrida considera que a situação particular da recorrente não é, por conseguinte, de forma nenhuma individualizada por estas medidas que visam uma pesca que ela não pratica, afectam de modo idêntico os operadores que pescam outras espécies diferentes da pescada e deixam uma parte do campo de aplicação geográfico do regulamento, sobre o qual não se aplica qualquer restrição à pesca da pescada, à margem do alargamento da malhagem. A Comissão afirma que a dimensão dos navios da sociedade Jégo-Quéré e a circunstância de os operadores de todos os Estados-Membros não serem afectados da mesma forma pelo regulamento são elementos de facto sem pertinência para efeitos de se decidir se a recorrente é individualmente afectada.

16.
    A Comissão acrescenta que nenhuma disposição de categoria superior, incluindo o artigo 33.° CE relativo aos objectivos da política agrícola comum, lhe impunha, para a adopção do regulamento, e diferentemente da situação tratada no acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 1995, Piraiki-Patraiki e o./Comissão (11/82, Recueil, p. 207, n.° 28), a obrigação de tomar em consideração a situação particular da recorrente.

17.
    A Comissão considera, além disso, que a inadmissibilidade resulta do sistema das vias de recurso organizado pelo Tratado e que a sociedade Jégo-Quéré não está privada de acesso à tutela jurisdicional, uma vez que a acção de responsabilidade extracontratual nos termos dos artigos 235.° CE e 288.°, segundo parágrafo, CE continua à sua disposição (despacho do Tribunal de Primeira Instância de 19 de Setembro de 2001, Federación de Cofradías de Pescadores de Guipúzcoa e o./Conselho, T-54/00 e T-73/00, Colect., p. II-2691, n.° 85).

18.
    A sociedade Jégo-Quéré apresenta-se como o principal armador que opera no sul da Irlanda, na zona CIEM VII visada pelo regulamento, e a única sociedade que pratica de forma permanente uma pesca dirigida à pescada no mar céltico com navios de mais de 30 metros. Afirma que apenas realiza capturas ínfimas de pescada, quando a pescada constitui uma parte essencial da sua actividade e o alargamento da malhagem das redes imposta pelas disposições impugnadas terá como efeito diminuir consideravelmente as suas capturas de pescada de tamanho reduzido e penalizá-la, mesmo fora dos sectores visados pelo regulamento em que também pesca, porque as disposições não permitem transportar a bordo os dois tipos de malhagens. Sustenta que as disposições impugnadas, na sua opinião ilegais porque adoptadas em violação do princípio da proporcionalidade, do princípio da igualdade e do dever de fundamentação, afectam sensivelmente a sua actividade económica.

19.
    A sociedade Jégo-Quéré sustenta que o regulamento, para além de afectar de forma diferenciada os Estados-Membros, não tem carácter geral. Segundo a recorrente, o regulamento contém diversas decisões adaptadas aos casos específicos de diferentes armadores dos Estados-Membros e traduz-se assim num «feixe de decisões individuais» na acepção dos acórdãos International Fruit Company e o./Comissão e Weddel/Comissão, referidos no n.° 14, supra. A sociedade Jégo-Quéré acrescenta que as situações específicas assim estabelecidas não correspondem a diferenças objectivas e não são justificadas pela finalidade de protecção da pescada prosseguida pelo regulamento.

20.
    A sociedade Jégo-Quéré sustenta que a sua situação era suficientemente individualizada e conhecida pela Comissão, cuja atenção tinha sido chamada para as incidências que as medidas projectadas podiam ter sobre as actividades dos navios de pesca franceses que pescam a pescada nas águas ao sul e a oeste da Irlanda. A recorrente considera, além disso, que a Comissão tinha a obrigação de ter em conta as consequências prejudiciais que a projectada regulamentação teria para ela e que a Comissão devia ter previsto medidas especiais, como fez para os operadores que visam outras espécies diferentes da pescada, adoptando medidas adaptadas a estes casos específicos.

21.
    A sociedade Jégo-Quéré sustenta que a inadmissibilidade do seu recurso de anulação a priva de vias de recurso, uma vez que não existe um acto adoptado a nível nacional susceptível de ser impugnado nos tribunais e, invocando o artigo 6.° da Convenção Europeia para Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), pede ao Tribunal que, à luz desta disposição, faça uma interpretação extensiva do artigo 230.° CE.

Apreciação do Tribunal

22.
    Nos termos do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, «qualquer pessoa singular ou colectiva pode interpor [...] recurso das decisões de que seja destinatária e das decisões que, embora tomadas sob a forma de regulamento ou de decisão dirigida a outra pessoa, lhe digam directa e individualmente respeito».

23.
    A sociedade Jégo-Quéré pretende obter a anulação dos artigos 3.°, alínea d), e 5.° do regulamento. Estas disposições impõem aos navios de pesca que operam nalgumas zonas determinadas uma malhagem mínima para as diferentes técnicas de pesca à rede. Contrariamente ao que sustenta a recorrente, estas disposições dirigem-se em termos abstractos a categorias de pessoas indeterminadas e aplicam-se a situações definidas objectivamente (v., nomeadamente, acórdão do Tribunal de Justiça de 15 de Junho de 1993, Abertal e o./Comissão C-213/91, Colect., p. I-3177, n.° 19, e despacho do Tribunal de Primeira Instância de 29 de Junho de 1995, Cantina cooperativa fra produttori vitivinicoli di Torre di Mosto e o./Comissão, T-183/94, Colect., p. II-1941, n.° 51).

24.
    Por conseguinte, as disposições impugnadas têm, pela sua natureza, carácter geral.

25.
    Contudo, importa examinar se, apesar do seu carácter geral, se pode considerar que as disposições impugnadas dizem directa e individualmente respeito à recorrente. Com efeito, resulta da jurisprudência assente que o carácter geral de uma disposição não exclui a possibilidade de ela poder dizer directa e individualmente respeito a alguns dos operadores económicos interessados (acórdãos do Tribunal de Justiça de 16 de Maio de 1991, Extramet Industrie/Conselho, C-358/89, Colect., p. I-2501, n.os 13 e 14, de 18 de Maio de 1994, Codorniu/Conselho, C-309/89, Colect., p. I-1853, n.° 19, e de 22 de Novembro de 2001, Antillean Rice Mills/Comissão, C-451/98, Colect., p. I-8949, n.° 46; acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 6 de Dezembro de 2001, Emesa Sugar/Conselho, T-43/98, Colect., p. II-3519, n.° 47).

26.
    Há que reconhecer que a condição da afectação directa está satisfeita no caso vertente. Com efeito, a afectação directa exige que a medida comunitária em causa produza directamente efeitos sobre a situação jurídica do particular e que não deixe qualquer poder de apreciação aos destinatários dessa medida incumbidos da sua aplicação, tendo esta carácter puramente automático e decorre apenas da regulamentação comunitária sem aplicação de outras regras intermediárias (acórdão do Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 1998, Dreyfus/Comissão, C-386/96 P, Colect., p. I-2309, n.° 43, e jurisprudência referida, e acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 12 de Julho de 2001, Comafrica e Dole Fresh Fruit Europe/Comissão, T-198/95, T-171/96, T-230/97, T-174/98 e T-255/99, Colect., p. II-1975, n.° 96). Ora, as disposições impugnadas não necessitam da adopção de qualquer medida complementar, comunitária ou nacional, para produzirem os seus efeitos em relação à recorrente.

27.
    Em seguida, quanto à questão de saber se um acto diz individualmente respeito à recorrente na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, deve recordar-se que, segundo jurisprudência permanentemente reiterada desde o acórdão de 15 de Julho de 1963, Plaumann/Comissão (25/62, Colect. 1962-1964, pp. 279, 284), as pessoas singulares ou colectivas não podem ser consideradas individualmente afectadas por um acto de que não são destinatárias, a menos que sejam atingidas em razão de determinadas qualidades que lhes são próprias ou de uma situação de facto que as caracterize relativamente a qualquer outra pessoa, individualizando-as, por isso, de forma idêntica à de um destinatário.

28.
    Deve, pois, examinar-se se, à luz desta jurisprudência, se pode considerar que as disposições impugnadas dizem individualmente respeito à recorrente.

29.
    A este propósito, a recorrente sublinha, antes de mais, que é o único armador que pesca a pescada nas águas ao sul da Irlanda com navios de mais de 30 metros, cujas capturas ficam fortemente diminuídas em virtude da aplicação das disposições impugnadas.

30.
    Todavia, esta circunstância não é susceptível de individualizar a recorrente na acepção da jurisprudência evocada no n.° 27 supra, uma vez que as disposições impugnadas apenas lhe dizem respeito na sua qualidade objectiva de pescador de pescada utilizando certa técnica de pesca em determinada zona, da mesma forma que a qualquer outro operador económico que se encontre, actual ou potencialmente, em idêntica situação (v., neste sentido, acórdão Abertal e o./Comissão, referido no n.° 23 supra, n.° 20, e acórdão ACAV e o./Conselho, referido no n.° 14 supra, n.° 65).

31.
    A recorrente sustenta em seguida que resulta do artigo 33.° CE que a Comissão era legalmente obrigada a apreciar a sua posição particular antes de adoptar as disposições impugnadas.

32.
    Com efeito, o facto de a Comissão ser obrigada, nos termos de disposições específicas, a atender às consequências do acto que pretende adoptar sobre a situação de determinados particulares pode ser susceptível de os individualizar (acórdãos Piraiki-Patraiki, já referido no n.° 16 supra, n.os 21 e 28; de 26 de Junho de 1990, Sofrimport/Comissão, C-152/88, Colect., p. I-2477, n.° 11; de 11 de Fevereiro de 1999, Antillean Rice Mills e o./Comissão, C-390/95 P, Colect., p. I-769, n.os 25 a 30; acórdãos do Tribunal de Primeira Instância de 14 de Setembro de 1995, Antillean Rice Mills e o./Comissão, T-480/93 e T-483/93, Colect., p. II-2305, n.° 67, e de 17 de Janeiro de 2002, Rica Foods/Comissão, T-47/00, Colect., p. II-113, n.° 41).

33.
    Todavia, há que concluir que o artigo 33.° CE, que enuncia a finalidade e os princípios da política agrícola comum, não impõe à Comissão qualquer obrigação de ter em conta a situação particular de empresas individualizadas, como a recorrente, quando adopta medidas que estão incluídas neste domínio.

34.
    A recorrente refere-se ainda a reuniões que tiveram lugar entre ela e os serviços da Comissão no decurso do processo que antecedeu a adopção do regulamento.

35.
    Contudo, o facto de uma pessoa participar, de uma forma ou de outra, no processo que conduz à adopção de um acto comunitário só é susceptível de individualizar essa pessoa relativamente ao acto em questão quando a regulamentação comunitária aplicável lhe concede certas garantias processuais (acórdão Rica Foods/Comissão, já referido no n.° 32 supra, n.° 55).

36.
    Ora, no caso vertente, nenhuma disposição do direito comunitário impõe à Comissão, para adoptar o regulamento, a obrigação de seguir um procedimento no qual a recorrente tenha o direito de reivindicar eventuais direitos, entre os quais o direito de ser ouvida (v., neste sentido, o acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 7 de Fevereiro de 2001, Sociedade Agrícola dos Arinhos e o./Comissão, T-38/99 a T-50/99, Colect., p. II-585, n.° 48).

37.
    Por outro lado, a recorrente não apresentou qualquer elemento de onde resulte que as disposições impugnadas lhe dizem respeito em razão de uma situação particular, como qualquer das situações identificadas pelo Tribunal de Justiça nos processos que deram lugar aos acórdãos referidos no n.° 25 supra, Extramet Industrie/Conselho, n.° 17, e Codorniu/Conselho, n.os 21 e 22.

38.
    Resulta, pois, do exposto que não se pode considerar que o acto diz individualmente respeito à recorrente na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, com base nos critérios até agora elaborados pela jurisprudência comunitária.

39.
    A recorrente sublinha, todavia, que, se o presente recurso for julgado inadmissível, ficará privada de qualquer via de recurso para contestar a legalidade das disposições impugnadas. Com efeito, não prevendo o regulamento a adopção pelos Estados-Membros de qualquer medida de execução, a recorrente não dispõe, neste caso concreto, de qualquer via de recurso para os órgãos jurisdicionais nacionais.

40.
    A Comissão entende, pelo contrário, que a recorrente não está privada do acesso à tutela jurisdicional, já que dispõe da acção de responsabilidade extracontratual nos termos dos artigos 235.° CE e 288.°, segundo parágrafo, CE.

41.
    A este propósito, há que recordar que o próprio Tribunal de Justiça afirmou que o acesso à tutela jurisdicional é um dos elementos constitutivos duma comunidade de direito e que o mesmo é garantido na ordem jurídica fundada no Tratado CE pelo facto de este estabelecer um sistema completo de vias de recurso e de procedimentos destinado a confiar ao Tribunal de Justiça a fiscalização da legalidade dos actos das instituições (acórdão do Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1986, Os Verdes/Parlamento, 294/83, Colect., p. 1339, n.° 23). O Tribunal de Justiça fundamenta o direito a recurso efectivo para um órgão jurisdicional competente nas tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros e nos artigos 6.° e 13.° da CEDH (v. acórdão do Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 1986, Johnston, 222/84, Colect., p. 1651, n.° 18).

42.
    O direito a um recurso efectivo que tem qualquer pessoa cujos direitos e liberdades garantidas pelo direito da União foram violados foi, além disso, reafirmado pelo artigo 47.° do Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia proclamada em 7 de Dezembro de 200 em Nice (JO 2000, C 364, p. 1).

43.
    Deve, pois, examinar-se se, num caso como o presente, no âmbito do qual a legalidade das disposições de carácter geral que dizem directamente respeito à situação jurídica de um particular é contestada por este, a inadmissibilidade do recurso de anulação priva a recorrente do direito a recurso efectivo.

44.
    A este respeito, deve recordar-se que, para além do recurso de anulação, existem outras duas vias de recurso que permitem a um particular dirigir-se ao órgão jurisdicional comunitário, único que tem competência para esse fim, para obter a declaração de ilegalidade de um acto comunitário, a saber, o recurso para o órgão jurisdicional com reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 234.° CE, e a acção de responsabilidade extracontratual da Comunidade prevista nos artigos 235.° CE e 288.°, segundo parágrafo, CE.

45.
    Todavia, quanto ao recurso aos tribunais nacionais com reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 234.° CE, deve sublinhar-se que, num caso como o presente, não existem medidas de execução que possam servir de base à acção perante os órgãos jurisdicionais nacionais. O facto de um particular afectado por uma medida comunitária ter a possibilidade de levar a validade da medida comunitária à apreciação dos órgãos jurisdicionais nacionais, violando as normas estabelecidas pela medida e invocando a ilegalidade de tais normas como defesa num processo judicial contra ele directamente dirigido, não lhe confere uma via adequada de tutela jurisdicional. Com efeito, não pode pedir-se aos particulares que violem a lei para obterem o acesso à justiça (v. conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs de 21 de Março de 2002 no processo Unión de Pequeños Agricultores/Conselho, C-50/00 P, ainda não publicadas na Colectânea, n.° 43).

46.
    A via da acção de indemnização fundada na responsabilidade extracontratual da Comunidade não proporciona, num caso como o vertente, uma solução satisfatória aos interesses dos particulares. Com efeito, esta acção não pode conduzir a afastar da ordem jurídica comunitária um acto mesmo que, por hipótese, seja considerado ilegal. Tendo como pressuposto a existência de um dano directo causado pela aplicação do acto controvertido, esta acção está sujeita a condições de admissibilidade e de mérito diferentes das que regem o recurso de anulação e não coloca, portanto, o órgão jurisdicional comunitário em condições de exercer, em toda a sua dimensão, a fiscalização da legalidade que tem por missão efectuar. Em particular, quando uma medida de carácter geral, como as disposições impugnadas neste caso concreto, é posta em causa no contexto de uma tal acção, a fiscalização efectuada pelo órgão jurisdicional comunitário não se estende a todos os elementos susceptíveis de afectar a legalidade dessa medida, mas limita-se a sancionar as violações suficientemente caracterizadas de regras de direito que têm por objecto conferir direitos aos particulares (acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 2000, Bergaderm e Goupil/Comissão, C-352/98 P, Colect., p. I-5291, n.os 41 a 43; acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 23 de Outubro de 2001, Dieckmann & Hansen/Comissão, T-155/99, Colect., p. II-3143, n.os 42 e 43; v. também, para um caso de violação não suficientemente caracterizada, acórdão do Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 1992, Mulder e o./Conselho e Comissão, C-104/89 e C-37/90, Colect., p. I-3061, n.os 18 e 19, e, para um caso em que a regra invocada não tem por efeito conferir direitos aos particulares, acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 6 de Dezembro de 2001, Area Cova e o./Conselho e Comissão, T-196/99, Colect., p. II-3597, n.° 43).

47.
    Com base no exposto, há que concluir que não se pode considerar que os processos previstos nos artigos 234.° CE, por um lado, e 235.° CE e 288.°, segundo parágrafo, CE, por outro, à luz dos artigos 6.° e 13.° da CEDH e do artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais, garantem aos particulares um direito de recurso efectivo que lhes permite contestar a legalidade de disposições comunitárias de carácter geral que afectem directamente a sua situação jurídica.

48.
    É verdade que esta circunstância não pode autorizar uma modificação do sistema de vias de recurso e de processos estabelecido pelo Tratado e destinado a confiar ao órgão jurisdicional comunitário a fiscalização da legalidade dos actos das instituições. Em caso algum permite declarar admissível um recurso de anulação interposto por uma pessoa singular ou colectiva que não preencha as condições exigidas pelo artigo 230.°, quarto parágrafo, CE [v. despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 12 de Outubro de 2000, Federación de Cofradías de Pescadores de Guipúzcoa e o./Conselho, C-300/00 P(R), Colect., p. I-8797, n.° 37].

49.
    Deve, porém, sublinhar-se, como observou o advogado-geral F. G. Jacobs nas suas conclusões no processo Unión de Pequeños Agricultores/Conselho (referidas no n.° 45 supra, n.° 59), que não há razões imperiosas para entender que o conceito de pessoa a quem um acto diz individualmente respeito, na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE, pressupõe que o particular que pretenda impugnar uma medida de carácter geral deve ser individualizado de modo análogo ao de um destinatário.

50.
    Nestas condições, e tendo em conta que o Tratado CE instituiu um sistema completo de vias de recurso e de processos destinado a confiar ao órgão jurisdicional comunitário a fiscalização da legalidade dos actos das instituições (acórdão Os Verdes/Parlamento, referido no n.° 41 supra, n.° 23), há que repensar a interpretação estrita, até agora feita, do conceito de pessoa a quem um acto diz individualmente respeito na acepção do artigo 230.°, quarto parágrafo, CE.

51.
    À luz do que fica exposto, e a fim de assegurar uma protecção jurisdicional efectiva dos particulares, deve considerar-se que uma disposição comunitária de carácter geral que diz directamente respeito a uma pessoa singular ou colectiva lhe diz individualmente respeito se a disposição em questão afectar, de forma certa e actual, a sua situação jurídica, restringindo os seus direitos ou impondo-lhe obrigações. O número e a situação de outras pessoas igualmente afectadas pela disposição ou susceptíveis de o ser não são, a este respeito, considerações pertinentes.

52.
    Neste caso concreto, são efectivamente impostas obrigações à sociedade Jégo-Quéré pelas disposições impugnadas. Com efeito, a recorrente, cujos navios estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do regulamento, exerce actividades de pesca numa das zonas em que as actividades de pesca estão submetidas, pelas disposições impugnadas, a obrigações precisas respeitantes à malhagem das redes a utilizar.

53.
    Daí resulta que as disposições impugnadas dizem individualmente respeito à recorrente.

54.
    Uma vez que as decisões impugnadas também dizem directamente respeito à recorrente (v. n.° 26 supra), deve ser julgada improcedente a questão prévia de inadmissibilidade suscitada pela Comissão e ordenar o prosseguimento do processo.

Quanto às despesas

55.
    Deve reservar-se a decisão quanto às despesas até que se decida do mérito.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Primeira Secção Alargada)

decide:

1.
    A questão prévia de inadmissibilidade é julgada improcedente.

2.
    Ordena-se o prosseguimento do processo para apreciação do mérito.

3.
    Reserva-se para final a decisão quanto às despesas.

Vesterdorf
Lenaerts
Azizi

Forwood

Legal

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 3 de Maio de 2002.

O secretário

O presidente

H. Jung

B. Vesterdorf


1: Língua do processo: francês.