Language of document : ECLI:EU:C:2015:586

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 10 de setembro de 2015 (1)

Processo C‑350/14

Florin Lazar

contra

Allianz SpA

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal civile di Trieste (Itália)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Lei aplicável às obrigações extracontratuais — Regulamento (CE) n.° 864/2007 (‘Roma II’) — Artigo 4.°, n.° 1 — Conceitos de ‘país onde ocorre o dano’, de ‘dano’ e de ‘consequências indiretas da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco’ — Membros da família de uma pessoa falecida na sequência de um acidente de viação — Pessoas com direito à reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais residentes em países diferentes»





1.        O Regulamento (CE) n.° 864/2007 (2), aplicável desde 11 de janeiro de 2009, numa preocupação de segurança jurídica e de tomada em conta dos interesses legítimos geralmente existentes, visa harmonizar as regras de conflitos de leis em matéria de obrigações extracontratuais. Este regulamento não se destina, porém, a harmonizar o direito substantivo dos Estados‑Membros da União Europeia nessa matéria, o que não deixa de suscitar certas dificuldades de interpretação. Com efeito, ao recorrer, nomeadamente para determinar a lei aplicável a ações de responsabilidade extracontratual, a conceitos certamente conhecidos em todos os Estados‑Membros, mas cuja aceção e alcance podem divergir sensivelmente de uma ordem jurídica para outra, o juiz pode defrontar‑se com um exercício delicado quando é chamado a decidir, no quadro do mesmo litígio, pedidos formulados por pessoas que não têm a sua residência habitual no mesmo país.

2.        É o que acontece, em especial, no que respeita à interpretação do artigo 4.° do referido regulamento que, na falta de escolha expressa pelas partes, estabelece como critério determinante da lei aplicável a uma ação em que se invoca a responsabilidade extracontratual o «local onde ocorre o dano». O que abrange este dano, dado que se especifica que, nos termos dessa disposição, o mesmo deve ser distinguido do «facto que lhe deu origem»? Os danos sofridos pelos familiares de uma pessoa vítima de um acidente de viação, que, nos termos do direito nacional, se consideram sofridos jure proprio, são equiparáveis aos «danos» a que se refere o artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II ou devem ser antes considerados como as «consequências indiretas» destes?

3.        Estas interrogações refletem tudo o que está em causa no presente pedido de decisão prejudicial, que convida, de modo pelo menos inédito (3), a fazer um certo número de precisões sobre os conceitos constantes dessa disposição. Este pedido foi apresentado no quadro de um litígio que opõe F. Lazar, residente na Roménia, à companhia de seguros italiana Allianz SpA, a propósito da indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais que aquele alega ter sofrido jure proprio em razão da morte de sua filha, cidadã romena residente em Itália, ocorrida neste Estado‑Membro na sequência de um acidente de viação causado por um veículo não identificado.

I –    Quadro jurídico

A –    Direito da União

1.      Regulamento Roma II

4.        Nos termos do considerando 7 do Regulamento Roma II:

«O âmbito de aplicação material e as disposições do presente regulamento deverão ser coerentes com o Regulamento [(CE) n.° 44/2001] (4) e com os instrumentos referentes à lei aplicável às obrigações contratuais.»

5.        O considerando 17 do Regulamento Roma II estabelece:

«A lei aplicável deverá ser determinada com base no local onde ocorreu o dano, independentemente do país ou países onde possam ocorrer as consequências indiretas do mesmo. Assim sendo, em caso de danos não patrimoniais ou patrimoniais, o país onde os danos ocorrem deverá ser o país em que o dano tenha sido infligido, respetivamente, à pessoa ou ao património.»

6.        O artigo 4.° do Regulamento Roma II, sob a epígrafe «Regra geral», tem o seguinte teor:

«1.       Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indiretas desse facto.

2.       Todavia, sempre que a pessoa cuja responsabilidade é invocada e o lesado tenham a sua residência habitual no mesmo país no momento em que ocorre o dano, é aplicável a lei desse país.

3.       Se resultar claramente do conjunto das circunstâncias que a responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco tem uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nos n.os 1 ou 2, é aplicável a lei desse outro país. Uma conexão manifestamente mais estreita com um outro país poderá ter por base, nomeadamente, uma relação preexistente entre as partes, tal como um contrato, que tenha uma ligação estreita com a responsabilidade fundada no ato lícito, ilícito ou no risco em causa.»

7.        Segundo o artigo 15.° do Regulamento Roma II, a lei aplicável às obrigações contratuais referidas no mesmo regulamento rege, designadamente, nos termos da alínea c), «a existência, a natureza e a avaliação dos danos ou da reparação exigida» e, nos termos da alínea f), «as pessoas com direito à reparação do dano pessoalmente sofrido».

2.      Regulamento Bruxelas I

8.        O artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento Bruxelas I, que faz parte da Secção 2 («Competências especiais») do Capítulo II, prevê o seguinte:

«Uma pessoa com domicílio no território de um Estado‑Membro pode ser demandada noutro Estado‑Membro:

[[…]]

3)       Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso».

B –    Direito italiano

9.        Tal como expôs o órgão jurisdicional de reenvio, a Corte suprema di cassazione (tribunal supremo) interpretou os artigos 2043.° e 2059.° do Código Civil italiano no sentido de que os membros da família do falecido têm direito, jure proprio, à reparação dos seus danos patrimoniais e não patrimoniais. No que respeita aos danos não patrimoniais, podem ser reconhecidos, em concreto, o dano provocado à saúde (dano medicamente certificado), o dano moral (sofrimento interior) e o dano para a vida de relação (alteração significativa da vida quotidiana).

10.      Ainda segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o artigo 283.°, n.° 1, alíneas a) e c), do código dos seguros privados prevê que, quando o veículo causador do dano não seja identificado, o Fondo di garanzia per le vittime della strada (Fundo de garantia automóvel) indemnize os danos causados por um acidente de viação, por intermédio de companhias de seguros designadas para todo o território nacional.

II – Factos na origem do litígio no processo principal, questões prejudiciais e processo no Tribunal de Justiça

11.      O processo principal tem por objeto um pedido de indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais alegadamente sofridos jure proprio, numa ação intentada pelo pai, residente na Roménia, de uma nacional romena que residia em Itália, falecida neste Estado‑Membro na sequência de um acidente de viação ocorrido em 18 de maio de 2012 e causado por um veículo não identificado.

12.      A companhia de seguros Allianz SpA foi judicialmente demandada na qualidade de sociedade designada pelo Fundo de garantia automóvel, organismo responsável pela indemnização dos danos causados pela circulação de veículos não identificados.

13.      A mãe e a avó da vítima, ambas nacionais romenas residentes em Itália, também intervieram no litígio e pediram a indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos jure proprio.

14.      Foi neste contexto que o órgão jurisdicional de reenvio se questionou sobre a lei aplicável aos factos da causa e, em especial, sobre a interpretação do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II.

15.      Por decisão de 10 de julho de 2014, o Tribunale civile di Trieste decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«Qual deve ser a interpretação do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 864/2007 relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (‘Roma II’), quando prevê que: ‘a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano’? Em especial:

1)      Como deve ser interpretado o conceito de ‘local onde ocorre o dano’ no sentido do artigo 4.°, n.° 1, do [Regulamento n.° 864/2007], em relação ao pedido de indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais invocados por familiares de uma pessoa, que morreu na sequência de um acidente rodoviário ocorrido no Estado do foro, quando estes familiares sejam residentes noutro país da União Europeia e tenham aí sofrido esses danos?

2)      Para efeitos da aplicação do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 864/2007, os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos no país da sua residência pelos familiares de uma pessoa falecida num acidente rodoviário ocorrido no Estado do foro configuram um ‘dano’ na aceção da primeira parte do artigo 4.°, n.° 1, ou ‘consequências indiretas’ na aceção da segunda parte desta mesma disposição?»

16.      Foram apresentadas observações escritas pelos intervenientes no processo principal, pelos Governos austríaco e português e pela Comissão Europeia. F. Lazar não apresentou observações.

III – Análise jurídica

17.      Este pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do critério central, consagrado pelo Regulamento Roma II, fundado no local onde ocorre o dano, para efeitos de determinação da lei aplicável às obrigações extracontratuais.

18.      Antes de iniciar a análise propriamente dita das questões colocadas, parece‑me necessário formular algumas precisões preliminares sobre a economia do mecanismo instituído pelo Regulamento Roma II para a determinação da lei aplicável às obrigações extracontratuais.

A –    Considerações preliminares sobre a economia do mecanismo instituído pelo Regulamento Roma II

19.      A diversidade das regras de conflitos de leis aplicáveis em matéria de obrigações extracontratuais suscitou, desde há muito tempo (5), a necessidade de uniformização neste domínio para garantir uma certa previsibilidade quanto ao direito aplicável e, ao mesmo tempo, remediar os inconvenientes que decorrem das situações de forum shopping.

20.      O Regulamento Roma II, fruto de um compromisso entre a necessidade de garantir um certo nível de segurança jurídica, protegendo as legítimas expectativas das partes pela elaboração de critérios de conexão fixos, e o desejo de manter uma certa flexibilidade quando a aplicação destes critérios conduz a resultados considerados inadequados, inscreve‑se no prolongamento das soluções adotadas até então no direito internacional privado contemporâneo.

21.      O mecanismo da determinação da lei aplicável às obrigações extracontratuais pode ser descrito esquematicamente do modo seguinte.

22.      O Regulamento Roma II estabelece um certo número de critérios de conexão fixos. Quanto a este aspeto, este regulamento carateriza‑se pela previsão, na falta de escolha expressa pelas partes quanto à lei aplicável às obrigações extracontratuais (ver artigo 14.°), por um lado, de uma regra geral (artigo 4.°) e, por outro, de cinco regras de conflitos de leis especiais (artigos 5.° a 9.° (6) do regulamento).

23.      No que respeita à regra geral, única pertinente neste processo, decorre da proposta de regulamento sobre a lei aplicável às obrigações extracontratuais, apresentada em 22 de julho de 2003 (7), que o primeiro objetivo do Regulamento Roma II era melhorar a previsibilidade das soluções numa preocupação de segurança jurídica.

24.      Assim, é notável que, diferentemente do critério que tinha sido adotado na Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta à assinatura em Roma em 19 de junho de 1980 (8), que designava, em princípio, como lei aplicável a lei do país com o qual a situação em causa apresentasse uma conexão mais estreita, este regulamento opta claramente, no seu artigo 4.°, n.° 1, pelo critério de conexão fixo constituído pelo local onde ocorre o dano (locus damni).

25.      Deve também sublinhar‑se que, diferentemente dos critérios de conexão adotados em matéria de competência jurisdicional pela Convenção de Bruxelas e pelo Regulamento Bruxelas I, que oferecem à vítima de um dano a opção entre a competência do tribunal do local do facto que deu origem ao dano e a do tribunal do local do dano, o Regulamento Roma II prevê um único critério de conexão.

26.      A este respeito, resulta dos trabalhos preparatórios do Regulamento Roma II que as propostas de alteração apresentadas pelo Parlamento Europeu, que pretendiam introduzir mais flexibilidade (9), foram recusadas pelo Conselho da União Europeia e pela Comissão, que consideraram que o artigo 4.° garante ao mesmo tempo «a exigência da segurança jurídica e a necessidade de fazer justiça em função de casos individuais».

27.      Ao escolher o locus damni como critério de conexão, o Regulamento Roma II opta, assim, por uma regra de conflitos perfeitamente clássica do direito internacional privado, que tem inegavelmente várias vantagens.

28.      Em primeiro lugar, esta regra de conexão, em conformidade com os objetivos enunciados no considerando 16 do Regulamento Roma II (10), destina‑se a criar um justo equilíbrio entre os interesses das partes. Com efeito, a lei da ocorrência do dano é uma lei neutra que não privilegia nem o autor do dano nem o lesado.

29.      Embora, como sublinharam vários autores (11), a determinação da lei aplicável em função do local de ocorrência do dano possa revestir um caráter totalmente fortuito e imprevisível em certas situações — o que, definitivamente, compromete o objetivo da previsibilidade das soluções prosseguido pelo regulamento — este inconveniente não é de modo nenhum insuperável. Com efeito, deve sublinhar‑se que a aplicação da lei do local do dano pode sempre ser afastada, quer a favor do local da residência quando o lesado e a pessoa cuja responsabilidade é invocada tenham a sua residência habitual no mesmo país (artigo 4.°, n.° 2, do Regulamento Roma II), quer a favor da lei de outro país, quando resulte do conjunto das circunstâncias do caso que responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco tem uma conexão manifestamente mais estreita com esse país (regra designada «de exceção», prevista no artigo 4.°, n.° 3, deste regulamento). Voltarei a esta questão nas considerações seguintes.

30.      Em segundo lugar, a escolha do locus damni está em sintonia com uma abordagem moderna do direito da responsabilidade civil, que privilegia o conceito da chamada responsabilidade «objetiva», cuja função é essencialmente indemnizatória. Em conformidade com essa abordagem, a responsabilidade civil visa mais a reparação dos danos do que a sanção de comportamentos julgados repreensíveis. Daí resulta que a tónica é colocada mais sobre o local de ocorrência do dano do que sobre o do facto que lhe deu origem. Também tem sido sublinhado que a regra geral constante do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II, que afasta a competência da lex loci delicti commissi, permite nomeadamente resolver a questão, muito controversa, da lei aplicável aos delitos ditos «complexos», que se caraterizam por uma dissociação geográfica entre o local do facto gerador e o local do dano.

31.      Ora, o que deve entender‑se por local onde ocorre o dano? É precisamente esta interrogação que o presente pedido de decisão prejudicial suscita.

B –    Quanto às questões prejudiciais

32.      Como afirmou o órgão jurisdicional de reenvio, a determinação da lei aplicável aos factos do caso vertente pode ter consequências importantes. Com efeito, há um interesse inegável em que a lei aplicável a um pedido de indemnização seja a de um direito nacional em vez da de outro. Mais precisamente, a existência de um direito a indemnização dos danos invocados por membros da família de uma pessoa falecida no acidente em causa no processo principal, a qualificação desses danos e o seu caráter indemnizável dependem em larga medida da escolha do direito material aplicável.

33.      A este respeito, embora aparentemente todas as ordens jurídicas nacionais reconheçam a existência do direito a indemnização dos membros da família da pessoa falecida, há que realçar as diferenças substanciais que existem entre os direitos dos Estados‑Membros no que respeita à qualificação, à natureza e à extensão do dano indemnizável aos sucessores de uma pessoa falecida num acidente.

34.      Com efeito, os regimes nacionais de responsabilidade civil extracontratual, que, consoante o caso, permitem a indemnização dos danos sofridos indiretamente ou exigem que haja uma ofensa direta a um interesse juridicamente protegido, apresentam, com toda a evidência, diferenças estruturais. Além disso, nos diferentes ordenamentos jurídicos nacionais, os direitos de indemnização reconhecidos aos membros da família da pessoa falecida, sejam de natureza patrimonial ou não patrimonial, ora são considerados direitos autónomos (iure proprio), ora direitos acessórios dos da pessoa falecida.

35.      Como já afirmava o advogado‑geral Darmon nas conclusões que apresentou no processo Dumez France e Tracoba (12), a natureza do prejuízo indireto é uma das questões mais delicadas e controvertidas do direito da responsabilidade civil, sendo este visto por certos autores como a projeção sobre um lesado indireto do prejuízo sofrido pelo lesado inicial, enquanto outros o consideram, pelo contrário, um prejuízo autónomo (13). De resto, esta questão não se coloca nos Estados‑Membros que não reconhecem às vítimas de danos indiretos o direito à indemnização, ignorando, assim, a noção de prejuízo indireto (14).

36.      No que respeita aos acidentes de viação, devo sublinhar ainda que numerosos Estados‑Membros (15), apesar da entrada em vigor do Regulamento Roma II e em conformidade com o seu artigo 28.°, n.° 1(16), continuarão a aplicar a Convenção sobre a lei aplicável em matéria de acidentes de circulação rodoviária, concluída em Haia, em 4 de maio de 1971 (17), a qual adota a lex loci delicti commissi como regra para a determinação da lei aplicável, sem a possibilidade de as partes em causa optarem por outra lei que preveja critérios de conexão diferentes dos estabelecidos no artigo 4.° do Regulamento Roma II (18). Isto demonstra até que ponto a problemática da determinação da lei aplicável no caso de ações de indemnização dos prejuízos sofridos na sequência de um acidente de viação pode mostrar‑se particularmente complexa (19).

37.      Para voltar ao processo principal, resulta das informações transmitidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que o direito italiano, a saber, os artigos 2043.° e 2059.° do Código Civil italiano, tal como interpretados pela Corte suprema di cassazione, concede uma indemnização particularmente extensa dos prejuízos sofridos pelos familiares das pessoas falecidas em acidente, em especial das pessoas falecidas na sequência de um acidente de viação. Com efeito, nos termos da lei italiana, o dano resultante da morte de um membro da família é um prejuízo sofrido diretamente (jure proprio) por este. Parece resultar daí que a relação obrigacional que existe entre o membro da família da pessoa falecida e a pessoa julgada responsável do prejuízo (ou, na falta de identificação desta, a entidade responsável pela indemnização do prejuízo) é independente da relação que liga a pessoa falecida à referida entidade.

38.      Ora, neste caso, é forçoso reconhecer que, apesar da sua aparente simplicidade, o critério do local onde ocorre o dano, que carateriza a regra geral de determinação da lei aplicável às obrigações extracontratuais nos termos do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II, tem suscitado dificuldades de interpretação.

39.      Em substância, no processo principal, estão em confronto duas conceções.

40.      Segundo a primeira, defendida pelo Governo austríaco, os danos patrimoniais e morais sofridos pelos membros da família de uma pessoa falecida noutro Estado‑Membro não constituem necessariamente consequências indiretas da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco na aceção do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II. Daí resulta, nomeadamente, que um pedido de indemnização dos direitos patrimoniais invocados pelos familiares de uma pessoa falecida na sequência de um acidente de viação ocorrido no Estado do foro, uma vez que se funda numa obrigação distinta da existente entre a parte contrária e a pessoa falecida no acidente, deve ser apreciado segundo a lei do local em que se produziu o dano sofrido pelos referidos familiares, a saber, o local da sua residência habitual, a menos que se demonstre que, nos termos do artigo 4.°, n.° 3, do Regulamento Roma II, resulta do conjunto das circunstâncias que existe uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente.

41.      A segunda conceção, a que aderem em especial os intervenientes no processo principal e a Comissão, sustenta que os prejuízos sofridos, no país em que residem, pelos familiares de uma pessoa falecida num acidente de viação ocorrido no Estado do foro devem ser considerados consequências indiretas do dano sofrido pela vítima imediata do acidente. O conceito de «país onde ocorre o dano» deve ser interpretado no sentido de que se refere ao local [onde foi causado o dano, a saber, no processo principal, o local do acidente de viação.

42.      Tal como a Comissão sugeriu, parece oportuno inverter a ordem de apreciação das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

43.      Com efeito, o artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II prevê, na segunda parte, que o local onde ocorrem as consequências indiretas da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco não é pertinente para efeitos de determinação da lei aplicável a uma obrigação extracontratual. Por consequência, há que responder, em primeiro lugar, à questão de saber se o artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II deve ser interpretado no sentido de que o prejuízo sofrido, no país em que residem, pelos familiares de uma pessoa falecida num acidente de viação ocorrido no Estado do foro deve ser qualificado como «dano» na aceção da primeira parte desta disposição ou como «consequências indiretas» da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco na aceção da segunda parte da mesma disposição.

44.      É à luz da resposta que venha a ser dada a esta primeira questão que se deverá então definir o conceito de «país onde ocorre o dano» no que respeita a um pedido de indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos familiares de uma pessoa falecida na sequência de um acidente.

1.      Primeiro aspeto (segunda questão): qualificação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, no país em que residem, pelos familiares de uma pessoa falecida num acidente de viação ocorrido no Estado do foro

45.      O artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II prevê que a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco é a do país onde ocorre o dano. Como resulta das precisões expressamente constantes dessa disposição, o local onde ocorre o dano deve distinguir‑se, em primeiro lugar, do local onde ocorreu o facto que deu origem ao dano alegado e, em segundo lugar, do local onde ocorrem as consequências indiretas da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco.

46.      Parece‑me que decorre claramente dos trabalhos preparatórios, nomeadamente do relatório que acompanha a proposta de Regulamento Roma II, que aquela disposição adota como regra de base a lei do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o dano direto (20).

47.      Este relatório indica também, precisamente com o exemplo de um acidente de circulação, que «o lugar do dano direto é o da colisão, independentemente de eventuais danos patrimoniais ou morais que ocorram noutro país» (21).

48.      Ainda segundo este relatório, verifica‑se que a Comissão fez uma referência expressa à jurisprudência do Tribunal de Justiça respeitante à interpretação do artigo 5.°, n.° 3, da Convenção de Bruxelas (22), disposição que, tal como a reproduzida no artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento Bruxelas I, distingue entre os danos diretos e os danos indiretos.

49.      Esta referência expressa ao Regulamento Bruxelas I consta da fundamentação do Regulamento Roma II, que, no seu considerando 7, afirma que o âmbito de aplicação material e as disposições destes dois regulamentos devem ser coerentes.

50.      Cumpre‑me, porém, observar que, como o Tribunal de Justiça tem decidido repetidamente (23), a regra de competência especial do artigo 5.°, n.° 3, da Convenção de Bruxelas é fundada na existência de uma conexão particularmente estreita entre a contestação e a competência de tribunais diferentes dos do domicílio do requerido e visa, em definitivo, uma boa administração da justiça e a organização útil do processo. Neste sentido, foi possível salientar que a centralização das questões submetidas num único e mesmo tribunal advém, designadamente, de uma necessidade objetiva do ponto de vista da prova ou da organização do processo (24).

51.      Este imperativo, que tem um interesse inquestionável na determinação da jurisdição competente, não se mostra necessariamente do mesmo modo quando se trata da determinação da lei aplicável. O Tribunal de Justiça tem, assim, insistido sempre na necessidade de evitar a multiplicação da titularidade da competência judiciária a respeito de uma mesma relação jurídica e na afirmação de que o tribunal do local onde o facto danoso se produziu é normalmente o mais apto para decidir, nomeadamente por razões de proximidade do litígio e de facilidade de apresentação da prova (25).

52.      No entanto, entendo que, embora os objetivos prosseguidos por cada um destes instrumentos jurídicos divirjam um pouco, os conceitos referidos pelo Regulamento Roma II devem, tanto quanto possível, ser entendidos tendo em conta as interpretações feitas no quadro da Convenção de Bruxelas ou do Regulamento Bruxelas I. Com efeito, deve ser estabelecido um certo paralelismo na interpretação destes conceitos, na medida em que todos os instrumentos jurídicos prosseguem um objetivo de previsibilidade das soluções adotadas.

53.      Que ensinamentos se podem tirar da jurisprudência relativa à interpretação do artigo 5.°, n.° 3, da Convenção de Bruxelas e do Regulamento Bruxelas I?

54.      Vários processos merecem atenção.

55.      No que respeita ao processo que deu origem ao acórdão Dumez France e Tracoba (26), há que recordar que o Tribunal de Justiça tinha de se pronunciar sobre o conceito de «local onde ocorreu o dano», no âmbito de uma ação intentada em França por duas sociedades francesas contra bancos estabelecidos na Alemanha, as quais pediam a indemnização do prejuízo financeiro que alegadamente tinham sofrido como consequência da insolvência de algumas das suas filiais, também estabelecidas na Alemanha, insolvência causada pela revogação, pelos referidos bancos, dos créditos concedidos a essas filiais para a realização de um programa imobiliário.

56.      Chamado a pronunciar‑se sobre a natureza do prejuízo alegado, o Tribunal de Justiça entendeu que os prejuízos invocados pelas sociedades‑mães eram apenas a consequência indireta das perdas financeiras sofridas num primeiro momento pelas suas filiais na sequência da revogação dos créditos e paragem das obras que se seguiu. Sobre esta questão, o Tribunal de Justiça considerou que, num caso como o do processo principal, «o prejuízo invocado constitui apenas a consequência indireta do prejuízo inicialmente sofrido por outras pessoas coletivas que foram diretamente atingidas pelo prejuízo concretizado num lugar diferente daquele onde o lesado indireto veio depois a sofrer o prejuízo» (27).

57.      Tendo apreciado em seguida se o conceito de «local onde ocorreu o dano», na aceção do acórdão Bier, dito «Mines de potasse d’Alsace» (21/76, EU:C:1976:166), se referia ao local em que as vítimas indiretas do prejuízo sofrem as consequências patrimoniais danosas, o Tribunal de Justiça declarou que, embora, de acordo com aquele acórdão, possa abranger o lugar onde ocorreu o dano, este conceito apenas pode ser entendido como referido ao lugar onde o evento causal, gerador de responsabilidade extracontratual, produziu diretamente os seus efeitos danosos relativamente ao lesado direto (28). Neste contexto, o Tribunal de Justiça precisou que o lugar onde se verificou o dano inicial apresenta ainda, de uma forma geral, uma relação estreita com os outros pressupostos da responsabilidade civil, o que nem sempre acontece com o domicílio do lesado indireto (29).

58.      Esta análise foi seguidamente confirmada pelo acórdão Marinari (30), ao qual a Comissão se referiu expressamente na sua proposta de regulamento de 22 de julho de 2003 (31) e que tinha por objeto a questão de saber se o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso» designa apenas o lugar onde se produziu o prejuízo físico provocado a pessoas ou a coisas, ou também o lugar, eventualmente noutros países, onde se produziram os prejuízos patrimoniais.

59.      Também nesse caso o Tribunal de Justiça considerou que, embora se admita que o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso», na aceção do artigo 5.°, n.° 3, da Convenção de Bruxelas, possa visar simultaneamente o lugar onde se produziu o dano e o do evento causal, este conceito não pode todavia ser interpretado de modo extensivo ao ponto de englobar todo e qualquer lugar onde se possam fazer sentir as consequências danosas de um facto que causou já um dano efetivamente ocorrido noutro lugar. Em consequência, este conceito não pode ser interpretado como abrangendo o lugar onde a vítima alega ter sofrido um dano patrimonial consecutivo a um dano inicial ocorrido e sofrido por ela noutro Estado contratante (32).

60.      No processo que deu origem ao acórdão Shevill e o. (C‑68/93, EU:C:1995:61), no qual se pedia ao Tribunal de Justiça que interpretasse o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso» para efeitos de determinação das jurisdições competentes para conhecer de uma ação de indemnização dos prejuízos causados na sequência da divulgação na imprensa, em vários Estados‑Membros, de um artigo difamatório, o Tribunal de Justiça declarou que as considerações que tinha feito nos acórdãos Bier, dito «Mines de potasse d’Alsace», e Dumez France e Tracoba (C‑220/88, EU:C:1990:8), a propósito de danos materiais, também eram válidas no caso de prejuízos não patrimoniais.

61.      É interessante notar que, no que respeita a um dano que se manifesta nos lugares onde a publicação é difundida, o Tribunal de Justiça concluiu que o artigo 5.°, n.° 3, da Convenção de Bruxelas devia ser interpretado no sentido de que a vítima pode intentar uma ação de indemnização contra o editor, tanto nos órgãos jurisdicionais do Estado contratante do lugar de estabelecimento do editor da publicação difamatória, competentes para reparar a integralidade dos danos resultantes da difamação, como nos órgãos jurisdicionais de cada Estado contratante em que a publicação foi divulgada e onde a vítima alega ter sofrido um ataque à sua reputação, competentes para conhecer apenas dos danos causados no Estado do tribunal onde a ação foi proposta. Numa situação deste tipo, pode, com efeito, considerar‑se que não existe apenas um, mas vários danos iniciais.

62.      Quanto ao processo que deu origem ao acórdão Kronhofer (C‑168/02, EU:C:2004:364), o Tribunal de Justiça foi chamado a determinar se o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso» podia abarcar o lugar do domicílio da vítima, onde se localizava «o centro do seu património», de modo que esta última tinha o direito de intentar uma ação de indemnização no órgão jurisdicional correspondente. Esta questão foi colocada no quadro específico de uma ação de indemnização do prejuízo financeiro sofrido por um particular na sequência da realização de operações de bolsa com elementos do seu património que este tinha colocado previamente num Estado contratante diferente do do seu domicílio.

63.      O Tribunal de Justiça considerou que devia ser dada uma resposta negativa a esta questão.

64.      Recordando a jurisprudência do acórdão Marinari (C‑364/13, EU:C:1995:289), o Tribunal de Justiça decidiu, com efeito, que o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso» não pode ser interpretado de modo extensivo ao ponto de englobar todo e qualquer lugar onde se possam fazer sentir as consequências danosas de um facto que causou um dano efetivamente ocorrido noutro lugar (33). Em apoio desta conclusão, o Tribunal de Justiça precisou que tal interpretação faria depender a determinação do tribunal competente de circunstâncias incertas, tais como o lugar onde se encontra «o centro do património» do lesado, sendo consequentemente contrária ao reforço da proteção jurídica das pessoas domiciliadas na União (34).

65.      Por último, mais recentemente, pronunciando‑se desta vez sobre a interpretação do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento Bruxelas I, no processo que deu origem ao acórdão Zuid‑Chemie (C‑189/08, EU:C:2009:475), que tinha por objeto um litígio entre uma empresa produtora de adubos e uma empresa que fornecia matérias‑primas necessárias à produção desses adubos a propósito da entrega de um produto contaminado, o Tribunal de Justiça decidiu que os termos «lugar onde ocorreu o facto danoso» designam o lugar onde o dano inicial ocorreu devido à utilização normal do produto para os fins a que se destinava.

66.      No meu entender, a jurisprudência do Tribunal de Justiça no que respeita à interpretação do artigo 5.°, n.° 3, da Convenção de Bruxelas e do regulamento Bruxelas I é, pois, totalmente pertinente. Isto é tanto mais válido quanto, como sublinharam, com razão, a Comissão e o Governo português, o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso» (referido no artigo 5.°, n.° 3, da Convenção de Bruxelas e do Regulamento Bruxelas I), que visa não apenas o lugar do evento causal mas também o da materialização do dano, é mais vasto que o de «país onde ocorre o dano» (referido no artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II).

67.      Decorre desta jurisprudência que os prejuízos sofridos, no país onde residem, pelos familiares de uma pessoa falecida num acidente de viação ocorrido no Estado do foro devem ser qualificados como «consequências indiretas» do dano inicialmente sofrido pela vítima imediata do acidente.

68.      Acresce que, como afirmei anteriormente, a distinção feita entre o facto que deu origem ao dano e o próprio dano corresponde mais à intenção de privilegiar uma análise objetiva da responsabilidade civil do que à vontade de alargar a natureza dos danos abrangidos por essa disposição.

69.      Finalmente, deve notar‑se que o considerando 17 do Regulamento Roma II precisa que, «em caso de danos não patrimoniais ou patrimoniais, o país onde os danos ocorrem deverá ser o país em que o dano tenha sido infligido, respetivamente, à pessoa ou ao património».

70.      Por conseguinte, para efeitos da determinação do direito aplicável a uma ação de indemnização, parece unicamente pertinente o lugar em que ocorre o dano direto, independentemente das qualificações adotadas pelos direitos nacionais quanto à natureza ou ao caráter indemnizável dos referidos danos.

71.      Definitivamente, estou, por isso, inclinado a preferir claramente a abordagem sugerida a este respeito pela Comissão, por diversas razões.

72.      Em primeiro lugar, a menos que se ignore o caráter unificador do Regulamento Roma II, deve fazer‑se uma interpretação autónoma e objetiva do conceito de «país onde ocorre o dano».

73.      Tal como afirmei anteriormente, os direitos dos Estados‑Membros caraterizam‑se por diferenças significativas quanto à natureza e à extensão dos danos sofridos pelos membros da família de uma pessoa. Caso se devesse considerar que o dano referido pelo artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II abrange, na realidade, para além do dano diretamente sofrido pela pessoa falecida, todos os danos considerados sofridos jure proprio pelos sucessores da referida pessoa, seria de temer que a situação de facto de que os tribunais são chamados a conhecer se divida em diversas relações jurídicas, submetidas a leis diferentes, consoante a residência habitual da pessoa em questão. Ora, pode considerar‑se que, ao limitar os elementos de conexão tomados em conta nos termos da regra geral estabelecida pelo artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II (v. n.os 25 e 26 das presentes conclusões), o legislador também procurou limitar o número de legislações suscetíveis de serem aplicadas a cada situação.

74.      Neste contexto, a interpretação de que a regra geral consagrada, segundo a qual pela expressão «país onde ocorre o dano», referida no artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II, se entende o lugar do dano direto — no caso vertente, o da colisão mortal — tem o mérito da simplicidade e da objetividade, quando todos os danos alegados têm, na realidade, a mesma origem. Como afirmou o próprio órgão jurisdicional de reenvio, a aplicação da lei do lugar onde ocorreu o acidente impede nomeadamente que a situação de facto objeto da apreciação judicial possa ser decomposta em diferentes partes, sujeitas a uma lei diferente em função do lugar de residência das vítimas designadas.

75.      Em segundo lugar, parece‑me que esta apreciação é plenamente conforme com a previsibilidade ambicionada com a elaboração do Regulamento Roma II. Com efeito, na maioria dos casos, a pessoa cuja responsabilidade é invocada está em condições de antever as consequências do seu comportamento ou dos comportamentos das pessoas pelas quais tem de responder noutros países. Do mesmo modo, a vítima está, em princípio, ciente do contexto legal em que se expôs ou expôs os seus bens. Por outras palavras, tanto a pessoa cuja responsabilidade é invocada como a vítima têm conhecimento e tomaram as medidas, designadamente em matéria de seguros, que se impõem em função da lei aplicável no país ou nos países em que potencialmente ocorrem os danos (35).

76.      Em terceiro lugar, a regra geral de determinação da lei aplicável no Regulamento Roma II, diferentemente de outras regras (36), carateriza‑se pela neutralidade. Ora, para tomar como exemplo o prejuízo de ordem patrimonial dos sucessores de uma pessoa falecida na sequência de um acidente de viação, pode considerar‑se que a neutralidade da lei está comprometida na medida em que o prejuízo é sempre localizado no lugar de residência da vítima.

77.      Em quarto lugar, tal interpretação também me parece conforme com a outra ideia que está subjacente às conexões em direito internacional privado, a saber, a ideia da proximidade, que visa, tanto quanto possível, ligar uma situação à lei do país com o qual tem uma conexão mais estreita. Com efeito, se o local do acidente apresenta inegavelmente conexões com os outros elementos constitutivos da responsabilidade, não sucede necessariamente assim com o domicílio da vítima indireta (37).

78.      Para tomar o exemplo do processo principal, há que notar que a chamada a juízo da companhia de seguros Allianz, na qualidade de seguradora designada pelo Fundo de garantia automóvel, na falta de identificação do veículo responsável pela colisão mortal, foi possível precisamente por força do direito italiano (38).

79.      Em último lugar, é necessário sublinhar que o Regulamento Roma II institui mecanismos de correção que permitem mitigar de diversos modos a aparente rigidez da regra do local onde ocorre o dano.

80.      Antes de mais, a aplicação da lex locus damni deve ser afastada no caso de a pessoa responsável e a vítima do dano terem residência habitual no mesmo país. Neste caso, é a lei deste país que se aplica. Esta exceção, que procura fazer prevalecer a lei do país com a qual a situação em causa apresenta maior proximidade, evita as situações de conexão meramente fortuitas e apresenta uma grande utilidade, por exemplo, nos casos de acidentes de viação. Para ilustrar este caso, poderia tomar‑se como exemplo uma colisão entre dois veículos matriculados na Alemanha, cujos condutores residem ambos na Alemanha, ocorrida na Dinamarca no contexto de um transporte diário de mercadorias. Neste caso, a aplicação da lex locus damni poderá ser afastada a favor da lei alemã.

81.      Em seguida, a regra estabelecida no artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento Roma II pode ser afastada, nos termos do artigo 4.°, n.° 3, do mesmo regulamento, quando conduz a resultados não razoáveis, a favor da lei do país com a qual a situação em causa apresenta uma conexão manifestamente mais estreita. Esta cláusula escapatória permite, por exemplo no caso de a pessoa responsável e a pessoa lesada não terem residência habitual no mesmo país, aplicar a lei do país que se considera ser o centro de gravidade da situação controvertida (39). Essa regra deveria, assim, revelar‑se de toda a utilidade, por exemplo, no caso de se constatar que, diferentemente da situação em causa no processo principal, a residência da vítima imediata do acidente, a do presumível responsável ou qualquer outra circunstância conexa com a ocorrência desse acidente são alheias ao país em que o acidente ocorreu e têm uma relação com outro país.

82.      Finalmente, embora se possa considerar que a lex loci damni pode, em certas circunstâncias, ser desfavorável quando as vítimas mais ou menos diretas têm residência habitual num país diferente daquele em que o acidente ocorreu, o considerando 33 do Regulamento Roma II convida precisamente o tribunal em que a ação é proposta a ter em conta, na quantificação da indemnização por danos não patrimoniais, «todas as circunstâncias efetivas relevantes da vítima em causa, incluindo, em especial, os reais prejuízos e custos da assistência ulterior e do acompanhamento médico». O tribunal é, assim, convidado a ter em conta, tanto quanto possível, em especial na avaliação dos danos sofridos por pessoas não residentes no país onde ocorreu o acidente mortal, as diferenças de nível de vida e as despesas efetivamente suportadas pelas referidas vítimas no seu país de residência.

2.      Segundo aspeto: o conceito de «país onde ocorre o dano»

83.      Como resulta da resposta à segunda questão, dado que os danos sofridos pelos familiares da vítima de um acidente são consequências indiretas deste, o local onde ocorrem não é de modo nenhum pertinente na determinação da lei aplicável. Com efeito, deve entender‑se o conceito de local onde ocorre o dano, na continuidade do que foi consagrado pela jurisprudência relativa à Convenção de Bruxelas e ao Regulamento Bruxelas I, como o local onde ocorreu o facto, neste caso o acidente de viação, que produziu diretamente os seus efeitos danosos em relação à vítima imediata do mesmo.

84.      Em todo o caso, entendo que o conceito de «país onde ocorre o dano», nas circunstâncias concretas do caso vertente, deve ser entendido como o local onde ocorreu o acidente de viação. Este conceito não pode ser entendido no sentido de que abrange os locais dos outros danos sofridos em consequência do próprio acidente, quer pela vítima direta do mesmo quer por terceiros familiares da referida vítima. O caráter patrimonial ou não patrimonial dos danos alegados neste contexto é irrelevante.

IV – Conclusão

85.      Tendo em conta todas as considerações expostas, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Tribunale civile di Trieste nos termos seguintes:

«O artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (‘Roma II’), deve ser interpretado no sentido de que os prejuízos sofridos, no país onde residem, pelos familiares de uma pessoa falecida num acidente de viação ocorrido no Estado do foro devem ser qualificados como ‘consequências indiretas’ na aceção dessa disposição. Em consequência, o conceito de ‘país onde ocorre o dano’, referido nessa disposição, no caso de um acidente de viação, deve ser interpretado no sentido de que se refere ao local onde o facto que deu origem ao dano, neste caso o acidente de viação, produziu diretamente os seus efeitos danosos em relação à vítima imediata do mesmo.»


1 —      Língua original: francês.


2 —      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II») (JO L 199, p. 40, a seguir «Regulamento Roma II»).


3 —      Importa sublinhar que o Tribunal de Justiça não apenas não teve até agora a oportunidade para se pronunciar sobre o alcance desta disposição, mas também, de modo mais geral, não fez uma interpretação material do Regulamento Roma II. Com efeito, com exceção do acórdão Homawoo (C‑412/10, EU:C:2011:747), que se referia à aplicação ratione temporis do referido regulamento, o Tribunal de Justiça apenas fez, até agora, uma simples referência ao referido regulamento (v. acórdãos Football Dataco e o., C‑173/11, EU:C:2012:642, e Kainz, C‑45/13, EU:C:2014:7). Todavia, deve sublinhar‑se que a interpretação do artigo 4.° do Regulamento Roma II é pedida em diversos processos atualmente pendentes no Tribunal de Justiça (v., em especial, conclusões do advogado‑geral Szpunar no processo Prüller‑Frey, C‑240/14, EU:C:2015:325; processos apensos C‑359/14 e C‑475/14, ERGO Insurance e o.; e processo C‑191/15, Verein für Konsumenteninformation).


4 —      Regulamento do Conselho de 22 de dezembro de 2000 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1, a seguir «Regulamento Bruxelas I»).


5 —      V., a este respeito, as primeiras tentativas de uniformização das regras de conflitos em matéria extracontratual efetuadas em 1972 pelo anteprojeto de convenção comunitária sobre a lei aplicável às obrigações contratuais e extracontratuais (Revue critique de droit international privé, 1973, p. 209).


6      As regras especiais previstas por estas disposições referem‑se, respetivamente, à «responsabilidade por produtos defeituosos», à «concorrência desleal e [aos] atos que restrinjam a livre concorrência», aos «danos ambientais», à «violação de direitos de propriedade intelectual» e à «ação coletiva».


7 —      COM(2003) 427 final, n.° 2.1 da proposta.


8 —      JO 1980, L 266, p. 1. V., a este respeito, a regra geral de determinação da lei aplicável ao contrato na falta de escolha das partes, prevista pelo artigo 4.° dessa convenção.


99—      V., nomeadamente, relatório da Comissão dos Assuntos Jurídicos do Parlamento, de 27 de junho de 2005, sobre a proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II») [(COM(2003) 427 — C5‑0338/2003 — 2003/0168(COD)], que propunha a inserção de uma disposição nos termos da qual «[e]m caso de danos pessoais provocados por acidentes de circulação, porém, tendo em conta a Diretiva relativa ao seguro automóvel, o tribunal competente e a seguradora do condutor responsável devem, para efeitos de determinação do tipo de indemnização por danos e cálculo do montante deste última, aplicar as disposições relativas ao local de residência habitual do lesado, a menos que tal não seja equitativo para este último».


10 —      Nos termos deste considerando, «[a]s regras uniformes deverão reforçar a previsibilidade das decisões judiciais e assegurar um equilíbrio razoável entre os interesses da pessoa alegadamente responsável e os interesses do lesado […]».


11 —      V., por exemplo, Boskovic, O., «Loi applicable aux obligations non contractuelles (matières civile et commerciale)», Répertoire de droit européen, atualizado em setembro de 2010, ponto 26.


12 —      C‑220/88, EU:C:1989:595.


13 —      Ibidem, n.os 23 e 24.


14 —      V., para uma panorâmica das legislações nacionais em vigor à época dos factos na origem desse acórdão, as considerações expostas nos n.os 34 a 38 das conclusões já referidas.


15 —      Trata‑se do Reino da Bélgica, da República Checa, do Reino de Espanha, da República Francesa, da República da Letónia, da República da Lituânia, do Grão‑Ducado do Luxemburgo, do Reino dos Países Baixos, da República da Áustria, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca.


16 —      Nos termos desta disposição, «[o] presente regulamento não prejudica a aplicação das convenções internacionais de que um ou mais Estados‑Membros sejam parte na data de aprovação do presente regulamento e que estabeleçam regras de conflitos de leis referentes a obrigações extracontratuais».


17 —      Para uma exemplificação da aplicação desta Convenção, apesar da entrada em vigor do Regulamento Roma II, v. acórdão Haasová (C‑22/12, EU:C:2013:692, n.° 36).


18 —      Neste sentido, a Primeira Secção da Cour de cassation (França) decidiu recentemente, num processo que tinha certas semelhanças com o processo principal, que a referida Convenção prevalecia sobre o Regulamento Roma II (acórdão da Cour de cassation, 1.ª Secção Cível, de 30 de abril de 2014, n.° 13‑11.932, ECLI:FR:CCASS:2014:C100428).


19 —      Para uma visão geral das questões suscitadas a este respeito, v. nomeadamente, Malatesta, A., «The Law Applicable to Traffic Accidents», The Unification of Choice of Law Rules on Torts and Other Non‑Contractual Obligations in Europe, 2006, p. 85 a 106; Kadner Graziano, T., The Roma II Regulation and the Hague Conventions on Traffic Accidents and Product Liability — Interaction, Conflicts and Future Perspectives, Nederlands Internationaal Privaatrecht. 26e jaarg. 2008, afl. 4, p. 425 a 429; von Hein, J., «Article 4 and Traffic Accidents», The Roma II Regulation on the law applicable to non‑contractual obligations, 2009, p. 153 a 173; Nagy, C. I., «The Roma II Regulation and Traffic Accidents: Uniform Conflict Rules with Some Room for Forum Shopping — How So?», Journal of Private International Law, vol. 6, 2010, no 1, p. 93‑108, e Papettas, J., «Direct Actions Against Insurers of Intra‑Community Cross Border Traffic Accidents: Roma II and the Motor Insurance Directives», Journal of private international law, vol. 8, 2012, no 2, p. 297 a 321.


20 —      V. COM(2003) 427 final, de 22 de julho de 2003, p. 12.


21 —      Idem.


22 —      Convenção de Bruxelas  relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, assinada em Bruxelas em 27 de setembro de 1968 (JO 1972, L 299, p. 32), modificada pelas convenções posteriores relativas à adesão dos novos Estados‑Membros a esta convenção (a seguir «Convenção de Bruxelas»).


23 —      V. acórdãos Bier, dito «Mines de potasse d’Alsace» (C‑21/76, EU:C:1976:166, n.° 11); Marinari (C‑364/93, EU:C:1995:289, n.os 10 e segs.) e Shevill e o. (C‑68/93, EU:C:1995:61, n.os 19 e segs.)


24 —      V., neste sentido, acórdão Kronhofer (C‑168/02, EU:C:2004:364, n.° 18).


25 —      V., nomeadamente, acórdão DFDS Torline (C‑18/02, EU:C:2004:74, n.° 27 e jurisprudência aí referida).


26 —      C‑220/88, EU:C:1990:8.


27 —      Acórdão Dumez France e Tracoba, C‑220/88, EU:C:1990:8, n.os 13 e 14.


28 —      Acórdão Dumez France e Tracoba, C‑220/88, EU:C:1990:8, n.° 20.


29 —      Acórdão Dumez France e Tracoba, C‑220/88, EU:C:1990:8, n.° 21.


30 —      Acórdão Marinari, C‑364/93, EU:C:1995:289.


31 —      V. p. 12 da referida proposta.


32 —      Acórdão Marinari (C‑364/93, EU:C:1995:289, n.os 14 et 15).


33 —      Acórdão Kronhofer (C‑168/02, EU:C:2004:36, n.° 19).


34 —      Acórdão Kronhofer (C‑168/02, EU:C:2004:36, n.° 20).


35 —      V. Calliess, G.‑P., Roma Regulations: Commentary on the European Rules of the Conflict of Laws, 2e éd., Wolters Kluwer, 2015 p. 498.


36 —      V., em especial, artigos 6.° (no que respeita a atos de concorrência) e 7.° (no que respeita a danos ambientais) do Regulamento Roma II.


37 —      V., por analogia, acórdão Dumez France e Tracoba (C‑220/88, EU:C:1990:8, n.° 21).


38 —      Resulta da decisão de reenvio que o artigo 283.°, alíneas a) e c), do código dos seguros privados italiano prevê que, quando o veículo que causou o dano não está identificado, o Fundo de garantia automóvel indemniza os danos causados por um acidente de viação por intermédio de companhias de seguros designadas em todo o território nacional.


39 —      V. relatório que acompanha a proposta de regulamento Roma II, já referido, p. 13.