Language of document : ECLI:EU:T:2003:17

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Segunda Secção Alargada)

28 de Janeiro de 2003 (1)

«Medicamentos para uso humano - Procedimentos comunitários de arbitragem - Revogação das autorizações de introdução no mercado - Competência - Anorexígenos serotoninérgicos: dexfenfluramina, fenfluramina - Directivas 65/65/CEE e 75/319/CEE»

No processo T-147/00,

Les Laboratoires Servier, com sede em Neuilly-sur-Seine (França), representada por C. Norall, E. Wright, I. F. Utgès Manley, I. S. Forrester e J. Killick, advogados, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por H. Støvlbæk e R. Wrainwright, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrida,

que tem por objecto um pedido de anulação da decisão da Comissão, de 9 de Março de 2000, relativa ao cancelamento das autorizações de introdução no mercado de medicamentos para uso humano contendo dexfenfluramina e fenfluramina [C(2000) 573],

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Segunda Secção Alargada),

composto por: R. M. Moura Ramos, presidente, V. Tiili, J. Pirrung, P. Mengozzi e A. W. H. Meij, juízes,

secretário: D. Christensen, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 7 e 8 de Maio de 2002,

profere o presente

Acórdão

O enquadramento jurídico

Directiva 65/65/CEE

1.
    Em 26 de Janeiro de 1965, o Conselho adoptou a Directiva 65/65/CEE relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas, respeitantes às especialidades farmacêuticas (JO 1965, 22, p. 369; EE 13 F1 p. 18). Esta directiva foi modificada por diversas vezes, nomeadamente pelas Directivas 83/570/CEE do Conselho, de 26 de Outubro de 1983 (JO L 332, p. 1; EE 13 F14 p. 205), e 93/39/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993 (JO L 214, p. 22) (a seguir, na sua nova redacção, «Directiva 65/65»). O artigo 3.° desta directiva estabelece o princípio segundo o qual nenhum medicamento pode ser introduzido no mercado num Estado-Membro sem uma autorização para tal previamente emitida pela autoridade competente desse Estado-Membro nos termos da referida directiva ou sem uma autorização concedida ao abrigo do Regulamento (CEE) n.° 2309/93 do Conselho, de 22 de Julho de 1993, que estabelece procedimentos comunitários de autorização e fiscalização de medicamentos de uso humano e veterinário e institui uma Agência Europeia de Avaliação dos Medicamentos (JO L 214, p. 1).

2.
    O artigo 4.° da Directiva 65/65 determina, designadamente, que, tendo em vista a concessão da autorização de introdução no mercado (a seguir «AIM») prevista no artigo 3.°, o responsável por essa introdução no mercado apresenta à autoridade competente do Estado-Membro o pedido correspondente. Segundo o artigo 5.°, essa autorização é recusada quando se verifique que a especialidade farmacêutica é nociva em condições normais de utilização, que não tem efeito terapêutico ou que este está insuficientemente comprovado pelo requerente, que o medicamento não tem a composição qualitativa e quantitativa declarada, ou que a documentação e as informações apresentadas em apoio do pedido não são conformes ao disposto no artigo 4.° Nos termos do artigo 4.°-B da Directiva 65/65, quando é emitida uma AIM ao abrigo do artigo 3.°, a autoridade competente do Estado-Membro em questão informa o responsável pela introdução do medicamento no mercado que aprova o resumo das características do produto a que se refere o artigo 4.°, segundo parágrafo, ponto 9, resumo este cujo teor é definido no artigo 4.°-B.

3.
    O artigo 10.°, n.° 1, da Directiva 65/65 prevê que a autorização é válida por um período de cinco anos, renovável por iguais períodos, após análise, pela autoridade competente, de um processo que descreva, nomeadamente, a situação respeitante aos dados da farmacovigilância e que inclua outras informações pertinentes para o controlo do medicamento.

4.
    O artigo 11.°, primeiro parágrafo, da Directiva 65/65 estabelece:

«As autoridades competentes dos Estados-Membros suspenderão ou revogarão a autorização de [introdução] no mercado, quando se revelar que a especialidade farmacêutica é nociva nas condições normais de emprego ou que falta o efeito terapêutico ou, por fim, que a especialidade não tem a composição quantitativa e qualitativa declarada. O efeito terapêutico falta quando se apurar que a especialidade farmacêutica não permite obter resultados terapêuticos.»

5.
    De acordo com o artigo 21.° da Directiva 65/65, a AIM só pode ser recusada, suspensa ou revogada pelas razões enumeradas nesta directiva.

Directiva 75/318/CEE

6.
    A Directiva 75/318/CEE do Conselho, de 20 de Maio de 1975, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes às normas e protocolos analíticos, toxicofarmacológicos e clínicos em matéria de ensaios de especialidades farmacêuticas (JO L 147, p. 1; EE 13 F4 p. 80), alterada por várias vezes, designadamente pelas Directivas 83/570 e 93/39 (a seguir, na sua nova redacção, «Directiva 75/318»), fixa as regras comuns para a realização dos ensaios a que se refere o artigo 4.°, segundo parágrafo, ponto 8, da Directiva 65/65 e especifica quais as informações e os documentos que devem ser juntos ao pedido de AIM de um medicamento, nos termos dos pontos 3, 4, 6 e 7 do mesmo parágrafo.

7.
    Os sétimo e oitavo considerandos desta directiva têm a seguinte redacção:

«Considerando que as noções de ‘nocividade’ e de ‘efeito terapêutico’ constantes do artigo 5 .° da Directiva 65/65/CEE não podem ser examinadas senão em relação recíproca e apenas têm um significado relativo, apreciado em função do progresso da ciência e tendo em conta o destino da especialidade farmacêutica; que dos documentos e informações que devem ser juntos ao pedido de autorização de [introdução] no mercado deve sobressair a eficácia terapêutica em relação aos riscos potenciais; que, se tal não for o caso, o pedido deve ser rejeitado;

Considerando que a apreciação da nocividade e do efeito terapêutico pode evoluir em virtude de novas descobertas, e que as normas e protocolos devem ser adaptados periodicamente ao progresso científico.»

Directiva 75/319/CEE

8.
    A Segunda Directiva 75/319/CEE do Conselho, de 20 de Maio de 1975, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes às especialidades farmacêuticas (JO L 147, p. 13; EE 13 F4 p. 92), alterada por várias vezes, designadamente pelas Directivas 83/570 e 93/39 (a seguir, na sua nova redacção, «Directiva 75/319»), institui, no seu capítulo III (artigos 8.° a 15.°-C), um procedimento de reconhecimento mútuo das AIM nacionais (artigo 9.°), que se combina com procedimentos de arbitragem comunitários.

9.
    Esta directiva prevê expressamente a consulta do Comité das Especialidades Farmacêuticas (a seguir «CEF») da Agência Europeia de Avaliação de Medicamentos (EMEA), para aplicação do procedimento regulado pelo artigo 13.°, quando, no âmbito do procedimento de reconhecimento mútuo instituído pelo artigo 9.°, um Estado-Membro considere que há razões para supor que a autorização de um medicamento pode constituir um risco para a saúde pública e os Estados-Membros não cheguem a acordo no prazo fixado (artigo 10.° da referida directiva), em caso de decisões divergentes dos Estados-Membros a respeito da concessão, da suspensão ou da revogação das autorizações nacionais (artigo 11.°) e em casos específicos em que esteja envolvido o interesse comunitário (artigo 12.°). Além disso, esta directiva faz depender expressamente a modificação, a suspensão ou a revogação das AIM concedidas nos termos das disposições do seu capítulo III da aplicação dos procedimentos previstos nos seus artigos 13.° e 14.° (artigos 15.° e 15.°-A). Por último, no artigo 15.°-B, prevê a aplicação mutatis mutandis dos artigos 15.° e 15.°-A aos medicamentos autorizados pelos Estados-Membros, após parecer do CEF, emitido antes de 1 de Janeiro de 1995, nos termos do artigo 4.° da Directiva 87/22/CEE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1986, relativa à aproximação das medidas nacionais respeitantes à colocação no mercado dos medicamentos de alta tecnologia, nomeadamente dos resultantes da biotecnologia (JO 1987, L 15, p. 38). Os procedimentos instituídos pelos artigos 12.° e 15.°-A da Directiva 75/319 têm especial interesse no presente caso.

10.
    O artigo 12.° da Directiva 75/319 estabelece:

«Em casos específicos em que esteja envolvido o interesse comunitário, os Estados-Membros, a Comissão, o requerente ou o titular da autorização podem submeter a questão ao [CEF], com vista à aplicação do procedimento previsto no artigo 13.°, antes de ser tomada qualquer decisão sobre o pedido, a suspensão ou a revogação da autorização de introdução no mercado ou sobre qualquer outra alteração, eventualmente necessária, dos termos da referida autorização, nomeadamente para atender às informações obtidas [no quadro do sistema de farmacovigilância previsto no] capítulo V-A.

O Estado-Membro interessado ou a Comissão devem definir claramente a questão submetida à consideração do CEF e informar o responsável pela introdução no mercado do medicamento.

Os Estados-Membros e o responsável pela introdução no mercado enviarão ao CEF todas as informações disponíveis sobre o assunto em questão.»

11.
    O artigo 15.°-A da Directiva 75/319 dispõe:

«1.    Caso um Estado-Membro considere necessário, para proteger a saúde pública, alterar os termos de uma autorização de introdução no mercado concedida em conformidade com o disposto no presente capítulo, suspendê-la ou revogá-la, submeterá de imediato a questão ao [CEF], a fim de que sejam aplicados os procedimentos previstos nos artigos 13.° e 14.°

2.    Sem prejuízo do disposto no artigo 12.°, em casos excepcionais em que seja necessária uma acção urgente para proteger a saúde pública e até ser tomada uma decisão definitiva, qualquer Estado-Membro pode suspender a comercialização no mercado e a utilização do medicamento em questão no seu território. Deve notificar a Comissão e os outros Estados-Membros, o mais tardar no dia útil seguinte, dos motivos dessa medida.»

12.
    O artigo 13.° da Directiva 75/319 regula a tramitação do procedimento perante o CEF, que emite um parecer fundamentado. O n.° 5 deste artigo estabelece que a EMEA transmite o parecer final do CEF aos Estados-Membros, à Comissão e ao responsável da introdução no mercado, juntando um relatório que descreva a avaliação do medicamento e as razões que justificam as suas conclusões. O artigo 14.° desta directiva regula o processo decisório comunitário. Nos termos do seu primeiro parágrafo do n.° 1, nos 30 dias seguintes à recepção do parecer do CEF, a Comissão prepara um projecto de decisão sobre o pedido, tendo em conta as disposições do direito comunitário. Nos termos do terceiro parágrafo deste mesmo n.° 1, «[c]aso, a título excepcional, o projecto de decisão não corresponda ao parecer da [EMEA], a Comissão deve fundamentar pormenorizadamente num anexo os motivos de quaisquer divergências». A decisão definitiva é adoptada segundo o procedimento de regulamentação a que se referem os artigos 5.° e 7.° da Decisão 1999/468/CE do Conselho, de 28 de Junho de 1999, que fixa as regras de exercício das competências de execução atribuídas à Comissão (JO L 184, p. 23). No quadro deste procedimento, a Comissão é assistida pelo comité permanente dos medicamentos para uso humano, instituído pelo artigo 2.°-B da Directiva 75/318.

Código comunitário dos medicamentos para uso humano

13.
    O conjunto das directivas relativas aos medicamentos para uso humano, que regem o «procedimento comunitário descentralizado», designadamente as Directivas 65/65, 75/318 e 75/319, foi objecto de codificação pela Directiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO L 311, p. 67, a seguir «código»). Apesar de o código não estar em vigor no momento em que foram adoptadas as decisões impugnadas, importa, se for necessário, tê-lo em consideração. Como o código retoma, num quadro de conjunto melhor estruturado, sem as modificar, as disposições das Directivas 65/65 e 75/319, a análise sistemática das disposições do capítulo III desta última directiva inscreve-se na economia deste código.

Matéria de facto subjacente ao litígio

14.
    A recorrente, Les Laboratoires Servier, é titular de AIM, inicialmente concedidas pelas autoridades nacionais competentes, de medicamentos contendo fenfluramina ou dexfenfluramina, substâncias anorexígenas serotoninérgicas. Estes anorexígenos com acção central - isto é, que actuam ao nível do sistema nervoso central - aceleram a sensação de saciedade e são utilizados no tratamento da obesidade. Na Europa, os medicamentos contendo fenfluramina beneficiaram, pela primeira vez, de uma AIM concedida em conformidade com as disposições da Directiva 65/65, em 1965, e os contendo dexfenfluramina, em 1985. Segundo as indicações fornecidas pela recorrente, nos Estados Unidos, a fenfluramina foi autorizada nos anos 70 e a dexfenfluramina em 1996.

15.
    A dexfenfluramina e a fenfluramina já tinham sido objecto da Decisão C(96) 3608 final/2 da Comissão, de 9 de Dezembro de 1996, relativa à comercialização dos medicamentos para uso humano que contêm as substâncias seguintes: dexfenfluramina, fenfluramina (a seguir «decisão de 9 de Dezembro de 1996»), após parecer do CEF consultado nos termos do artigo 12.° da Directiva 75/319 (v., infra, n.os 21 a 26).

16.
    Após terem sido revelados no estudo Connolly [New England Journal of Medecine (NEJM), 1997, vol. 337] e objecto de publicação, no mês de Julho de 1997, pela Food and Drug Administration (Agência americana da Alimentação e dos Medicamentos), num boletim intitulado Health Advisory on Fenfluramine/Phentermine for Obesity, uma série de casos de valvulopatias cardíacas (a seguir «VPC»), relatados nos Estados Unidos principalmente no que respeita a pacientes que tomaram fenfluramina combinada com fentermina, a recorrente e os seus licenciados retiraram imediatamente do mercado os medicamentos contendo fenfluramina ou dexfenfluramina, enquanto aguardavam estudos complementares que pudessem confirmar as suas características em termos de segurança.

17.
    Em Setembro de 1997, face aos casos assim relatados, foram suspensas em todos os Estados-Membros e nos Estados-Unidos as AIM de medicamentos contendo dexfenfluramina e fenfluramina.

18.
    Por decisão de 9 de Março de 2000, adoptada na sequência de uma reavaliação destas substâncias ao abrigo do disposto no artigo 15.°-A da Directiva 75/319, a Comissão ordenou a revogação das AIM de medicamentos para uso humano que contêm as seguintes substâncias: dexfenfluramina e fenfluramina [Decisão C(2000) 573, a seguir «decisão impugnada»]. Esta decisão enumera, no seu anexo I, os medicamentos em questão, as empresas que os comercializavam - ou seja, a recorrente, as suas filiais ou os seus licenciados - e os Estados-Membros em causa.

19.
    Segundo a resposta da recorrente a uma questão escrita do Tribunal, antes da adopção desta decisão, tinha expirado o período de validade de cinco anos - fixado pelo artigo 10.°, n.° 1, da Directiva 65/65 - das AIM de certos medicamentos por si comercializados e abrangidos pela decisão impugnada. Na audiência, a recorrente precisou, porém, que, na altura dessa adopção, estavam em curso procedimentos de renovação dessas autorizações junto das autoridades competentes dos Estados-Membros em causa. Esses procedimentos foram interrompidos como consequência da decisão impugnada. As AIM continuavam, pois, válidas, segundo as regras nacionais aplicáveis, enquanto se aguardava a adopção das decisões sobre os pedidos de renovação. Estas declarações não foram contestadas pela Comissão.

20.
    Na audiência, a recorrente acrescentou, porém, que, entretanto, as AIM dos medicamentos em questão foram suspensas ou revogadas, em cumprimento da decisão impugnada, pelas autoridades competentes dos Estados-Membros em causa.

Decisão C(96) 3608 final/2 da Comissão, de 9 de Dezembro de 1996

21.
    Em 17 de Maio de 1995, a República Federal da Alemanha consultou o CEF, ao abrigo do artigo 12.° da Directiva 75/319, afirmando-se preocupada com os riscos apresentados por certos anorexígenos que actuam por via central, entre os quais figuravam os medicamentos contendo substâncias serotoninérgicas comercializadas pela recorrente, bem como os anorexígenos «de tipo anfetamínico». Enquanto estes últimos aumentam a neurotransmissão ao nível dos neurotransmissores (catecolamina) e produzem habitualmente um efeito estimulante, os anorexígenos serotoninérgicos actuam aumentando a libertação e inibindo a recaptura de serotonina e não têm efeito estimulante ou euforizante. A autoridade alemã competente suspeitava que o conjunto destes medicamentos provocava hipertensão arterial pulmonar primária (a seguir «HPP»).

22.
    O CEF instaurou o procedimento previsto no artigo 13.° da Directiva 75/319 para avaliar estas duas categorias de anorexígenos.

23.
    No seu relatório científico de avaliação de 5 de Fevereiro de 1996, o relator, o Dr. Le Courtois, analisou a relação benefício/risco dos anorexígenos. Realçou, neste quadro, por um lado, o risco de HPP, «a maior parte das vezes fatal», com base no relatório do estudo internacional sobre HPP (International Primary Pulmonary Hypertension Study, a seguir «estudo IPPH»), datado de 7 de Março de 1995. Sublinhou, por outro lado, que, «[...] quando a obesidade é de tal modo grave que reduz a esperança de vida do paciente, é necessário um tratamento farmacológico, no quadro de uma abordagem global que inclua medidas dietéticas, psicoterapia e exercício. Os anorexígenos representam actualmente o único tratamento farmacológico disponível e têm, assim, um papel no tratamento da obesidade». No que respeita mais especificamente à fenfluramina e à dexfenfluramina, afirmou que satisfaziam o critério da eficácia a longo prazo (um ano) e a finalidade do tratamento da obesidade, que é conseguir uma perda de peso prolongada e duradoura. A não dependência associada a estas substâncias facilitará a sua utilização a longo prazo. Contudo, o relatório salientou a existência de um nexo de causalidade entre a ingestão destas substâncias e a HPP. Além disso, embora pareçam ser as mais eficazes, a sua capacidade de redução da morbilidade e da mortalidade ainda não foi demonstrada. O relator concluiu preconizando uma harmonização de certos dados constantes do resumo das características do produto respeitante aos medicamentos em causa.

24.
    Em 17 de Julho de 1996, o CEF emitiu um parecer final a respeito da fenfluramina e da dexfenfluramina. Recomendou a manutenção das AIM, mas com um certo número de modificações dos resumos das características do produto relativos aos medicamentos que contêm estas substâncias.

25.
    No seu relatório de avaliação de 18 de Julho de 1996, respeitante ao conjunto das substâncias anorexígenas, o CEF recordou que, segundo as conclusões do grupo de trabalho «farmacovigilância», composto por peritos nacionais no domínio da farmacovigilância e responsável pelo aconselhamento do CEF em questões relativas à segurança dos medicamentos, o relatório do estudo IPPH, de 7 de Março de 1995, tinha comprovado a existência de um nexo de causalidade entre a ingestão de substâncias anorexígenas e o aparecimento de HPP. Resulta dos autos que este estudo tinha sido realizado de 1992 a 1994, por iniciativa da recorrente, por um grupo internacional de peritos independentes nos domínios da epidemiologia e da pneumologia, para avaliação da probabilidade de haver uma relação entre o aparecimento de HPP e a exposição a uma série de factores, em especial, a tomada de anorexígenos. Além disso, o CEF salientou nomeadamente que foram relatados casos de HPP associados a todos os anorexígenos que actuam por via central (com excepção do fenbutrazato e da propilhexedrina). Afirmou que «se tratava de um efeito de classe». No que toca mais especificamente à fenfluramina e à dexfenfluramina, indicou que estas substâncias tinham sido recentemente objecto de estudos a longo prazo e a curto prazo, bem como de relatórios e numerosas publicações. A sua eficácia a longo prazo terá sido comprovada. Contudo, esta eficácia terá sido unicamente comprovada no que respeita à perda de peso. O CEF concluiu que, nessas condições, a relação benefício/risco das substâncias anorexígenas era favorável, desde que fosse modificado o resumo das características do produto relativo aos medicamentos em causa.

26.
    Este processo levou à adopção da decisão de 9 de Dezembro de 1996, que se baseia expressamente nos artigos 12.° e 14.° da Directiva 75/319. Em conformidade com o parecer do CEF de 17 de Julho de 1996, a Comissão ordenou aos Estados-Membros em causa que modificassem certos dados clínicos constantes dos resumos das características do produto aprovados quando da concessão das AIM para os medicamentos em questão. A Comissão ordenava que fossem mencionados os seguintes dados clínicos:

«Indicações terapêuticas:

Terapêutica adjuvante da dieta, em doentes com obesidade e um índice de massa corporal (IMC) de 30 kg/m2 ou superior, que não responderam a um regime de perda de peso apenas.

Nota: Um estudo recente, controlado por dupla ocultação durante um período de um ano, demonstrou que o número de pacientes que respondiam ao tratamento no termo de um ano era duas vezes mais importante no grupo que recebia dexfenfluramina ou fenfluramina e o regime hipocalórico do que no [dos pacientes] tratados com placebo e um regime. Uma diminuição de 10% do peso corpóreo inicial foi observada em, respectivamente, 35% e 17% dos pacientes. A eficácia apenas foi demonstrada no que respeita à redução de peso. Não se encontram ainda disponíveis dados sobre alterações na morbilidade ou na mortalidade.

Posologia e modo de administração:

Recomenda-se que o tratamento seja conduzido sob vigilância de médicos com experiência no tratamento da obesidade [...].

O tratamento da obesidade deve ser efectuado utilizando uma abordagem global que deverá incluir dieta, métodos psicoterapêuticos e médicos [...].

A duração do tratamento não deve exceder os três meses no que toca a pacientes que apresentem, nos três meses seguintes ao início do tratamento, uma perda de peso igual ou superior a 10% do peso inicial. Se a perda de peso não se mantiver durante o tratamento, este último não deve ser prosseguido. Não se encontram ainda disponíveis dados sobre a eficácia destes medicamentos após um ano de tratamento.

Contra-indicações:

-    Hipertensão arterial pulmonar.

-    História médica actual ou passada de doença cardiovascular ou vascular cerebral.

-    História médica actual ou passada de perturbações psiquiátricas, incluindo anorexia nervosa e depressão.

-    Propensão para o abuso de medicamentos, alcoolismo conhecido.

-    Crianças de idade inferior a 12 anos.

A terapêutica medicamentosa combinada com qualquer outro anorexígeno de acção central é contra-indicada devido ao risco aumentado de hipertensão arterial pulmonar potencialmente fatal.

Advertências e precauções especiais de utilização:

[...] Têm sido relatados casos de hipertensão arterial pulmonar grave, frequentemente fatal, em doentes que receberam anorexígenos [deste tipo]. Um estudo epidemiológico demonstrou que a ingestão de dexfenfluramina ou de fenfluramina constitui um factor de risco relacionado com o desenvolvimento da hipertensão arterial pulmonar e que a ingestão de anorexígenos está fortemente associada a um risco aumentado para esta reacção adversa ao medicamento. Em virtude deste raro mas grave risco, há que sublinhar dever ser cuidadosamente respeitada a indicação terapêutica e a duração do tratamento; uma duração de tratamento superior a três meses, bem como um IMC [superior ou igual a] 30 kg/m2 aumentam o risco de hipertensão arterial pulmonar; a ocorrência ou o agravamento de dispneia de esforço devem levar à suspeita de um caso de hipertensão arterial pulmonar. Nestas circunstâncias, há que pôr imediatamente termo ao tratamento e o paciente deve ser encaminhado para uma unidade especializada para ser examinado.»

27.
    Por último, a decisão de 9 de Dezembro de 1996 mencionava, entre os efeitos indesejáveis, a HPP, alguns efeitos sobre o sistema nervoso central (essencialmente depressão, confusão, agitação, distúrbios do sono, tonturas e vertigens) e efeitos cardiovasculares (essencialmente, taquicardia e síncope).

A decisão impugnada

28.
    Em 22 de Outubro de 1997, após vários Estados-Membros terem notificado à EMEA as suas decisões de suspender as AIM dos medicamentos contendo fenfluramina ou dexfenfluramina (v., supra, n.° 17), a questão foi colocada ao CEF ao abrigo do artigo 15.°-A da Directiva 75/319.

29.
    Os relatórios e o relatório complementar (relatório Picon/Abadie e relatório Castot/Costagliola/Fosset-Martinetti/Ropers) foram apresentados, respectivamente, em Junho de 1998 e em Abril de 1999. Em 22 de Abril de 1999, o CEF emitiu o seu parecer inicial a respeito da avaliação científica dos medicamentos contendo dexfenfluramina e fenfluramina e aconselhou a revogação das AIM destes medicamentos.

30.
    Em 11 de Maio de 1999, a recorrente interpôs, no CEF, recurso administrativo contra este parecer, ao abrigo do artigo 13.°, n.° 4, segundo período, da Directiva 75/319. Foram apresentados relatórios pelo relator (relatório O'Mahony/Slattery de 19 de Julho de 1999, actualizado em 20 de Agosto de 1999) e pelo co-relator (relatório Van Bronswijk de 16 de Julho de 1999), nomeados no âmbito deste processo de recurso.

31.
    No seu parecer final de 31 de Agosto de 1999 a respeito dos medicamentos contendo dexfenfluramina ou fenfluramina, o CEF indeferiu o recurso da recorrente e manteve a sua recomendação de revogação da AIM dos medicamentos em questão, por apresentarem uma relação benefício/risco desfavorável.

32.
    Nas suas conclusões científicas em anexo a este parecer, bem como no seu relatório de avaliação respeitante à dexfenfluramina e à fenfluramina de 31 de Agosto de 1999, o CEF salienta que os dois principais problemas de segurança examinados dizem respeito à HPP e às VPC «em condições normais de utilização».

33.
    No que toca à HPP, baseia-se, por um lado, nas observações provenientes da notificação espontânea de 105 casos de HPP, relatados nos relatórios recebidos antes de 31 de Dezembro de 1998, e, por outro lado, no estudo IPPH. Remete para o relatório deste estudo, de 7 de Março de 1995, para o relatório final do estudo IPPH publicado no New England Journal of Medecine de 29 de Agosto de 1996 (NEJM, vol. 335, n.° 9), bem como para os resultados respeitantes aos únicos derivados da fenfluramina objecto de relatório nas revistas especializadas (NEJM de 11 de Fevereiro de 1999, vol. 340, n.° 6). Após ter «reavaliado o estudo [IPPH] à luz dos argumentos» dos titulares das AIM em causa, concluiu que «as provas a favor de uma relação causal entre a ingestão de anorexígenos e a ocorrência de uma [HPP] continuam a ser válidas».

34.
    No que toca às VPC, o CEF observa que, nos casos de VPC relatados no quadro da notificação espontânea, os pacientes tinham geralmente seguido um tratamento por associação de anorexígenos durante um período médio de cinco meses no momento do diagnóstico. Os casos relatados demonstraram que as VPC são potencialmente graves e exigem por vezes intervenção cirúrgica. Não estariam disponíveis dados definitivos sobre a evolução clínica (agravamento ou regressão) destas VPC. Quanto aos estudos epidemiológicos, em especial os estudos Jick, Weissman e Khan (NEJM de 10 de Setembro de 1998, vol. 339, n.° 11), demonstram designadamente que: 1) os estudos comparativos mais convincentes vão no sentido de uma associação entre a dexfenfluramina e a fenfluramina e o surgimento de VPC; 2) é provável que esta associação seja de natureza causal, o que é comprovado por efeitos dependentes da dose e da duração do tratamento sugeridos por alguns estudos; 3) o aumento da ocorrência de VPC - que reflecte o número de pacientes afectados e a sua duração - poderá ser fraco quando a duração do tratamento seja curta, por exemplo, inferior a três meses. Estes resultados poderão explicar o pequeno número de casos relatados na Europa; 4) esta associação existe no caso da dexfenfluramina ou da fenfluramina administradas isoladamente uma da outra. Não se sabe se uma associação com outros anorexígenos aumenta o risco. Certos dados confortam esta hipótese, mas são de interpretação difícil, tendo em conta a duração mais longa do tratamento em caso de associação. O CEF daí conclui que «[a]pesar de não estar comprovada a relação de causalidade e apesar das grandes variações na frequência das notificações de [VPC] em associação com a dexfenfluramina e a fenfluramina, [...] os dados provenientes da comunicação espontânea e de um grande número de estudos epidemiológicos indicam a existência de um risco de [VPC] em pacientes tratados com dexfenfluramina e fenfluramina».

35.
    No que respeita à eficácia, o CEF salienta que: 1) o efeito médio das substâncias em causa é modesto, nunca excedendo uma redução de peso de 3 a 4 quilos, seja qual for a duração. Contudo, no estudo «INDEX» referente a um ano de utilização da dexfenfluramina, a percentagem de pacientes que responderam ao tratamento, isto é, de pacientes que perderam pelo menos 10% do seu peso inicial, foi quase o dobro relativamente ao grupo ao qual foi administrado o placebo; 2) a manutenção de uma perda de peso a longo prazo foi demonstrada com a dexfenfluramina ou a fenfluramina ministradas durante um ano de tratamento; 3) a perda de peso não alterou a repartição das gorduras, que constitui um factor de risco cardiovascular reconhecido; 4) os efeitos sobre os factores de risco metabólicos não foram mais importantes do que os que se prendem com a perda de peso e também não puderam ser atribuídos unicamente à dexfenfluramina ou à fenfluramina; 5) foi observado um aumento do peso logo após a suspensão do tratamento. O CEF concluiu:

«O objectivo do tratamento da obesidade consiste na obtenção de uma perda de peso durável e significativa no plano clínico, que possa diminuir os factores de risco cardiovasculares e outros factores de risco conhecidos, bem como a morbilidade e a mortalidade que lhes estão associadas. Este objectivo só pode ser atingido através de um tratamento a longo prazo. Esta observação, assente na acumulação dos conhecimentos científicos adquiridos no decurso dos últimos anos, vem expressa nas recomendações médicas em vigor. Assim, a eficácia terapêutica limitada da dexfenfluramina e da fenfluramina deve ser apreciada à luz dos respectivos perfis de segurança.»

36.
    Ponderando, por um lado, esta eficácia terapêutica «limitada» e, por outro, «o risco bem conhecido de [HPP] plenamente tomado em conta na decisão [...] de 9 de Dezembro de 1996», bem como o facto de «os dados farmacoepidemiológicos e as observações provenientes da notificação espontânea constituírem provas a favor de uma associação entre a dexfenfluramina e a fenfluramina e a ocorrência de [VPC], principalmente anomalias da válvula aórtica», o CEF considerou que a relação benefício/risco destas substâncias é desfavorável e recomendou a revogação das AIM para todos os medicamentos contendo as referidas substâncias.

37.
    Em 9 de Março de 2000, a Comissão adoptou a decisão impugnada. No artigo 1.° do dispositivo desta decisão, a Comissão ordena aos Estados-Membros que revoguem «as autorizações nacionais de [introdução] no mercado previstas no [primeiro] parágrafo do artigo 3.° da Directiva 65/65, relativas aos medicamentos [que contêm dexfenfluramina e fenfluramina] enumerados no anexo I» desta decisão. Justifica, no artigo 2.° desta decisão, essa revogação por remissão para as conclusões científicas juntas ao parecer final do CEF de 31 de Agosto de 1999 sobre estas substâncias (anexo II). Ordena, no artigo 3.° da referida decisão, aos Estados-Membros interessados que cumpram a decisão impugnada no prazo de 30 dias a contar da sua notificação.

Tramitação processual e pedidos das partes

38.
    Por petição que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 31 de Maio de 2000, a recorrente interpôs o presente recurso.

39.
    Por decisão de 14 de Março de 2002, o Tribunal atribuiu o processo à Segunda Secção Alargada, nos termos do disposto no artigo 51.°, n.° 1, do seu Regulamento de Processo.

40.
    Por despacho de 25 de Abril de 2002, o presidente da Segunda Secção Alargada ordenou, depois de ouvir todas as partes, a apensação, para efeitos da fase oral, dos presentes autos aos processos apensos T-74/00, T-76/00, T-83/00 a T-85/00, T-132/00, T-137/00 e T-141/00.

41.
    Com base no relatório do juiz-relator, o Tribunal de Primeira Instância (Segunda Secção Alargada) decidiu dar início à fase oral do processo. No âmbito das medidas de organização do processo, convidou as partes a apresentar determinados documentos e a responder a algumas perguntas escritas. As partes acederam a esses pedidos.

42.
    As alegações das partes e as suas respostas às perguntas do Tribunal foram ouvidas na audiência que se realizou em 7 e 8 de Maio de 2002. Na audiência, foram igualmente ouvidos os peritos que assistiam as partes, designadamente a pedido destas.

43.
    A recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    anular a decisão impugnada;

-    condenar a recorrida nas despesas.

44.
    A recorrida conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    negar provimento ao recurso;

-    condenar a recorrente nas despesas.

Questão de direito

45.
    A recorrente invoca, em primeiro lugar, a violação do artigo 11.° da Directiva 65/65; em segundo lugar, a irregularidade formal do parecer do CEF; em terceiro lugar, um erro manifesto de apreciação e a violação do princípio da boa administração; em quarto lugar, a violação do princípio da proporcionalidade e, em quinto lugar, a insuficiência da fundamentação da decisão impugnada.

46.
    A título liminar, há que recordar que, segundo jurisprudência bem firmada, a incompetência da instituição que adoptou o acto impugnado constitui um fundamento de anulação de ordem pública que pode ser conhecido oficiosamente pelo juiz comunitário, mesmo que nenhuma das partes lhe tenha pedido para o fazer (v., neste sentido, acórdãos do Tribunal de Justiça de 10 de Maio de 1960, Alemanha/Alta Autoridade, 19/58, Recueil, pp. 469, 488, Colect. 1954-1961, p. 401; e de 13 de Julho de 2000, Salzgitter/Comissão, C-210/98 P, Colect., p. I-5843, n.° 56).

47.
    No caso em apreço, há, portanto, que apreciar oficiosamente a competência da Comissão para tomar a decisão impugnada.

48.
    Contudo, à luz do seu acórdão de 26 de Novembro de 2002, Artegodan e o./Comissão (T-74/00, T-76/00, T-83/00 a T-85/00, T-132/00, T-137/00 e T-141/00, Colect., p. I-0000), o Tribunal considera que é útil introduzir desde já certas precisões de ordem geral no que toca à apreciação dos critérios de revogação das AIM de medicamentos, enunciados no artigo 11.° da Directiva 65/65, face aos fundamentos invocados pela recorrente para contestar o mérito da decisão impugnada.

Observações de ordem geral relativas aos critérios de revogação das AIM de medicamentos aplicados no caso em apreço

49.
    A recorrente contesta, em primeiro lugar, a ponderação dos benefícios e dos riscos que apresentam as substâncias em questão, no momento da aplicação, no caso em apreço, dos critérios de revogação das AIM enunciados no artigo 11.° da Directiva 65/65.

50.
    A este respeito, basta recordar que, quando se avalia um qualquer medicamento, o grau de nocividade que a autoridade competente pode considerar aceitável depende concretamente dos benefícios que se pressupõe que o medicamento oferece, pelo que as condições referentes, respectivamente, à eficácia e à segurança de um medicamento, enunciadas no artigo 11.° da Directiva 65/65, só podem ser examinadas em relação de reciprocidade (acórdão Artegodan e o./Comissão, já referido, n.° 178).

51.
    Quanto às demais críticas avançadas pela recorrente, relacionam-se mais especificamente com a apreciação, no quadro da aplicação do critério referente à segurança, do risco de HPP - que tinha já sido tomado em consideração na decisão de 9 de Dezembro de 1996 (v., supra, n.os 22 a 26) - e do novo risco de VPC, pretensamente relacionados com a administração das substâncias em questão. A recorrente denuncia, em especial, a incoerência e a insuficiência de fundamentação do parecer final do CEF de 31 de Agosto de 1999, face aos estudos científicos tomados em consideração por este comité. Estes estudos não demonstraram a existência de um nexo de causalidade entre a ingestão das substâncias em questão e a ocorrência das afecções anteriormente referidas. Além disso, alguns de entre estes não apresentarão garantias de rigor científico bastante. Além disso, a recorrente invoca que, ao partilhar deste parecer, na decisão impugnada, a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação e infringiu o princípio da boa administração. A isto acresce que, ao ordenar a revogação das AIM dos medicamentos em causa, a Comissão infringiu o princípio da proporcionalidade, em razão, em primeiro lugar, da eficácia e da inocuidade destes medicamentos e, em segundo lugar, da sua retirada do mercado por iniciativa da recorrente enquanto aguardava os resultados das verificações complementares que a mesma pretendia efectuar a fim de confirmar a segurança que apresentam estes medicamentos. Por último, a decisão impugnada está insuficientemente fundamentada, na medida em que a Comissão não justificou a adopção de uma decisão que é fundamentalmente diferente da decisão de 9 de Dezembro de 1996.

52.
    No que respeita às críticas referidas no número anterior, importa salientar desde já que resulta claramente das conclusões científicas do CEF que motivaram a decisão impugnada (v., supra, n.os 31 a 36), bem como dos antecedentes do litígio, que esta decisão se funda na comprovação, com base em novas informações científicas, de um risco de VPC pretensamente associado às substâncias em questão. Como de resto confirmou explicitamente a Comissão nas suas alegações escritas e na audiência, foi a tomada em consideração deste novo risco, relativamente aos elementos disponíveis quando da avaliação das mesmas substâncias em 1996, que conduziu o CEF, no seu parecer de 31 de Agosto de 1999, e a Comissão, na decisão impugnada, a alterarem a sua apreciação favorável, que tinham emitido em 1996, da relação benefícios/riscos das substâncias em questão. Sob este aspecto, há que notar, com efeito, que a precisão relativa à eficácia «limitada» das substâncias em causa, referida nas conclusões científicas do CEF em anexo à decisão impugnada, não comporta nenhuma apreciação da eficácia destas substâncias distinta da que foi efectuada em 1996 com base nos mesmos estudos científicos referentes a essa eficácia.

53.
    Neste contexto, incumbirá, eventualmente, às autoridades nacionais competentes proceder a uma nova avaliação da relação benefícios/riscos que apresentam as substâncias em causa, após terem apreciado em especial os riscos, designadamente de VPC, relacionados com estas substâncias, à luz dos dados científicos mais recentes que estejam disponíveis quando deste exame. A este respeito, importa recordar que, quando estiverem perante dados novos - relativamente à última avaliação dos medicamentos em causa, efectuada, no caso em apreço, quando da adopção da decisão de 9 de Dezembro de 1996 - que, sem afastarem a incerteza científica, permitam razoavelmente suscitar dúvidas quanto à inocuidade e/ou à eficácia destes medicamentos e conduzam a uma apreciação desfavorável da sua relação benefícios/riscos, as autoridades competentes estão obrigadas, por força do artigo 11.° da Directiva 65/65, interpretado à luz do princípio da precaução, que constitui um princípio geral do direito comunitário, a suspender ou a revogar a AIM desses medicamentos (acórdão Artegodan e o./Comissão, já referido, nomeadamente n.os 172, 184, 192 e 194).

Quanto à competência da Comissão para tomar a decisão impugnada

54.
    Há que apreciar se as AIM nacionais dos medicamentos em questão no caso em apreço se inseriam - na sequência da respectiva alteração através da decisão de 9 de Dezembro de 1996, que se funda no artigo 12.° da Directiva 75/319 (v., supra, n.° 26) - no âmbito de aplicação do artigo 15.°-A, n.° 1, desta directiva, que serve de base à decisão impugnada. Esta questão coloca-se exactamente nos mesmos termos que os referentes à questão da competência da Comissão para adoptar as decisões impugnadas nos processos conexos T-74/00, T-76/00, T-83/00 a T-85/00, T-132/00, T-137/00 e T-141/00, Artegodan e o./Comissão, apensos aos presentes autos para efeitos da fase oral. Com efeito, ao ordenar, no caso em apreço, uma alteração substancial dos dados clínicos que figuram no resumo das características do produto das AIM dos anorexígenos serotoninérgicos em questão, a Comissão procedeu, na decisão de 9 de Dezembro de 1996, a uma harmonização destas autorizações, na medida em que o resumo das características do produto, aprovado quando da emissão da AIM de um medicamento, constitui um elemento essencial desta autorização. Do mesmo modo, as AIM nacionais de medicamentos contendo os anorexígenos de tipo anfetamínico em consideração nos processos que conduziram ao acórdão Artegodan e o./Comissão, já referido, foram harmonizadas através da decisão C(96) 3608 final/1 da Comissão, de 9 de Dezembro de 1996, adoptada com base no artigo 12.° da Directiva 75/319, antes de serem objecto das decisões litigiosas nesses processos, adoptadas pela Comissão com base no artigo 15.°-A, n.° 1, desta directiva.

55.
    Neste contexto, na audiência, foi dada oportunidade à Comissão para desenvolver a sua argumentação referente à autoridade competente para revogar as AIM dos medicamentos em questão. Além disso, nos nove processos apensos para efeitos da fase oral, as partes foram previamente convidadas, por escrito, pelo Tribunal, a tomarem posição, na audiência, sobre as possíveis consequências de uma eventual anulação das decisões impugnadas por incompetência da Comissão.

56.
    A recorrente limitou-se a indicar, na audiência, que, na hipótese de tal anulação da decisão impugnada, o recomeço da comercialização dos medicamentos em causa não seria automático. Ficaria dependente dos resultados do estudo que tenciona levar a cabo para demonstrar a eficácia e a segurança destes medicamentos, em caso de anulação pelo Tribunal da decisão impugnada.

57.
    A Comissão, por seu turno, considera que o artigo 15.°-A, n.° 1, da Directiva 75/319, que se refere explicitamente às autorizações concedidas nos termos das disposições do capítulo III, também abrange as AIM harmonizadas nos termos do artigo 12.° da referida directiva.

58.
    Esta tese não pode ser acolhida, pelas mesmas razões, para as quais se remete, que conduziram o Tribunal a declarar a incompetência da Comissão para adoptar as decisões impugnadas no acórdão Artegodan e o./Comissão, já referido, atenta a identidade, sob este aspecto, das questões de direito suscitadas, como foi já salientado (v., supra, n.° 53).

59.
    No caso em apreço, basta, portanto, referir, em primeiro lugar, que, na sistemática do capítulo III da Directiva 75/319, se se abstrair da decisão de 9 de Dezembro de 1996, a gestão das AIM, puramente nacionais, dos medicamentos em questão inseria-se no domínio, em princípio residual, da competência exclusiva dos Estados-Membros em causa (acórdão Artegodan e o./Comissão, já referido, n.os 114 a 116).

60.
    Além disso, há que recordar que resulta do próprio teor do artigo 12.° desta directiva que este institui, no domínio da competência dos Estados-Membros, um procedimento puramente consultivo que reveste, além disso, carácter facultativo e que, para além do mais, pode ser iniciado não apenas pelos Estados-Membros em causa mas também pela Comissão ou o requerente ou o titular de uma AIM. Além disso, no sistema instituído pelo capítulo III da Directiva 75/319, este artigo, que não se inscreve nas disposições que enquadram de forma mais específica o procedimento de reconhecimento mútuo, não pode ser interpretado à luz da finalidade específica atribuída a este procedimento, que tende, em última análise, à adopção de uma decisão comum pelos Estados-Membros em causa, eventualmente, através do procedimento de arbitragem comunitário instituído pelo artigo 10.° desta mesma directiva quando os Estados-Membros não cheguem a acordo no prazo fixado (acórdão Artegodan e o./Comissão, já referido, n.os 132 e 133).

61.
    Com efeito, na lógica do capítulo III da Directiva 75/319, o artigo 12.° desta directiva tem vocação para se aplicar no domínio residual da competência exclusiva dos Estados-Membros, ou quando da concessão da AIM inicial de um medicamento pelo Estado-Membro de referência. Neste quadro jurídico, os Estados-Membros, que dispõem de uma mera faculdade de consulta do CEF, não podem ficar implicitamente privados da sua competência por fazerem uso dessa faculdade ou pelo facto de a Comissão, o requerente ou o titular de uma AIM consultarem o CEF nos termos do artigo 12.° No domínio do procedimento de reconhecimento mútuo, esta privação da competência conduziria, de resto, na hipótese de uma consulta do CEF ao abrigo do artigo 12.° pelo Estado-Membro de referência, a que se afastassem, a favor da aplicação imediata de um procedimento de arbitragem comunitário, as fases prévias de reconhecimento mútuo e de concertação entre os Estados-Membros em causa com vista a atingir-se um acordo - com base no conjunto dos documentos e informações a que se refere o artigo 4.° da Directiva 65/65 -, expressamente previstas pelos artigos 9.°, n.° 4, e 10.°, n.° 2, da Directiva 75/319. No domínio da competência exclusiva dos Estados-Membros, esta privação da competência traduzir-se-ia também na aplicação imediata de um procedimento de arbitragem, no que respeita a medicamentos que nunca foram previamente objecto de um exame comum pelos Estados-Membros em causa, análogo ao que caracteriza o procedimento de reconhecimento mútuo (acórdão Artegodan e o./Comissão, já referido, n.os 129, 130 e 142).

62.
    Neste contexto, na falta de disposição expressa, o princípio enunciado no artigo 5.°, primeiro parágrafo, CE, por força do qual a Comunidade actua nos limites das atribuições que lhe são conferidas, opõe-se a uma interpretação do artigo 12.° da Directiva 75/319 no sentido de que habilita tacitamente a Comissão a adoptar uma decisão vinculativa nos termos do procedimento previsto pelo artigo 14.° desta directiva (acórdão Artegodan e o./Comissão, já referido, n.os 136 a 147).

63.
    Em segundo lugar, há que recordar que o princípio segundo o qual a Comunidade actua nos limites das atribuições que lhe são conferidas também obsta a uma interpretação do artigo 15.°-A, n.° 1, da Directiva 75/319 que conduza a que, na falta de qualquer disposição que preveja esta transferência de competências, a harmonização facultativa de certas AIM, em conformidade com o parecer não vinculativo emitido pelo CEF ao abrigo do artigo 12.° desta directiva, tenha por efeito retirar aos Estados-Membros em causa a sua competência no que respeita às posteriores decisões referentes à alteração, à suspensão ou à revogação destas autorizações. Ora, no caso em apreço, a ideia de uma perenização dessa harmonização - que se concretizará pelo recurso ao procedimento de arbitragem comunitário - não resulta nem das disposições do capítulo III da directiva anteriormente referida nem do objectivo por esta prosseguido (acórdão Artegodan e o./Comissão, já referido, n.os 149 a 154).

64.
    Nestas condições, no sistema de harmonização instituído pelo capítulo III da Directiva 75/319, baseado precisamente no princípio do reconhecimento mútuo conjugado com os procedimentos de arbitragem comunitária, a noção de AIM concedida nos termos das disposições deste capítulo, a que se refere o artigo 15.°-A, n.° 1, abarca unicamente as autorizações concedidas pela via do reconhecimento mútuo ou da arbitragem. Esta noção não pode ser interpretada no sentido de que abarca igualmente as autorizações nacionais harmonizadas na sequência da consulta facultativa do CEF ao abrigo do artigo 12.°, que continuam, portanto, inseridas no domínio, em princípio residual, da competência exclusiva dos Estados-Membros em causa (acórdão Artegodan e o./Comissão, já referido, n.os 149 e 155).

65.
    De onde resulta que, no caso em apreço, apesar de terem sido harmonizadas pela decisão de 9 de Dezembro de 1996, que carece de base legal, mas que se tornou definitiva, as AIM dos medicamentos em causa não se inserem no âmbito de aplicação do artigo 15.°-A, n.° 1, da Directiva 75/319.

66.
    A decisão impugnada, adoptada com base neste último artigo, está, portanto, também ela desprovida de base legal.

67.
    Por todos os fundamentos expostos, a decisão impugnada deve ser anulada, sem que seja necessário examinar os demais fundamentos invocados.

Quanto às despesas

68.
    Por força do artigo 87.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrida sido vencida, deverá suportar a totalidade das despesas, nos termos pedidos pela recorrente.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Segunda Secção Alargada)

decide:

1.
    A decisão da Comissão de 9 de Março de 2000 [C(2000) 573] é anulada.

2.
    A Comissão suportará a totalidade das despesas.

Moura Ramos
Tiili
Pirrung

        Mengozzi                            Meij

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 28 de Janeiro de 2003.

O secretário

O presidente

H. Jung

R. M. Moura Ramos


1: Língua do processo: inglês.