CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
YVES BOT
apresentadas em 27 de Outubro de 2009 1(1)
Processo C‑91/08
Wall AG
contra
Stadt Frankfurt am Main,
Frankfurter Entsorgungs‑ und Service GmbH
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landgericht Frankfurt am Main (Alemanha)]
«Princípios gerais do direito comunitário – Concessão de serviços – Princípio da igualdade de tratamento dos candidatos – Obrigação de transparência – Adjudicação a uma entidade de capital misto – Conceito de ‘entidade adjudicante’ – Organismo de direito público – Substituição posterior de um termo do contrato de concessão – Mudança de subcontratante – Protecção judicial efectiva – Modalidades processuais nacionais – Reconhecimento de um poder de injunção – Resolução do contrato»
1. Pelo presente reenvio prejudicial, o Landgericht Frankfurt am Main (Alemanha) interroga‑se, no essencial, sobre o alcance da obrigação de transparência e sobre as consequências a retirar da sua violação no quadro de um processo de adjudicação de uma concessão de serviços.
2. Este pedido foi apresentado no quadro de um litígio que opõe a empresa Wall AG (2) à Stadt Frankfurt am Main (Cidade de Frankfurt am Main) e à empresa Frankfurter Entsorgungs‑ und Service GmbH (3) a respeito da execução de um contrato de concessão para a exploração, a manutenção e a limpeza de sanitários públicos no território daquela cidade.
3. Este processo vai permitir à Tribunal de Justiça precisar as condições em que a entidade adjudicante pode consentir numa modificação do contrato de concessão, durante a sua execução, sem violar a obrigação de transparência.
4. Vai igualmente oferecer ao Tribunal de Justiça a oportunidade de precisar as condições em que o respeito dessa obrigação se impõe a uma entidade de capital misto constituída no quadro de uma parceria público‑privada.
5. Por último, as questões submetidas pelo Landgericht Frankfurt am Main permitirão ao Tribunal de Justiça precisar as modalidades da fiscalização judicial das decisões adoptadas no quadro das concessões de serviços. Em particular, o Tribunal de Justiça deverá examinar se, quando o órgão jurisdicional nacional constata uma violação da obrigação de transparência no quadro de um processo de adjudicação de uma concessão de serviços, o direito comunitário exige aos Estados‑Membros que reconheçam, no âmbito da sua jurisdição nacional, um poder de injunção relativamente às partes no contrato.
I – Quadro jurídico comunitário
A – O direito primário
6. O Tratado CE não limita o direito dos Estados‑Membros celebrarem contratos de concessão de serviços desde que as modalidades de concessão sejam compatíveis com as disposições que instauram e garantem o bom funcionamento do mercado único.
7. Assim, tal como qualquer acto estatal que fixas as condições a que está subordinada uma prestação de serviços económicos, também a atribuição de uma concessão deve respeitar os princípios consagrados pelo Tratado em matéria de direito de estabelecimento (artigo 3.° CE) e de livre prestação de serviços (artigo 9.° CE) e está sujeita às regras que proíbem qualquer discriminação em razão da nacionalidade (artigo 12.°, primeiro parágrafo, CE).
8. Além disso, a concessão deve respeitar os princípios instituídos pelo Tribunal de Justiça com base nessas disposições, em particular os princípios da igualdade de tratamento e da transparência, cujo alcance explicaremos a seguir. Embora essa jurisprudência tenha por objecto, nomeadamente, o contencioso dos concursos públicos, não é menos verdade que os princípios dela decorrentes possuem um alcance que ultrapassa o simples quadro dos referidos concursos. Partimos da premissa de que estes princípios são igualmente aplicáveis a outras situações, em especial às concessões.
B – O direito derivado
9. No estádio actual do direito comunitário, os contratos de concessão de serviços não são objecto de qualquer diploma de direito derivado (4). Todavia, as disposições adoptadas no âmbito das directivas em matéria de adjudicação de concursos públicos permitem apreciar certas modalidades de adjudicação daquele tipo de contratos.
1. Regulamentação relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de serviços
10. O conceito de «entidade adjudicante» começou por ser definido no artigo 1.°, alínea b), da Directiva 92/50/CEE (5). De acordo com o seu oitavo considerando, a referida directiva aplica‑se aos «contratos públicos de serviços» (6) e, por este motivo, exclui do seu âmbito de aplicação as concessões de serviços. A Directiva 92/50 destina‑se a suprimir os entraves à livre circulação de serviços e de mercadorias e a proteger os interesses dos operadores económicos que desejem propor bens ou serviços às entidades adjudicantes estabelecidas noutros Estados‑Membros (7).
11. O artigo 1.°, alínea b), dessa directiva define o conceito de «entidades adjudicantes» como segue:
«São consideradas entidades adjudicantes o Estado, as autarquias locais ou regionais, os organismos de direito público, as associações formadas por uma ou mais autarquias ou organismos de direito público.
Considera‑se organismo de direito público qualquer organismo:
– criado com o objectivo específico de satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, e
– financiado maioritariamente pelo Estado, por autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público, ou submetido a um controlo de gestão por parte dessas entidades, ou que tenha um órgão de administração, de direcção ou de fiscalização cujos membros são, em mais de 50%, designados pelo Estado, por autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público. […]»
12. O conceito de «concessão de serviços» foi, seguidamente, definido no artigo 1.°, n.° 4, da Directiva 2004/18/CE (8), que reúne todas as disposições relativas à adjudicação de contratos públicos de serviços, de fornecimentos e de obras (9).
13. Nos termos dessa disposição, uma concessão de serviços é um «contrato com as mesmas características que um contrato público de serviços, com excepção de que a contrapartida dos serviços a prestar consiste quer unicamente no direito de exploração do serviço, quer nesse direito acompanhado de um pagamento».
14. Além disso, a referida directiva retoma em termos idênticos, no seu artigo 1.°, n.° 9, a definição do conceito de «organismo de direito público» mencionada no artigo 1.°, alínea b), da Directiva 92/50.
2. A Directiva 89/665/CEE
15. A Directiva 89/665/CEE (10) permite um reforço substancial das garantias de transparência e de não discriminação no quadro da abertura dos contratos públicos à concorrência ao obrigar os Estados‑Membros a aplicar processos de recurso eficazes e rápidos em caso de violação das disposições das directivas contratos públicos (11). Nos termos do artigo 1.° desta directiva, esses processos devem ser acessíveis, segundo as modalidades que os Estados‑Membros podem determinar, a todas as pessoas que tenham ou tenham tido interesse em obter determinado contrato público, ou que corram o risco de ser lesadas por uma alegada violação.
16. Tendo em conta a sua brevidade, os processos de adjudicação dos contratos públicos devem, nos termos do artigo 2.° da Directiva 89/665, permitir não apenas um tratamento urgente das alegadas violações e a adopção de medidas provisórias, mas também a anulação das decisões ilegais e a indemnização dos lesados. Esta disposição está redigida como segue:
«1. Os Estados‑Membros velarão por que as medidas tomadas para os efeitos dos recursos referidos no artigo 1.° prevejam os poderes que permitam:
a) Tomar o mais rapidamente possível, através de um processo de urgência, medidas provisórias destinadas a corrigir a alegada violação ou a impedir que sejam causados outros danos aos interesses em causa, incluindo medidas destinadas a suspender ou a fazer suspender o processo de adjudicação do contrato de direito público em causa ou a execução de qualquer decisão tomada pelas entidades adjudicantes;
b) Anular ou fazer anular as decisões ilegais […]
c) Conceder indemnizações às pessoas lesadas por uma violação.
[…]
6. Os efeitos do exercício dos poderes referidos no n.° 1 sobre o contrato celebrado na sequência da atribuição de um contrato de direito público serão determinados pelo direito nacional.
[…]»
17. Como já indicámos, a Directiva 89/665 foi modificada pela Directiva 2007/66. Esta última directiva destina‑se a reforçar a eficácia dos processos de recurso nacionais e precisa os casos em que um contrato celebrado em violação das regras de adjudicação dos contratos públicos deve ser desprovido de efeitos.
3. A Directiva 80/723/CEE
18. O artigo 2.° da Directiva 80/723/CEE (12) está redigido nos seguintes termos:
«1. Para efeitos da presente directiva, entende‑se por:
[…]
b) ‘Empresa pública’, qualquer empresa em que os poderes públicos possam exercer, directa ou indirectamente, uma influência dominante em consequência da propriedade, da participação financeira ou das regras que a disciplinam;
[…]
2. Presume‑se a existência de influência dominante quando os poderes públicos, directa ou indirectamente, relativamente à empresa:
a) Tenham a maioria do capital subscrito da empresa
ou
b) Disponham da maioria dos votos atribuídos às partes sociais emitidas pela empresa
ou
c) Possam designar mais de metade dos membros do órgão de administração, de direcção ou de fiscalização da empresa.»
II – Factos e processo principal
19. Resumiremos seguidamente os factos pertinentes para efeitos do nosso raciocínio.
20. O contrato em causa no presente processo é um contrato de concessão de serviços na acepção do artigo 1.°, n.° 4, da Directiva 2004/18. Este contrato foi celebrado entre a Stadt Frankfurt am Main, considerada, enquanto colectividade territorial, uma «entidade adjudicante» na acepção do artigo 1.°, n.° 4, da Directiva 2004/18, e a empresa FES. O referido contrato tem como objecto a exploração, a manutenção e a limpeza de onze sanitários públicos situados no território da Stadt Frankfurt am Main e compreende a reconstrução de dois sanitários públicos situados nas gares de Rödelheim e de Galluswarte, o que corresponde ao conceito de serviços na acepção do artigo 8.° e do anexo A desta directiva.
21. O referido contrato foi celebrado por um período de dezasseis anos. A FES, que é o contratante principal, não é remunerado pela Stadt Frankfurt am Main, mas recebe uma taxa paga pelos utentes e dispõe do direito de explorar, a título exclusivo, os espaços publicitários dos referidos sanitários. Esta forma de remuneração implica que a FES assume o risco de exploração dos serviços em causa.
22. Esta concessão foi adjudicada à FES com base na proposta economicamente mais vantajosa. As propostas apresentadas pelas empresas, entre as quais as da FES e da recorrente, foram avaliadas à luz de uma pluralidade de critérios de adjudicação enunciados no aviso de concurso. Como resulta do despacho de reenvio, cada um desses critérios era ponderado, figurando pela ordem decrescente da importância que lhes era atribuída pela Stadt Frankfurt am Main (13).
23. No âmbito da sua proposta, a FES apresentou a recorrente como seu subcontratante no que respeita às prestações publicitárias e ao fornecimento dos módulos de sanitários necessários à prestação dos serviços objecto da concessão. Nomeadamente, invocou a reputação mundial e a competência técnica da recorrente nesses sectores.
24. Na sequência da celebração do contrato de concessão em 20 e 22 de Julho de 2004, a FES convidou a interveniente, a Deutsche Städte Medien GmbH (14), a apresentar propostas em 5 de Janeiro de 2005, para o fornecimento de prestações publicitárias, e em 28 de Julho de 2005, para o fornecimento de módulos de sanitários. As propostas da recorrente foram rejeitadas.
25. Em aplicação do artigo 30.°, IV, do contrato de concessão, a FES pediu à Stadt Frankfurt am Main que consentisse na substituição de subcontratante. Esta última não apresentou qualquer objecção e, por outro lado, precisou que, não obstante essa alteração, os critérios descritos no caderno de encargos tinham sido respeitados.
26. Perante o órgão jurisdicional nacional, a recorrente acusa a Stadt Frankfurt am Main de ter desrespeitado a obrigação de transparência ao autorizar a referida substituição, procedendo assim a uma modificação essencial do contrato de concessão celebrado com a FES.
III – O reenvio prejudicial
27. O Landgericht Frankfurt am Main decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as questões prejudiciais seguintes:
«1) O princípio da igualdade de tratamento, consagrado, designadamente, nos artigos 12.°, 43.° e 49.° CE, e a proibição comunitária de discriminação em razão da nacionalidade devem ser interpretados no sentido de que o dever de transparência que daí decorre para as entidades públicas, que consiste em submeter à concorrência com um grau adequado de publicidade a adjudicação de concessões de serviços e em permitir o controlo da imparcialidade na tramitação do processo de adjudicação [(15)], exige que a legislação nacional confira ao concorrente preterido um direito de acção para impedir a violação iminente desse dever e/ou a sua continuação?
2) Em caso de resposta negativa à primeira questão: o dever de transparência acima referido faz parte do direito consuetudinário das Comunidades Europeias no sentido de que já é aplicado contínua e permanentemente, de modo uniforme e generalizado, e de que é reconhecido como norma vinculativa pelos sujeitos de direito?
3) No caso de se pretender alterar um contrato de concessão de serviços – incluindo a substituição de um [subcontratante] e que participou no concurso – o dever de transparência referido no n.° 1 exige igualmente uma nova submissão à concorrência das negociações com um grau adequado de publicidade e de acordo com que critérios?
4) Os princípios e o dever de transparência referidos na primeira questão devem ser interpretados no sentido de que, nas concessões de serviços, o contrato celebrado na sequência do incumprimento desse dever, e que visa constituir ou alterar uma relação jurídica duradoura, deve ser rescindido?
5) Os princípios e o dever de transparência referidos na primeira questão e o artigo 86.°, n.° 1, CE, eventualmente em conjugação com o artigo 2.°, n.° 1, [alínea] b) e n.° 2 da Directiva 80/723 […] e com o artigo 1.°, n.° 9, da Directiva 2004/18 […], devem ser interpretados no sentido de que uma empresa, na qualidade de empresa pública ou entidade adjudicante, está sujeita a esse dever de transparência se:
– tiver sido criada por uma autarquia local para a gestão de resíduos e a limpeza de vias públicas, mas também operar comercialmente no mercado;
– for detida por essa autarquia em 51%, mas carecendo as deliberações sociais de uma maioria de três quartos;
– essa autarquia apenas tiver o direito de nomear um quarto dos membros do conselho geral da empresa, incluindo o presidente desse mesmo conselho, e
– mais de metade do seu volume de negócios resultar de contratos relativos à gestão de resíduos e à limpeza de vias públicas no território da referida autarquia, sendo esta financiada através de contribuições municipais cobradas aos seus munícipes?»
28. Foram apresentadas observações escritas e orais pelas partes no processo principal, mas igualmente pela Comissão das Comunidades Europeias, o Órgão de Fiscalização da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA) bem como seis Estados‑Membros (16).
IV – O objecto das questões prejudiciais
29. Começaremos a nossa análise do presente reenvio prejudicial pelo exame das terceira e quinta questões prejudiciais, relativas ao alcance da obrigação de transparência
30. Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se uma obrigação dessa natureza impõe que a entidade adjudicante abra um novo concurso quando o contratante principal, ao qual a concessão foi adjudicada, pretenda, para efeitos da execução desta, recorrer aos serviços de um subcontratante diferente daquele que indicou na sua proposta. Além disso, com a sua quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se um contratante principal como a FES, constituído sob a forma de uma entidade de capital misto, pode igualmente ser qualificado de «entidade adjudicante» na acepção da Directiva 92/50 e estar sujeito, enquanto tal, à obrigação de transparência.
31. Após exame destas duas primeiras questões, prosseguiremos a nossa análise com o estudo das primeira, segunda e quarta questões prejudiciais, que respeitam, no essencial, às modalidades de fiscalização jurisdicional das decisões adoptadas no âmbito das concessões de serviços.
32. Estas três ultimas questões apenas são pertinentes no caso de o juiz nacional considerar que a Stadt Frankfurt am Main e/ou a FES comprometeram a transparência do processo ao substituir o subcontratante durante a execução do contrato de concessão em causa.
V – Análise
33. Antes de dar início ao nosso exame, é importante recordar as grandes linhas da jurisprudência relativa à obrigação de transparência. Embora essa jurisprudência diga em parte respeito aos concursos públicos, foi elaborada a partir dos princípios do Tratado e é, em nosso entender, pertinente para efeitos da aplicação do direito comunitário às concessões de serviços.
A – As grandes linhas da jurisprudência relativa à obrigação de transparência
34. Resulta de jurisprudência assente que a obrigação de transparência constitui uma expressão específica do princípio da igualdade de tratamento
35. O Tribunal de Justiça desde há muito considera que este princípio faz parte dos princípios fundamentais do direito comunitário (17) cujo respeito se impõe aos Estados‑Membros quando actuam no âmbito de aplicação do direito comunitário. O referido princípio exige que situações comparáveis não sejam tratadas de forma diferente, a menos que uma diferenciação se justifique objectivamente (18). O mesmo princípio figura entre os direitos fundamentais cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça (19).
36. Na qualidade de princípio geral do direito comunitário, o respeito do princípio da igualdade de tratamento vincula os Estados‑Membros quando aplicam regulamentações comunitárias. Estes estão, por conseguinte, obrigados, em toda a medida do possível, a aplicar essas regulamentações em condições que não violem as exigências decorrentes da protecção dos direitos fundamentais na ordem jurídica comunitária (20).
37. O Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar o alcance do princípio da igualdade de tratamento no âmbito dos contratos públicos nos acórdãos Comissão/Dinamarca e Comissão/Bélgica (21), cuja jurisprudência foi seguidamente transposta paras as concessões de serviços (22).
38. O princípio da igualdade de tratamento entre os proponentes tem como objectivo favorecer o desenvolvimento de uma concorrência sã e efectiva entre as empresas que participam num concurso. O respeito deste princípio deve permitir garantir uma comparação objectiva das propostas e impõe‑se em todas as fases do processo. Todos os proponentes devem dispor das mesmas oportunidades ao formular os termos das suas propostas, independentemente da sua nacionalidade (23). Dito de outra forma, as regras do jogo devem ser conhecidas por todos os potenciais proponentes e devem aplicar‑se da mesma maneira.
39. Segundo o juiz comunitário, o respeito do princípio da igualdade de tratamento dos proponentes implica a não discriminação em razão da nacionalidade e uma obrigação de transparência que permita à autoridade pública adjudicante assegurar‑se de que o referido princípio é respeitado (24).
40. O Tribunal de Justiça precisou o alcance da obrigação de transparência nos acórdãos, já referidos, Telaustria e Telefonadress bem como Parking Brixen. Segundo o juiz comunitário, essa obrigação tem essencialmente por finalidade garantir a inexistência de risco de favoritismo e de arbitrariedade por parte da entidade adjudicante. A referida obrigação consiste em garantir, a favor de todos os potenciais proponentes, um grau de publicidade adequado do processo de adjudicação que permita, desta forma, uma abertura à concorrência e o controlo da imparcialidade do processo. Implica também que todas as condições e as modalidades do processo de adjudicação sejam formuladas de forma clara, precisa e unívoca no anúncio de concurso ou no caderno de encargos. Tal deve permitir a todos os proponentes razoavelmente informados e normalmente diligentes compreender o seu alcance exacto e interpretá‑las da mesma maneira. Tal deve igualmente permitir à entidade adjudicante verificar se as propostas dos concorrentes correspondem efectivamente aos critérios aplicáveis ao contrato em causa (25).
41. Um exame da jurisprudência do Tribunal de Justiça demonstra a relação estreita existente entre a obrigação de transparência e o princípio da igualdade de tratamento. A primeira visa garantir o efeito útil do segundo ao assegurar as condições de uma concorrência sã. Uma vez que o princípio da igualdade de tratamento é, enquanto tal, um princípio geral do direito comunitário, o respeito da obrigação de transparência, que dele constitui uma expressão concreta e específica, impõe‑se aos Estados‑Membros na mesma medida.
B – Quanto ao alcance da obrigação de transparência
1. Quanto ao alcance ratione materiæ da obrigação de transparência
42. Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se a obrigação de transparência impõe que a entidade adjudicante abra novo concurso quando o contratante principal, ao qual a concessão foi adjudicada, pretenda, para efeitos da sua execução, deixar de recorrer aos serviços do subcontratante originalmente indicado aquando da entrega da sua proposta.
43. Para responder a esta questão, é importante examinar a forma como a obrigação de transparência deve ser aplicada tendo em conta as características próprias da concessão de serviços. Com efeito, esta concessão apresenta diferenças essenciais relativamente aos contratos públicos de serviços na sua finalidade e no seu modo de execução.
44. Independentemente do seu grau de complexidade e de sofisticação, um contrato público de serviços é geralmente entendido como a aquisição de um serviço por uma entidade pública e visa uma prestação pontual fornecida por uma empresa. Em contrapartida, a concessão de serviços é uma forma de gestão delegada de um serviço público, pela qual a entidade pública confia a um prestador exterior à administração a gestão de uma actividade de interesse geral e a responsabilidade dessa gestão face aos utentes, e isso por um período de tempo significativo. A entidade adjudicante, quer seja uma colectividade pública ou um organismo de direito público, deixa de gerir o serviço e transfere a responsabilidade da sua organização para o concessionário (26). O concessionário explora o serviço às suas próprias custas e assume os respectivos riscos de exploração, sendo a sua remuneração garantida pela cobrança de uma taxa paga pelos utentes do serviço.
45. A aplicação do direito comunitário a esta forma de gestão contratual de um serviço de interesse geral deve ter em conta diferentes imperativos.
46. Na fase da celebração do contrato, é necessário conciliar a obrigação de transparência com a importante liberdade de que dispõe a entidade adjudicante na apreciação das propostas e na determinação daquela que é economicamente mais vantajosa. A proposta economicamente mais vantajosa é a que fornece a melhor resposta económica, no sentido global do termo, às necessidades expressas pela colectividade pública, tendo em conta os critérios considerados e a sua ponderação. A entidade adjudicante deve poder escolher o prestador de serviços que, pelas suas referências, a qualidade da sua proposta, o conhecimento que possui do sector e a confiança que inspira, lhe parece oferecer o máximo de garantias de boa execução do serviço. A especificidade da concessão de serviços autoriza, portanto, a escolha do prestador a partir de uma gama de critérios latos, privilegiando o critério do intuitu personæ. Esta liberdade de escolha não significa, porém, que a adjudicação da concessão deva ser feita de forma arbitrária e discriminatória. Para evitar a corrupção e garantir uma melhor transparência da vida económica e dos procedimentos públicos, o juiz enquadrou a referida liberdade baseando‑se em princípios que regulam os processos de adjudicação dos contratos públicos. Assim, a liberdade de negociação e de decisão subsiste, mas deve ser exercida no respeito da obrigação prévia de publicidade e de abertura de concurso que permitam uma selecção transparente do candidato e garantam uma igualdade de tratamento entre os proponentes (27).
47. Seguidamente, na fase de execução do contrato, é necessário conciliar a obrigação de transparência com o interesse do serviço público, que exige, em certas circunstâncias, a adaptação e a alteração do contrato.
48. Como indicámos, o concessionário assume a responsabilidade da organização do serviço bem como os respectivos riscos de exploração. Atendendo ao carácter complexo e de longa duração da concessão de serviços, o concessionário deve dispor de margem de manobra suficiente para se adaptar às condições do mercado e às alterações que possam ocorrer no ambiente económico, técnico ou jurídico da concessão. As limitações imprevisíveis e os incidentes de execução que são inevitáveis nos investimentos de longa duração exigem, portanto, das partes uma flexibilidade especial e espírito de cooperação. As causas de renegociação dos contratos são, por conseguinte, múltiplas. Contudo, algumas podem ser fonte de abusos se conduzirem à subversão da economia do contrato, iludindo a transparência do processo e a abertura de concurso prévio. Por conseguinte, há que apreciar se a alteração prevista é acessória ao contrato, justificando‑se por motivos legítimos, ou se acaba por conduzir à celebração de um novo contrato, que, de acordo com os princípios fundamentais do direito comunitário, deve ser objecto de um grau adequado de publicidade e de novo processo de concurso.
49. Num acórdão Comissão/França (28), o Tribunal de Justiça declarou que as alterações introduzidas às disposições de um contrato público durante a sua vigência constituem uma nova adjudicação do contrato, na acepção da Directiva 92/50, quando «apresentem características substancialmente diferentes das do contrato inicial e sejam, consequentemente, susceptíveis de demonstrar a vontade das partes de renegociar os termos essenciais do contrato» (29).
50. O Tribunal de Justiça precisou o alcance deste fundamento no acórdão pressetext Nachrichtenagentur (30), referindo quatro hipóteses em que esse tipo de alterações pode ser considerado substancial.
51. A primeira hipótese corresponde ao caso em que a alteração introduz condições que, se tivessem figurado no procedimento de adjudicação inicial, teriam permitido admitir proponentes diferentes dos inicialmente admitidos ou teriam permitido escolher uma proposta diferente da inicialmente escolhida.
52. A segunda hipótese corresponde ao caso em que a alteração alarga o contrato, numa medida importante, a serviços que não estavam inicialmente previstos.
53. A terceira hipótese corresponde a uma situação em que a alteração modifica o equilíbrio económico do contrato a favor do adjudicatário de uma forma que não estava prevista nos termos do contrato inicial.
54. A quarta hipótese corresponde, por último, à situação em que um novo contratante vem substituir aquele ao qual a entidade adjudicante tinha inicialmente adjudicado o contrato. Esta modificação constitui uma alteração de um dos termos essenciais do contrato público, a menos que, segundo o Tribunal de Justiça, «essa substituição estivesse prevista nos termos do contrato inicial, por exemplo a título da subcontratação».
55. Como referimos, o contrato de concessão de serviços celebrado entre a Stadt Frankfurt am Main e a FES autoriza, no seu artigo 30.°, IV, a mudança de subcontratante na condição de a entidade adjudicante assim o consentir. No caso vertente, este procedimento foi respeitado.
56. No presente processo, a questão é, portanto, saber se, apesar da existência dessa cláusula e de o procedimento a ela associado ter sido respeitado, a substituição de subcontratante constitui, à luz da jurisprudência comunitária, uma alteração de um dos termos essenciais da concessão de serviços em causa.
57. Esta apreciação é delicada na medida em que a própria Stadt Frankfurt am Main consentiu na referida substituição, tendo considerado que os critérios descritos no caderno de encargos foram respeitados. Todavia, atendendo às circunstâncias especiais em que essa substituição teve lugar, pensamos que o órgão jurisdicional nacional se deve assegurar de que o acto pelo qual a colectividade autorizou a referida alteração não levou a iludir o princípio da igualdade de tratamento dos proponentes e a obrigação de transparência que dele decorre.
58. Para efeitos deste exame, é importante recordar os termos em que o concessionário pode recorrer à subcontratação.
59. Atendendo à complexidade e à duração dos contratos de concessão, o concessionário pode decidir dar de subempreitada toda ou parte da execução do contrato celebrado com o dono da obra. É facto assente que a escolha do subempreiteiro constitui um acto discricionário que faz parte das prerrogativas do empreiteiro. Esta liberdade de escolha é o corolário da regra segundo a qual o concessionário conserva a inteira responsabilidade pela execução da concessão, já que o contrato que o vincula ao subcontratante é de direito privado, uma vez que foi celebrado entre duas pessoas privadas.
60. Contudo, para poder ser considerada regular, a subcontratação tem de ser aceite pela entidade adjudicante, seja aquando da celebração do contrato seja durante a sua execução. É nesta ocasião que a entidade adjudicante verifica as capacidades técnicas e económicas do subcontratante (31).
61. Quando o subcontratante é indicado aquando da apresentação da proposta, a adjudicação da concessão implica a sua aceitação. Geralmente, a entidade adjudicante pode recusar‑se a aceitar uma empresa como subcontratante quando, por exemplo, a mesma se encontre numa situação irregular sob o ponto de vista fiscal ou social ou quando não disponha de capacidades suficientes para levar a bom termo a execução das prestações que lhe são confiadas.
62. A subcontratação não está limitada à que foi anunciada aquando da apresentação da proposta. Durante a execução do contrato, o concessionário pode recorrer a outros subcontratantes ou substituir subcontratantes por motivos legítimos, relacionados, por exemplo, com a qualidade efectiva das suas prestações ou a sua situação financeira. Tal permite‑lhe adaptar as suas prestações ou libertar‑se, em conformidade com as disposições da subcontratação, de uma empresa que não o satisfaz.
63. Quando a substituição de subcontratante esteja prevista nos termos do contrato e a própria entidade adjudicante consinta nessa alteração, é, em princípio, difícil sustentar que a substituição modifica, em si mesma, um elemento essencial da concessão e obriga à abertura de novo concurso.
64. Com efeito, mediante o seu consentimento, a entidade adjudicante considera que a identidade do subcontratante não é essencial para o objecto da concessão e que as prestações confiadas ao contratante principal serão realizadas em conformidade com o caderno de encargos, independentemente dessa alteração. Tal situação pode verificar‑se quando existem, no mercado em causa, numerosas empresas que oferecem prestações de natureza e de qualidade equivalentes.
65. Além disso, quando a entidade adjudicante prevê que certas condições do concurso podem ser modificadas depois da escolha do adjudicatário e contempla expressamente esta possibilidade de adaptação no caderno de encargos, assim como as suas regras de execução, então todas as empresas interessadas em participar no concurso têm conhecimento destas circunstâncias desde o início e encontram‑se, assim, em pé de igualdade no momento de formularem as suas propostas.
66. Todavia, essa modificação do contrato de concessão pode ser criticável numa situação como a do caso vertente.
67. Com efeito, no caso vertente, a substituição tem lugar sem qualquer motivo legítimo, após a celebração do contrato e antes da execução das primeiras prestações, apesar de o concessionário ter invocado a reputação e a competência técnica do subcontratante quando apresentou a sua proposta.
68. Em nosso entender, mesmo que admitida pela entidade adjudicante, uma prática dessa natureza viola a obrigação de transparência e o princípio da igualdade de tratamento dos proponentes. Ao agir dessa forma, a entidade adjudicante subtrai a proposta da FES, tal como foi modificada, a um exame sério e transparente das diferentes propostas, o que pode representar para a empresa uma vantagem injustificada na obtenção do contrato.
69. Em primeiro lugar, não está excluído que a Stadt Frankfurt am Main tivesse preferido uma proposta diferente da que foi inicialmente apresentada pela FES se esta não tivesse invocado, no âmbito da subcontratação das prestações publicitárias, numerosas qualidades da recorrente, uma «parceira dinâmica […] e experimentada», «especialista experiente no domínio da publicidade e activa no mundo inteiro», cujos «produtos [são] modernos e estéticos» (32).
70. Resulta claramente do despacho de reenvio que a apresentação da recorrente como subcontratante é que permitiu à FES obter o contrato de concessão em causa. Com efeito, a escolha a favor da FES teve em conta os seus propósitos em matéria publicitária pois obteve, a título desse critério de atribuição, 27,3 contos, ao passo que a sua principal concorrente, interveniente no presente processo, obteve 20,1. No que respeita aos restantes critérios, o Stadt Frankfurt am Main concedeu tantos pontos, senão mais, à interveniente. Resulta, portanto, dos documentos a que tivemos acesso que a presença da recorrente na proposta global da FES foi determinante para a adjudicação da concessão.
71. Em segundo lugar, o comportamento da FES, que, após adjudicação do contrato de concessão, prossegue as negociações relativas à subcontratação das prestações publicitárias e do fornecimentos dos módulos de sanitários (33), acabando por afastar a recorrente sem qualquer motivo legítimo (34), faz com que a sua proposta inicial, tal como foi aceite pela Stadt Frankfurt am Main, pareça uma oferta «de fachada» cuja economia global teve apenas como objectivo afastar os concorrentes sérios a fim de obter a concessão, mas com o propósito, manifestado logo de imediato, de a executar em condições económicas e técnicas diferentes das indicadas na proposta, que foram as únicas a ser submetidas à concorrência.
72. Consequentemente, perante todos estes elementos, tal como nos são revelados pelo despacho de reenvio, pensamos que essa substituição de subcontratante verificada antes mesmo da execução das primeiras prestações e sem que tenha sido invocada a menor dificuldade de ordem técnica ou financeira devia ter sido obrigatoriamente precedida da abertura de um novo concurso. Ao autorizar uma substituição dessa natureza do subcontratante sem ter satisfeito as exigências de publicidade e de abertura de concurso impostas pelo direito comunitário, a Stadt Frankfurt am Main violou, em nossa opinião, a obrigação de transparência.
73. Com efeito, embora, no âmbito das concessões, haja um menor envolvimento dos dinheiros públicos que no quadro dos contratos públicos, não é menos verdade que o processo de adjudicação de uma concessão de serviços deve garantir às colectividades públicas bem como aos utentes a melhor qualidade de serviço, e isto com base numa apreciação séria e transparente das diferentes propostas, que respeite o princípio da igualdade de tratamento dos proponentes.
74. Se, perante todos os elementos dos autos, o órgão jurisdicional de reenvio vier a confirmar esta análise dos factos, entendemos que deverá retirar todas as consequências dessa violação.
75. Consequentemente, propomos que o Tribunal de Justiça responda ao órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que, quando, no âmbito de um processo de adjudicação de uma concessão de serviços, a identidade do subcontratante constitua um elemento essencial em que a entidade adjudicante se baseou para adjudicar a concessão, a obrigação de transparência exige aos Estados‑Membros que organizem um novo concurso público sempre que o concessionário pretenda proceder a uma substituição do subcontratante antes mesmo da execução das primeiras prestações e sem que tenham sido apresentados motivos legítimos para essa substituição. Cabe ao órgão jurisdicional nacional competente apreciar se o nome, a reputação e a competência técnica do subcontratante indicado pela FES aquando da apresentação da sua proposta constituíram um elemento essencial em que a Stadt Frankfurt am Main se baseou para adjudicar a concessão a essa empresa.
2. Quanto ao alcance ratione personæ
76. Com a sua quinta questão o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, atendendo às suas características mencionadas na decisão de reenvio, uma empresa como a FES deve ser considerada uma «entidade adjudicante» na acepção do artigo 1.°, alínea b), da Directiva 92/50 ou uma «empresa pública» na acepção do artigo 2.° da Directiva 80/723, sujeita, enquanto tal, ao respeito da obrigação de transparência na adjudicação de uma concessão de serviços.
77. O órgão jurisdicional de reenvio refere as directivas acima mencionadas na medida em que, relativamente às concessões de serviços, nenhum diploma de direito derivado definiu, com precisão, as entidades sobre as quais pesa a obrigação de transparência.
78. Pensamos que a falta de uma regulamentação dessa natureza não é prejudicial uma vez que os princípios desenvolvidos acerca deste ponto no quadro dos concursos públicos podem, em nosso entender, ser transpostos para as concessões serviços.
79. Com efeito, parece‑nos importante estabelecer uma definição uniforme do conceito de entidade adjudicante, na medida em que este conceito é suposto visar todas as entidades públicas susceptíveis de confiarem a prestação de actividades económicas a um terceiro, e isto independentemente do tipo de contrato celebrado, quer seja no domínio dos contratos públicos ou no das concessões de serviços públicos. A este respeito, é interessante recordar que o âmbito de aplicação da Directiva 92/50 é determinado, não segundo a natureza da operação em causa, mas segundo a personalidade daquele que a propõe, porquanto todos os contratos celebrados por uma entidade adjudicante devem ser adjudicados em conformidade com os princípios fixados por essa directiva.
80. Em contrapartida, a referência ao conceito de «empresa pública» visada no artigo 2.° da Directiva 80/723, relativa, recordamos, à transparência das relações financeiras entre os Estados‑Membros e as empresas públicas, afigura‑se‑nos muito menos pertinente. Tendo em conta os elementos que vamos indicar no quadro do exame relativo ao conceito de organismo de direito público, o órgão jurisdicional nacional poderá, contudo, apreciar, caso entenda necessário, se uma empresa como a FES é susceptível de ser qualificada de «empresa pública» (35).
a) Quanto ao conceito de «organismo de direito público» na acepção da Directiva 92/50
81. Antes de recordar as diferentes condições mencionadas pela Directiva 92/50 para que uma entidade seja qualificada de «entidade adjudicante», é interessante sublinhar, a título preliminar, que a FES é uma empresa de economia mista criada no quadro de uma parceria público‑privada (36).
82. Este processo oferece ao Tribunal de Justiça a oportunidade de precisar se uma entidade dessa natureza pode constituir um «organismo de direito público» na acepção da Directiva 92/50, sujeito, enquanto tal, ao respeito dos princípios fundamentais do Tratado.
83. Antes de iniciar este exame, é necessário precisar o alcance do conceito de parceria público‑privada.
84. Esta parceria é um mecanismo que associa um capital público normalmente maioritário a um capital privado minoritário numa estrutura jurídica em princípio sujeita às regras comuns do direito comercial. Os parceiros públicos e privados estabelecem, assim, uma entidade de capital misto, que pode assumir a forma de uma sociedade de economia mista, capaz de executar contratos públicos ou de tomar a seu cargo um serviço público local, no quadro de uma concessão. Como referiu a Comissão numa recente comunicação (37), a particularidade desta forma de cooperação, geralmente de longo prazo, reside no papel do parceiro privado que participa nas várias fases do projecto em causa (concepção, execução e exploração), suporta riscos tradicionalmente a cargo do sector público e frequentemente contribui para o financiamento do projecto (38).
85. Não é menos verdade que esta entidade de capital misto não constitui, na acepção da jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma estrutura de gestão «interna» de um serviço da colectividade pública. Assim, quando a entidade adjudicante atribui um contrato público ou uma concessão a este tipo de entidade, deve respeitar todas as regras aplicáveis aos contratos públicos e às concessões, quer tais regras decorram do Tratado ou do direito derivado (39).
86. Neste momento, importa examinar as diferentes condições mencionadas no artigo 1.°, alínea b), da Directiva 92/50 para que uma entidade seja qualificada de «organismo de direito público».
87. Nos termos do artigo 1.°, alínea b), segundo parágrafo, da Directiva 92/50, um organismo de direito público é um organismo que deve ser dotado de personalidade jurídica, ter sido criado com o objectivo específico de satisfazer necessidades de interesse geral sem carácter industrial ou comercial, e cujas actividades, cujo financiamento ou cujos órgãos de direcção estejam sob a estreita dependência do Estado, de uma autarquia local ou regional ou de outro organismo de direito público.
88. Como o Tribunal de Justiça tem declarado de forma reiterada, estas três condições têm natureza cumulativa, de forma que, não se encontrando preenchida apenas uma delas, um organismo não poderá ser considerado «organismo de direito público» e, portanto, «entidade adjudicante» na acepção da Directiva 92/50 (40).
89. Além disso, tendo em conta o objectivo prosseguido pelas directivas em matéria de celebração de contratos públicos, o Tribunal de Justiça considera que o conceito de organismo de direito público deve ser interpretado de modo funcional (41).
b) Quanto ao exame dos elementos constitutivos de um organismo de direito público
90. No caso vertente, a personalidade jurídica da FES não é contestada. As dúvidas incidem sobre as outras duas exigências estabelecidas pela Directiva 92/50.
i) Quanto à vocação da FES para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral sem carácter comercial ou industrial
91. É dado assente que a FES foi de facto criada para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral (42) porquanto é responsável, desde a sua origem, pela gestão e a eliminação de resíduos bem como pela limpeza urbana no território da Stadt Frankfurt am Main (43). Estas actividades são inegavelmente do interesse geral. Como já declarou o Tribunal de Justiça no acórdão BFI Holding (44), essas necessidades fazem parte das que não podem ser totalmente satisfeitas por empresas privadas na medida em que são consideradas necessárias por razões de saúde pública e de protecção do ambiente, motivo pelo qual o Estado pretende conservar sobre elas uma influência determinante (45).
92. Importa agora verificar se tais necessidades de interesse geral não têm carácter industrial ou comercial. Esta questão é, em contrapartida, mais delicada.
93. Existe abundante jurisprudência sobre a maneira como se deve apreciar a existência dessas necessidades (46). Segundo o Tribunal de Justiça, há que ter em conta a totalidade dos elementos de direito e de facto relevantes, tais como as circunstâncias que presidiram à criação do organismo em causa e as condições em que o mesmo exerce a sua actividade. A este respeito, o Tribunal de Justiça precisa que importa, nomeadamente, verificar se o organismo em questão exerce as suas actividades em condições normais de concorrência (47). Para este efeito, o Tribunal de Justiça examina a situação da concorrência no mercado dos produtos e dos serviços para os quais o referido organismo foi criado. Embora a existência de uma concorrência possa constituir um indício de que uma necessidade de interesse geral reveste carácter industrial ou comercial, esse indício não é suficiente (48). É ainda necessário examinar se o organismo prossegue um fim lucrativo, se suporta as perdas associadas ao exercício da sua actividade e se beneficia de um financiamento público para o exercício da actividade em causa (49).
94. Não constam dos autos elementos suficientes para apreciar com rigor todas estas circunstâncias. Compete ao órgão jurisdicional de reenvio, o único que possui um conhecimento aprofundado dos autos, apreciá‑las. Indicamos, porém, alguns elementos úteis.
95. No que respeita às circunstâncias que presidiram à criação deste organismo, consideramos que é importante ter em conta as particularidades do mercado da recolha e do tratamento de resíduos, que é uma das actividades para as quais a FES foi criada.
96. O mercado da recolha e do tratamento de resíduos sofreu uma expansão considerável, em particular com o endurecimento do quadro normativo relativo à gestão, à valorização dos resíduos e à prevenção de efeitos nocivos para o ambiente. Este endurecimento teve como consequência directa aumentar os custos da recolha e do tratamento de resíduos, tornando a actividade ao mesmo tempo mais complexa e mais técnica. Perante estas limitações, a grande maioria das colectividades locais optaram por delegar esta actividade a empresas especializadas, que assim puderam beneficiar plenamente do desenvolvimento deste mercado.
97. Estes elementos levam‑nos, por conseguinte, a pensar que a criação desta entidade não foi motivada pela obtenção de lucro. Apesar de a referida actividade gerar, na realidade, avultadas receitas, não é menos verdade que a obtenção destas receitas não constituiu, em todos os casos, o objectivo principal da criação da FES. Os referidos elementos verificam‑se, a fortiori, relativamente às actividades de limpeza urbana, que, contrariamente às actividades de recolha e de tratamento de resíduos, dão lugar a receitas mínimas.
98. No que respeita às condições em que a FES exerce a sua actividade, em particular o estado da concorrência nos sectores da recolha e do tratamento de resíduos e da limpeza urbana, o órgão jurisdicional de reenvio deveria examinar se a FES opera num mercado concorrencial onde existam verdadeiros concorrentes ou se, pelo contrário, se encontra numa situação de quase monopólio de facto atendendo, por exemplo, ao seu estatuto de «operador histórico» (50) ou à existência de barreiras à entrada no mercado. A inexistência de concorrência real não é uma condição necessária para efeitos da qualificação da FES como organismo público, mas pode constituir um indício de que a FES participa na satisfação de uma necessidade de interesse geral sem carácter industrial ou comercial.
99. Além disso, o facto de a FES levar a cabo, além da sua missão de interesse geral, outras actividades lucrativas não é pertinente para a resolução do litígio no processo principal. Com efeito, o Tribunal de Justiça considera que a qualidade de organismo de direito público não depende da importância relativa da satisfação de necessidades de interesse geral sem carácter industrial ou comercial na actividade do organismo em causa. Se a empresa continuar a encarregar‑se de prover a essas necessidades, o Tribunal de Justiça entende que o facto de a empresa exercer outras actividades com fim lucrativo é irrelevante, independentemente da quota parte que a referidas actividades representam no volume de negócios global da empresa (51).
100. Por outro lado, embora a FES apresente, no plano jurídico, poucas diferenças com uma sociedade anónima detida por operadores privados, na medida em que suporta os riscos económicos associados à sua actividade e pode igualmente ser declarada falida, resulta do despacho de reenvio que a Stadt Frankfurt am Main não permitiria que tal se verificasse. Além disso, sublinhamos que esta colectividade recebe dos seus administrados uma taxa comunal para financiar os pagamentos à FES destinados à eliminação dos resíduos e à limpeza da via pública.
101. Perante estes elementos, estaríamos inclinados a pensar que a FES foi criada para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral sem carácter industrial ou comercial.
102. Todavia, a fim de estabelecer a natureza exacta das necessidades a cargo desta empresa, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, o único que dispõe de elementos pertinentes, apreciar as condições em que a FES exerce a sua actividade, em particular o estado da concorrência nos sectores para os quais esta empresa foi criada.
ii) Quanto à condição de uma dependência estreita do organismo relativamente ao Estado, a uma autarquia local ou regional ou a outros organismos de direito público
103. Recorde‑se que, nos termos do artigo 1.°, alínea b), segundo parágrafo, terceiro travessão, da Directiva 92/50, esta condição visa os três critérios alternativos seguintes:
– ou a actividade é financiada maioritariamente pelo Estado, por autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público,
– ou a gestão está submetida ao controlo destes últimos,
– ou o órgão de administração, de direcção ou de fiscalização é composto por membros designados, na sua maioria, pelo Estado, por autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público.
104. É dado assente que a Stadt Frankfurt am Main detém 51% do capital da FES, ou seja, a maioria desta. Embora esta participação possa efectivamente fazer presumir uma influência dominante da colectividade pública sobre a empresa, não é evidente que tal influência se traduza nas suas modalidades de funcionamento e de gestão.
105. Começaremos por examinar as modalidades de gestão desta empresa na medida em que a Stadt Frankfurt am Main dispõe de um direito de veto na assembleia geral que, segundo as modalidades em que essa gestão é exercida, pode conferir à colectividade um controlo de facto da gestão da empresa.
– Quanto ao critério relativo ao controlo da gestão do organismo em causa
106. De acordo com jurisprudência assente, este critério visa o caso em que o organismo se encontra numa situação de dependência em relação aos poderes públicos, equivalente à que existe quando um dos outros dois critérios alternativos está preenchido. Esta dependência deve permitir aos poderes públicos influenciar as decisões em matéria de contratos públicos (52) ou, por analogia, em matéria de concessões.
107. O acórdão Adolf Truley, já referido, constitui um exemplo dos casos em que o Tribunal de Justiça considera que este critério está satisfeito. Nesse processo, o serviço de controlo da colectividade pública estava habilitado para verificar não apenas o balanço anual do organismo em causa mas igualmente a sua gestão corrente, sob o ponto de vista da exactidão dos números, da regularidade, da procura de economias, da rentabilidade e da racionalidade. Por outro lado, o referido serviço estava autorizado a visitar os locais de exploração e as instalações daquele organismo e podia transmitir os resultados destes controlos aos órgãos competentes e aos accionistas da sociedade e à colectividade.
108. No quadro do presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio deve ter em conta todas as circunstâncias de facto ou de direito que possam permitir à Stadt Frankfurt am Main exercer uma influência determinante sobre a actividade da FES. No caso vertente, pensamos que o órgão jurisdicional de reenvio deveria interessar‑se pelas modalidades através das quais essa colectividade exerce, na assembleia‑geral desta empresa, o direito de veto associado à sua participação maioritária. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio deve examinar a importância deste direito tomando em consideração as decisões relativamente às quais o mesmo pode ser exercido e examinando as eventuais condições restritivas ao seu exercício.
109. Com efeito, embora não possa impor decisões (53), não é menos verdade que a colectividade pode exercer um controlo exclusivo da FES se tiver condições para se opor às decisões estratégicas da empresa relativas à sua política comercial, à nomeação dos administradores, ao orçamento ou ao plano de empresa. Se o órgão jurisdicional de reenvio estabelecer que, ao exercer o seu direito de veto, a Stadt Frankfurt am Main se pode opor a decisões capitais para a estratégia comercial da FES e criar uma situação de bloqueio do processo decisório desta empresa, então a Stadt Frankfurt am Main dispõe de uma influência determinante sobre a gestão da FES e, consequentemente, de um controlo de facto.
110. Nestas condições, a fim de determinar a medida exacta em que a gestão da FES é controlada pela Stadt Frankfurt am Main, compete ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se a colectividade pública pode exercer uma influencia determinante na gestão da empresa através do direito de veto que lhe é reconhecido como accionista maioritário.
111. No caso de o órgão jurisdicional de reenvio considerar que o direito de veto não permite à Stadt Frankfurt am Main controlar a gestão desta empresa, cabe‑lhe examinar os dois outros critérios.
– Quanto ao critério relativo ao financiamento maioritário pela colectividade pública
112. O Tribunal de Justiça precisou o alcance desta condição no acórdão University of Cambridge, já referido. Segundo ele, apenas as prestações de financiamento ou de apoio, mediante auxílio financeiro sem contraprestação específica, das actividades da entidade em causa poderão ser qualificadas de «financiamento público». Em contrapartida, os montantes pagos por uma entidade adjudicante em contrapartida de prestações contratuais não estão abrangidas por esta categoria (54).
113. O Tribunal de Justiça indicou igualmente que o termo «maioritariamente» deve ser interpretado no sentido de que se trata de «mais de metade» e que uma apreciação correcta desta percentagem de financiamento público deverá ter em conta o conjunto das receitas de que beneficia o organismo em causa, incluindo as que resultam de uma actividade comercial, devendo o cálculo ser efectuado numa base anual.
114. No caso vertente, resulta do despacho de reenvio que mais de metade do volume de negócios anual da FES provém de contratos sinalagmáticos celebrados com a Stadt Frankfurt am Main para a recolha e tratamento de resíduos e para a limpeza urbana. Os montantes pagos por esta colectividade são, portanto, a contrapartida das prestações contratuais efectuadas pela FES, e a referida colectividade reconheceu um interesse económico na realização dessa prestações. Embora esta relação contratual possa efectivamente acarretar uma dependência da FES relativamente à colectividade, essa dependência tem, segundo o Tribunal de Justiça, uma natureza diferente daquela que resulta de uma mera prestação de apoio e deve ser equiparada à existente no quadro de relações comerciais normais (55).
115. Face a estes elementos, os pagamentos efectuados pela Stadt Frankfurt am Main à FES não constituem, portanto, um financiamento público na acepção da jurisprudência anteriormente referida.
– Quanto ao critério relativo à composição do órgão de administração, de direcção ou de fiscalização
116. O órgão jurisdicional de reenvio não precisa a composição e a forma de designação dos membros do conselho de administração e dos membros da direcção da FES. Indica apenas que a Stadt Frankfurt am Main nomeia um quarto dos membros do conselho de fiscalização, bem como o presidente deste último, que dispõe, em caso de igualdade de votos, de um voto de desempate (56). Por conseguinte, tal não é suficiente para permitir satisfazer este critério.
117. Face a todos estes elementos, pensamos que uma entidade de capital misto, como a FES, criada no quadro de uma parceria com a Stadt Frankfurt am Main, constitui um «organismo de direito público» na acepção do artigo 1.°, alínea b), segundo parágrafo, da Directiva 92/50 quando se demonstrar, por um lado, que essa entidade satisfaz necessidades de interesse geral sem carácter industrial ou comercial e, por outro, que a sua gestão e a sua direcção estão sob dependência estreita da colectividade pública.
118. A referida entidade responde a necessidades de interesse geral na acepção do artigo 1.°, alínea b), segundo parágrafo, primeiro travessão, da Directiva 92/50 na medida em que se encarrega da recolha e do tratamento de resíduos bem como da limpeza urbana no território da colectividade pública. A fim de avaliar se essas necessidades são desprovidas de carácter industrial ou comercial, cabe ao órgão jurisdicional nacional competente apreciar as condições em que a FES exerce a sua actividade, em particular o estado da concorrência nesses sectores.
119. Uma entidade dessa natureza está sob a dependência estreita da colectividade pública na acepção do artigo 1.°, alínea b), segundo parágrafo, terceiro travessão, da Directiva 92/50 na medida em que a sua gestão e o seus órgãos de direcção de administração ou de fiscalização forem controlados por essa colectividade. A fim de determinar a medida exacta em que a gestão da FES é controlada pela Stadt Frankfurt am Main, cabe ao órgão jurisdicional nacional competente apreciar se, através do direito de veto de que dispõe na assembleia geral ou através da composição dos referidos órgãos da empresa, a colectividade pública pode assegurar um controlo activo da gestão dessa entidade e influenciar, da mesma forma, as suas decisões em matéria de adjudicação de concessões de serviços.
C – Quanto ao poder de injunção do juiz nacional em caso de violação da obrigação de transparência
120. Com as suas primeira e quarta questões, o Landgericht Frankfurt am Main interroga o Tribunal de Justiça acerca das modalidades de fiscalização jurisdicional das decisões adoptadas no quadro de concessões de serviços. Em particular, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se quanto à questão de saber se, em circunstâncias como as do processo principal, o direito comunitário exige aos Estados‑Membros que reconheçam, no âmbito da sua jurisdição nacional, um poder de injunção relativamente às partes que celebraram um contrato de concessão em violação da obrigação de transparência.
121. No presente processo, a recorrente não contesta a decisão pela qual a Stadt Frankfurt am Main adjudicou a concessão de serviços à FES. Em contrapartida, contesta a decisão pela qual a administração autorizou, com fundamento no artigo 30.°, IV, do contrato de concessão, a substituição do subcontratante durante a execução do contrato. Segundo a recorrente, ao agir dessa forma, a Stadt Frankfurt am Main ignorou a obrigação de transparência na medida em que procedeu a uma modificação essencial do contrato sem satisfazer as exigências de publicidade e de abertura de concurso impostas pelo direito comunitário.
122. Este contencioso visa não apenas a formação do contrato de concessão mas também a sua execução. Com a sua acção, a recorrente pede ao juiz nacional que previna uma nova violação da obrigação de transparência ordenando à administração que não autorize a substituição de subcontratante no que respeita ao fornecimento e à manutenção de sanitários públicos a instalar nas gares de Kormarkt, Galluswarte e Rödelheim. Do mesmo modo, pede‑lhe que ordene à FES que não celebre novo contrato de subempreitada relativamente às prestações acima referidas. A fim de regularizar as condições de execução da concessão de serviços, a recorrente pede também ao juiz nacional que ordene à administração e, sendo caso disso, à FES que rescinda os contratos celebrados em violação da obrigação de transparência.
123. Para responder às questões submetidas pelo juiz de reenvio, é necessário recordar os termos em que o órgão jurisdicional está obrigado a garantir a protecção dos direitos que os particulares retiram do direito comunitário.
1. Observações preliminares
124. No seu estádio actual, o direito comunitário não regula a forma como os Estados‑Membros devem garantir a execução das decisões judiciais e punir as violações à obrigação de transparência cometidas no quadro da execução de uma concessão de serviços. Para apreciar a medida em que os Estados‑Membros estão obrigados a reconhecer um poder de injunção aos seus próprios juízes nacionais, é necessário evocar os princípios que regem a ordem jurídica comunitária, em particular o principio do primado do direito comunitário e o da autonomia processual dos Estados‑Membros.
125. O princípio do primado do direito comunitário impõe aos Estados‑Membros que punam de forma efectiva os incumprimentos da obrigação de transparência cometidos no quadro de um processo de adjudicação de uma concessão de serviços.
126. Com efeito, recordamos que a obrigação de transparência constitui uma expressão concreta e específica de um princípio geral de direito cujo respeito se impõe aos Estados‑Membros quando actuam no âmbito de aplicação do direito comunitário. Esta obrigação cria, na esfera dos particulares, direitos que devem poder ser objecto de uma protecção jurisdicional efectiva por parte do juiz nacional. Este último deve ter condições para garantir a plena execução da sua decisão judicial e deve poder adoptar sanções efectivas, proporcionadas e dissuasivas a fim de assegurar a plena eficácia do direito comunitário.
127. Este é o nosso postulado de partida.
128. Ao invés, na falta de regulamentação comunitária, pensamos que é conforme ao princípio da autonomia processual dos Estados‑Membros deixar ao seu cuidado a fixação dos poderes de que deve dispor o juiz nacional para garantir a execução das suas decisões judiciais e punir as violações da obrigação de transparência aquando da adjudicação de um contrato de concessão. Esta remissão para as regras processuais nacionais dos Estados‑Membros que devem, obviamente, respeitar os princípios da equivalência e da efectividade é, a nosso ver, mais conforme com a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que respeita a autonomia processual dos Estados‑Membros.
129. Resulta da referida jurisprudência que, na falta de regulamentação comunitária, compete à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das acções judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos particulares pelo direito comunitário, contanto que estas modalidades não sejam menos favoráveis do que as das acções análogas de natureza interna (princípio da equivalência) nem tornem, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efectividade) (57).
130. É à luz destas considerações que se deve responder às questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio.
2. Apreciação
131. Com as suas primeira, segunda e quarta questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, ao Tribunal de Justiça se a obrigação de transparência deve ser interpretada no sentido de que os Estados‑Membros estão obrigados a reconhecer ao juiz nacional um poder de injunção relativamente às partes num litígio, a fim de assegurar o respeito dessa obrigação. O órgão jurisdicional de reenvio interroga igualmente o Tribunal de Justiça acerca da questão de saber se o juiz nacional está obrigado a ordenar às partes que rescindam o contrato celebrado em violação da referida obrigação (58).
132. O poder de injunção consiste na possibilidade dada ao juiz de ordenar a uma parte que pratique ou se abstenha de praticar determinado acto que ele determina, eventualmente sob cominação de uma multa. Assim, o juiz chamado a conhecer de um litígio pode ordenar a um particular ou à administração que tome uma medida num dado sentido quando a decisão implicar necessariamente que uma das partes no litígio tome essa medida. Este poder constitui um instrumento útil para garantir a execução das decisões judiciais e para fazer face às dificuldades e à recusa de execução do caso julgado.
133. Até à data, o princípio segundo o qual o juiz nacional pode dirigir uma injunção não é objecto de qualquer regulamentação comunitária. Além disso, este princípio não é aplicado uniformemente nos Estados‑Membros, nomeadamente quando a injunção se dirige à administração.
134. Na Alemanha, assim como no Reino Unido, o referido poder de injunção do juiz relativamente à administração é um dado adquirido. O juiz alemão dispõe de um poder geral de injunção relativamente à administração. De igual modo, o juiz britânico pode dirigir injunções de fazer ou de não fazer a todas as administrações, excepto ao governo e seus colaboradores directos. A questão foi discutida mais tempo pelo juiz administrativo francês em razão de uma concepção tradicional da separação de poderes. Esta concepção é actualmente objecto de numerosas excepções, desde a adopção da lei de 8 de Fevereiro de 1995 (59).
135. Como já indicámos, no estádio actual do direito comunitário, é no quadro da sua ordem jurídica interna e em conformidade com os princípios da efectividade e da equivalência que os Estados‑Membros devem determinar a necessidade e, sendo caso disso, as condições em que o poder de injunção deve ser reconhecido. Nesta medida, os Estados‑Membros devem basear‑se nos princípios subjacentes ao seu sistema jurisdicional nacional, examinar a medida em que esse poder de injunção se insere no conjunto das vias jurídicas existentes e ter em conta os poderes já conferidos ao juiz nacional. No quadro desta apreciação, os Estados‑Membros devem preocupar‑se em garantir a plena execução das decisões judiciais proferidas quanto à existência dos direitos invocados com fundamento no direito comunitário. Ao prosseguir este objectivo, os Estados‑Membros devem procurar garantir a plena efectividade do direito comunitário e assegurar a protecção dos direitos por este conferidos aos particulares.
136. A este respeito, ordenar a rescisão do contrato, se esta não for imposta pelo direito comunitário, pode constituir a sanção mais adequada para assegurar a eficácia do direito comunitário e a protecção dos direitos dos particulares. Tal pode ser, nomeadamente, o caso de uma violação particularmente grave das disposições do direito comunitário, como as que exigem uma publicidade adequada ou a abertura de um concurso prévio. A este respeito, é possível inspirar‑nos nas disposições que o legislador comunitário adoptou neste quadro, no artigo 2.°‑D, inserido pela Directiva 2007/66 (60).
137. No seu despacho de reenvio, o Landgericht Frankfurt am Main sustenta que a Stadt Frankfurt am Main estava obrigada a rescindir o contrato de concessão de serviços cuja modificação tinha autorizado.
138. Para sustentar o seu ponto de vista, o órgão jurisdicional de reenvio afirma que os princípios enunciados pelo legislador comunitário no artigo 2.° da Directiva 89/665 e reafirmados pelo Tribunal de Justiça no acórdão Comissão/Alemanha (61) são aplicáveis por analogia aos processo de adjudicação de serviços.
139. Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça, chamado a pronunciar‑se com base no artigo 228.° CE, condenou a República Federal da Alemanha por não ter anulado um contrato relativo à eliminação de resíduos da cidade de Brunswick (Alemanha), celebrado em violação a Directiva 92/50. A República Federal da Alemanha baseou‑se nas disposições do artigo 2.°, n.° 6, segundo parágrafo, da Directiva 89/665 para alegar que as reparações de que podiam beneficiar as empresas lesadas eram suficientes para punir o incumprimento cometido pela entidade adjudicante. O Tribunal de Justiça não seguiu este raciocínio. Segundo ele, esta disposição regula a relação existente entre um Estado‑Membro e os seus nacionais, mas não a relação entre um Estado‑Membro e a Comunidade, não permitindo, portanto, que os Estados‑Membros se subtraiam à sua responsabilidade de direito comunitário. Ao manter os efeitos do contrato em causa, o incumprimento da República Federal da Alemanha perdurou e existia o risco de que a violação da liberdade de prestação de serviços subsistisse durante toda a sua execução. Segundo o Tribunal de Justiça, a anulação do contrato impunha‑se, portanto, não apenas para garantir a plena execução de uma decisão que tinha declarado a existência de um incumprimento, mas também para assegurar o respeito do direito comunitário.
140. Contrariamente ao órgão jurisdicional de reenvio, não pensamos que os princípios desenvolvidos no quadro do contencioso dos contratos públicos sejam pura e simplesmente transponíveis para o contencioso das concessões de serviços, e isto por duas razões.
141. Em primeiro lugar, recordamos que os Estados‑Membros não desejaram legislar no que respeita à adjudicação de concessões de serviços, e isso contrariamente aos numerosos diplomas adoptados no quadro da adjudicação de contratos públicos. Por conseguinte, não podemos ignorar a inexistência de regulamentação comunitária na matéria e aplicar, por analogia, as regras precisas e vinculativas mencionadas na Directiva 89/665.
142. Em segundo lugar, é delicado apreciar da mesma forma as consequências a retirar de um incumprimento da obrigação de transparência consoante se trate de um contrato público ou de uma concessão de serviços públicos. Com efeito, no caso desta última, as sanções não devem ter apenas por objecto garantir o respeito da legalidade ou punir um comportamento culposo por parte da entidade adjudicante. Têm também, e talvez sobretudo, por objecto assegurar o bom funcionamento dos serviços públicos e preservar o interesse geral para cuja satisfação o contrato concorre.
143. Assim, se a injunção visa, nomeadamente, assegurar a plena eficácia do direito comunitário deve poder ser objecto de uma apreciação casuística pelo juiz nacional. O seu objecto deve ser apreciado tendo em conta todos os aspectos pertinentes de um processo, como o comportamento da entidade adjudicante, a natureza da ilegalidade cometida e todos os interesses susceptíveis de serem lesados, em especial o interesse geral.
144. No quadro do presente processo, o princípio segundo o qual o juiz nacional pode dirigir uma injunção é dado adquirido na Alemanha. Resulta do despacho de reenvio que o juiz nacional pode exercer esse poder ao abrigo do § 1004, n.° 1, do código civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch, a seguir «BGB») (62), em dois tipos de situações:
– quando uma pessoa é lesada em razão de uma ofensa a interesses protegidos por lei, como a vida, a integridade física e a personalidade, a saúde, a liberdade e a propriedade, ou
– quando uma pessoa é lesada em razão da violação de uma «lei destinada a proteger outrem» na acepção do § 832, n.° 2, do BGB.
145. No quadro do presente litígio, incumbe ao juiz de reenvio verificar se o direito processual nacional, neste caso, o § 823, n.° 2, do BGB, permite ao órgão jurisdicional competente dirigir uma injunção à administração quando esta tenha violado a obrigação de transparência e ordenar‑lhe que rescinda o contrato celebrado com a FES e não volte a autorizar uma substituição de subcontratante (63).
146. Para este efeito, cabe‑lhe, em primeiro lugar, apreciar se esta obrigação constitui, na acepção da referida disposição, uma «lei destinada a proteger outrem». Como explicou o juiz de reenvio nos fundamentos da sua segunda questão prejudicial, será esse o caso se a referida obrigação constituir um princípio de direito consuetudinário.
147. Recordamos ao órgão jurisdicional de reenvio que a obrigação de transparência é uma expressão do princípio geral da igualdade de tratamento. Este último faz parte dos princípios fundamentais do direito comunitário e tem a sua fonte directa as disposições do Tratado (64). Cria direitos a favor dos particulares e impõe‑se a todas as autoridades dos Estados‑Membros quando aplicam o direito comunitário. Subsequentemente, estas autoridades estão obrigadas, em toda a medida do possível, a aplicar esse direito em condições que não desrespeitem as exigências decorrentes da protecção dos direitos fundamentais na ordem jurídica comunitária. No quadro do presente processo, o órgão jurisdicional nacional está, portanto, obrigado a interpretar, em toda a medida do possível, as regras nacionais que reconhecem ao juiz um poder de injunção de forma a assegurar a plena eficácia do direito comunitário e garantir a protecção dos direitos que a recorrente dele retira.
148. Se o órgão jurisdicional de reenvio considerar que a obrigação de transparência constitui de facto, na acepção do § 823, n.° 2, do BGB, uma «lei destinada a proteger outrem», então deverá garantir que as condições em que o juiz nacional pode dirigir uma injunção no caso de violação da obrigação de transparência são equivalentes às previstas no quadro de um litígio resultante da violação do direito interno. Cabe‑lhe igualmente garantir que essas modalidades não tornam, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária.
149. No quadro do presente litígio, o objectivo é garantir a plena eficácia do direito comunitário punindo de forma efectiva os incumprimentos da obrigação de transparência e prevenindo uma violação iminente desta obrigação através de uma nova aplicação abusiva da cláusula de subcontratação que figura no artigo 30.°, IV, do contrato de concessão.
150. É em vista deste objectivo que cabe ao juiz de reenvio apreciar se há que ordenar à Stadt Frankfurt am Main e, sendo caso disso, à FES que rescinda os contratos celebrados em violação do direito comunitário. A este respeito e como resulta do despacho de reenvio, o Landsgericht Frankfurt am Main sustenta que a violação da obrigação de transparência é susceptível de constituir um motivo sério de anulação do contrato de concessão, na acepção do § 314 do código civil alemão (Bürgeliches Gesetzbuch, a seguir «BGB») (65).
151. É também em vista deste objectivo que cabe ao juiz de reenvio apreciar se há que ordenar à administração e à FES que não procedam, em circunstâncias como as do litígio no processo principal, a uma substituição de subcontratante no que respeita ao fornecimento e à manutenção dos sanitários públicos a instalar nas gares de Kornmarkt, Galluswarte e Rödelheim.
152. Consequentemente, propomos que o Tribunal de Justiça responda ao órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que, quando o órgão jurisdicional nacional competente constate uma violação da obrigação de transparência no quadro de um processo de adjudicação de uma concessão de serviços, o direito comunitário, no seu estádio actual, não exige aos Estados‑Membros que reconheçam, a favor desse órgão jurisdicional, um poder de injunção relativamente ás partes no litígio. Compete à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro definir, em conformidade com os princípios comunitários da equivalência e da efectividade, as modalidades processuais que permitam ao juiz nacional competente assegurar a plena eficácia do direito comunitário e a plena execução da decisão judicial proferida quanto à existência dos direitos invocados com fundamento nele.
VI – Conclusão
153. À luz das considerações que precedem, propomos ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma às questões colocadas pelo Landgericht Frankfurt am Main:
«1) Quando, no âmbito de um processo de adjudicação de uma concessão de serviços, a identidade do subcontratante constitua um elemento essencial em que a entidade adjudicante se baseou para adjudicar a concessão, a obrigação de transparência exige aos Estados‑Membros que organizem um novo concurso público sempre o concessionário pretenda proceder a uma substituição do subcontratante antes mesmo da execução das primeiras prestações e sem que tenham sido apresentados motivos legítimos para essa substituição. Cabe ao órgão jurisdicional nacional competente apreciar se o nome, a reputação e a competência técnica do subcontratante indicado pela Frankfurter Entsorgungs‑ und Service GmbH aquando da apresentação da sua proposta constituíram um elemento essencial em que a Stadt Frankfurt am Main se baseou para adjudicar a concessão a essa empresa.
2) Uma entidade de capital misto, como a Frankfurter Entsorgungs‑ und Service GmbH, criada no quadro de uma parceria com a Stadt Frankfurt am Main, constitui um ‘organismo de direito público’ na acepção do artigo 1.°, alínea b), segundo parágrafo, da Directiva 92/50/ CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços, conforme modificada pela Directiva 2001/78/CE da Comissão, de 13 de Setembro de 2001, quando se demonstrar, por um lado, que essa entidade satisfaz necessidades de interesse geral sem carácter industrial ou comercial e, por outro, que a sua gestão e a sua direcção estão sob dependência estreita da colectividade pública.
A referida entidade responde a necessidades de interesse geral na acepção do artigo 1.°, alínea b), segundo parágrafo, primeiro travessão, da Directiva 92/50 na medida em que se encarrega da recolha e do tratamento de resíduos bem como da limpeza urbana no território da colectividade pública. A fim de avaliar se essas necessidades são desprovidas de carácter industrial ou comercial, cabe ao órgão jurisdicional nacional competente apreciar as condições em que a FES exerce a sua actividade, em particular o estado da concorrência nesses sectores.
Uma entidade dessa natureza está sob a dependência estreita da colectividade pública na acepção do artigo 1.°, alínea b), segundo parágrafo, terceiro travessão, da Directiva 92/50, conforme modificada, na medida em que a sua gestão e os seus órgãos de direcção, de administração ou de fiscalização forem controlados por essa colectividade. A fim de determinar a medida exacta em que a gestão da Frankfurter Entsorgungs‑ und Service GmbH é controlada pela Stadt Frankfurt am Main, cabe ao órgão jurisdicional nacional competente apreciar se, através do direito de veto de que dispõe na assembleia geral ou através da composição dos referidos órgãos da empresa, a colectividade pública pode assegurar um controlo activo da gestão dessa entidade e influenciar, da mesma forma, as suas decisões em matéria de adjudicação de concessões de serviços.
3) Quando, no quadro de um processo de adjudicação de uma concessão de serviços, o órgão jurisdicional nacional competente constata a violação da obrigação de transparência, o direito comunitário, no seu estádio actual, não exige aos Estados‑Membros que reconheçam, a favor desse órgão jurisdicional, um poder de injunção relativamente às partes no litígio. Compete à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro definir, em conformidade com os princípios comunitários da equivalência e da efectividade, as modalidades processuais que permitam ao juiz nacional competente assegurar a plena eficácia do direito comunitário e a plena execução da decisão judicial proferida quanto à existência dos direitos invocados com fundamento nele.»