Language of document : ECLI:EU:T:2022:138

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção alargada)

16 de março de 2022 (*)

«Energia — Regulamento (UE) 2017/459 — Código de rede adotado pela Comissão que inclui um “processo de capacidade suplementar” — Decisão da ACER que aprova a realização de um projeto de capacidade suplementar — Exceção de ilegalidade — Incompetência da Comissão — Artigo 6.o, n.o 11, artigo 7.o, n.o 3 e artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento (CE) n.o 715/2009»

Nos processos apensos T‑684/19 e T‑704/19,

Magyar Energetikai és Közműszabályozási Hivatal (MEKH), com sede em Budapeste (Hungria), representada por G. Stanka, J. Burai‑Kovács, G. Szikla e Á. Kulcsár, advogados,

recorrente no processo T‑684/19,

FGSZ Földgázszállító Zrt., com sede em Siófok (Hungria), representada por M. Horányi, N. Niejahr e S. Zakka, advogados,

recorrente no processo T‑704/19,

contra

Agência da União Europeia de Cooperação dos Reguladores da Energia (ACER), representada, no processo T‑684/19, por P. Martinet, D. Lelovitis e N. Keyaerts, na qualidade de agentes, assistidos por E. Ameye, M. de Sousa Ferro e Cs. Nagy, advogados, e, no processo T‑704/19, por Martinet, Lelovitis e Keyaerts, na qualidade de agentes, assistidos por Ameye e de Sousa Ferro, advogados,

recorrida,

apoiada pela:

EnergieControl Austria für die Regulierung der Elektrizitäts und Erdgaswirtschaft (EControl), representada por S. Polster, advogado,

e pela

Comissão Europeia, representada por O. Beynet e A. Sipos, na qualidade de agentes,

intervenientes,

que tem por objeto um pedido baseado no artigo 263.o TFUE e destinado à anulação da Decisão n.o 05/2019 da Agência da União Europeia de Cooperação dos Reguladores da Energia (ACER), de 9 de abril de 2019, e da Decisão n.o A‑004‑2019 da Câmara de Recurso da ACER, de 6 de agosto de 2019,

O TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção alargada),

composto por: V. Tomljenović, presidente, V. Kreuschitz, F. Schalin, P. Škvařilová‑Pelzl e I. Nõmm (relator), juízes,

secretário: A. Juhász‑Tóth, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 27 de outubro de 2021,

profere o presente

Acórdão

I.      Antecedentes dos litígios

1        Em 2015, a recorrente no processo T‑704/19, a FGSZ Földgázszállító Zrt. (a seguir «FGSZ»), operadora da rede de transporte de gás húngaro, bem como os seus homólogos búlgaro, romeno e austríaco, iniciaram um projeto de cooperação regional destinado a aumentar a independência energética através da introdução do gás do mar Negro. Denominado «Rohuat/BRUA», este projeto previa o aumento das capacidades suplementares em dois pontos de interligação, um entre a Roménia e a Hungria e o outro entre a Hungria e a Áustria.

2        Em 26 de maio de 2017, o projeto foi dividido em dois projetos distintos, entre os quais o relativo ao ponto de interligação entre a Hungria e a Áustria (a seguir «projeto HUAT»). A este respeito, a FGSZ e o operador da rede de transporte de gás austríaco, a Gas Connect Austria GmbH (a seguir «GCA»), procederam à avaliação da procura do mercado para o projeto HUAT, em conformidade com o artigo 26.o do Regulamento (UE) 2017/459 da Comissão, de 16 de março de 2017, que institui um código de rede para os mecanismos de atribuição de capacidade em redes de transporte de gás e que revoga o Regulamento (UE) n.o 984/2013 (JO 2017, L 72, p. 1).

3        Em 27 de julho de 2017, a FGSZ e a GCA publicaram um relatório de avaliação conjunto no qual concluíram pela existência de um interesse não vinculativo na capacidade suplementar, por parte dos utilizadores da rede, que permitia o início de um projeto de capacidade suplementar na aceção do artigo 3.o, n.o 9, do Regulamento 2017/459. No entanto, o relatório revelava um resultado assimétrico, uma vez que os pedidos apresentados à GCA no lado austríaco eram quase duas vezes mais elevados do que os apresentados à FGSZ no lado húngaro.

4        De 19 de outubro a 19 de novembro de 2017, a FGSZ e a GCA realizaram uma consulta pública conjunta sobre o projeto de proposta, em aplicação do artigo 27.o, n.o 3, do Regulamento 2017/459.

5        Em 6 de abril de 2018, a FGSZ apresentou formalmente à recorrente no processo T‑684/19, a Magyar Energetikai és Közmű‑szabályozási Hivatal (MEKH), a Entidade Reguladora da Energia e dos Serviços Públicos Húngara, a proposta de projeto HUAT de capacidade suplementar, em aplicação do artigo 28.o, n.o 1, do Regulamento 2017/459, salientando que não era favorável à execução desse projeto e que, por conseguinte, não propunha o início do leilão das capacidades suplementares, ao abrigo do artigo 29.o desse mesmo regulamento.

6        Em 9 de abril de 2018, a GCA apresentou a proposta de projeto HUAT à Entidade Reguladora dos Setores da Eletricidade e do Gás Natural Austríaca, a Energie‑Control Austria für die Regulierung der Elektrizitäts‑ und Erdgaswirtschaft (E‑Control), interveniente em apoio da Agência da União Europeia para a Cooperação dos Reguladores da Energia (ACER).

7        Em 27 de abril de 2018, a E‑Control adotou uma decisão que aprovava a proposta de projeto HUAT.

8        Em 5 de outubro de 2018, a MEKH adotou uma decisão que indeferia a proposta de projeto HUAT.

9        Em 10 de outubro de 2018, a ACER indicou à MEKH e à E‑Control que tinha constatado que não tinha sido tomada nenhuma decisão coordenada no prazo de seis meses a contar da receção da proposta de projeto HUAT pela última entidade reguladora nacional e que, por conseguinte, em aplicação do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 713/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que institui a Agência de Cooperação dos Reguladores da Energia (JO 2009, L 211, p. 1), tinha competência para decidir sobre a referida proposta.

10      Em 9 de abril de 2019, a ACER adotou a Decisão n.o 05/2019 que aprova a proposta de projeto HUAT (a seguir «decisão inicial»).

11      Em 6 e 7 de junho de 2019, foram interpostos dois recursos da decisão inicial na Câmara de Recurso da ACER, pela MEKH e pela FGSZ, respetivamente, em conformidade com o artigo 19.o do Regulamento n.o 713/2009.

12      Por Decisão de 6 de agosto de 2019, a Câmara de Recurso da ACER negou provimento aos recursos interpostos da decisão inicial (a seguir «decisão da Câmara de Recurso»).

II.    Tramitação processual e pedidos das partes

13      Por petições apresentadas na Secretaria do Tribunal Geral, respetivamente, em 7 e 15 de outubro de 2019, a MEKH e a FGSZ interpuseram os presentes recursos.

14      Em 21 e 22 de janeiro de 2020, a Comissão Europeia pediu para intervir em apoio dos pedidos da ACER nos processos T‑684/19 e T‑704/19.

15      Em 23 de janeiro de 2020, a E‑Control pediu para intervir em apoio dos pedidos da ACER nos processos T‑684/19 e T‑704/19.

16      Por Decisões de 2 de março e de 5 de junho de 2020, a presidente da Segunda Secção do Tribunal Geral admitiu a intervenção da Comissão.

17      Por Despachos de 28 de abril e de 4 de junho de 2020, a presidente da Segunda Secção do Tribunal Geral admitiu a intervenção da E‑Control.

18      Em 22 de dezembro de 2020, em aplicação do artigo 27.o, n.o 3, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, o processo foi atribuído a um novo juiz‑relator afeto à Segunda Secção.

19      Por Despacho de 27 de julho de 2021, a presidente da Segunda Secção do Tribunal Geral decidiu apensar os processos T‑684/19 e T‑704/19 para efeitos da fase oral do processo e da decisão que põe termo à instância. Nesse mesmo despacho, indeferiu o pedido de confidencialidade formulado pela ACER em relação à FGSZ, relativamente ao anexo da contestação no processo T‑684/19, que corresponde à decisão da Câmara de Recurso, uma vez que a FGSZ teve necessariamente conhecimento da referida decisão, visto que era destinatária da mesma.

20      Sob proposta da Segunda Secção do Tribunal Geral, este decidiu, em aplicação do artigo 28.o do Regulamento de Processo, remeter o processo a uma formação de julgamento alargada.

21      Sob proposta do juiz‑relator, o Tribunal Geral (Segunda Secção alargada) decidiu dar início à fase oral do processo e, no âmbito das medidas de organização do processo previstas no artigo 89.o do Regulamento de Processo, colocou questões escritas às partes.

22      Por impedimento de um membro da Segunda Secção alargada, o presidente do Tribunal Geral designou outro juiz para completar a formação de julgamento.

23      A MEKH conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a «decisão inicial aprovada pela Câmara de Recurso da ACER»;

–        condenar a ACER nas despesas.

24      A FGSZ conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão inicial e a decisão da Câmara de Recurso;

–        a título subsidiário, anular o artigo 1.o, n.os 1 e 2, e o artigo 2.o, n.o 4, da decisão inicial, conforme confirmada pela decisão da Câmara de Recurso;

–        a título ainda mais subsidiário, anular a decisão da Câmara de Recurso;

–        condenar a ACER nas despesas.

25      A ACER conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        no processo T‑684/19:

–        julgar inadmissíveis a primeira e a segunda parte do primeiro fundamento e a segunda parte do segundo fundamento;

–        em conjunto ou a título subsidiário, julgar improcedentes a totalidade dos fundamentos e, consequentemente, negar provimento ao recurso na íntegra;

–        condenar a MEKH nas despesas.

–        no processo T‑704/19:

–        julgar improcedentes a totalidade dos fundamentos e, consequentemente, negar provimento ao recurso na íntegra;

–        condenar a FGSZ nas despesas.

26      A Comissão e a E‑Control concluem pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar as recorrentes nas despesas.

27      Na audiência de 6 de novembro de 2020, foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às questões orais colocadas pelo Tribunal Geral. Além disso, a FGSZ desistiu do seu recurso na parte em que tinha por objeto a decisão inicial, o que ficou registado na ata da audiência.

III. Questão de direito

28      A título preliminar, há que salientar que, diferentemente da FGSZ, que desistiu, na audiência, do seu recurso da decisão inicial, a MEKH contesta no seu recurso tanto a decisão inicial como a decisão da Câmara de Recurso. Por conseguinte, há que examinar a admissibilidade deste último recurso na medida em que tem por objeto a decisão inicial.

A.      Quanto à admissibilidade do recurso no processo T684/19 na parte em que tem por objeto a decisão inicial

29      Segundo jurisprudência constante, os requisitos de admissibilidade de um recurso previstos pelo artigo 263.o TFUE fazem parte dos fundamentos de inadmissibilidade de ordem pública e, por conseguinte, cabe ao Tribunal Geral examiná‑los oficiosamente (v., neste sentido, Acórdão de 16 de maio de 2019, Pebagua/Comissão, C‑204/18 P, não publicado, EU:C:2019:425, n.o 28 e jurisprudência referida).

30      A título de medidas de organização do processo recordadas no n.o 21, supra, as partes apresentaram o seu ponto de vista sobre a admissibilidade dos recursos na parte em que estes tinham por objeto a decisão inicial, tendo em conta, por um lado, o considerando 34, o artigo 28.o, n.o 1, e o artigo 29.o do Regulamento (UE) 2019/942 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de junho de 2019, que institui a Agência da União Europeia de Cooperação dos Reguladores da Energia (reformulação) (JO 2019, L 158, p. 22), que substituiu o Regulamento n.o 713/2009, e, por outro, o artigo 263.o, quinto parágrafo, TFUE.

31      Em primeiro lugar, há que observar que, no que respeita aos recursos interpostos pelas recorrentes não privilegiadas, o artigo 263.o, quinto parágrafo, TFUE especifica que «[o]s atos que criam os órgãos e organismos da União podem prever condições e regras específicas relativas aos recursos interpostos por pessoas singulares ou coletivas contra atos desses órgãos ou organismos destinados a produzir efeitos jurídicos em relação a essas pessoas».

32      No âmbito dos presentes litígios, as condições e regras específicas relativas aos recursos, previstas no artigo 263.o, quinto parágrafo, TFUE, decorrem do Regulamento 2019/942.

33      Com efeito, resulta de jurisprudência constante que as regras processuais são aplicáveis, geralmente, na data em que entram em vigor, diferentemente do que sucede com as regras substantivas, que são habitualmente interpretadas no sentido de que visam as situações adquiridas anteriormente à sua entrada em vigor, apenas na medida em que resulte claramente dos próprios termos, das suas finalidades ou da sua inserção sistemática que esse efeito lhes deve ser atribuído (v. Acórdão de 26 de março de 2015, Comissão/Moravia Gas Storage, C‑596/13 P, EU:C:2015:203, n.o 33 e jurisprudência referida).

34      Daqui resulta que, no caso em apreço, as regras processuais aplicáveis para determinar a admissibilidade do recurso no processo T‑684/19 na parte em que tem por objeto a decisão inicial são as previstas no Regulamento 2019/942. Com efeito, importa salientar que, entre a adoção da decisão inicial (em 9 de abril de 2019) e a adoção da decisão da Câmara de Recurso (em 6 de agosto de 2019), o Regulamento n.o 713/2009 foi substituído pelo Regulamento 2019/942, que entrou em vigor em 4 de julho de 2019.

35      Em segundo lugar, decorre do considerando 34 e dos artigos 28.o e 29.o do Regulamento 2019/942 que as pessoas singulares e coletivas em desacordo com uma decisão da ACER, de que sejam destinatárias ou que lhes diga direta e individualmente respeito, devem recorrer à Câmara de Recurso quando essa possibilidade lhes for oferecida. Quando existe tal possibilidade, tais pessoas singulares e coletivas apenas têm legitimidade para impugnar no Tribunal Geral a decisão da referida Câmara de Recurso.

36      Com efeito, em primeiro lugar, segundo o considerando 34 do Regulamento 2019/942:

«Nos casos em que a ACER tenha poderes de decisão, os interessados deverão, por razões de economia processual, ter o direito de interpor recurso junto da Câmara de Recurso, que deverá fazer parte da ACER, mas independente da sua estrutura administrativa e reguladora. A fim de garantir o seu funcionamento e total independência, a Câmara de Recurso deverá dispor de uma rubrica orçamental separada no orçamento da ACER. Por uma questão de continuidade, a nomeação ou renovação dos membros da Câmara de Recurso deverá permitir a substituição parcial dos membros da Câmara de Recurso. As decisões da Câmara de Recurso são passíveis de recurso para o Tribunal de Justiça da União Europeia […]»

37      Em segundo lugar, o artigo 29.o do Regulamento n.o 2019/942, sob a epígrafe «Recursos para o Tribunal de Justiça», especifica que «[a]s ações de recurso para anulação de uma decisão da ACER, ao abrigo do presente regulamento, e por omissão de decisão nos prazos aplicáveis, podem ser interpostas junto do Tribunal de Justiça apenas após esgotado o processo de recurso referido no artigo 28.o […]».

38      A este respeito, em terceiro lugar, o artigo 28.o do Regulamento 2019/942, sob a epígrafe «Decisões suscetíveis de recurso», prevê, no seu n.o 1, que «[q]ualquer pessoa singular ou coletiva, incluindo as entidades reguladoras, pode recorrer das decisões a que se refere o artigo 2.o, alínea d), de que seja destinatária, ou de uma decisão que, embora formalmente dirigida a outra pessoa, lhe diga direta e individualmente respeito». Nos termos do n.o 2 deste artigo, «[a] câmara de recurso aprova uma decisão sobre o recurso no prazo de quatro meses a contar da apresentação do mesmo».

39      Consequentemente, na medida em que a decisão inicial podia ser objeto de recurso na Câmara de Recurso, decorre da leitura conjugada do considerando 34 e dos artigos 28.o e 29.o do Regulamento 2019/942 que apenas a decisão da Câmara de Recurso era suscetível de ser impugnada no Tribunal Geral.

40      Em terceiro lugar, mesmo supondo que o Regulamento n.o 713/2009 era aplicável ratione temporis, ter‑se‑ia imposto a mesma conclusão, uma vez que o artigo 20.o deste regulamento previa que «[p]ode ser interposto recurso para o Tribunal […], nos termos do artigo [263.o TFUE], de decisões da Câmara de Recurso ou, nos casos em que a Câmara de Recurso não [tem] competência para se pronunciar, da Agência» (v., neste sentido, Acórdão de 24 de outubro de 2019, Austrian Power Grid e Vorarlberger Übertragungsnetz/ACER, T‑333/17, não publicado, EU:T:2019:760, n.os 31 e 32).

41      Tendo em conta tudo o que precede, a MEKH não tem legitimidade para pedir a anulação da decisão inicial.

42      Daqui resulta que o recurso no processo T‑684/19 deve ser julgado inadmissível na parte em que tem por objeto a decisão inicial.

B.      Quanto ao mérito dos recursos

43      Em apoio dos respetivos recursos, a MEKH e a FGSZ invocam, em substância, catorze fundamentos. O Tribunal Geral considera que basta examinar o primeiro fundamento apresentado no processo T‑684/19, pelo qual a MEKH invoca a ilegalidade do capítulo V do Regulamento 2017/459.

44      A MEKH invoca a ilegalidade do capítulo V do Regulamento 2017/459 pelo facto de este capítulo ultrapassar a competência conferida à Comissão pelo Regulamento (CE) n.o 715/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, relativo às condições de acesso às redes de transporte de gás natural e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1775/2005 (JO 2009, L 211, p. 36), e que, por conseguinte, deve ser declarado inaplicável aos presentes litígios em aplicação do artigo 277.o TFUE.

45      A ACER, apoiada pela Comissão, alega que a exceção de ilegalidade é inadmissível e, em todo o caso, improcedente.

1.      Quanto à admissibilidade da exceção de ilegalidade

46      Em primeiro lugar, a ACER sustenta que a exceção de ilegalidade é inadmissível, uma vez que, em aplicação do artigo 29.o do Regulamento 2019/942, só os fundamentos suscitados perante a sua Câmara de Recurso podem ser invocados no Tribunal Geral.

47      É facto assente que a MEKH não invocou a ilegalidade do capítulo V do Regulamento 2017/459 perante a Câmara de Recurso da ACER.

48      Além disso, a ACER sublinha corretamente, em substância, que a obrigação de esgotar o processo perante a sua Câmara de Recurso antes da interposição do recurso no Tribunal de Justiça da União Europeia, que figura no artigo 29.o do Regulamento 2019/942, implica, em princípio, que os fundamentos não apresentados na referida Câmara de Recurso não possam ser invocados pela primeira vez no Tribunal Geral no âmbito de um recurso de anulação. Com efeito, uma vez que este último tem exclusivamente por objeto a decisão desta Câmara de Recurso, deve ser interposto à luz do quadro factual e jurídico dos litígios tal como foram submetidos a essa Câmara de Recurso.

49      Todavia, essa abordagem não pode ser acolhida em relação a uma exceção de ilegalidade suscitada pela primeira vez no Tribunal Geral, uma vez que a apresentação de uma argumentação equivalente na Câmara de Recurso da ACER não poderia, em todo o caso, proceder.

50      Com efeito, resulta do sistema legislativo e jurisdicional instituído pelo TFUE que só o juiz da União Europeia tem competência, nos termos do artigo 277.o TFUE, para declarar a ilegalidade de um ato de alcance geral e retirar as consequências da inaplicabilidade daí resultantes no que respeita ao ato de alcance individual impugnado perante si, uma vez que essa competência não é conferida pelos Tratados à instituição, agência ou organismo da União de que dependem as vias de recurso internas (v., neste sentido, Acórdão de 27 de outubro de 2016, BCE/Cerafogli, T‑787/14 P, EU:T:2016:633, n.o 49).

51      Por conseguinte, na medida em que a Câmara de Recurso da ACER não tinha legitimidade para apreciar a validade do capítulo V do Regulamento 2017/459, mas devia, pelo contrário, aplicá‑lo enquanto o juiz da União não tivesse demonstrado a sua eventual ilegalidade, não pode ser imputado à MEKH o facto de não ter suscitado a ilegalidade desse capítulo perante a referida Câmara de Recurso.

52      Em segundo lugar, a ACER destaca, na tréplica, que o «prazo fixado pelo artigo 263.o [TFUE] para contestar a validade do [Regulamento 2017/459] tinha expirado no momento do recurso».

53      A este respeito, resulta da própria letra do artigo 277.o TFUE que a possibilidade de invocar a ilegalidade de um ato de alcance geral em caso de litígio que o ponha em causa existe «[m]esmo depois de decorrido o prazo previsto no sexto parágrafo do artigo 263.o [TFUE]».

54      Além disso, na medida em que, com esta argumentação, a ACER invoca jurisprudência segundo a qual a exceção de ilegalidade prevista no artigo 277.o TFUE não pode ser invocada por uma pessoa singular ou coletiva que não tenha interposto um recurso do ato em causa nos prazos previstos para esse efeito, há que sublinhar que esta jurisprudência apenas é aplicável quando esse recurso for, sem dúvida alguma, admissível (v., neste sentido, Acórdão de 22 de abril de 2004, Schintgen/Comissão, T‑343/02, EU:T:2004:111, n.o 26; v., igualmente, neste sentido e por analogia, Acórdãos de 27 de novembro de 2012, Pringle, C‑370/12, EU:C:2012:756, n.os 41 e 42, e de 25 de julho de 2018, Georgsmarienhütte e o., C‑135/16, EU:C:2018:582, n.o 14 e jurisprudência referida).

55      No caso em apreço, não se pode considerar evidente a admissibilidade do recurso de anulação interposto pela MEKH contra o Regulamento 2017/459. Pelo contrário, uma vez que se trata de um ato de alcance geral que necessita de medidas de execução, na aceção do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, e a MEKH não se assemelha a um recorrente privilegiado na aceção do segundo parágrafo deste artigo, a admissibilidade desse recurso teria sido, no mínimo, duvidosa.

56      Em terceiro lugar, a ACER sustenta, em substância, que a exceção de ilegalidade deve ser declarada inadmissível, na medida em que o Regulamento 2017/459 não constitui o fundamento jurídico da decisão da Câmara de Recurso, uma vez que esta foi adotada ao abrigo dos poderes delegados na ACER pelo Regulamento n.o 713/2009.

57      Tal argumentação também não pode proceder.

58      Com efeito, embora resulte da jurisprudência que uma exceção de ilegalidade ao abrigo do artigo 277.o TFUE apenas pode ser invocada contra um ato de alcance geral que é direta ou indiretamente aplicável ao caso concreto objeto do recurso, o Tribunal de Justiça admitiu que este requisito está preenchido no que respeita não só às disposições de um ato de alcance geral que constituam a base das decisões individuais contestadas, mas igualmente às que mantenham um vínculo jurídico direto com essas decisões (v., neste sentido, Acórdão de 8 de setembro de 2020, Comissão e Conselho/Carreras Sequeros e o., C‑119/19 P e C‑126/19 P, EU:C:2020:676, n.os 67 a 70 e jurisprudência referida).

59      Ora, com o seu primeiro fundamento, a MEKH invoca a ilegalidade do capítulo V do Regulamento 2017/459 pelo facto de esse capítulo ultrapassar a competência conferida à Comissão pelo Regulamento n.o 715/2009. Na medida em que o Regulamento 2017/459 está na origem de regras que a Câmara de Recurso da ACER aplicou na sua decisão, existe necessariamente um vínculo jurídico direto na aceção da jurisprudência referida no n.o 58, supra.

60      Tendo em conta o que precede, há que concluir que a exceção de ilegalidade é admissível.

2.      Quanto ao mérito da exceção de ilegalidade

61      A MEKH invoca a ilegalidade do capítulo V do Regulamento 2017/459 com o fundamento de o Regulamento n.o 715/2009 não permitir à Comissão adotar um código de rede que preveja um processo de criação de capacidade suplementar que possa impor ao operador que dedique os investimentos necessários para a criação da referida capacidade suplementar.

62      Em substância, o presente fundamento é composto por duas partes. Por um lado, a MEKH alega que o capítulo V do Regulamento 2017/459 é incompatível com a base jurídica do Regulamento n.o 715/2009, a saber, o artigo 114.o TFUE. Por outro lado, considera que o referido capítulo não está abrangido pela competência atribuída à Comissão por este último regulamento para adotar códigos de rede.

63      A ACER, apoiada pela Comissão, considera que as duas partes do presente fundamento são improcedentes. A título preliminar, alega o caráter inoperante da exceção de ilegalidade com base em três fundamentos.

64      O primeiro fundamento invocado pela ACER é relativo ao caráter errado do pressuposto no qual assenta a exceção de ilegalidade, uma vez que o capítulo V do Regulamento 2017/459 não impõe aos operadores de redes de transporte a tomada de decisões de investimento com o objetivo de criar capacidades suplementares na rede.

65      Esta argumentação não pode ser acolhida.

66      Com efeito, o capítulo V do Regulamento 2017/459 estabelece um procedimento que compreende, em substância, sete etapas, que conduzem, se for caso disso, à obrigação de os operadores de redes de transporte consagrarem os investimentos necessários à criação de capacidades suplementares na rede.

67      Em primeiro lugar, nos termos do artigo 26.o do Regulamento 2017/459, os operadores de redes de transporte em causa devem avaliar a procura de mercado no que respeita aos projetos de capacidade suplementar de cada lado de um ponto de interligação, com base em indicações não vinculativas.

68      Em segundo lugar, se resultar da fase anterior a indicação de que pode existir uma procura de mercado para um projeto de capacidade suplementar, o artigo 27.o do Regulamento 2017/459 prevê que a fase de conceção de um projeto nesse sentido seja iniciada pelos operadores das redes de transporte em causa.

69      Em terceiro lugar, em aplicação do artigo 28.o, n.o 1, do Regulamento 2017/459, os operadores de redes de transporte em causa devem apresentar o projeto de capacidade suplementar à sua entidade reguladora nacional para aprovação.

70      Em quarto lugar, segundo o artigo 28.o, n.o 2, do Regulamento 2017/459, as entidades reguladoras nacionais competentes devem aprovar ou chegar a acordo sobre o projeto.

71      Em quinto lugar, uma vez aprovado o projeto de capacidade suplementar pelas entidades reguladoras nacionais, o artigo 29.o do Regulamento 2017/459 especifica que as referidas capacidades suplementares são leiloadas para obter compromissos vinculativos de utilizadores da rede para contratarem capacidade para diferentes níveis de oferta.

72      Em sexto lugar, decorre dos artigos 22.o a 25.o do Regulamento 2017/459 que, ou a entidade reguladora nacional, ou o operador da rede de transporte, conduz um teste económico com base nos compromissos vinculativos recebidos.

73      Por último, em sétimo lugar, se o teste económico tiver resultado positivo em ambos os lados de um ponto de interligação para pelo menos uma proposta que inclua capacidade suplementar, o artigo 22.o, n.o 3, do Regulamento 2017/459 prevê que «[d]eve iniciar‑se [o] projeto». Na falta de resultado positivo, deve «encerrar‑se o processo específico de capacidade suplementar».

74      Daqui decorre que, se os diferentes requisitos estabelecidos no capítulo V do Regulamento 2017/459 estiverem preenchidos, nomeadamente a existência de compromissos vinculativos por parte dos utilizadores da rede para contratarem capacidades suplementares com base nas quais a viabilidade económica de um aumento de capacidade é demonstrada pelo teste económico, «[d]eve iniciar-se [o] projeto» nos termos do artigo 22.o, n.o 3, do referido regulamento, o que implica que o operador da rede de transporte é obrigado a criar capacidades suplementares, consagrando‑lhes os investimentos necessários.

75      Aliás, esta conclusão foi acolhida pelas próprias instâncias da ACER. Com efeito, resulta da própria redação da decisão inicial (artigo 2.o, n.o 4, do dispositivo) que a ACER previa a obrigação de a FGSZ e a GCA executarem o projeto HUAT até 1 de outubro de 2024 se o resultado do teste económico para o referido projeto fosse positivo. Além disso, a própria Câmara de Recurso da ACER reconheceu no n.o 99 da sua decisão que a conjugação do artigo 22.o, n.o 3, e dos artigos 28.o e 29.o do Regulamento 2017/459 podia conduzir a essa obrigação.

76      O segundo fundamento invocado pela ACER prende‑se com o caráter inoperante da exceção de ilegalidade, na medida em que a decisão da Câmara de Recurso não foi adotada com base no capítulo V do Regulamento 2017/459, mas com base no artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 713/2009.

77      Há que recordar que, através da decisão da Câmara de Recurso, a ACER substituiu‑se aos reguladores nacionais para realizar a quarta etapa do processo de capacidade suplementar, instituído pelo capítulo V do Regulamento 2017/459 e descrito nos n.os 66 a 73, supra.

78      Por conseguinte, e por razões análogas às explicitadas no n.o 59, supra, mesmo que seja tomada com base no artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 713/2009, a decisão da Câmara de Recurso aplica as regras que figuram no capítulo V do Regulamento 2017/459, o qual condiciona, portanto, a sua legalidade, pelo que a exceção de ilegalidade não apresenta o caráter inoperante alegado pela ACER.

79      Por último, no âmbito de um terceiro fundamento, a ACER sublinha que a MEKH contesta apenas a validade do capítulo V do Regulamento 2017/459, apesar de outras disposições deste regulamento se referirem à criação de capacidades suplementares na rede.

80      A este respeito, basta sublinhar que o facto de outras disposições do Regulamento 2017/459 fazerem referência à criação de capacidades suplementares e não serem expressamente visadas pela presente exceção de ilegalidade é irrelevante, uma vez que apenas importa a questão de saber se o capítulo V do referido regulamento, que foi aplicado na decisão da Câmara de Recurso, enferma de ilegalidade, o que implica que seja declarado inaplicável aos presentes litígios em aplicação do artigo 277.o TFUE.

81      Tendo estas contestações iniciais da ACER sido rejeitadas, há que examinar o mérito das duas partes do presente fundamento.

a)      Quanto ao mérito da primeira parte, relativa à incompatibilidade do Regulamento 2017/459 com a base jurídica do Regulamento n.o 715/2009

82      Em substância, a MEKH alega que a Comissão não podia prever, no capítulo V do Regulamento 2017/459, a possibilidade de dirigir decisões individuais aos operadores de redes de transporte, impondo‑lhes que procedam a investimentos, sem violar a base jurídica do Regulamento n.o 715/2009, a saber, o artigo 114.o TFUE, o qual prevê a adoção de medidas de harmonização, que não são suscetíveis de incluir a instauração de um regime jurídico que implica a adoção de decisões individuais dirigidas a operadores privados.

83      Nos termos do artigo 114.o TFUE, n.o 1, segundo período, «[o] Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, e após consulta do Comité Económico e Social, adotam as medidas relativas à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros, que tenham por objeto o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno».

84      O artigo 1.o do Regulamento n.o 715/2009 especifica que este regulamento tem, nomeadamente, por objeto «[c]riar regras não discriminatórias para as condições de acesso às redes de transporte de gás natural, tendo em conta as características particulares dos mercados nacionais e regionais, a fim de assegurar o bom funcionamento do mercado interno do gás», «[f]acilitar a emergência de um mercado grossista transparente e em bom funcionamento com um elevado nível segurança do abastecimento de gás» e «prever mecanismos para harmonizar as regras relativas ao acesso à rede aplicáveis ao comércio transfronteiriço de gás».

85      Em primeiro lugar, há que recordar que, através da expressão «medidas relativas à aproximação», os autores do Tratado quiseram conferir ao legislador da União, em função do contexto geral e das circunstâncias específicas da matéria a harmonizar, uma margem de apreciação quanto à técnica de aproximação mais adequada para alcançar o resultado pretendido, designadamente em domínios que se caracterizam por particularidades técnicas complexas (Acórdão de 22 de janeiro de 2014, Reino Unido/Parlamento e Conselho, C‑270/12, EU:C:2014:18, n.o 102).

86      Em segundo lugar, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, por um lado, em certos domínios, a simples aproximação das regras gerais não basta para assegurar a unidade do mercado e, por outro, a redação do artigo 114.o TFUE não permite concluir que as medidas tomadas pelo legislador da União com fundamento nesse artigo se devem limitar, quanto aos seus destinatários, apenas aos Estados‑Membros (Acórdão de 22 de janeiro de 2014, Reino Unido/Parlamento e Conselho, C‑270/12, EU:C:2014:18, n.os 106 e 107).

87      Em terceiro lugar, e consequentemente, deve considerar‑se que o artigo 114.o TFUE não se opõe a que, nos termos do Regulamento n.o 715/2009, a Comissão elabore uma regulamentação que implique, se for caso disso, a obrigação de um ou mais operadores de redes de transporte procederem aos investimentos necessários para a obtenção de capacidades suplementares na rede, desde que a referida obrigação não se afigure manifestamente desadequada para alcançar os seus objetivos de harmonização.

88      Em quarto lugar, tendo em conta a importância que pode revestir a existência de capacidades suficientes nas redes para assegurar o bom funcionamento do mercado interno do gás e a segurança dos abastecimentos, deve constatar‑se que o processo de aumento das capacidades que figura no capítulo V do Regulamento 2017/459 e explicado nos n.os 66 a 73, supra, pode, sem dificuldade, estar relacionado com os objetivos do Regulamento n.o 715/2009, tal como enunciados no seu artigo 1.o

89      Por conseguinte, a primeira parte deve ser julgada improcedente.

b)      Quanto ao mérito da segunda parte, relativa ao facto de o capítulo V do Regulamento 2017/459 exceder a competência atribuída à Comissão pelo Regulamento n.o 715/2009

90      A MEKH alega, em substância, que o capítulo V do Regulamento 2017/459 excede os limites da competência atribuída à Comissão pelo artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009 para adotar os códigos de rede.

91      A ACER, apoiada pela Comissão, considera que as disposições do Regulamento 2017/459 relativas às capacidades suplementares estão em conformidade com o Regulamento n.o 715/2009. Sublinha que a adoção de regras relativas às capacidades suplementares constitui, por definição, uma questão de caráter supranacional, que essas regras são indispensáveis para a concretização dos objetivos deste último regulamento e que estão abrangidas pela competência atribuída à Comissão, que lhe permite alterar os elementos não essenciais do mesmo regulamento aquando da adoção de códigos de rede relativos, nomeadamente, à atribuição de capacidades, à segurança do abastecimento e à ligação à rede.

92      A Comissão destaca igualmente a importância, para o bom funcionamento do mercado interno do gás natural e para a proteção da concorrência nesse mercado, de uma regulamentação das grandes redes de gasodutos, uma vez que estas constituem monopólios naturais, suscetíveis de originar comportamentos abusivos, como a restrição de investimentos estratégicos no desenvolvimento e alargamento da rede. Acrescenta que a necessidade de assegurar uma interligação adequada entre os sistemas energéticos nacionais no interesse do estabelecimento do mercado interno da energia decorre dos artigos 170.o, 172.o e 194.o TFUE.

93      Além disso, a Comissão sublinha, em substância, que, apesar da separação estrutural entre, por um lado, a produção e o comércio de gás e, por outro, o seu transporte, podem existir incentivos económicos para não realizar os investimentos necessários em matéria de infraestruturas, para manter a taxa de utilização da rede e para aplicar tarifas de congestionamento. Esta é a razão pela qual tanto o Regulamento n.o 715/2009 como a Diretiva 2009/73/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural e que revoga a Diretiva 2003/55/CE (JO 2009, L 211, p. 94), preveem, relativamente aos operadores de redes de transporte, obrigações relacionadas com a criação de capacidades de transporte transfronteiriço e, relativamente às entidades reguladoras nacionais, a missão de monitorizar o seu cumprimento.

94      A Comissão alega, igualmente, que decorre da redação do artigo 16.o, n.os 2 e 5, do Regulamento n.o 715/2009 que o conceito de atribuição transfronteiriça implica, necessariamente, a possibilidade de aumentar as capacidades existentes no interesse do estabelecimento de um mercado interno operacional da energia e da proteção da concorrência nesse mercado. Além disso, recorda, em substância, que a obrigação de os operadores de redes de transporte tomarem uma decisão de investimento quando certos requisitos estão preenchidos é necessária para alcançar o objetivo de atribuição coordenada de capacidade transfronteiriça inscrito no artigo 42.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2009/73.

95      Em primeiro lugar, o Tribunal Geral recorda que o Regulamento 2017/459 tem por base jurídica o artigo 6.o, n.o 11, e o artigo 7.o, n.o 3, do Regulamento n.o 715/2009 e institui «um código de rede para os mecanismos de atribuição de capacidade em redes de transporte de gás», revogando simultaneamente o Regulamento (UE) n.o 984/2013 da Comissão, de 14 de outubro de 2013, que institui um código de rede para os mecanismos de atribuição de capacidade em redes de transporte de gás e que completa o Regulamento (CE) n.o 715/2009 (JO 2013, L 273, p. 5), que esteve na origem do código de rede anterior. O capítulo V do Regulamento 2017/459 diz respeito ao «processo de capacidade suplementar». Como foi explicado nos n.os 67 a 74, supra, o referido processo pode conduzir à obrigação de o operador de redes de transporte de gás criar capacidades suplementares na referida rede se estiverem preenchidos determinados requisitos.

96      Em segundo lugar, a competência conferida à Comissão para adotar os códigos de rede decorre do artigo 6.o, n.o 11, do artigo 7.o, n.o 3, e do artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009. Com efeito, resulta da leitura conjugada destas disposições que a Comissão tem legitimidade para elaborar os códigos de rede, em determinados domínios enumerados taxativamente, em vez da Rede Europeia dos Operadores das Redes de Transporte de Gás (a seguir «REORT»), que constitui, nos termos do artigo 4.o do referido regulamento, a estrutura de cooperação a nível da União de todos os operadores de redes de transporte de gás.

97      No que respeita, em primeiro lugar, ao artigo 6.o do Regulamento n.o 715/2009, o mesmo estabelece o procedimento de estabelecimento de códigos de rede. Embora este procedimento preveja o desenvolvimento de códigos de rede pela REORT em ligação com a ACER e a Comissão, o seu n.o 11, primeiro parágrafo, prevê que a «Comissão pode aprovar, por sua própria iniciativa caso a REORT para o Gás não tenha conseguido desenvolver um código de rede […] um ou vários códigos de rede nos domínios enumerados no n.o 6 do artigo 8.o». Assim, o alcance da competência delegada à Comissão para adotar os códigos de rede está limitado apenas aos domínios em que a REORT poderia ter elaborado os referidos códigos, a saber, os previstos no artigo 8.o, n.o 6, do referido regulamento.

98      Em segundo lugar, o artigo 6.o, n.o 11, segundo parágrafo, do Regulamento n.o 715/2009 especifica que as medidas adotadas no código de rede «têm por objeto alterar elementos não essenciais do presente regulamento, completando‑o» e «são aprovadas pelo procedimento de regulamentação com controlo a que se refere o n.o 2 do artigo 28.o». Esta última disposição remete para o artigo 5.o‑A, n.os 1 a 4, da Decisão 1999/468/CE do Conselho, de 28 de junho de 1999, que fixa as regras de exercício das competências de execução atribuídas à Comissão (JO 1999, L 184, p. 23), denominada «Decisão Comitologia», conforme alterada pela Decisão 2006/512/CE do Conselho, de 17 de julho de 2006 (JO 2006, L 200, p. 11). Encontra‑se uma menção equivalente no artigo 7.o, n.o 3, do Regulamento n.o 715/2009, que diz respeito às alterações introduzidas pela Comissão nos códigos de rede existentes.

99      Em terceiro lugar, e consequentemente, a presente parte implica que se examine, num primeiro momento, se o capítulo V do Regulamento 2017/459 está relacionado com os domínios previstos pelo artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009, para os quais remete o artigo 6.o, n.o 11, primeiro parágrafo, deste último regulamento. Em caso de resposta negativa, haverá que examinar, num segundo momento, se o referido capítulo se assemelha a uma alteração de um elemento não essencial do Regulamento n.o 715/2009, que é autorizada pelo artigo 6.o, n.o 11, segundo parágrafo, e pelo artigo 7.o, n.o 3, do mesmo regulamento.

1)      Quanto ao alcance da competência conferida à Comissão pelo artigo 6.o, n.o 11, primeiro parágrafo, e pelo artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009

100    Pelas razões expostas no n.o 97, supra, o alcance da competência delegada pelo artigo 6.o, n.o 11, do Regulamento n.o 715/2009 está circunscrito aos domínios enumerados no artigo 8.o, n.o 6, deste regulamento, que importa, por conseguinte, interpretar.

101    Em aplicação de jurisprudência constante, para efeitos da interpretação de uma disposição de direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (v. Acórdão de 7 de junho de 2005, VEMW e o., C‑17/03, EU:C:2005:362, n.o 41 e jurisprudência referida)

i)      Quanto à interpretação literal do artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009

102    Entre os domínios enumerados no artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009, para os quais está prevista a adoção de um código de rede, estão previstas, na alínea g), as «regras relativas à atribuição de capacidade e à gestão de congestionamentos», às quais a MEKH se refere nos seus articulados. A ACER menciona, além disso, os domínios que figuram nas alíneas a) a c), relativos, respetivamente, às «regras de segurança e fiabilidade da rede», às «regras de ligação da rede» e às «regras de acesso de terceiros».

103    No entanto, há que observar que o único domínio para o qual está previsto o estabelecimento de um código de rede, cuja redação é suscetível de abranger a questão das capacidades suplementares, é o referido no artigo 8.o, n.o 6, alínea g), do Regulamento n.o 715/2009, relativo às «regras relativas à atribuição de capacidade e à gestão de congestionamentos». Com efeito, os outros domínios visados no referido número e, nomeadamente, os relativos às «regras de segurança e fiabilidade da rede», às «regras de ligação da rede» e às «regras de acesso de terceiros», para os quais a ACER remete, não estão redigidos de forma a incluir a questão da criação de capacidades suplementares na referida rede.

104    O artigo 2.o do Regulamento n.o 715/2009 fornece as definições dos termos e expressões utilizados no referido regulamento, nomeadamente no artigo 8.o, n.o 6, alínea g), deste regulamento. O conceito de capacidade é definido de modo geral no n.o 3. De seguida, esta divide‑se em várias vertentes: no n.o 4, a título da «capacidade não utilizada», no n.o 16, a título da «capacidade firme», no n.o 18, a título da «capacidade técnica» e, no n.o 19, a título da «capacidade contratual». O conceito de gestão de congestionamentos está definido no n.o 5. Os n.os 21 e 23 abordam igualmente o conceito de congestionamento, a título da definição, respetivamente, de congestionamento «contratual» e de congestionamento «físico».

105    Decorre destas definições que o conceito de capacidade visa incontestavelmente as capacidades atuais na rede e que a gestão dos congestionamentos é prevista com base nas capacidades existentes na mesma. Em contrapartida, não resulta expressamente de nenhuma destas definições que o referido conceito possa ser entendido no sentido de que inclui igualmente a criação de capacidades suplementares na rede em questão ou que a «gestão de congestionamentos» possa ser interpretada no sentido de que prevê a reabsorção de um eventual congestionamento através da criação de capacidades suplementares.

106    Assim, em primeiro lugar, o conceito de capacidade é definido como «o fluxo máximo […] a que o utilizador da rede tem direito, de acordo com as disposições do contrato de transporte». Na medida em que apenas são visadas as capacidades a que «tem direito» um utilizador da rede, essa definição implica, antes, que apenas sejam consideradas as capacidades atuais na rede e não as eventuais capacidades futuras.

107    Em segundo lugar, há que salientar que, embora o Regulamento n.o 715/2009 aborde o conceito de capacidade num grande número das suas possíveis variantes, não menciona a «capacidade futura». É apenas no artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento 2017/459 que esta é definida pela Comissão, como visando «um eventual aumento futuro (por meio de procedimentos baseados no mercado) de capacidades técnicas ou de eventuais novas capacidades criadas onde anteriormente não existiam e que podem ser oferecidas com base no investimento em infraestruturas físicas ou na otimização da capacidade a longo prazo e seguidamente afetadas (sob reserva dos resultados positivos de um teste económico) [em diferentes] casos».

108    Em terceiro lugar, nem a definição da expressão «gestão de congestionamentos» nem as das expressões «congestionamento contratual» e «congestionamento físico» preveem a criação de capacidades suplementares na rede como uma solução para os problemas de congestionamento ou de saturação da rede.

ii)    Quanto à interpretação sistemática do artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009

109    A título da interpretação sistemática do artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009, há que examinar se decorre da inserção sistemática deste regulamento, ou, se for caso disso, de outras disposições do direito da União, que o alcance da competência delegada à REORT pelo artigo 8.o, n.o 6, do referido regulamento por ocasião do estabelecimento de códigos de rede, e, consequentemente, à Comissão, em aplicação do artigo 6.o, n.o 11, primeiro parágrafo, deste regulamento, abrange as regras relativas à criação de capacidades suplementares na rede.

110    Não é esse o caso, uma vez que resulta de uma análise do Regulamento n.o 715/2009 no seu conjunto a existência de uma distinção clara entre, por um lado, os domínios enumerados no artigo 8.o, n.o 6, do referido regulamento, para os quais a REORT é competente para elaborar as regras pertinentes no âmbito dos códigos de rede e, por outro, o enquadramento dos investimentos necessários para a criação de capacidades suplementares na rede, para os quais a REORT exerce apenas um papel de apoio e de coordenação.

111    Isto manifesta‑se, em primeiro lugar, pela natureza das atribuições delegadas à REORT no que respeita ao desenvolvimento da rede, tal como decorrem da leitura conjugada do artigo 8.o, n.o 3, alínea b), e do artigo 8.o, n.o 10, do Regulamento n.o 715/2009.

112    Com efeito, por um lado, embora o artigo 8.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 715/2009 preveja que a REORT adote o plano de desenvolvimento da rede à escala da União, especifica‑se que o referido plano reveste apenas um «caráter não vinculativo». Além disso, em aplicação do artigo 8.o, n.o 10, do mesmo regulamento, esse plano baseia‑se nos «planos de investimento nacionais».

113    Por outro lado, embora o plano de desenvolvimento da rede à escala da União, aprovado pela REORT em aplicação do artigo 8.o, n.o 10, do Regulamento n.o 715/2009, «[identifique]», segundo a sua alínea c) as «lacunas no investimento, nomeadamente relacionadas com as capacidades transfronteiriças», esta disposição não concede nenhum poder à REORT para colmatar as lacunas identificadas. Só lhe é facultada, pelo artigo 8.o, n.o 10, terceiro parágrafo, do referido regulamento, a possibilidade de anexar ao referido plano «uma análise dos entraves ao aumento da capacidade de rede transfronteiriça criados pela existência de diferentes procedimentos ou práticas de aprovação».

114    Daqui decorre que o desenvolvimento da rede à escala da União é essencialmente da responsabilidade dos Estados‑Membros e que o papel da REORT se insere unicamente na coordenação do exercício da sua competência por parte dos referidos Estados‑Membros. Seria, portanto, contrário à lógica interna do Regulamento n.o 715/2009 interpretá‑lo no sentido de que atribui, nos termos do seu artigo 8.o, n.o 6, uma competência legislativa à REORT no que respeita à elaboração das regras que enquadram a criação de capacidades suplementares na rede.

115    Em segundo lugar, resulta tanto do artigo 16.o do Regulamento n.o 715/2009 como da comparação deste regulamento com a Diretiva 2009/73 que, no referido regulamento, as modalidades de aumento das capacidades na rede não são consideradas como um domínio suscetível de ser objeto de uma regulamentação subsequente com base nesse mesmo regulamento.

116    Em primeiro lugar, no que respeita ao artigo 16.o do Regulamento n.o 715/2009, este refere‑se à «atribuição de capacidade» e à «gestão de congestionamentos», e abrange, portanto, o mesmo domínio que o código de rede que a REORT tem legitimidade para elaborar nos termos do artigo 8.o, n.os 1 e 6, alínea g), do referido regulamento.

117    Por um lado, os n.os 1 a 4 do artigo 16.o do Regulamento n.o 715/2009 enunciam obrigações precisas aplicáveis aos operadores das redes de transporte relacionadas com a atribuição de capacidade e a gestão de congestionamentos contratuais e físicos na rede. Todavia, essas obrigações dizem exclusivamente respeito à atribuição de capacidades atuais e à gestão de congestionamentos apenas com base nas capacidades existentes, ou seja, sem ter em conta capacidades suplementares que podem resultar de futuros investimentos. Com efeito, nem as capacidades suplementares nem os novos investimentos com elas relacionados estão previstos nesses números. A questão dos novos investimentos na rede é, pelo contrário, expressamente abordada no n.o 5 deste artigo.

118    Ora, por outro lado, o artigo 16.o, n.o 5, do Regulamento n.o 715/2009 tem uma natureza muito menos prescritiva do que os quatro primeiros números deste artigo. Com efeito, limita‑se a sublinhar, por um lado, que os «operadores das redes de transporte devem avaliar com regularidade a procura do mercado em matéria de novos investimentos» e, por outro, que, aquando «do planeamento de novos investimentos, os operadores das redes de transporte devem avaliar a procura do mercado e ter em conta a segurança do abastecimento». Não está prevista nenhuma obrigação para os operadores das redes de transporte realizarem os investimentos adicionais exigidos pela situação na rede ou na segurança do abastecimento.

119    Em segundo lugar, há que salientar que as únicas disposições suscetíveis de implicar a obrigação para os operadores das redes de transporte de procederem a novos investimentos na rede com o objetivo de criar capacidades suplementares figuram na Diretiva 2009/73, que foi adotada concomitantemente com o Regulamento n.o 715/2009, no âmbito do «terceiro pacote energético».

120    Assim, o artigo 13.o, n.o 2, da Diretiva 2009/73 impõe aos operadores das redes de transporte que desenvolvam «um nível de capacidade transfronteiriça suficiente para integrar a infraestrutura europeia de transporte, que dê resposta a todos os pedidos de capacidade economicamente razoáveis e tecnicamente viáveis, e que tenha em conta a segurança do abastecimento em gás». Além disso, o artigo 22.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Desenvolvimento da rede e competências para tomar decisões de investimento», prevê, no seu n.o 1, que «[o]s operadores de rede de transporte apresentam […] à entidade reguladora um plano decenal de desenvolvimento da rede baseado na oferta e na procura atual e prevista». Em aplicação do n.o 3 deste último artigo, esse plano deve basear‑se em «previsões razoáveis sobre a evolução da produção, do abastecimento, do consumo e das trocas com outros países».

121    Além disso, decorre do artigo 41.o, n.o 1, alíneas b) e g), da Diretiva 2009/73 que cabe à entidade reguladora assegurar o cumprimento, pelo operador da rede de transporte, das suas obrigações nos termos do direito da União, incluindo as questões transfronteiriças, e que essa missão de monitorização abrange os planos de investimento dos operadores das redes de transporte.

122    Esta missão de monitorização manifesta‑se, nomeadamente, no artigo 22.o, n.os 4 a 7, da Diretiva 2009/73, que impõe à entidade reguladora nacional, respetivamente, que consulte os utilizadores efetivos ou potenciais da rede sobre o plano decenal de desenvolvimento da rede apresentada pelo operador da rede de transporte, que examine o caráter completo desse plano e o seu caráter coerente com o plano de desenvolvimento da rede à escala da União referido no artigo 8.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 715/2009, a monitorizar e avaliar a implementação do plano decenal de desenvolvimento da rede e, se for caso disso, a tomar medidas na falta de realização de um investimento pelo operador da rede.

123    Decorre do que precede que é ao abrigo da Diretiva 2009/73 que um operador de rede de transporte está sujeito à obrigação de consagrar os investimentos necessários ao bom funcionamento da rede e, se for caso disso, à criação de capacidades suplementares e que compete ao Estado‑Membro monitorizar o cumprimento dessas obrigações, por intermédio do seu regulador nacional.

124    Além disso, há que observar que nenhuma disposição da Diretiva 2009/73 prevê a adoção, a nível da União, de um quadro normativo de modalidades de execução das obrigações dos operadores das redes de transporte em matéria de investimento ou de modalidades de monitorização das referidas obrigações pelos reguladores nacionais.

125    A este respeito, há que salientar que, embora o artigo 42.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2009/73, ao qual a Comissão se refere, destaque a importância de uma cooperação entre reguladores nacionais, nomeadamente, «permitir um nível adequado mínimo de capacidade de interligação, incluindo através de novas interligações», este enuncia apenas uma obrigação de cooperação entre entidades reguladoras «a nível regional». Assim sendo, não se pode considerar que esta disposição prevê a adoção de uma regulamentação pela Comissão relativa à criação de capacidades suplementares nos pontos de interligação.

126    Por conseguinte, deve deduzir‑se da análise do Regulamento n.o 715/2009 e da Diretiva 2009/73 que o legislador, aquando da adoção do «terceiro pacote energético», considerou que a aplicação das regras pertinentes da União relativas ao desenvolvimento da rede e à criação de capacidades suplementares é da competência exclusiva dos Estados‑Membros, sem reconhecer competência neste sentido à REORT e à Comissão.

iii) Quanto à interpretação teleológica do artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009

127    No que respeita à interpretação teleológica do artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009, a ACER e a Comissão invocam diferentes argumentos para justificar o mérito da adoção de uma regulamentação a nível da União no domínio dos investimentos que permita a criação de capacidades suplementares. Referem‑se, assim, para o bom funcionamento do mercado interno do gás natural, à necessidade de uma regulamentação das grandes redes de gasodutos para que estas disponham de investimentos suficientes e não sejam objeto de comportamentos restritivos de concorrência por parte dos operadores da rede de transporte, as quais estão numa situação de monopólio natural.

128    A este respeito, embora seja certo que o legislador da União podia considerar, no Regulamento n.o 715/2009, a criação de capacidades suplementares na rede, a fim, nomeadamente, de alcançar o objetivo da política da União no domínio da energia que visa «[a]ssegurar a segurança do aprovisionamento energético da União», previsto no artigo 194.o, n.o 1, alínea b), TFUE, importa, no entanto, constatar que nenhum dos fundamentos desse regulamento permite identificar uma finalidade que consista em atribuir competência à REORT e, consequentemente, à Comissão, para elaborar um código de rede que englobe a questão dos investimentos necessários para a criação dessas capacidades suplementares.

129    Pelo contrário, como foi sublinhado no n.o 126, supra, resulta do Regulamento n.o 715/2009 e da Diretiva 2009/73 que, aquando da adoção do «terceiro pacote energético», a intenção do legislador foi delegar apenas aos Estados‑Membros a aplicação das regras pertinentes da União neste domínio.

130    Esta conclusão é reforçada pela tomada em consideração dos trabalhos preparatórios do Regulamento n.o 715/2009. Com efeito, resulta da Posição Comum do Conselho n.o 12/2009 do Conselho, de 9 de janeiro de 2009, tendo em vista a aprovação do regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo às condições de acesso às redes de transporte de gás natural e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1775/2005 (JO 2009/C 075E/03, p. 38), que este deu preferência à redação do artigo 8.o, n.o 3, alínea b), e do artigo 16.o do Regulamento n.o 715/2009, mencionados, respetivamente, no n.o 112 e no n.o 118, supra, relativamente à redação perspetivada pela Comissão e pelo Parlamento Europeu, tendo assim afastado as referências aos investimentos na rede e à criação de capacidades suplementares.

131    Por um lado, no que respeita ao artigo 8.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 715/2009, a MEKH recordou, corretamente, nas suas respostas às medidas de organização do processo, que o Conselho, no que respeita ao papel reservado à REORT em matéria de planificação, se afastou da proposta da Comissão preferindo a expressão «plano de desenvolvimento da rede» à expressão «plano de investimento», tendo destacado o caráter «não vinculativo» do referido plano.

132    Por outro lado, no que respeita ao artigo 16.o do Regulamento n.o 715/2009, o Conselho não seguiu uma alteração do Parlamento Europeu, à qual a Comissão tinha dado o seu acordo, que teria conduzido ao reconhecimento de uma obrigação de os operadores da rede de transporte procederem à criação de capacidades suplementares, na sequência de um processo com uma certa semelhança com o previsto no capítulo V do Regulamento 2017/459 e descrito nos n.os 66 a 73, supra.

133    Com efeito, essa alteração visava acrescentar ao artigo 16.o do Regulamento n.o 715/2009 um parágrafo que previa, por um lado, a obrigação de os operadores das redes de transporte, «[e]m caso de congestionamentos físicos a longo prazo, [deverem resolver os mesmos] aumentando as capacidades existentes com base na procura do mercado» e, por outro, a obrigação de os referidos gestores utilizarem procedimentos de avaliação e atribuição de capacidade «[p]ara poderem avaliar a procura do mercado».

134    À luz do que precede, há que concluir que resulta das interpretações literal, sistemática e teleológica do artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009 que o mesmo não confere nenhuma competência à REORT que lhe permita incluir num código de rede regras suscetíveis de impor a um operador da rede de transporte de gás a obrigação de criar capacidades suplementares na referida rede.

135    Daqui decorre que a Comissão não tinha competência, com fundamento apenas no artigo 6.o, n.o 11, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 715/2009, para adotar as disposições que regem o processo de capacidade suplementar, que figuram no capítulo V do Regulamento 2017/459.

2)      Quanto ao alcance da competência conferida à Comissão pelo artigo 6.o, n.o 11, segundo parágrafo, e pelo artigo 7.o, n.o 3, do Regulamento n.o 715/2009

136    Pelas razões expostas no n.o 99, supra, há que verificar se essa competência pode eventualmente resultar do artigo 6.o, n.o 11, segundo parágrafo, e do artigo 7.o, n.o 3, do Regulamento n.o 715/2009, que autorizam a Comissão a alterar os elementos não essenciais do referido regulamento aquando da adoção ou da alteração de um código de rede.

137    Em aplicação de jurisprudência constante, os elementos essenciais de uma regulamentação de base são os elementos para cuja adoção é necessário efetuar opções políticas da responsabilidade própria do legislador da União (v. Acórdão de 11 de maio de 2017, Dyson/Comissão, C‑44/16 P, EU:C:2017:357, n.o 61 e jurisprudência referida).

138    A identificação dos elementos de uma matéria que devem ser qualificados de essenciais deve basear‑se em elementos objetivos, suscetíveis de ser objeto de fiscalização jurisdicional, e impõe que sejam tomadas em consideração as características e as particularidades do domínio em causa (v. Acórdão de 11 de maio de 2017, Dyson/Comissão, C‑44/16 P, EU:C:2017:357, n.o 62 e jurisprudência referida).

139    No caso em apreço, há que recordar que o capítulo V do Regulamento 2017/459 se assemelha a uma alteração do Regulamento n.o 715/2009 que conduzia ao alargamento, para a criação de capacidades suplementares, da competência reconhecida pelo artigo 8.o, n.o 6, alínea g), do Regulamento n.o 715/2009 no domínio das «regras relativas à atribuição de capacidade e à gestão de congestionamentos» à REORT e, consequentemente, à Comissão, apesar de a referida competência apenas dizer respeito às capacidades existentes na rede.

140    Ora, pelas razões expostas nos n.os 114 a 126, supra, resulta da economia do Regulamento n.o 715/2009, bem como da sua leitura conjugada com a Diretiva 2009/73, adotada concomitantemente, que o legislador procedeu a uma opção política que consiste em atribuir a aplicação das regras pertinentes da União relativas à criação de capacidades suplementares apenas aos Estados‑Membros, sem delegar competências neste sentido à REORT e à Comissão. Por conseguinte, em aplicação da jurisprudência referida no n.o 137, supra, deve considerar‑se que a alteração introduzida pelo capítulo V do Regulamento 2017/459 diz respeito a um elemento essencial do Regulamento n.o 715/2009, que não está abrangido pelo artigo 6.o, n.o 11, segundo parágrafo, e pelo artigo 7.o, n.o 3, deste último regulamento.

141    Decorre de tudo o que precede que a Comissão não tinha competência com base no Regulamento n.o 715/2009 para adotar as disposições que regem o processo de capacidade suplementar que figuram no capítulo V do Regulamento 2017/459.

142    Por conseguinte, há que julgar procedente a exceção de ilegalidade e declarar inaplicável o capítulo V do Regulamento 2017/459 por força do artigo 277.o TFUE. Daqui decorre que a decisão da Câmara de Recurso, que aplica o referido capítulo, deve ser anulada com efeitos erga omnes [v., neste sentido, Acórdão de 1 de junho de 2006, P & O European Ferries (Vizcaya) e Diputación Foral de Vizcaya/Comissão, C‑442/03 P e C‑471/03 P, EU:C:2006:356, n.o 43 e jurisprudência referida], sem que seja necessário conhecer dos outros fundamentos invocados no âmbito dos litígios em apreço.

143    Por conseguinte, na medida em que têm por objeto a decisão da Câmara de Recurso, os presentes recursos devem ser julgados procedentes.

IV.    Quanto às despesas

144    Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. No caso em apreço, tendo a ACER sido vencida quanto ao essencial, há que condená‑la a suportar as suas próprias despesas, bem como a totalidade das despesas efetuadas pelas recorrentes, em conformidade com o pedido destas.

145    Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, as instituições que intervenham no litígio devem suportar as suas próprias despesas. A Comissão, por conseguinte, suportará as suas próprias despesas.

146    Além disso, em aplicação do artigo 138.o, n.o 3, do Regulamento de Processo, há que condenar a E‑Control nas suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção alargada)

decide:

1)      O recurso da Magyar Energetikai és Közműszabályozási Hivatal (MEKH) é inadmissível na parte em que visa a Decisão n.o 05/2019 da Agência da União Europeia de Cooperação dos Reguladores da Energia (ACER), de 9 de abril de 2019.

2)      A Decisão n.o A0042019 da Câmara de Recurso da ACER, de 6 de agosto de 2019, é anulada.

3)      A ACER suportará as suas despesas, bem como as despesas efetuadas pela MEKH e pela FGSZ Földgázszállító Zrt.

4)      A Comissão Europeia e a EnergieControl Austria für die Regulierung der Elektrizitäts und Erdgaswirtschaft (EControl) suportarão as suas próprias despesas.

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 16 de março de 2022.

Assinaturas


Índice


I. Antecedentes dos litígios

II. Tramitação processual e pedidos das partes

III. Questão de direito

A. Quanto à admissibilidade do recurso no processo T684/19 na parte em que tem por objeto a decisão inicial

B. Quanto ao mérito dos recursos

1. Quanto à admissibilidade da exceção de ilegalidade

2. Quanto ao mérito da exceção de ilegalidade

a) Quanto ao mérito da primeira parte, relativa à incompatibilidade do Regulamento 2017/459 com a base jurídica do Regulamento n.o 715/2009

b) Quanto ao mérito da segunda parte, relativa ao facto de o capítulo V do Regulamento 2017/459 exceder a competência atribuída à Comissão pelo Regulamento n.o 715/2009

1) Quanto ao alcance da competência conferida à Comissão pelo artigo 6.o, n.o 11, primeiro parágrafo, e pelo artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009

i) Quanto à interpretação literal do artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009

ii) Quanto à interpretação sistemática do artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009

iii) Quanto à interpretação teleológica do artigo 8.o, n.o 6, do Regulamento n.o 715/2009

2) Quanto ao alcance da competência conferida à Comissão pelo artigo 6.o, n.o 11, segundo parágrafo, e pelo artigo 7.o, n.o 3, do Regulamento n.o 715/2009

IV. Quanto às despesas


*      Línguas de processo: inglês e húngaro.