Language of document : ECLI:EU:C:2022:481

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

GIOVANNI PITRUZZELLA

apresentadas em 16 de junho de 2022(1)

Processo C175/21

Harman International Industries, Inc.

contra

AB SA

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sąd Okręgowy w Warszawie (Tribunal Regional de Varsóvia, Polónia)]

«Reenvio prejudicial — Artigos 34.o e 36.o TFUE — Livre circulação de mercadorias — Marca da União Europeia — Regulamento (UE) 2017/1001 — Artigo 15.o — Esgotamento do direito conferido pela marca da União Europeia — Ónus da prova — Tutela jurisdicional efetiva»






1.        Numa ação instaurada pelo titular da marca para impedir a distribuição de produtos não autorizados, como encontrar o ponto de equilíbrio entre a proteção do titular da marca e a proteção do distribuidor dos produtos que invoca no processo o esgotamento do direito conferido pela marca? Pode o consentimento do titular da marca à introdução dos produtos no EEE ser implícito? A formulação genérica do dispositivo da decisão e a remissão para a fase de execução para a identificação dos produtos introduzidos no EEE é compatível com o princípio da tutela jurisdicional efetiva? Como é repartido o ónus da prova?

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União

2.        Nos termos do artigo 9.o do Regulamento 2017/1001 (2):

«1.      O registo de uma marca da UE confere ao seu titular direitos exclusivos.

[…]

3.      […] pode ser proibido, nomeadamente:

[…]

b)      Oferecer os produtos, colocá‑los no mercado ou armazená‑los para esses fins, ou oferecer ou prestar serviços sob o sinal;

c)      Importar ou exportar produtos sob o sinal;

[…]»

3.        Nos termos do artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001:

«A marca da UE não confere ao seu titular o direito de proibir a sua utilização para produtos que tenham sido comercializados no espaço económico europeu sob essa marca pelo titular ou com o seu consentimento.»

4.        O artigo 129.o, n.o 3, do Regulamento 2017/1001, sob a epígrafe «Direito aplicável», estabelece que:

«Salvo disposição em contrário do presente regulamento, o tribunal de marcas da UE aplica as normas processuais aplicáveis ao mesmo tipo de processos relativos a marcas nacionais dos Estados‑Membros em cujo território estiverem situados.»

5.        O artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2004/48 (3) prevê que:

«As medidas, procedimentos e recursos também devem ser eficazes, proporcionados e dissuasivos e aplicados de forma a evitar que se criem obstáculos ao comércio lícito e a prever salvaguardas contra os abusos.»

B.      Direito polaco

6.        O artigo 325.o da ustawa z dnia 17 listopada 1964 roku Kodeks postępowania cywilnego (Lei Que Aprova o Código de Processo Civil), de 17 de novembro de 1964, versão consolidada, conforme alterada (Dziennik Ustaw de 2019, posição 1460) (a seguir «Código de Processo Civil») estabelece:

«O dispositivo da sentença deve conter o nome do tribunal, os nomes dos juízes, do secretário e do Ministério Público, se este tiver intervindo no processo, a data e o local da audiência e da prolação da sentença, os nomes das partes e o objeto do processo, bem como a decisão do tribunal sobre os pedidos das partes.»

7.        Segundo o artigo 758.o do Código de Processo Civil, os sądy rejonowe (tribunais de primeira instância) e os oficiais de justiça adstritos a esses tribunais são competentes em matéria de execução.

8.        Segundo o artigo 767.o, n.os 1 e 2, deste código:

«1.      Salvo disposição legal em contrário, os atos do oficial de justiça podem ser objeto de recurso para o Sąd Rejonowy (Tribunal de Primeira Instância, Polónia). É igualmente possível interpor recurso da omissão de um documento por parte do oficial de justiça. O recurso é apreciado pelo tribunal da jurisdição do gabinete do oficial de justiça.

[…]

2.      O recurso pode ser interposto por uma das partes ou por outra pessoa cujos direitos tenham sido violados ou ameaçados pelo ato ou pela omissão do oficial de justiça.

[…]»

9.        O artigo 843.o do referido código prevê, no n.o 3:

«No recurso, o recorrente deve alegar todos os aspetos suscetíveis de serem impugnados nessa fase, sob pena de preclusão do direito de as invocar posteriormente no processo.»

10.      O artigo 1050.o do mesmo código prevê nos n.os 1 e 3:

«1.      Quando o devedor for obrigado a praticar um ato que não possa ser praticado por outra pessoa e cuja prática dependa exclusivamente da sua vontade, o tribunal em cuja jurisdição o ato deve ser praticado, a pedido do credor e depois de ouvir as partes, fixará ao devedor um prazo para praticar o ato, sob pena de multa, se não o fizer no prazo estabelecido.

[…]

3.      Se o prazo concedido ao devedor para praticar um ato tiver caducado sem que o devedor o tenha praticado, o tribunal aplicará ao devedor, a pedido do credor, uma multa e fixa simultaneamente um novo prazo para a prática do ato, sob pena de multa agravada.»

11.      O artigo 1051.o do Código de Processo Civil estabelece no n.o 1:

«Se o devedor estiver vinculado à obrigação de não praticar ou obstaculizar os atos do credor, o tribunal em cuja jurisdição o devedor não cumpriu a sua obrigação, a pedido do credor, condena‑o a pagar uma multa, depois de ouvir as partes e verificar que o devedor não cumpriu a sua obrigação. O tribunal procede da mesma forma em caso de novo pedido por parte do credor.»

II.    Matéria de facto, processo principal e questões prejudiciais

12.      A Harman International Industries, Inc. (a seguir «recorrente»), sediada em Stamford (Estados Unidos da América) é titular de direitos exclusivos sobre as marcas da União Europeia registadas com os números 001830967, 005336755, 015577621, 003191004, 003860665, 0150221652, 001782523, 005133251 e 009097494.

13.      Os produtos da recorrente (equipamento audiovisual, incluindo altifalantes, auriculares e sistemas áudio) que ostentam as referidas marcas são distribuídos no território da Polónia por um único operador com o qual a recorrente celebrou um contrato de distribuição e através da intermediação deste operador os seus produtos são vendidos em lojas de equipamento eletrónico aos clientes finais.

14.      A recorrente utiliza sistemas de marcação nos seus produtos com base nos quais, na perspetiva do órgão jurisdicional de reenvio, nem sempre é possível determinar se o produto foi por ela destinado ao mercado do Espaço Económico Europeu (EEE) ou fora dele. Com efeito, as marcações em alguns dos produtos que ostentam as marcas da recorrente não contêm abreviaturas relativas às indicações territoriais, pelo que não especificam o lugar onde o produto deve ser comercializado pela primeira vez com o seu consentimento. Isto implica que algumas marcações figuram tanto nas embalagens dos produtos destinados a ser comercializados no EEE como nas embalagens dos produtos destinados a ser comercializados fora do EEE. Quanto a estes produtos, a determinação do mercado ao qual se destinam implica a utilização de uma ferramenta informática à disposição da recorrente, incluindo uma base de dados dos produtos com indicação do mercado ao qual determinado produto se destina.

15.      A AB SA, sediada em Magnice (Polónia), sociedade recorrida no processo principal (a seguir «recorrida»), desenvolve uma atividade económica no domínio da distribuição de material eletrónico. A recorrida colocou no mercado polaco produtos fabricados pela recorrente e que ostentavam as marcas da UE da recorrente. A recorrida adquiriu os produtos em causa a um vendedor diferente do distribuidor dos produtos no mercado polaco com o qual a recorrente celebrou o contrato. A recorrida afirma ter recebido desse vendedor a garantia de que a comercialização dos referidos produtos no mercado polaco não violava os direitos exclusivos da recorrente conferidos pelas marcas da União Europeia devido ao esgotamento desses direitos, na sequência da comercialização prévia de produtos no EEE sob essas marcas pela recorrente ou com o seu consentimento.

16.      A recorrente intentou uma ação no Sąd Okręgowy w Warszawie (Tribunal Regional de Varsóvia, Polónia), na qualidade de órgão jurisdicional de primeira instância, pedindo que a recorrida fosse proibida de violar os direitos da recorrente conferidos pelas marcas da UE, proibindo a importação, comercialização, oferta, publicidade e armazenamento de altifalantes e auriculares, bem como das suas embalagens, que ostentem qualquer das marcas da União Europeia da recorrida e que não tenham sido previamente comercializados no EEE pela recorrente ou com o seu consentimento. Além disso, a recorrente pedia ao órgão jurisdicional que ordenasse à recorrida a retirada do mercado ou a destruição desses altifalantes e auriculares, bem como das suas embalagens.

17.      A recorrida opôs às pretensões da recorrente o princípio do esgotamento do direito conferido pela marca da UE, centrando a sua defesa na garantia recebida do vendedor de que os produtos em causa já tinham sido comercializados no EEE.

18.      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que os sistemas de marcação dos produtos da recorrente não permitem determinar se os produtos eram ou não destinados ao mercado do EEE. Por esta razão, um demandado não poderia provar que uma cópia de um produto com a marca da UE da recorrente foi introduzida no mercado do EEE pela própria ou com o seu consentimento. É certo que o demandado poderia dirigir‑se ao seu vendedor; todavia, é improvável, prossegue o órgão jurisdicional de reenvio, que consiga obter informações úteis sobre a identidade da pessoa a partir da qual o fornecedor obteve as cópias em questão ou sobre as pessoas que fazem parte da cadeia de distribuição das cópias no território polaco, porque os fornecedores não estão normalmente dispostos a divulgar as suas fontes de abastecimento para não perder os compradores.

19.      No contexto assim descrito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a prática dos órgãos jurisdicionais polacos de utilizar, no dispositivo das decisões que dão procedência a uma ação, a fórmula genérica «produtos que ostentam marcas do recorrente que não foram previamente comercializados no território do [EEE] pelo recorrente (titular de uma marca da União Europeia) ou com o seu consentimento», comporta dificuldades sérias para o exercício dos direitos de defesa e incertezas na aplicação do direito. Esta forma de redigir o dispositivo das decisões tem, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, como consequência direta, a impossibilidade prática de as executar com base nas informações que contêm.

20.      Com efeito, quer a decisão seja executada voluntariamente quer seja executada pela autoridade competente para a execução, para que esta seja exequível na prática, é necessário obter informações adicionais, do titular ou do demandado, a fim de identificar os específicos artigos de produtos que ostentam a marca da UE.

21.      Em especial, é necessária a colaboração específica do recorrente, titular da marca, para aceder à base de dados que contém as informações necessárias para a identificação dos produtos.

22.      Além disso, resulta da fundamentação do pedido de decisão prejudicial que a prática seguida na execução das decisões cujo dispositivo está redigido de maneira genérica não é uniforme e varia consoante a natureza da decisão a seguir podendo, em muitos casos, conduzir igualmente à apreensão de produtos que circulam sem qualquer violação de um direito de marca exclusivo. Em substância, pode concretamente suceder que a proteção do direito exclusivo de uma marca da UE seja alargada a produtos para os quais esse direito se esgotou.

23.      Além do mais, a prática em questão suscita outras incertezas quanto às garantias processuais das partes nos processos relativos à proteção de um direito exclusivo conferido por uma marca da UE. Com efeito, resulta da formulação do pedido de decisão prejudicial que, no âmbito de um litígio judicial, é muito difícil para a recorrida provar que determinado produto foi comercializado no EEE pela recorrente ou com o seu consentimento.

24.      Segundo as disposições do direito polaco, como referido pelo órgão jurisdicional de reenvio, as vias de recurso à disposição do devedor nos processos de medidas provisórias e de execução, isto é, a impugnação de um ato de um oficial de justiça e a oposição à execução, não permitem contestar de maneira eficaz o modo como a sentença foi executada pela autoridade de execução, ou seja, determinar eficazmente as cópias que devem ser excluídas da execução coerciva.

25.      Por todas estas razões, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre a compatibilidade desta prática dos órgãos jurisdicionais polacos com os princípios da livre circulação de mercadorias, do esgotamento do direito conferido pela marca da UE, bem como com a obrigação de os Estados‑Membros estabelecerem vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva.

26.      Por conseguinte, o Sąd Okręgowy w Warszawie (Tribunal Regional de Varsóvia) suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem o artigo 36.o, segundo período, TFUE, em conjugação com o artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento (UE) 2017/1001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, sobre a marca da União Europeia, bem como com o artigo 19.o, n.o 1, segundo [parágrafo], TUE, ser interpretados no sentido de que se opõem a uma prática dos órgãos jurisdicionais nacionais dos Estados‑Membros segundo a qual esses órgãos jurisdicionais:

— ao apreciarem um pedido do titular de uma marca com vista à proibição da importação, comercialização, oferta ou publicidade de produtos que ostentam uma marca da União Europeia, e se ordene a retirada do mercado ou a destruição desses produtos,

— ao decidirem num processo de medidas provisórias sobre a apreensão de produtos que ostentam uma marca da União Europeia;

se referem, no conteúdo das decisões, aos “produtos que não foram comercializados no Espaço Económico Europeu pelo titular da marca ou com o seu consentimento”, pelo que a determinação de quais os produtos abrangidos pela marca da União Europeia sobre que incidem as injunções e proibições impostas (isto é, a determinação de quais os produtos que não foram comercializados no Espaço Económico Europeu pelo titular da marca ou com o seu consentimento) é, atendendo à formulação [genérica] da decisão, deixada a cargo da autoridade de execução que, ao efetuar essa determinação, se baseia nas declarações do titular da marca da União Europeia ou nos instrumentos fornecidos pelo mesmo (incluindo ferramentas informáticas e bases de dados), ao passo que a admissibilidade da impugnação da referida determinação efetuada pela autoridade de execução, perante o órgão jurisdicional no [processo declarativo], está excluída ou limitada pela natureza das vias de recurso de que dispõe o demandado no processo de medidas provisórias ou de execução?»

III. Análise jurídica

A.      Observações preliminares

27.      Com a única questão do pedido de decisão prejudicial, relativa ao grau de precisão exigido na formulação do dispositivo de uma decisão em matéria de esgotamento do direito de marca previsto no artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas tanto no que respeita à garantia da livre circulação de mercadorias tanto no que respeita à tutela jurisdicional efetiva do distribuidor, demandado judicialmente pelo titular de uma marca da UE devido à pretensa introdução irregular no EEE de produtos protegidos pelo direito de marca.

28.      Mais precisamente, na perspetiva do órgão jurisdicional nacional, a formulação genérica do dispositivo proferido pelo órgão jurisdicional no processo declarativo tornaria excessivamente difícil a defesa do distribuidor dos produtos que é o demandado na ação. Tal suscitaria o problema da repartição do ónus da prova no processo, em particular na fase executiva, inclusive em razão do sistema processual específico do Estado‑Membro que, ao impor ao demandado requisitos restritivos para dedução da oposição, não asseguraria ao demandado, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, uma tutela efetiva.

29.      Foram apresentadas observações escritas pela recorrente, pela recorrida, pelo Governo polaco e pela Comissão Europeia.

30.      A recorrente considera que se deve responder negativamente à questão submetida no pedido de decisão prejudicial na medida em que qualquer outra solução seria contrária à regra do esgotamento dos direitos de marca. Especialmente, além de contestar a descrição dos factos e a interpretação da legislação polaca apresentada pelo órgão jurisdicional de reenvio, considera que, se as soluções por este sugeridas fossem seguidas — designadamente, a imposição ao titular da marca da obrigação de indicar com precisão «as marcas ou os números de série» dos produtos —, se verificaria uma discriminação em relação aos operadores cuja marca foi violada, não estando tal obrigação prevista nem pelo direito da União nem pelo direito nacional.

31.      A recorrente contesta também o facto de a Harman ter apenas um distribuidor dos seus produtos no mercado polaco e, por conseguinte, não considera que se possa admitir uma inversão do ónus da prova, como estabelecido no Acórdão Van Doren + Q (4), na medida em que — fora dos casos de distribuição exclusiva — o ónus de provar a existência do consentimento para a comercialização dos bens fora do EEE cabe ao demandado.

32.      Pelo contrário, a recorrida, o Governo polaco e a Comissão entendem que a questão submetida no pedido de decisão prejudicial deve receber uma resposta afirmativa.

33.      A recorrida e o Governo polaco concordam com a perspetiva dos factos do órgão jurisdicional de reenvio. Em especial, a recorrida considera que qualquer decisão proferida por um órgão jurisdicional deve permitir ao demandado executá‑la voluntariamente sem recorrer a informações contidas nas bases de dados da recorrente, que não lhe são acessíveis. Este problema prático pode, no seu entender, ser resolvido instituindo um sistema uniforme de marcação que inclua a obrigação de indicação do mercado de destino nas cópias dos produtos.

34.      O Governo polaco considera que, uma vez que as regras de repartição do ónus da prova tradicionais nos processos por violação de um direito de marca exclusivo poderiam, nalguns casos, conduzir a uma restrição de facto à livre circulação de mercadorias, poderia justificar‑se adaptá‑lo em aplicação dos princípios enunciados no Van Doren + Q. Especialmente, o Governo polaco considera que o cumprimento dos referidos princípios só seria possível se o procedimento probatório fosse inteiramente conduzido pelo órgão jurisdicional que conhece do mérito.

35.      Pelo contrário, a Comissão — embora esteja de acordo quanto à possibilidade de atribuir ao titular do direito de marca o ónus da prova do consentimento à introdução das mercadorias fora do EEE ‑ considera que o direito da União não se opõe, em princípio, à possibilidade de deixar à autoridade de execução a tarefa de determinar quais os artigos abrangidos pela marca da UE que são sujeitos a injunções e proibições impostas por um órgão jurisdicional. Todavia, acrescenta que tal solução, em conformidade com o princípio da tutela jurisdicional efetiva, pressupõe que o demandado em processos de medidas provisórias e de execução disponha de todos os meios necessários para defender o seu direito no processo.

36.      Do que resulta dos autos, compreende‑se que o processo objeto do pedido de decisão prejudicial diz respeito, em particular, à importação paralela de produtos «mistos», isto é, aos produtos para os quais os direitos exclusivos do titular estão esgotados e que podem circular livremente no EEE e produtos destinados a ser comercializados fora do EEE, cuja comercialização no EEE viola os direitos do titular.

37.      No caso concreto, o órgão jurisdicional de reenvio sustenta que, no momento da apreensão, é muito difícil distinguir os dois grupos de produtos e, por essa razão, muitas vezes as únicas informações atendíveis para determinar o local onde os produtos foram colocados no mercado provêm do titular da marca.

38.      A formulação genérica do dispositivo, que se limita a reproduzir o disposto no artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001, leva, de facto, a remeter a determinação do local onde os produtos foram introduzidos no mercado para o momento da execução. A remissão para a fase de execução é problemática, uma vez que, no direito polaco, do que resulta do despacho de reenvio, os direitos processuais do demandado estão muito limitados durante a fase da execução coerciva; isto, em particular, devido ao necessário envolvimento do titular do direito de marca da UE. A necessidade da colaboração da recorrente titular da marca não permitiria ao demandado‑distribuidor dos produtos proteger eficaz e autonomamente a sua posição no processo.

39.      Na minha análise, concentrar‑me‑ei em duas questões que me parecem essenciais para responder à questão prejudicial submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio: o princípio do esgotamento dos direitos de marca em relação ao regime relativo à livre circulação de mercadorias e a efetividade da tutela jurisdicional do demandado‑distribuidor dos produtos no mesmo processo, tanto no que respeita à formulação genérica do dispositivo como à repartição do ónus da prova.

B.      O esgotamento do direito de marca da União Europeia e a livre circulação de mercadorias: o conceito de consentimento

40.      Como é sabido, a disposição do artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento (UE) 2017/1001 codificou (5) o princípio do esgotamento da marca, com base no qual o titular de um direito exclusivo sobre um sinal, depois de ter comercializado, diretamente ou com o seu consentimento, um produto que ostente sua marca, já não pode invocar direitos relacionados com a marca a fim de impedir a venda posterior desses produtos.

41.      Essa disposição retoma, em termos substancialmente idênticos, o artigo 7.o da Diretiva 89/104/CEE (6), que codificou a jurisprudência relativa ao princípio do esgotamento em matéria de marcas, tal como o artigo 13.o do Regulamento (CE) n.o 40/94 (7) codificou a relativa à marca comunitária. A Diretiva 89/104/CEE foi revogada pela Diretiva 2008/95/CE, por sua vez revogada pela Diretiva (UE) 2015/2436 (8). Em contrapartida, o Regulamento (CE) n.o 40/94 foi revogado pelo Regulamento (CE) n.o 207/2009 do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca [comunitária] (9), por seu turno revogado pelo Regulamento (UE) 2017/1001. Embora o artigo 15.o do Regulamento 2017/1001 — tal como o artigo 15.o da Diretiva 2015/2436 — esteja redigido de forma parcialmente diferente das disposições revogadas no tempo, considera‑se que as interpretações apresentadas pelo Tribunal de Justiça sobre os textos anteriores mantêm a sua atualidade, tendo em conta o facto de que as duas disposições prosseguem o mesmo objetivo de ponderação dos direitos da marca com a proteção da livre circulação de mercadorias no mercado interno.

42.      O fundamento do instituto encontra‑se na atribuição ao titular da prerrogativa de controlar apenas a primeira comercialização dos produtos que ostentam a marca no mercado de referência sem criar obstáculos ou restrições à circulação posterior dos bens protegidos que seriam incompatíveis com o princípio da liberdade de comércio (10).

43.      Com efeito, a disposição referida deve ser lida e interpretada à luz do artigo 36.o TFUE (11), tendo igualmente em conta que assegura uma harmonização completa (12) das normas relativas ao esgotamento dos direitos de marca através da codificação de uma grande parte da jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de livre circulação de mercadorias (13).

44.      Por conseguinte, a aplicação da disposição do artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001 não pode, de modo nenhum, ter por efeito legitimar ou justificar obstáculos à liberdade de circulação de mercadorias e, de facto, reintroduzir barreiras interestaduais e fronteiras aduaneiras abolidas com o mercado comum (14) nem reduzir as garantias processuais das partes nos casos que dizem respeito à proteção de um direito exclusivo conferido por uma marca da UE.

45.      À luz destas considerações, é necessário avaliar, como sugerido pelo órgão jurisdicional de reenvio, se a prática dos órgãos jurisdicionais polacos de formular, de forma genérica, o dispositivo da decisão, associado ao facto de a distinção entre as categorias de produtos só parecer poder ser feita com base nas informações e nas bases de dados na posse da recorrente, pode constituir um meio de discriminação ou uma restrição dissimulada no comércio entre Estados‑Membros na aceção do artigo 36.o TFUE.

46.      Com efeito, do quadro descrito pelo órgão jurisdicional de reenvio, esta prática pode, ainda que de forma indireta, manter essas restrições e alargar a proteção do direito exclusivo de uma marca da UE a produtos para os quais esse direito está esgotado.

47.      O Tribunal de Justiça afirmou várias vezes que o artigo 36.o TFUE (15) e, por conseguinte, a proibição de restrições à importação e de medidas de efeito equivalente, podem admitir derrogações por razões de proteção dos direitos de propriedade industrial e comercial; todavia, dado que a proibição afeta o exercício dos direitos e não a sua existência, a exceção é admitida na medida em que as derrogações «sejam justificadas pela proteção dos direitos que constituem o objeto específico» (16) do direito de propriedade (17).

48.      O titular da marca deve colocar ele próprio (18), ou consentir que sejam colocados no mercado, qualquer produto que ostente a sua marca (19). A equivalência entre as duas hipóteses — a comercialização dos produtos que ostentam a marca pelo titular ou com o seu consentimento — foi sempre afirmada desde as primeiras decisões que consagraram o princípio do esgotamento (20).

49.      Assim, a existência do consentimento constitui uma distinção para compreender quando é que a proteção do direito de propriedade intelectual deve ceder perante o princípio da livre circulação de mercadorias.

50.      No que respeita à definição do consentimento, o Acórdão Ideal Standard forneceu indicações importantes, precisando que este nunca pode ser implícito (21).

51.      No Acórdão Sebago, o Tribunal de Justiça, referindo‑se à Diretiva 89/104/CEE em matéria de marcas, precisou que, «para se verificar o consentimento na aceção do artigo 7.o, n.o 1 […] este deve versar sobre cada exemplar do produto para o qual o esgotamento é invocado» (22).

52.      Nos processos apensos Davidoff e Levi Strauss (23), que têm por objeto a Diretiva 89/104, o Tribunal de Justiça afirmou que a definição das características do consentimento para a comercialização no EEE, na aceção do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 89/104, não deve ser deixada aos ordenamentos nacionais, porque, caso contrário, poderia resultar numa proteção variável em função da lei em causa.

53.      Quanto à possibilidade de um consentimento «não expresso», o Tribunal de Justiça precisou que devem ser estabelecidos os possíveis modos de expressão do consentimento do titular da marca para a comercialização no EEE que deve ser manifestado de uma forma que traduza inequivocamente uma vontade de renunciar a esse direito, mas não excluiu que «possa resultar implicitamente de elementos e de circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores à comercialização fora do EEE» (24).

54.      Com efeito, um consentimento implícito a uma comercialização não pode resultar de um simples silêncio do titular da marca, nem do facto de o titular não ter comunicado a sua oposição à importação no EEE a todos os compradores sucessivos dos produtos ou de não ter indicado qualquer proibição sobre estes, ou de não ter imposto reservas contratuais aquando da venda das mercadorias (25).

55.      Assim, em determinadas condições específicas, o consentimento também pode excecionalmente resultar de comportamentos conclusivos do titular dos direitos de marca, ainda que, repete‑se, a regra seja a do consentimento expresso.

56.      Quem deve fazer prova desse consentimento, expresso ou tácito, num eventual processo? Que tipo de verificação deve efetuar o órgão jurisdicional para determinar quais os produtos introduzidos no mercado que ainda estão abrangidos pela proteção da marca e quais os que não estão; essa verificação tem necessariamente de ser efetuada na fase de apreciação do mérito ou também pode ser feita na fase de execução?

57.      São estes os dois aspetos evidenciados no pedido prejudicial que, embora tendo autonomia conceitual, têm origem comum na prática da formulação genérica do dispositivo pelos órgãos jurisdicionais polacos e evocam uma questão jurídica comum, isto é, a da tutela efetiva no processo do demandado‑distribuidor de produtos que, numa ação de proteção da marca, alega o esgotamento do direito conferido pela marca.

58.      Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que aprecie se a prática dos órgãos jurisdicionais polacos de adotar uma formulação genérica do dispositivo das decisões respeitantes à violação dos direitos de marca na sequência de importações paralelas pode ser considerada conforme com os princípios fundamentais da livre circulação de mercadorias e da tutela jurisdicional efetiva. No caso concreto, o órgão jurisdicional salienta que a referência, na fundamentação e no dispositivo da decisão, aos «produtos que não foram comercializados no EEE pelo titular ou com o seu consentimento» pode, consoante as circunstâncias, não ser adequada e suficientemente precisa.

59.      A consequência desta prática de redação do dispositivo das decisões implica, na perspetiva do órgão jurisdicional de reenvio, uma impossibilidade prática de execução das mesmas, que não contêm as informações necessárias para serem executadas. Com efeito, quer a decisão seja executada voluntariamente quer seja executada pela autoridade competente para a execução, são, em todo o caso, necessárias informações adicionais para identificar os produtos a que se refere a decisão.

60.      Ainda na esteira do órgão jurisdicional de reenvio, apenas o titular da marca poderia indicar o destino dos bens objeto do processo e o demandado ficaria, portanto, impossibilitado de contestar essas verificações tanto na fase de medidas provisórias como na fase de execução, não tendo acesso a essas informações.

61.      No contexto acima descrito, coloca‑se o problema da compatibilidade do direito polaco com os princípios enunciados no artigo 19.o, n.o 1, TUE, e no artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: o demandado‑distribuidor pode contar com uma tutela jurisdicional efetiva no Estado‑Membro?

C.      Tutela jurisdicional efetiva e autonomia processual dos EstadosMembros

62.      A tutela jurisdicional efetiva, na aceção do artigo 19.o, n.o 1, TUE, deve ser assegurada aos particulares, nos setores regulados pelo direito da União, através de vias de recurso adequadas previstas pelos Estados‑Membros (26).

63.      O princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União, a que esta disposição se refere, «constitui um princípio geral do direito da União que decorre das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, que foi consagrado nos artigos 6.o e 13.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950, e que se encontra atualmente afirmado no artigo 47.o da Carta» (27).

64.      O artigo 47.o da Carta dispõe, como é conhecido, no seu primeiro parágrafo, que toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos nesse artigo. A este direito corresponde a obrigação imposta aos Estados‑Membros pelo artigo 19.o, n.o 1, TUE, de estabelecerem as vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos setores regulados pelo direito da União.

65.      Como resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o direito à ação é invocável exclusivamente com base no artigo 47.o da Carta, não sendo necessário concretizar o seu conteúdo através de outras disposições do direito da União ou de disposições do direito interno dos Estados‑Membros (28).

66.      Assim, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o conteúdo essencial do direito à ação consagrado no artigo 47.o da Carta inclui, entre outros elementos, o de o titular desse direito poder aceder a um tribunal competente que assegure o respeito pelos direitos que o direito da União lhe garante e, para o efeito, examine todas as questões de facto e de direito pertinentes para o litígio que é chamado a decidir (29).

67.      Todavia, é prerrogativa do Estado‑Membro, por força do princípio da autonomia processual, a decisão relativa às modalidades processuais das vias judiciais a estabelecer a favor dos particulares, desde que estas modalidades não sejam, nas situações abrangidas pelo direito da União, «menos favoráveis do que aquelas que regulam situações semelhantes submetidas ao direito interno (princípio da equivalência) e não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade)» (30).

68.      Em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o princípio da equivalência «pressupõe que a regra nacional em causa seja aplicável indiferentemente aos recursos fundados nos direitos conferidos às pessoas pelo direito da União e aos fundados na violação do direito interno que tenham um objeto e uma causa semelhantes» (31). Assim, o respeito deste princípio implica que os recursos fundados numa violação do direito da União sejam tratados de mesmo modo que os recursos semelhantes fundados numa violação do direito nacional (32).

69.      Em contrapartida, o princípio da efetividade exige que, mesmo em aplicação do princípio da autonomia processual, as modalidades processuais não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (33).

70.      Todavia, «o direito da União não tem por efeito obrigar os Estados‑Membros a instituírem vias processuais diferentes das previstas no direito interno, a menos, no entanto, que resulte da sistemática da ordem jurídica nacional em causa que não existe nenhuma via processual que permita, ainda que a título incidental, assegurar o respeito pelos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União, ou que a única via de acesso aos tribunais signifique que os litigantes estão obrigados a violar a lei» (34).

71.      Da ponderação entre o princípio da tutela jurisdicional efetiva e o da autonomia processual dos Estados‑Membros, devemos extrair as indicações para avaliar se a interpretação descrita pelo órgão jurisdicional de reenvio se opõe aos princípios do direito da União acima descritos.

1.      Formulação genérica do dispositivo nas decisões de proteção da marca

72.      A questão da correta formulação do dispositivo e das salvaguardas previstas na decisão de proteção da marca é, em princípio, regulada pelo direito processual nacional. Com efeito, nos termos do artigo 129.o, n.o 3, do Regulamento 2017/1001, o tribunal de marcas aplica as normas processuais aplicáveis ao mesmo tipo de processos relativos a marcas nacionais dos Estados‑Membros em cujo território estiverem situados, desde que, no entanto, os princípios da equivalência e da efetividade sejam respeitados e o direito fundamental a uma proteção jurisdicional efetiva, na aceção do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, seja garantido (35).

73.      Como observou a Comissão (36), uma formulação precisa do dispositivo e uma fundamentação adequada da decisão são necessárias para garantir uma proteção eficaz dos direitos garantidos pelo ordenamento jurídico da União, mesmo que isso não exclua que a autoridade de execução possa determinar quais os artigos que ostentam a marca da UE sujeitos a injunções e proibições, desde que as vias de recurso previstas pelo direito nacional permitam impugnar essas decisões perante um órgão jurisdicional.

74.      Da perspetiva apresentada pelo órgão jurisdicional de reenvio parece resultar que o demandado não tem a possibilidade de cumprir voluntariamente as injunções e as proibições contidas numa decisão que contém uma formulação genérica e que, portanto, pode ser automaticamente exposto a processos de execução, dispondo também de vias de recurso limitadas.

75.      Neste contexto, a solução, como parece sugerir o órgão jurisdicional nacional, poderia consistir na imposição de uma obrigação de indicar ex ante nos produtos o mercado de destino.

76.      A mera representação da constatação de uma situação de dificuldade para o demandado em obter informações relativas ao fornecedor originário não pode, no entanto, em minha opinião, constituir o fundamento jurídico que legitime uma imposição desse tipo para o titular. Com efeito, não encontramos no direito da União, elementos textuais, de interpretação teleológica ou de contexto que possam conduzir a essa solução.

77.      Por conseguinte, não considero que exista margem para impor uma obrigação de indicar nos produtos o destino previsto, o que, além de comportar encargos adicionais para o titular, poderia, de facto, ser limitadamente resolutiva. Com efeito, não se pode excluir que o destino real do produto seja, na prática, diferente do indicado e que, por conseguinte, essa obrigação possa tornar mais complicada a transferência da distribuição de um determinado produto de um mercado para outro, restringindo, em substância, a liberdade de circulação de mercadorias prevista no artigo 36.o TFUE. Além disso, uma imposição desse tipo, ao implicar também encargos financeiros adicionais para os titulares do direito de marca, poderia ter como efeito eventual a difusão de práticas de importação ilícita.

78.      Todavia, para que o direito a um recurso efetivo seja respeitado, é necessário garantir que um órgão jurisdicional possa examinar a questão de saber quais os produtos que foram introduzidos no mercado interno e quais os produtos que não foram.

79.      A hipótese preferível seria a de essa verificação ser feita na decisão de mérito, com a consequência de que o resultado da verificação seria reproduzido no dispositivo da decisão.

80.      A identificação dos produtos na decisão do órgão jurisdicional que conhece do mérito é o resultado de uma interpretação conforme com o direito da União e idónea, por conseguinte, ao pleno respeito dos princípios acima recordados para uma tutela jurisdicional efetiva.

81.      Se tal não for possível, como parece resultar da perspetiva do órgão jurisdicional de reenvio, uma vez que pressuporia a indicação prévia pelo titular da marca do destino final dos produtos, seria possível remeter esta verificação também para o momento da execução, desde que, naquela sede, o demandado possa utilizar vias processuais suscetíveis de obter a pronúncia de «um órgão jurisdicional» sobre a questão de facto relevante para decidir o litígio que lhe foi submetido, ou seja, a identificação precisa dos produtos introduzidos no EEE e protegidos pela marca.

82.      Por último, importa que a apreciação geral da adequação do sistema processual nacional não deixe de considerar a eventual existência de um sistema de responsabilidade civil para as apreensões injustificadas que, embora constituindo uma via de proteção ex post, pode, por um lado, ser considerada uma solução satisfatória para o prejuízo sofrido em caso de apreensão ilegal e, por outro, pode ter um efeito dissuasivo em relação ao titular do direito que seria assim levado a apresentar pedidos de medidas provisórias apenas em situações de evidência da origem ilegal dos produtos. Com efeito, já existem, como recordou a recorrente nas suas observações (37), exemplos de legislações nacionais europeias que preveem um procedimento interno que decalca o referido modelo destinado à ponderação entre o objetivo da livre circulação de mercadorias e a luta contra as infrações.

83.      Todas as apreciações do caso concreto cabem, evidentemente, ao órgão jurisdicional nacional que deve então verificar se, à luz dos princípios do direito da União expostos nas considerações precedentes, o ordenamento processual nacional reconhece em concreto ao demandado numa ação em matéria de proteção da marca da UE o direito a uma tutela jurisdicional plena.

2.      Ónus da prova do consentimento do titular da marca

84.      A regra geral é que o ónus da prova do consentimento do titular do direito de marca cabe à parte que reivindica o consentimento. O Tribunal de Justiça, em muitas ocasiões, reiterou que o ónus da prova do consentimento do titular da marca cabe à parte que reivindica esse consentimento (38).

85.      Todavia, podem verificar‑se situações em que se torna necessária uma adaptação desta regra. Com efeito, como foi decidido no Acórdão Van Doren + Q, a prova do preenchimento das condições do esgotamento do direito de marca cabe ao titular se a aplicação da regra geral — ou seja, a prova a cargo do demandado — puder ter por efeito permitir ao titular do direito de marca compartimentar os mercados nacionais (39), risco que, como o Tribunal de Justiça afirmou no acórdão referido, existe «nas situações em que […] o titular da marca comercializa os seus produtos no EEE por meio de um sistema de distribuição exclusiva» (40).

86.      Com efeito, se o demandado não estiver em condições de obter as informações necessárias para determinar se o produto em causa foi destinado pelo titular da marca da UE a ser introduzido no mercado do EEE, podem verificar‑se efeitos negativos como a fragmentação do mercado interno. Assim, nestes casos, pode inverter‑se o ónus da prova com o efeito de que competirá «ao titular da marca fazer prova de que os produtos foram inicialmente colocados no mercado por ele próprio ou com o seu consentimento fora do EEE. Se for feita prova disso, competirá então ao terceiro fazer prova da existência do consentimento do titular na comercialização ulterior dos produtos no EEE» (41).

87.      Demonstrar que o titular da marca utiliza um sistema de distribuição exclusiva é, portanto, condição suficiente para a inversão do ónus da prova nas condições referidas.

88.      Todavia, dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio não resulta claro se esse critério está verificado no presente processo: a recorrente, ao invés, nega utilizar um sistema de distribuição exclusiva, apesar de afirmar que apenas um operador tem o estatuto de distribuidor autorizado no território polaco e que, além da rede de distribuição cocriada pela Harman, há muitos outros operadores que distribuem produtos Harman na Polónia e o próprio demandado desempenhou esse papel (42).

89.      Caberá, portanto, ao órgão jurisdicional nacional verificar se, na situação controvertida, a distribuição pela recorrente pode ser considerada exclusiva. Em caso afirmativo, em aplicação do Acórdão Van Doren + Q, pode inverter‑se o ónus da prova, onerando, assim, a recorrente titular da marca com a prova do não esgotamento do direito.

90.      No caso de não se verificar a existência de uma distribuição exclusiva, é possível admitir a adaptação das regras de prova tradicionais nos processos de violação de um direito de marca exclusivo em relação às circunstâncias específicas que respeitam à comercialização dos produtos. Se os produtos em causa não exibirem nenhuma indicação da qual resulte o mercado da primeira comercialização, o órgão jurisdicional, verificando que não existe uma solução prática suscetível de ultrapassar a referida dificuldade probatória, procederá à adaptação do ónus da prova, em observância do princípio da tutela jurisdicional efetiva acima referido.

91.      A averiguação a efetuar pelo órgão jurisdicional nacional visa verificar se o demandado não se encontra perante uma «prova diabólica» porque os elementos de facto suscetíveis de demonstrar a constatação do esgotamento do direito de marca estão totalmente fora do seu âmbito de influência e de conhecimento.

92.      Observo, no entanto, que a simples constatação de uma situação de dificuldade de o demandado obter informações do seu próprio fornecedor não pode constituir o único elemento que legitime a adaptação do ónus da prova.

93.      No caso de não ter sido constatada a distribuição exclusiva pelo titular da marca, a adaptação do ónus da prova relativo à verificação do esgotamento do direito de marca só deve considerar‑se possível no caso de se verificar a impossibilidade de o demandado fazer prova dessa circunstância que constitui o fundamento do direito que invoca.

IV.    Conclusão

94.      Com base nas considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pelo Sąd Okręgowy w Warszawie (Tribunal Regional de Varsóvia, Polónia) do seguinte modo:

O artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento (UE) 2017/1001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, sobre a marca da União Europeia, lido à luz do artigo 36.o, segundo período, TFUE, do artigo 19.o, n.o 1, TUE e do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais, deve ser interpretado no sentido de que o direito da União não se opõe à prática segundo a qual, numa decisão em matéria de proteção da marca da União Europeia, o órgão jurisdicional utiliza uma formulação genérica no dispositivo da decisão deixando, assim, à autoridade de execução a determinação dos produtos objeto da decisão. Isto na condição de, em sede executiva, ser permitido ao demandado contestar a determinação dos produtos introduzidos no mercado e que um órgão jurisdicional possa examinar e decidir quais os produtos que foram efetivamente introduzidos no EEE com o consentimento do titular da marca. Numa ação em matéria de proteção da marca da União Europeia, quando o demandado invoque o esgotamento dos direitos, mas não tenha acesso às informações necessárias, o órgão jurisdicional nacional deve apreciar a possibilidade de alterar a repartição do ónus da prova tanto no caso de se verificar que a distribuição é exclusiva, como no caso em que a prova das circunstâncias de facto em apoio das exceções invocadas se revele praticamente impossível para o demandado.


1      Língua original: italiano.


2      Regulamento (UE) 2017/1001 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de junho de 2017, sobre a marca da União Europeia (JO 2017, L 154, p. 1).


3      Diretiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual (JO 2004, L 157, p. 45).


4      Acórdão de 8 de abril de 2003, Van Doren + Q (C‑244/00, EU:C:2003:204).


5      Muito antes de uma harmonização do direito da propriedade intelectual, o Tribunal de Justiça reconheceu que o exercício do direito exclusivo do titular desse direito, no caso de não estar abrangido pela proteção garantida pelas normas da concorrência (artigo 101.o, n.o 1, TFUE), devia ser examinado à luz da legislação sobre a livre circulação de mercadorias.


6      Primeira Diretiva do Conselho, de 21 de dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1).


7      JO 1994, L 11, p. 1.


8      JO 2015, L 336, p. 1.


9      JO 2009, L 78, p. 1.


10      Para uma reconstrução pontual do princípio numa perspetiva histórica, D. Sarti, Diritti esclusivi e circolazione dei beni [Direitos exclusivos e circulação de bens], Milão, 1996, pp. 17 e segs., e 73 e segs.


11      Acórdão de 11 de julho de 1996, Bristol‑Myers Squibb e o. (C‑427/93, C‑429/93 e C‑436/93, EU:C:1996:282, n.o 27).


12      V. Acórdão de 16 de julho de 1998, Silhouette International Schmied (C‑355/96, EU:C:1998:374, n.os 25 e 29).


13      O Tribunal de Justiça promoveu a liberdade de circulação de mercadorias ao aplicar as disposições dos Tratados relativas à concorrência: Acórdão de 13 de julho de 1966, Établissements Consten S.à.R.L. e Grundig‑Verkaufs‑GmbH/Comissão da C.E.E (processos apensos 56/64 e 58/64, EU:C:1966:41); Acórdão de 29 de fevereiro de 1968, Parke, Davis and Co./Probel, Reese, Beintema‑Interpharm e Centrafarm (C‑24/67, EU:C:1968:11); Acórdão de 18 de fevereiro de 1971, Sirena S.r.l./Eda S.r.l. e o. (C‑40/70, EU:C:1971:18).


14      Para realizar estes objetivos, o Tribunal de Justiça baseou‑se primeiro na proibição dos acordos restritivos da concorrência e depois nas referidas normas sobre a livre circulação de mercadorias, à época o artigo 85.o do Tratado, atualmente o artigo 101.o TFUE. Remete‑se para o Acórdão do Tribunal de Justiça de 13 de julho de 1966, Établissements Consten S.à.r.l. e Grundig‑Verkaufs‑GmbH/Comissão da C.E.E (processos apensos 56/64 e 58/64, EU:C:1966:41).


15      V., neste sentido, Acórdão de 31 de outubro de 1974, Centrafarm BV e Adriaan de Peijper/Winthrop BV (C‑16/74, EU:C:1974:115); Acórdão de 23 de maio de 1978, Hoffmann‑La Roche Co. AG/Centrafarm Vertriebsgesellschaft Pharmazeutischer Erzeugnisse mbH (C‑102/77, EU:C:1978:108); Acórdão de 4 de outubro de 2011, Football Association Premier League Ltd e o./QC Leisure e o. e Karen Murphy/Media Protection Services Ltd (processos apensos C‑403/08 e C‑429/08, EU:C:2011:631, n.o 94).


16      V. Acórdão de 31 de outubro de 1974, Centrafarm BV e Adriaan de Peijper/Winthrop BV, já referida, n.o 7; Acórdão de 23 de maio de 1978, Hoffmann‑La Roche Co. AG/Centrafarm Vertriebsgesellschaft Pharmazeutischer Erzeugnisse mbH, já referida, n.o 6. Remete‑se igualmente sobre este ponto para as Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston de 6 de abril de 2006, no processo Boehringer ingelhaim e o. (C‑348/04, EU:C:2006:235, n.o 9), que precisa quais são as duas componentes do objeto específico de um direito de marca: «[e]m primeiro lugar, existe o direito ao uso da marca a fim de colocar os produtos por esta protegidos em circulação pela primeira vez na CE, após o qual este direito se esgota. Em segundo, há o direito a opor‑se a qualquer uso da marca suscetível de pôr em causa a garantia de proveniência, que inclui tanto a garantia da identidade originária como a garantia da integridade do produto protegido pela marca».


17      No Acórdão de 8 de junho de 1971, Deutsche Grammophon/Metro SB (C‑78/70, EU:C:1971:59), o Tribunal de Justiça pronunciou‑se pela primeira vez sobre o tema, aliás precisamente em matéria de direitos conexos aos direitos de autor.


18      O conceito de «comercialização», entendido como efeito, está abrangido pelo âmbito dos direitos conferidos pela marca e está, portanto, sujeito a uma harmonização completa, mesmo que as transações e os atos que lhe dão origem sejam regulados por cada Estado‑Membro. V. Acórdão de 3 de junho de 2010, Coty Prestige Lancaster Group GmbH/Simex Trading AG (C‑127/09, EU:C:2010:313, n.os 27 e 28); Acórdão de 23 de abril de 2009, Copad SA/Christian Dior couture SA, Vincent Gladel e Société industrielle lingerie (SIL) (C‑59/08, EU:C:2009:260, n.o 40); Acórdão de 30 de novembro de 2004, Peak Holding AB/Axolin‑Elinor AB (C‑16/03, EU:C:2004:759, n.os 31 e 32).


19      V. Acórdão de 1 de julho de 1999, Sebago e Maison Dubois (C‑173/98, EU:C:1999:347, n.os 19 e 20).


20      V. Acórdão de 31 de outubro de 1974, Centrafarm BV e Adriaan de Peijper/Winthrop BV (C‑16/74, EU:C:1974:115, n.o 1).


21      V. Acórdão de 22 de junho de 1994, IHT/Ideal Standard (C‑9/93, EU:C:1994:261, n.o 43), segundo o qual, para efeitos do esgotamento, é necessário «que o titular do direito no Estado importador tenha, direta ou indiretamente, o poder de determinar os produtos sobre os quais a marca pode ser aposta no Estado exportador e de controlar a sua qualidade».


22      V. Acórdão de 1 de julho de 1999, Sebago Inc. e Ancienne Maison Dubois & Fils SA/G‑B Unic SA (C‑173/98, EU:C:1999:347, n.o 22).


23      Acórdão de 20 de novembro de 2001, Zino Davidoff SA e A & G Imports Ltd (processos apensos C‑414/99, C‑415/99, C‑416/99, EU:C:2001:617).


24      V. Acórdão de 20 de novembro de 2001, Zino Davidoff SA e A & G Imports Ltd (processos apensos C‑414/99, C‑415/99, C‑416/99, EU:C:2001:617, n.o 47).


25      V. Acórdão de 20 de novembro de 2001, Zino Davidoff SA e A & G Imports Ltd (processos apensos C‑414/99, C‑415/99, C‑416/99, EU:C:2001:617, n.o 60).


26      V., neste sentido, Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny (C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.o 32).


27      V. Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia (C‑497/20, EU:C:2021:1037, n.o 57); v., também, neste sentido, Acórdão de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes) (C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 52).


28      V. Acórdão de 6 de outubro de 2020, Estado luxemburguês (Tutela jurisdicional contra pedidos de informações em matéria fiscal) (C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.o 54 e jurisprudência referida).


29      V. Acórdão de 6 de outubro de 2020, Estado luxemburguês (Tutela jurisdicional contra pedidos de informações em matéria fiscal) (C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.o 66 e jurisprudência referida).


30      V. Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia (C‑497/20, EU:C:2021:1037, n.o 58).


31      V. Acórdão de 17 de março de 2016, Bensada Benallal (C‑161/15, EU:C:2016:175, n.o 29); v., também, neste sentido, Acórdão de 27 de junho de 2013, Agrokonsulting‑04 (C‑93/12, EU:C:2013:432, n.o 39).


32      V., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2015, Târșia (C‑69/14, EU:C:2015:662, n.o 34).


33      V., neste sentido, Acórdão de 10 de março de 2021, Konsul Rzeczypospolitej Polskiej w N. (C‑949/19, EU:C:2021:186, n.o 43); Acórdão de 13 de dezembro de 2017, El Hassani (C‑403/16, EU:C:2017:960, n.o 26); Acórdão de 15 de março de 2017, Aquino (C‑3/16, EU:C:2017:209, n.o 48).


34      V. Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia (C‑497/20, EU:C:2021:1037, n.o 62); v., também, neste sentido, Acórdão de 14 de maio de 2020, Országos Idegenrendézeti Főigazgatóság Dél‑alföldi Regionális Igazgatóság (C‑924/19 PPU e C‑925/19 PPU, EU:C:2020:367, n.o 143).


35      V. Acórdão de 13 de janeiro de 2022, Minister Sprawiedliowsci (C‑55/20, EU:C:2022:6, n.os 104 e 105 e jurisprudência referida).


36      Observações da Comissão, n.os 39 a 41.


37      No n.o 21 das observações da recorrente; além disso, remete‑se para a leitura dos n.os 54 a 80 para a descrição dos processos em vigor em alguns Estados‑Membros em matéria de medidas provisórias e de execução.


38      V. Acórdão de 20 de novembro de 2001, Zino Davidoff SA e A & G Imports Ltd (processos apensos C‑414/99, C‑415/99, C‑416/99, EU:C:2001:617, n.o 54).


39      V. Acórdãos de 20 de novembro de 2001, Zino Davidoff SA e A & G Imports Ltd (processos apensos C‑414/99, C‑415/99, C‑416/99, EU:C:2001:617, n.o 54), de 8 de abril de 2003, Van Doren + Q (C‑244/00, EU:C:2003:204, n.os 37 e 38) e de 20 de dezembro de 2017, Schweppes, C‑291/16, EU:C:2017:990, n.o 52.


40      V. Acórdão de 8 de abril de 2003, Van Doren + Q (C‑244/00, EU:C:2003:204, n.o 39).


41      V. Acórdão de 8 de abril de 2003, Van Doren + Q (C‑244/00, EU:C:2003:204, n.o 41).


42      Observações da recorrente no processo principal, n.o 6.