Language of document : ECLI:EU:T:2010:233

Processo T‑177/07

Mediaset SpA

contra

Comissão Europeia

«Auxílios de Estado – Telecomunicações – Subvenções para a aquisição de descodificadores digitais – Decisão que declara o auxílio incompatível com o mercado comum e ordena a sua recuperação – Conceito de auxílio de Estado – Exclusão dos descodificadores que permitem a recepção de programas de televisão difundidos por satélite – Vantagem – Carácter selectivo – Violação da concorrência – Dever de fundamentação»

Sumário do acórdão

1.      Tramitação processual – Petição inicial – Requisitos de forma

(Regulamento de Processo do Tribunal Geral, artigo 44.°, n.° 1)

2.      Auxílios concedidos pelos Estados – Conceito – Vantagem concedida aos beneficiários de um auxílio de Estado

(Artigo 87.°, n.° 1, CE)

3.      Auxílios concedidos pelos Estados – Conceito – Vantagem concedida aos beneficiários de um auxílio de Estado – Vantagens indirectas – Inclusão

(Artigo 87.°, n.° 1, CE)

4.      Auxílios concedidos pelos Estados – Proibição – Derrogações – Auxílios que podem beneficiar da derrogação prevista no artigo 87.°, n.° 3, alínea c), CE – Requisitos

[Artigo 87.°, n.° 3, alínea c), CE]

5.      Actos das instituições – Fundamentação – Dever – Alcance – Decisão da Comissão em matéria de auxílios de Estado – Caracterização da infracção à concorrência e da afectação das trocas comerciais entre Estados‑Membros

(Artigos 87.°, n.° 1, CE e 253.° CE)

6.      Auxílios concedidos pelos Estados – Recuperação de um auxílio ilegal – Auxílio concedido em violação das regras processuais do artigo 88.° CE – Eventual confiança legítima dos beneficiários – Segurança jurídica – Protecção – Condições e limites

(Artigo 88.° CE; Regulamento n.° 659/1999 do Conselho, artigo 14.°, n.° 1)

1.      A petição que, por força do artigo 44.°, n.° 1, do Regulamento de Processo, deve conter o objecto do litígio e os fundamentos invocados, pode ser alicerçada e completada em pontos específicos por remissões para extractos de documentos anexos à mesma, embora os anexos tenham uma função puramente probatória e instrumental. Por conseguinte, não podem servir para desenvolver um fundamento sumariamente exposto na petição quando contenham acusações ou argumentos que dela não constam. Um recorrente deve indicar na petição as acusações precisas sobre as quais o Tribunal Geral é chamado a pronunciar‑se, bem como, de modo pelo menos sumário, os elementos de direito e de facto em que essas acusações assentam.

(cf. n.os 24‑25)

2.      Uma medida que consiste numa uma subvenção pública paga a cada utilizador do serviço de radiodifusão que adquire ou aluga um equipamento que permite a recepção, não codificada e sem qualquer custo para o utilizador e para o fornecedor de conteúdos, dos sinais de televisão digitais terrestres constitui uma vantagem na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE concedida às emissoras digitais terrestres e aos operadores por cabo em relação às emissoras por satélite.

Com efeito, quando o benefício da medida em causa está condicionado à satisfação de diversas condições cumulativas, entre as quais consta a aquisição ou o aluguer de um equipamento que permita a recepção dos sinais de televisão digitais terrestres, esta não pode manifestamente beneficiar um consumidor que decide adquirir ou alugar um equipamento que permite exclusivamente a recepção dos sinais de televisão digitais por satélite. Por conseguinte, tal medida não cumpre a exigência de neutralidade tecnológica, imposta pela Comissão, em relação às medidas de auxílios de Estado relativos ao mercado da televisão digital.

O desenvolvimento de uma audiência representa uma parte essencial da actividade comercial de emissoras de programas televisivos. Além disso, importa tomar em consideração que tal medida de auxílio, por um lado, incita os consumidores a passar do modo analógico para o modo digital terrestre limitando, ao mesmo tempo, os custos que as emissoras de televisão digital terrestre teriam tido de suportar e, por outro, permite às mesmas emissoras consolidar a sua posição existente no mercado, em termos de imagem de marca e de fidelização da clientela, em relação aos novos concorrentes.

O facto de a medida em causa ser muito favorável aos consumidores uma vez que baixa o preço dos descodificadores mais sofisticados para o nível do preço dos descodificadores de base não tem nenhum reflexo no facto de a referida medida constituir igualmente uma vantagem para as emissoras terrestres e os operadores por cabo.

Além disso, o preço do descodificador constitui um parâmetro determinante que o telespectador tem em conta a fim de proceder à sua escolha. No que respeita a uma subvenção concedida de forma directa aos consumidores, esta tem automaticamente o efeito de originar uma redução do preço de aquisição ou de aluguer de um equipamento que permite a recepção dos sinais de televisão digitais terrestres. Ora, tal redução de preço é susceptível de afectar a escolha dos consumidores atentos aos custos.

Acresce que tal medida tem um carácter selectivo ainda que as emissoras por satélite possam beneficiar dela oferecendo descodificadores «híbridos», isto é, descodificadores simultaneamente terrestres e por satélite. Com efeito, nesse caso a disponibilização de descodificadores «híbridos» por emissoras por satélite implicaria um custo suplementar que, repercutido no preço de venda aos consumidores, seria no melhor dos casos compensado pela medida em causa da qual beneficiam estes. Portanto, as emissoras por satélite encontravam‑se numa posição menos favorável em relação às emissoras terrestres e aos operadores por cabo, visto que estes não teriam de repercutir nenhum custo suplementar sobre o preço de venda dos descodificadores juntos dos consumidores beneficiários da medida em causa.

(cf. n.os 56‑57, 60, 62, 64‑65, 68, 95)

3.      O artigo 87.° CE proíbe os auxílios concedidos pelo Estado ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, sem estabelecer distinção consoante as vantagens relativas aos auxílios sejam concedidas de forma directa ou indirecta. Assim, uma vantagem directamente concedida a certas pessoas singulares ou colectivas que não são necessariamente empresas pode constituir uma vantagem indirecta e, portanto, um auxílio de Estado para outras pessoas singulares ou colectivas que são empresas.

Consequentemente, uma subvenção concedida aos consumidores pode ser qualificada de auxílio de Estado a favor dos operadores que fornecem produtos ou serviços de consumo.

(cf. n.os 75‑76)

4.      Para ser compatível com o mercado comum na acepção do artigo 87.°, n.° 3, alínea c), CE, um auxílio deve prosseguir um objectivo de interesse comum e ser necessário e proporcional a esse objectivo.

No que respeita a uma medida que consiste numa subvenção pública paga a cada utilizador do serviço de radiodifusão que adquire ou aluga um equipamento que permite a recepção, não codificada e sem qualquer custo para o utilizador e para o fornecedor de conteúdos, dos sinais de televisão digitais terrestres, não se pode considerar que o objectivo de interesse comum é sanar uma disfunção do mercado relativa, em particular, ao problema de coordenação entre os operadores, na origem de um entrave ao desenvolvimento da radiodifusão digital.

Com efeito, dado que as emissoras de televisão já activas no mercado devem considerar a fixação de um prazo legal para a cessão das transmissões em modo analógico como um facto certo e, consequentemente, começar a desenvolver novas estratégias comerciais, as subvenções à aquisição de descodificadores digitais não são necessárias para corrigir o problema de coordenação entre os operadores do mercado, na medida em que o referido problema já estava resolvido pela existência de uma data obrigatória para a passagem para o digital.

Além disso, na medida em que a televisão terrestre ocupa um lugar muito importante, o risco, para os operadores comerciais, de não atingir uma massa crítica de consumidores, na sequência de um problema de coordenação entre operadores, não era tal que estes não pudessem fazer‑lhe frente.

(cf. n.os 125‑126)

5.      Aplicado à qualificação de uma medida de auxílio, o dever de fundamentação exige que se indiquem as razões pelas quais a Comissão considera que a medida em causa integra o âmbito de aplicação do artigo 87.°, n.° 1, CE. Em relação à existência de uma distorção da concorrência no mercado comum, embora a Comissão tenha a obrigação de evocar, nos fundamentos da sua decisão, no mínimo, as circunstâncias nas quais foi concedido um auxílio quando estas permitem demonstrar que o auxílio é de natureza a afectar as trocas entre Estados‑Membros e a falsear ou ameaçar falsear a concorrência, não está obrigada a proceder a uma análise económica da situação real dos mercados em causa, da quota de mercado das empresas beneficiárias dos auxílios, da posição das empresas concorrentes e dos fluxos de trocas entre Estados‑Membros. Além disso, em caso de auxílios concedidos de forma ilegal, a Comissão não tem de demonstrar os efeitos reais desses auxílios na concorrência e nas trocas comerciais entre Estados‑Membros. Com efeito, se assim fosse, essa exigência levaria a favorecer os Estados‑Membros que concedem auxílios ilegais, em detrimento daqueles que notificam os auxílios em fase de projecto. Em particular, é suficiente que a Comissão demonstre que o auxílio controvertido pode afectar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros e falseia ou ameaça falsear a concorrência, sem que seja necessário delimitar o mercado em causa.

(cf. n.os 144‑146)

6.      O artigo 14.°, n.° 1, do Regulamento n.° 659/1999, que estabelece as regras de execução do artigo 88.° CE, a Comissão decide, nas decisões negativas relativas a auxílios ilegais, que o Estado‑Membro em causa deve tomar todas as medidas necessárias para recuperar o auxílio do beneficiário. Esta mesma disposição prevê, contudo, que a Comissão não deve exigir a recuperação do auxílio se tal for contrário a um princípio geral de direito comunitário. No entanto, as empresas beneficiárias de um auxílio só podem, em princípio, ter uma confiança legítima na regularidade do auxílio se este tiver sido concedido no respeito pelo processo. Com efeito, um operador económico diligente deve, normalmente, estar em condições de se certificar que esse processo foi respeitado, mesmo quando a ilegalidade da decisão de concessão do auxílio é imputável ao Estado considerado, a ponto de a revogação da decisão se revelar contrária ao princípio da boa fé.

O princípio da segurança jurídica exige que as normas jurídicas sejam claras e precisas e tem por finalidade garantir a previsibilidade das situações e das relações jurídicas abrangidas pelo direito comunitário. No quadro da restituição de um auxílio declarado incompatível com o mercado comum, nenhuma disposição exige que a Comissão fixe o montante exacto do auxílio a restituir. Basta, com efeito, que a decisão da Comissão contenha indicações que permitam ao seu destinatário determinar por si próprio, sem dificuldades excessivas, esse montante. Por conseguinte, o princípio da segurança jurídica não é violado em razão da dificuldade de determinar o valor exacto de um dos parâmetros do método de cálculo exposto na decisão impugnada.

(cf. n.os 170, 173, 179‑181)