Language of document : ECLI:EU:T:2021:665

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Sétima Secção)

6 de outubro de 2021 (*)

«Função pública — Agentes contratuais — Inquérito do OLAF — Reembolso de despesas médicas — Sanção disciplinar — Resolução do contrato sem aviso prévio — Artigo 10.o, alínea h), do anexo IX do Estatuto — Reincidência — Artigo 27.o do anexo IX do Estatuto — Deferimento de um pedido de eliminação de qualquer referência a uma sanção anterior no processo individual — Artigo 26.o do Estatuto — Caráter inoponível ao funcionário, e não invocável contra este, de uma sanção à qual não é feita qualquer referência no processo individual»

No processo T‑121/20,

IP, representado por L. Levi, S. Rodrigues e J. Martins, advogados,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por M. Brauhoff e A.‑C. Simon, na qualidade de agentes,

recorrida,

que tem por objeto um pedido baseado no artigo 270.o TFUE e destinado à anulação da Decisão da Comissão, de 21 de agosto de 2019, de aplicar ao recorrente a sanção disciplinar de resolução sem aviso prévio do seu contrato de trabalho,

O TRIBUNAL GERAL (Sétima Secção),

composto por: R. da Silva Passos, presidente, I. Reine e L. Truchot (relator), juízes,

secretário: L. Ramette, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 10 de maio de 2021,

profere o presente

Acórdão

I.      Antecedentes do litígio

1        O recorrente, IP, entrou ao serviço da Comissão Europeia em 21 de julho de 2008, primeiro na qualidade de agente temporário, e em seguida, a partir de 16 de setembro de 2008, na qualidade de agente contratual. Em 2013, integrava o grupo de funções I, grau 1, escalão 3. Desde 1 de agosto de 2018, o recorrente está em situação de invalidez.

2        Por nota de 13 de dezembro de 2013, o Parlamento Europeu informou o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF) de que, no âmbito de uma auditoria interna, tinha detetado indícios que, em seu entender, deixavam presumir que um certo número de pedidos de reembolso de despesas médicas relativas a cuidados recebidos em estabelecimentos situados em Portugal era irregular. Estes pedidos tinham sido apresentados entre janeiro e agosto de 2013 por A e por B, irmã deste último, ambos funcionários no Parlamento. Nessa nota, o Parlamento sugeria que se verificasse se o recorrente, que era designado por A como a sua pessoa de contacto numa base de dados dedicada à gestão do pessoal do Parlamento, podia igualmente ter cometido irregularidades semelhantes.

3        Em 8 de setembro de 2014, o OLAF decidiu dar início a um inquérito relativo ao recorrente a respeito de pedidos alegadamente irregulares de reembolso de despesas médicas. Paralelamente, o OLAF decidiu dar início a dois outros inquéritos relativos a A e a B igualmente a respeito de pedidos de reembolso de despesas médicas.

4        Em 21 de dezembro de 2015, o OLAF deu o inquérito por concluído num relatório final. Constatou nesse relatório que, durante o período objeto do inquérito, o recorrente tinha apresentado ao Serviço «Gestão e Liquidação dos Direitos Individuais» (PMO) da Comissão pedidos de reembolso baseados em quatro documentos comprovativos que não correspondiam à realidade das despesas efetuadas. Considerou que o montante total das quantias indevidamente recebidas ascendia a 5 418 euros.

5        O OLAF enviou o seu relatório à Comissão, recomendando‑lhe que instaurasse um processo disciplinar contra o recorrente e que recuperasse o montante de 5 418 euros. Informou igualmente a Comissão de que o relatório tinha sido transmitido às autoridades judiciárias portuguesas para eventual ação judicial.

6        Por nota de 24 de junho de 2016, a Autoridade habilitada a celebrar contratos de admissão da Comissão (a seguir «AHCC») mandatou o Serviço de investigação e disciplina da Comissão (IDOC) para proceder à audição do recorrente.

7        Em 25 de julho de 2017, a AHCC decidiu instaurar um processo disciplinar ao recorrente perante o Conselho de Disciplina.

8        Por parecer de 16 de abril de 2018, o Conselho de Disciplina recomendou a sanção de resolução sem aviso prévio do contrato do recorrente.

9        Na sequência da comunicação do relatório do OLAF às autoridades judiciárias portuguesas, foi instaurado em Portugal um processo penal contra o recorrente.

10      Em 22 de novembro de 2018, a AHCC decidiu suspender o processo disciplinar instaurado contra o recorrente.

11      Em 21 de maio de 2019, na sequência do encerramento do processo penal instaurado em Portugal, o recorrente foi convocado para uma audição na AHCC composta pela diretora‑geral da Direção‑Geral «Recursos Humanos e Segurança», pelo diretor‑geral da Direção‑Geral «Assuntos Económicos e Financeiros» e pelo diretor‑geral adjunto da Direção‑Geral «Agricultura e Desenvolvimento Rural» da Comissão (a seguir «AHCC tripartida»).

12      Em 21 de agosto de 2019, a AHCC tripartida adotou, em relação ao recorrente, e em aplicação dos artigos 49.o e 119.o do Regime Aplicável aos Outros Agentes da União Europeia (a seguir «ROA»), a sanção disciplinar de resolução sem aviso prévio do contrato de trabalho (a seguir «decisão impugnada»).

13      Na decisão impugnada, a AHCC tripartida indicou que o recorrente era acusado de ter apresentado ao PMO dois pedidos de reembolso de despesas médicas que não correspondiam à realidade dos montantes pagos ou dos cuidados recebidos (n.o 12 da decisão impugnada). Qualificou esses atos de «tentativa de fraude ao orçamento da União Europeia», o que constituía, em seu entender, uma falta particularmente grave (n.o 37 da decisão impugnada). Por último, fixou a sanção a adotar à luz dos critérios definidos no artigo 10.o do anexo IX do Estatuto dos Funcionários da União Europeia (a seguir «Estatuto») (n.os 37 a 50 da decisão impugnada). Aplicando o artigo 10.o, alínea h), do anexo IX do Estatuto, a AHCC tripartida baseou‑se, para efeitos de verificação da existência de reincidência, numa repreensão que o recorrente tinha recebido em 19 de novembro de 2010.

14      Em 7 de outubro de 2019, com base no artigo 90.o, n.o 2, do Estatuto, o recorrente apresentou uma reclamação contra a decisão impugnada.

15      Por decisão de 28 de janeiro de 2020 (a seguir «decisão de indeferimento da reclamação»), a reclamação foi indeferida pela Comissão.

II.    Tramitação processual e pedidos das partes

16      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 21 de fevereiro de 2020, o recorrente interpôs o presente recurso.

17      Por requerimento separado apresentado na Secretaria do Tribunal Geral em 4 de março de 2020, o recorrente pediu o anonimato ao abrigo do artigo 66.o do Regulamento de Processo do Tribunal Geral. Por decisão de 15 de abril de 2020, o Tribunal Geral (Sétima Secção) deferiu esse pedido.

18      Sob proposta do juiz‑relator, o Tribunal Geral (Sétima Secção) decidiu dar início à fase oral do processo e, no âmbito das medidas de organização do processo previstas no artigo 89.o do Regulamento de Processo, colocou questões escritas às partes, convidando‑as a responder a algumas delas por escrito e, a outras, na audiência.

19      As partes responderam no prazo que lhes foi fixado.

20      Na audiência de 10 de maio de 2021, foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às questões escritas e orais colocadas pelo Tribunal Geral. Além disso, o recorrente apresentou um documento e a Comissão propôs‑se apresentar dois documentos.

21      Nestas circunstâncias, o presidente da Sétima Secção declarou que a fase oral do processo seria encerrada posteriormente, a fim de permitir à Comissão apresentar os documentos referidos no n.o 20, supra, e a cada uma das partes apresentar observações.

22      A Comissão apresentou os documentos anunciados e as partes apresentaram observações.

23      A fase oral do processo foi encerrada em 2 de junho de 2021.

24      O recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

—        anular a decisão impugnada e, na medida do necessário, a decisão de indeferimento da reclamação;

—        condenar a Comissão nas despesas.

25      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

—        negar provimento ao recurso;

—        condenar o recorrente nas despesas.

III. Questão de direito

26      Antes de examinar os fundamentos invocados pelo recorrente, há que determinar o objeto do recurso.

A.      Quanto ao objeto do recurso

27      A título preliminar, importa recordar que a reclamação administrativa e o seu indeferimento, expresso ou tácito, fazem parte integrante de um processo complexo e constituem apenas uma simples condição prévia à interposição do recurso judicial. Por conseguinte, os pedidos de anulação formalmente dirigidos contra o indeferimento de uma reclamação têm por efeito submeter à apreciação do Tribunal Geral o ato inicial contra o qual foi apresentada a reclamação, quando sejam, enquanto tais, desprovidos de conteúdo autónomo (Acórdãos de 17 de janeiro de 1989, Vainker/Parlamento, 293/87, EU:C:1989:8, n.o 8, e de 25 de outubro de 2018, KF/SATCEN, T‑286/15, EU:T:2018:718, n.o 115).

28      Os pedidos de anulação formalmente dirigidos contra o indeferimento de uma reclamação têm um conteúdo autónomo quando o indeferimento da reclamação tem um alcance diferente do ato inicial contra o qual essa reclamação foi apresentada. É o que sucede quando a decisão de indeferimento de uma reclamação contém uma reapreciação da situação do recorrente, em função de novos elementos de direito e de facto, ou quando altera ou completa a decisão inicial. Nestes casos, o indeferimento da reclamação constitui, enquanto tal, um ato sujeito a fiscalização do juiz, que o considera um ato lesivo que substitui, pelo menos parcialmente, o ato inicial (Acórdão de 21 de maio de 2014, Mocová/Comissão, T‑347/12 P, EU:T:2014:268, n.o 34).

29      Para além dos casos em que o indeferimento da reclamação constitui um ato autónomo suscetível de ser objeto, enquanto tal, de um recurso de anulação, a fundamentação que figura na decisão de indeferimento da reclamação, quando vem completar ou substituir a fundamentação que figura no ato inicial, deve ser tomada em consideração para o exame da legalidade deste último. Essa fundamentação deverá coincidir com a do ato inicial (v., nesse sentido, Acórdão de 9 de dezembro de 2009, Comissão/Birkhoff, T‑377/08 P, EU:T:2009:485, n.os 58 e 59 e jurisprudência aí referida). A legalidade do ato inicial é assim, se for caso disso, examinada à luz, nomeadamente, dos fundamentos contidos na decisão de indeferimento da reclamação.

30      No caso em apreço, uma vez que a decisão de indeferimento da reclamação um alcance diferente da decisão impugnada, deve considerar‑se que o recurso foi unicamente interposto contra esta última.

B.      Quanto à análise dos fundamentos

31      O recorrente invoca seis fundamentos relativos, o primeiro, à violação do dever de diligência e do dever de solicitude, o segundo, à violação do dever de fundamentação, o terceiro, à irregularidade do relatório do OLAF, o quarto, à irregularidade do parecer do Conselho de Disciplina, o quinto, ao facto de nem todas as circunstâncias do caso concreto terem sido analisadas, bem como à violação do princípio segundo o qual «o processo penal suspende o processo disciplinar» e, o sexto, à violação do artigo 10.o do anexo IX do Estatuto.

32      Há que examinar o sexto fundamento e, em especial, a contestação pelo recorrente da aplicação, pela AHCC tripartida, das disposições do artigo 10.o, alínea h), do anexo IX do Estatuto, relativas à reincidência (v. n.o 13, supra).

33      Nos termos do artigo 10.o do anexo IX do Estatuto:

«A severidade da sanção disciplinar imposta deve ser proporcional à gravidade da falta cometida. Para determinar a gravidade da falta e tomar uma decisão quanto à sanção a aplicar, serão tidos em conta, em especial:

[…]

h)      A repetição dos atos ou comportamentos faltosos;

[…]»

34      A este respeito, no n.o 45 da decisão impugnada, introduzido pela epígrafe «Repetição dos atos ou dos comportamentos faltosos», a AHCC tripartida recordou que o recorrente tinha sido repreendido em 19 de novembro de 2010 (a seguir «primeira sanção») por factos que, em seu entender, eram comparáveis aos que atualmente lhe são imputados. Recordou que esses factos consistiam em «ter pedido a um médico que [faturasse ao recorrente] o montante de 4,98 [e]uros para uma análise de sangue feita a um primo que sofria de uma patologia cardíaca [e], posteriormente, por duas vezes, ter tentado obter o seu reembolso [pelo]s serviços da Comissão responsáveis pelas despesas médicas». A AHCC tripartida acrescentou, no n.o 46 da decisão impugnada, que, «[m]esmo que, à época, se tratasse de um valor irrisório [o recorrente] tinha sido sancionado devido ao caráter manifestamente fraudulento do seu comportamento».

35      A AHCC [tripartida], após ter salientado, nos n.os 47 e 48 da decisão impugnada, que, tendo em conta a inexistência de prazo previsto no artigo 10.o, alínea h), do anexo IX do Estatuto, tinha a «liberdade» de tomar em consideração a primeira sanção, precisou o seguinte, no n.o 49 da decisão impugnada:

«[…] a AHCC [tripartida] observa que [o recorrente] praticou atos semelhantes àqueles que tinham justificado a sanção de repreensão, tendo‑o feito cerca de quatro anos depois. A AHCC [tripartida] considera que [o recorrente] demonstrou, assim, não ter retirado ensinamentos da sanção disciplinar aplicada em 2010 e ter continuado a privilegiar os seus interesses pessoais em detrimento dos da instituição.»

36      O recorrente sustenta que a AHCC tripartida não devia ter tido em conta a primeira sanção, para efeitos de verificação da existência de reincidência, e que, ao fazê‑lo, violou o artigo 10.o, alínea h), do anexo IX do Estatuto.

37      A este respeito, por um lado, alega que a AHCC tripartida violou os princípios da proporcionalidade, da boa administração e do prazo razoável. Realça, desde logo, a quantia irrisória cujo reembolso tinha tentado obter, e que foi identificada no primeiro processo disciplinar instaurado contra si, e, em seguida, o tempo decorrido entre as duas sanções. Por último, o recorrente contesta a semelhança entre os factos em causa nos dois processos disciplinares.

38      Por outro lado, segundo o recorrente, a referência à primeira sanção não podia continuar a constar do seu processo individual, uma vez que tinha apresentado um pedido, nos termos do artigo 27.o do anexo IX do Estatuto, com vista à eliminação de qualquer referência a tal sanção no seu processo.

39      Embora tenha sido dado um seguimento favorável ao pedido do recorrente, a Comissão considera que tal circunstância não pode obstar à tomada em consideração dessa sanção para efeitos de reincidência. Com efeito, em seu entender, por um lado, a aplicação das disposições do artigo 10.o, alínea h), do anexo IX do Estatuto não está sujeita a nenhum prazo e, por outro, o seguimento favorável que foi dado ao pedido do recorrente não teve por efeito retirar a primeira sanção do seu processo disciplinar, uma vez que as decisões sancionatórias são conservadas no processo disciplinar dos funcionários durante um período de 20 anos.

40      Na sua resposta às medidas de organização do processo adotadas pelo Tribunal Geral (v. n.o 18, supra) o recorrente dá conta do seguinte:

«[…] o critério da reincidência implica a existência de uma sanção anterior. Ora, ao ter pedido e obtido, com base no artigo 27.o do [a]nexo IX do Estatuto, que fosse eliminada qualquer referência à [primeira sanção] no seu processo individual, o recorrente tem o direito de considerar que tal sanção já não existe […] e que, de qualquer modo, no caso em apreço, a Administração já não a pode invocar contra si no âmbito de um novo processo disciplinar, como o que está em causa no presente processo, a fortiori, para efeitos da aplicação do critério da reincidência na fixação de uma sanção proporcional à gravidade da falta cometida, na aceção do artigo 10.o do [a]nexo IX do [e]statuto.»

41      Na sua resposta às medidas de organização do processo adotadas pelo Tribunal Geral (v. n.o 18, supra), a Comissão esclarece que:

«4.      No que respeita à incidência que a eliminação da referência à [primeira sanção] no processo pessoal do recorrente poderia ter tido na decisão impugnada no presente litígio, se o recorrente pretender alegar que este elemento deveria ter sido tomado em consideração para atenuar a sanção contestada, tal argumento é admissível, mas improcedente. […] Com efeito, a Comissão demonstrou que a eliminação dessa referência não tem por efeito eliminar a [primeira sanção] de forma absoluta. Uma vez que o processo disciplinar relativo a esta sanção é conservado durante 20 anos, o mesmo pôde legitimamente ser tido em conta para efeitos da aplicação do artigo 10.o, alínea h), do anexo IX do Estatuto.

[…]

25.      Nos termos do artigo 26.o, sexto parágrafo, do Estatuto, não pode ser aberto mais do que um processo pessoal para cada funcionário.

26.      O processo disciplinar distingue‑se do processo pessoal. Com efeito, o primeiro contém todos os documentos ligados a um processo disciplinar particular. Estes documentos são conservados de acordo com os prazos de conservação mencionados [supra]. Os referidos documentos só estão disponíveis para os membros do pessoal [do IDOC] e não constam do processo pessoal.

27.      Apenas a decisão disciplinar sancionatória é junta ao processo pessoal, circunstância que está em conformidade com o artigo 26.o, sexto parágrafo, do Estatuto. Assim, essa decisão apenas está acessível, no sistema eletrónico seguro utilizado pela Comissão para a gestão dos seus recursos humanos […], aos membros do pessoal que dispõem de direitos de acesso. A referida decisão mantém‑se aí durante [três] anos (no que respeita à advertência por escrito e à repreensão) ou [seis] anos, no que respeita a todas as outras sanções enumeradas no artigo 9.o, alíneas c) a h), do anexo IX do Estatuto.»

42      Há que examinar a acusação do recorrente relativa ao erro de direito alegadamente cometido pela AHCC tripartida por se ter baseado, no que diz respeito à reincidência, na primeira sanção, apesar de o pedido do recorrente, apresentado nos termos do artigo 27.o do anexo IX do Estatuto, no sentido de que fosse eliminada qualquer referência a tal sanção no seu processo individual, ter sido deferido.

43      Nos termos do artigo 27.o do anexo IX do Estatuto:

«Um funcionário punido com uma sanção disciplinar que não seja [o despedimento] pode, decorridos três anos, no caso de uma advertência por escrito ou repreensão, ou seis anos, no caso de qualquer outra sanção, requerer a eliminação de qualquer referência a tal sanção no seu processo individual. A entidade competente para proceder a nomeações decidirá se deve ser dado provimento a este requerimento.»

44      No caso em apreço, o recorrente apresentou, em 20 de janeiro de 2014, um pedido baseado no artigo 27.o do anexo IX do Estatuto, requerendo a eliminação de qualquer referência à primeira sanção no seu processo individual. Por Decisão de 28 de fevereiro de 2014, a Comissão deferiu o pedido do recorrente. Assim, eliminou do processo individual do recorrente qualquer referência à primeira sanção. Ora, na decisão impugnada, a AHCC tripartida baseou‑se nessa sanção, para efeitos de verificação da existência de reincidência, com vista a fixar a sanção que se afigurava mais adequada aos atos imputados ao recorrente (v. n.o 13, supra).

45      Por conseguinte, há que determinar em que medida, para concluir pela existência de reincidência, a Administração pode opor a um funcionário, ou invocar contra ele, uma decisão sancionatória à qual foi eliminada qualquer referência no seu processo individual.

46      A título preliminar, há que salientar que o artigo 26.o do Estatuto relativo ao processo individual do funcionário é aplicável aos agentes contratuais por força dos artigos 11.o e 81.o do ROA.

47      Nos termos do artigo 26.o, primeiro parágrafo, alínea a), do Estatuto, o processo individual do funcionário deve conter «todos os documentos relativos à sua situação administrativa e todos os relatórios referentes à sua competência, rendimento e comportamento».

48      Assim, foi declarado que uma decisão sancionatória adotada contra um funcionário, porque é relevante para a situação administrativa do mesmo, deve ser junta ao seu processo individual (Acórdão de 2 de abril de 1998, Apostolidis/Tribunal de Justiça, T‑86/97, EU:T:1998:71, n.o 36).

49      Há que sublinhar que tal decisão sancionatória tem uma incidência determinante na situação administrativa de um funcionário nos casos em que a autoridade disciplinar decida basear‑se nessa decisão, para efeitos de verificação da existência de reincidência, para, ao abrigo do disposto no artigo 10.o, alínea h), do anexo IX do Estatuto, impor ao funcionário uma nova sanção disciplinar mais severa. Daqui resulta que a mesma deve figurar no processo individual do referido funcionário.

50      Deve, além disso, recordar‑se que o artigo 26.o, segundo parágrafo, do Estatuto dispõe que «todos os elementos devem ser registados, numerados e classificados sequencialmente» no processo individual e que a instituição não pode «opor a um funcionário nem alegar contra ele [documentos relativos à sua situação administrativa], se dos mesmos não lhe tiver sido dado conhecimento antes de serem classificados».

51      Esta disposição, que institui uma proteção a favor do funcionário relativamente às ações que a Administração poderia empreender em relação a ele, tem um âmbito de aplicação alargado, uma vez que se aplica a «todos» os documentos «relativos à situação administrativa» do funcionário.

52      O mesmo se diga do artigo 26.o, sétimo parágrafo, do Estatuto, que prevê que «o funcionário» tem o direito de conhecer «o conjunto dos elementos» que constem do seu processo e de fazer cópia deles, «mesmo depois de terem cessado as suas funções».

53      Por fim, o artigo 26.o, sexto parágrafo, do Estatuto, especifica que não pode ser constituído «mais do que um processo para cada funcionário», regra que, juntamente com o registo, a numeração e classificação sequencial dos elementos (v. n.o 50, supra), facilita o acesso do funcionário aos documentos que lhe poderiam ser opostos, ou contra si invocados, evitando que esses documentos se dispersem por múltiplos processos.

54      Assim como resulta das considerações expostas nos n.os 47 a 53, supra, o artigo 26.o do Estatuto prevê um conjunto de garantias que visam proteger o funcionário, evitando que decisões tomadas pela Administração e que afetam a sua situação administrativa sejam fundadas em factos cuja existência resulte de documentos não mencionados no seu processo individual (v., nesse sentido, Acórdãos de 28 de junho de 1972, Brasseur/Parlamento, 88/71, EU:C:1972:58, n.os 10 e 11, e de 2 de abril de 1998, Apostolidis/Tribunal de Justiça, T‑86/97, EU:T:1998:71, n.o 33).

55      Tendo em conta o papel essencial do processo individual na proteção e na informação do funcionário, deve concluir‑se que uma decisão sancionatória, apesar de anteriormente junta ao processo individual do referido funcionário, não pode ser oposta a este ou invocada contra ele quando foi eliminada qualquer referência a essa decisão no referido processo.

56      Deve acrescentar‑se que uma decisão baseada em factos não mencionados no processo individual é contrária às garantias do Estatuto (v., nesse sentido, Acórdão de 9 de fevereiro de 1994, Lacruz Bassols/Tribunal de Justiça, T‑109/92, EU:T:1994:16, n.o 68 e jurisprudência aí referida).

57      Além disso, o direito conferido à Administração de se basear numa decisão sancionatória que foi eliminada do processo individual de um funcionário para concluir pela existência de reincidência na aceção do artigo 10.o do anexo IX do Estatuto equivaleria a privar de efeito útil, quanto a este ponto, o artigo 27.o desse anexo. Com efeito, o artigo 27.o do anexo IX do Estatuto permite que o funcionário peça que uma decisão sancionatória seja eliminada do seu processo individual, e deixa à Administração o poder de decidir se há que deferir esse pedido. Ao basear‑se nessa decisão sancionatória que, no entanto, fazendo uso do seu amplo poder de apreciação, decidiu retirar do processo individual do funcionário, a Administração está, na realidade, a reintegrar essa decisão no referido processo.

58      Por conseguinte, a autoridade disciplinar que, para efeitos de verificação da existência de reincidência, se baseia numa sanção disciplinar à qual foi eliminada qualquer referência no processo individual do funcionário em causa, depois de um pedido apresentado por esse funcionário ao abrigo das disposições do artigo 27.o do anexo IX do Estatuto ter sido deferido, viola os direitos que o Estatuto e, em especial, o seu artigo 26.o, garantem aos funcionários.

59      Daqui resulta que a Comissão, que tomou em consideração a primeira sanção disciplinar para determinar a gravidade da falta em causa e aplicar a segunda sanção disciplinar, violou o artigo 10.o, alínea h), do anexo IX do Estatuto, na medida em que a primeira sanção, à qual foi eliminada qualquer referência no processo individual do recorrente, já não lhe podia ser oposta a título de reincidência.

60      A conclusão que figura no n.o 59, supra, não é suscetível de ser posta em causa pelos argumentos invocados pela Comissão.

61      Em primeiro lugar, a Comissão sustenta que certas disposições do Estatuto podem ser interpretadas no sentido de que uma sanção disciplinar aplicada a um funcionário, desde que seja conservada no processo disciplinar, pode ser invocada contra esse funcionário apesar de ter sido eliminada qualquer referência à sua existência no processo individual do funcionário.

62      A Comissão invoca a este respeito as disposições do artigo 86.o do Estatuto, completadas pelo seu anexo IX. Todavia, não precisa em que medida essas disposições, interpretadas conjuntamente, permitiriam sustentar a sua argumentação.

63      A Comissão invoca igualmente a falta de indicação de um prazo no artigo 10.o, alínea h), do anexo IX do Estatuto, bem como a referência no referido artigo à conduta do funcionário «ao longo da sua carreira».

64      É verdade que, por força das disposições invocadas pela Comissão no n.o 63, supra, a autoridade disciplinar dispõe de uma ampla margem de apreciação para ter em conta a situação administrativa passada de um funcionário.

65      Todavia, estas disposições não fazem referência ao processo individual do funcionário. Por conseguinte, as mesmas não derrogam a regra, resultante das disposições do artigo 26.o do Estatuto, segundo a qual uma decisão sancionatória junta ao processo individual de um funcionário não lhe pode ser oposta, ou contra ele ser invocada, quando foi eliminada qualquer referência a essa decisão no referido processo (v. n.o 55, supra).

66      Por conseguinte, as disposições invocadas pela Comissão não podem ser interpretadas no sentido de que permitem à autoridade disciplinar tomar em consideração uma sanção anterior aplicada a um funcionário na hipótese de, em aplicação das disposições do artigo 27.o do anexo IX do Estatuto, ter sido eliminada qualquer referência a essa sanção no processo individual desse funcionário.

67      Por outro lado, o artigo 26.o, primeiro parágrafo, do Estatuto prevê a obrigação de inserir, no processo individual do funcionário, todos os elementos relativos à sua situação administrativa e todos os relatórios referentes à sua competência, rendimento ou comportamento. O artigo 26.o, sexto parágrafo, do Estatuto, por seu turno, enuncia a obrigação de não constituir mais do que um processo para cada funcionário. Importa acrescentar que o Estatuto e o ROA não se referem a nenhum processo diferente do processo individual do funcionário, com exceção do processo médico mencionado no artigo 26.o‑A do Estatuto.

68      Por conseguinte, o processo individual reveste um caráter único, que proíbe a existência, independentemente da forma que assuma, de qualquer outro conjunto de elementos que contenha documentos relativos à sua situação administrativa (Acórdão de 11 de outubro de 1995, Baltsavias/Comissão, T‑39/93 e T‑553/93, EU:T:1995:177, n.o 38).

69      É certo que a Administração pode criar um processo relativo a um inquérito e, sendo caso disso, ao processo disciplinar relativo a esse inquérito, como resulta, nomeadamente, das disposições do artigo 13.o, n.o 1, do anexo IX do Estatuto. Todavia, esse processo é criado apenas para efeitos do processo disciplinar em causa (v., nesse sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Apostolidis/Tribunal de Justiça, T‑86/97, EU:T:1998:71, n.o 36, e de 5 de outubro de 2009, J. A. de Brito Sequeira Carvalho/Comissão e Comissão/J. A. de Brito Sequeira Carvalho, T‑40/07 P e T‑62/07 P, EU:T:2009:382, n.o 96). Por conseguinte, os elementos e os documentos que esse processo contém, nomeadamente a eventual decisão sancionatória que põe termo ao processo, não podem ser opostos a um funcionário ou invocados contra ele fora do referido processo, salvo se tiverem sido juntos ao processo individual do referido funcionário.

70      Resulta das considerações expostas nos n.os 62 a 69, supra, que a Comissão não tem razão ao sustentar que determinadas disposições do Estatuto podem ser interpretadas no sentido de que uma sanção disciplinar adotada contra um funcionário e conservada no processo disciplinar deste é invocável contra esse funcionário apesar de ter sido eliminada qualquer referência a essa sanção no seu processo individual.

71      Em segundo lugar, para justificar a tomada em consideração da primeira sanção, para efeitos de verificação da existência de reincidência, na falta de qualquer referência a esta sanção no processo individual do recorrente, a Comissão invoca as disposições da «Lista Comum de Conservação dos processos da Comissão Europeia», que permitem a «conservação dos processos disciplinares durante 20 anos».

72      A «Lista Comum de Conservação dos processos da Comissão Europeia» foi adotada com base no artigo 6.o do anexo ao Regulamento Interno da Comissão, intitulado «Disposições sobre gestão de documentos», adotado por Decisão da Comissão, de 23 de janeiro de 2002, que altera o seu regulamento interno (JO 2002, L 21, p. 23).

73      Nos termos do artigo 6.o, sob a epígrafe «Conservação», do anexo ao regulamento interno da Comissão:

«[…]

As regras administrativas e as obrigações jurídicas determinam o prazo mínimo para a conservação dos documentos.

Compete às direções‑gerais ou serviços equiparados definirem a sua estrutura de organização interna no que respeita à conservação dos processos. O prazo mínimo para a conservação nos seus serviços terá em consideração a lista comum para toda a Comissão, elaborada de acordo com as modalidades de aplicação mencionadas no artigo 12.o»

74      A «Lista Comum de Conservação dos processos da Comissão Europeia» reveste a forma de um quadro no qual estão fixados os períodos de conservação de diferentes categorias de processos. Neste quadro, na linha 12.4.3, intitulada «Processo disciplinar», prevê‑se um período de conservação de 20 anos para as decisões que impõem medidas disciplinares.

75      Resulta das considerações expostas nos n.os 72 a 74, supra, que existe uma base jurídica que permite a conservação, durante um período de 20 anos, das decisões sancionatórias disciplinares.

76      Todavia, tendo em conta o princípio da hierarquia das normas (v., nesse sentido, Acórdão de 30 de janeiro de 2008, Strack/Comissão, T‑85/04, EU:T:2008:18, n.os 39 a 41), a «Lista Comum de Conservação dos processos da Comissão Europeia», porque se limita a estabelecer regras internas de aplicação de uma decisão adotada pela Comissão (v. n.o 72, supra), não é suscetível de pôr em causa as acima interpretadas disposições do Estatuto (v. n.o 67, supra), que é um regulamento que, por força do artigo 288.o CE, tem força obrigatória e caráter geral (v., nesse sentido, Acórdão de 14 de abril de 2005, Bélgica/Comissão, C‑110/03, EU:C:2005:223, n.o 33).

77      Além disso, a regulamentação em causa não tem por objetivo, contrariamente às disposições do artigo 26.o do Estatuto (v. n.os 47 a 54, supra), fixar as condições em que os documentos são oponíveis a um funcionário ou em que os mesmos podem ser invocados contra si. Como resulta do considerando 3 do anexo ao regulamento interno da Comissão, esta regulamentação visa «garantir que a Comissão possa prestar contas, em qualquer momento, das suas responsabilidades», o que implica que os documentos conservados «preservem a memória da instituição, facilitem a troca de informações, forneçam provas sobre as operações efetuadas e respondam às obrigações jurídicas que incumbem aos serviços». Esta regulamentação não pode, portanto, permitir à Comissão basear‑se, para efeitos de verificação da existência de reincidência, numa sanção anteriormente aplicada a um funcionário, mas à qual foi eliminada qualquer referência no processo individual do funcionário em causa.

78      Resulta de tudo o que precede que deve ser acolhida a alegação do recorrente relativa a um erro de direito cometido pela AHCC tripartida ao ter‑se baseado na primeira sanção, para efeitos de verificação da existência de reincidência, apesar de o pedido do recorrente no sentido de que fosse eliminada qualquer referência a essa sanção no seu processo individual ter sido deferido.

79      Importa salientar que tal erro na aplicação do artigo 10.o do anexo IX do Estatuto é suscetível de implicar a anulação da decisão impugnada.

80      Com efeito, por um lado, quando fixou a sanção a aplicar à luz dos nove critérios mencionados no artigo 10.o do anexo IX do Estatuto, a AHCC tripartida consagrou catorze números da decisão impugnada, concretamente os n.os 37 a 50, ao exame desses critérios. Ora, o critério da reincidência é, de entre estes, o que foi objeto da análise mais aprofundada, uma vez que cinco dos catorze números dizem exclusivamente respeito a esse critério.

81      Por outro lado, resulta de um dos excertos referidos no n.o 34, supra, que a AHCC tripartida considerou que os factos em causa nos dois processos eram comparáveis, tendo em conta, nomeadamente, o caráter «manifestamente fraudulento», em seu entender, dos atos imputados ao recorrente no momento da adoção da primeira sanção. Além disso, resulta do excerto referido no n.o 35, supra, que esta semelhança e, por conseguinte, a reiteração do comportamento do recorrente apesar da sanção que lhe tinha sido anteriormente aplicada foram consideradas pela AHCC tripartida como uma circunstância agravante que se revelou essencial na escolha da sanção.

82      Por conseguinte, a tomada em consideração da primeira sanção pela AHCC tripartida exerceu uma influência determinante na escolha da sanção aplicada. Assim sendo, o erro de direito acima constatado no n.o 78, que conduziu a AHCC tripartida a ter em conta, erradamente, a primeira sanção, para efeitos de verificação da existência de reincidência, deve conduzir à anulação da decisão impugnada.

83      Há, portanto, que anular a decisão impugnada sem que seja necessário, por um lado, examinar as outras acusações e os outros fundamentos invocados pelo recorrente e, por outro, decidir da admissibilidade dos documentos apresentados pelas partes na audiência e após esta última (v. n.os 20 a 22, supra).

 Quanto às despesas

84      Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão sido vencida, há que condená‑la nas despesas, em conformidade com os pedidos do recorrente.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Sétima Secção)

decide:

1)      É anulada a Decisão da Comissão Europeia de 21 de agosto de 2019 de aplicar a IP uma sanção disciplinar de resolução sem aviso prévio do seu contrato de trabalho.

2)      A Comissão é condenada nas despesas.

da Silva Passos

Reine

Truchot

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 6 de outubro de 2021.

Assinaturas


*      Língua do processo: francês.