Language of document : ECLI:EU:C:2019:456

Processos apensos C508/18 e C82/19 PPU

OG

e

PI

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pela Supreme Court e pela High Court (Irlanda)]

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 27 de maio de 2019

«Reenvio prejudicial — Tramitação prejudicial urgente — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Artigo 6.°, n.° 1 — Conceito de “autoridade judiciária de emissão” — Mandado de detenção europeu emitido pela procuradoria de um Estado‑Membro — Estatuto — Existência de um vínculo de subordinação em relação a um órgão do poder executivo — Poder de instrução individual do Ministro da Justiça — Falta de garantia de independência»

1.        Cooperação policial — Cooperação judiciária em matéria penal — Decisãoquadro relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os EstadosMembros — Conceito de “autoridade judiciária de emissão” na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da decisãoquadro — Autoridades não jurisdicionais de um EstadoMembro que participam na administração da justiça penal desse EstadoMembro — Inclusão — Conceito de autoridade que participa na administração da justiça penal — Procuradoria competente para exercer uma ação penal contra uma pessoa suspeita de ter cometido uma infração penal — Inclusão

(DecisãoQuadro 2002/584 do Conselho, conforme alterada pela DecisãoQuadro 2009/299, artigos 1.°, n.° 1, e 6.°, n.° 1)

(cf. n.os 49‑63)

2.        Cooperação policial — Cooperação judiciária em matéria penal — Decisãoquadro relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os EstadosMembros — Conceito de “autoridade judiciária de emissão” na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da decisãoquadro — Procuradoria competente para exercer uma ação penal contra uma pessoa suspeita de ter cometido uma infração penal — Inclusão — Requisitos — Necessária independência desta autoridade em relação ao poder executivo — Necessária sujeição da decisão de emitir um mandado de detenção europeu a um possível recurso judicial

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 6.°; DecisãoQuadro 2002/584 do Conselho, conforme alterada pela DecisãoQuadro 2009/299, artigos 1.°, n.° 3, e 6.°, n.° 1)

(cf. n.os 67‑75, 88, 90 e disp.)


Resumo

As procuradorias alemãs não oferecem uma garantia de independência suficiente em relação ao poder executivo para poderem emitir um mandado de detenção europeu

Em contrapartida, o ProcuradorGeral da Lituânia oferece essa garantia de independência

Nos processos apensos que deram origem ao Acórdão OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU), proferido em 27 de maio de 2019, o Tribunal de Justiça, reunido em formação de Grande Secção, declarou que o conceito de «autoridade judiciária de emissão» na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI (1), autoridade que é competente para emitir um mandado de detenção europeu, não visa as procuradorias de um Estado‑Membro que correm o risco de estar sujeitas, direta ou indiretamente, a ordens ou instruções individuais por parte do poder executivo, como um Ministro da Justiça, no âmbito da adoção de uma decisão relativa à emissão de um mandado de detenção europeu. Pelo contrário, no Acórdão PF (Procurador‑Geral da Lituânia) (C‑509/18), proferido igualmente em Grande Secção na mesma data, o Tribunal de Justiça declarou que este mesmo conceito visa o procurador‑geral de um Estado‑Membro que, sendo estruturalmente independente do poder judicial, é competente para exercer a ação penal, e cujo estatuto, nesse Estado‑Membro, lhe confere uma garantia de independência relativamente ao poder executivo no âmbito da emissão de um mandado de detenção europeu.

Nestes diferentes processos estava em causa a execução, na Irlanda, de mandados de detenção europeus emitidos por procuradorias alemãs para efeitos de ação penal instaurada, respetivamente, contra um nacional lituano (processo OG) e contra um nacional romeno (processo PI), bem como de um mandado de detenção europeu emitido pelo Procurador‑Geral da Lituânia para efeitos de ação penal contra um nacional lituano (processo PF).

Em cada um destes acórdãos, o Tribunal de Justiça recordou, antes de mais, que o conceito de «autoridade judiciária» na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 requer uma interpretação autónoma e que este conceito não se limita a designar apenas os juízes ou órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro, devendo entender‑se que designam, de forma mais abrangente, as autoridades que participam na administração da justiça penal deste Estado‑Membro, por oposição, designadamente, aos ministérios ou autoridades policiais, que fazem parte do poder executivo. Assim, este conceito é suscetível de abranger as autoridades de um Estado‑Membro que, sem serem necessariamente juízes ou órgãos jurisdicionais, participem na administração da justiça penal deste Estado‑Membro. A este respeito, na medida em que o mandado de detenção europeu facilita a livre circulação das decisões judiciais, anteriores à sentença, relativas ao exercício da ação penal, há que considerar que as autoridades que, ao abrigo do direito nacional, são competentes para adotar essas decisões podem ser abrangidas pelo âmbito de aplicação da Decisão‑Quadro 2002/584. Por conseguinte, uma autoridade, como uma procuradoria ou um procurador, que dispõe da competência, no âmbito do processo penal, para o exercício da ação penal contra uma pessoa suspeita de ter cometido uma infração penal, para que seja demandada num órgão jurisdicional, deve ser considerada participante na administração da justiça do Estado‑Membro em causa, o que o Tribunal de Justiça considera ser o caso, respetivamente, das procuradorias na Alemanha (processos OG e PI) e do Procurador‑Geral da Lituânia (processo PF).

Em seguida, o Tribunal de Justiça recordou que o sistema do mandado de detenção europeu inclui uma proteção em dois níveis dos direitos em matéria processual e dos direitos fundamentais de que deve beneficiar a pessoa procurada. À proteção judicial prevista no primeiro nível, aquando da adoção de uma decisão nacional, como um mandado de detenção nacional, acresce a que deve ser assegurada ao segundo nível, no momento da emissão do mandado de detenção europeu. No que se refere a uma medida que, tal como a emissão de um mandado de detenção europeu, pode afetar o direito à liberdade da pessoa em causa, consagrado no artigo 6.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, esta proteção implica que uma decisão que cumpra as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva seja adotada, pelo menos, num dos dois níveis da referida proteção. Por conseguinte, quando o direito do Estado‑Membro de emissão atribui a competência para emitir um mandado de detenção europeu a uma autoridade que, embora participando na administração da justiça desse Estado‑Membro, não é um juiz ou um órgão jurisdicional, a decisão judicial nacional, como um mandado de detenção nacional, em que se baseia o mandado de detenção europeu, deve, por sua vez, cumprir essas exigências. Para o Tribunal de Justiça, essa solução permite garantir à autoridade judiciária de execução que a decisão de emitir um mandado de detenção europeu para efeitos de ação penal se baseia num processo nacional sujeito a uma fiscalização jurisdicional e que a pessoa que foi objeto desse mandado de detenção nacional beneficiou de todas as garantias próprias da adoção desse tipo de decisões.

O segundo nível de proteção implica, por sua vez, que a autoridade judiciária competente, nos termos do direito nacional, para emitir um mandado de detenção europeu fiscalize, em especial, o cumprimento das condições necessárias a esta emissão e analise a questão de saber se, à luz das especificidades de cada caso, a referida emissão reveste um caráter proporcionado. Além disso, a autoridade judiciária de emissão deve poder assegurar à autoridade judiciária de execução que, à luz das garantias dadas pela ordem jurídica do Estado‑Membro de emissão, atua de forma independente no exercício das suas funções inerentes à emissão de um mandado de detenção europeu. Mais especificamente, esta independência exige que existam regras estatutárias e organizativas adequadas para garantir que a autoridade judiciária de emissão, no âmbito da adoção de uma decisão de emissão desse mandado de detenção, não corra qualquer risco de estar sujeita nomeadamente a uma instrução individual da parte do poder executivo. Por último, quando o direito do Estado‑Membro de emissão atribui a competência para emitir um mandado de detenção europeu a uma autoridade que, embora participando na administração da justiça desse Estado‑Membro, não é ela mesma um órgão jurisdicional, a decisão de emitir esse mandado de detenção e, nomeadamente, o caráter proporcionado dessa decisão devem poder estar sujeitos, no referido Estado‑Membro, a um recurso judicial que cumpra plenamente as exigências inerentes a uma proteção judicial efetiva.


1      Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1).