Language of document : ECLI:EU:C:2024:134

DESPACHO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

6 de fevereiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 99.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça — Resposta que pode ser claramente deduzida da jurisprudência — Imposto sobre veículos — Veículos usados provenientes de outros Estados‑Membros — Percentagens de redução associadas à desvalorização comercial — Cálculo com base numa componente cilindrada e numa componente ambiental — Aplicação de percentagens de redução diferentes a cada componente do imposto»

No processo C‑399/23 [Osóquim] (i),

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) (Portugal), por Decisão de 23 de junho de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de junho de 2023, no processo

MB

contra

Autoridade Tributária e Aduaneira,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: N. Piçarra, presidente de secção, N. Jääskinen (relator) e M. Gavalec, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de decidir por despacho fundamentado, nos termos do artigo 99.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça,

profere o presente

Despacho

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 110.° TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe MB à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal) (a seguir «Autoridade Tributária») a respeito da taxa do imposto sobre veículos (a seguir «ISV») que incide sobre dois veículos automóveis provenientes da Bélgica que MB introduziu no território português.

 Quadro jurídico

3        O artigo 2.°, n.° 1, alínea a), do Código do Imposto sobre Veículos, na redação resultante das alterações introduzidas pela Lei n.° 75‑B/2020, de 31 de dezembro (a seguir «CISV»), dispõe:

«Estão sujeitos ao [ISV] os seguintes veículos:

a)      Automóveis ligeiros de passageiros, considerando‑se como tais os automóveis com peso bruto até 3 500 kg e com lotação não superior a nove lugares, incluindo o do condutor, que se destinem ao transporte de pessoas.»

4        O artigo 3.°, n.° 1, do CISV prevê:

«São sujeitos passivos do [ISV] os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares, tal como definidos pelo presente código, que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando‑se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira de veículos.»

5        Nos termos do artigo 5.° do CISV:

«1 — Constitui facto gerador do [ISV] o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal.

[…]

3 — Para efeitos do presente código entende‑se por:

a)      “Admissão”, a entrada de um veículo originário ou em livre prática noutro Estado‑Membro da União Europeia em território nacional;

[...]»

6        Resulta do artigo 7.°, n.° 1, alíneas a) e b), do CISV que as taxas de ISV, previstas na tabela A constante deste artigo, são estabelecidas tendo em conta a componente cilindrada e ambiental dos veículos automóveis.

7        O artigo 11.° do CISV, sob a epígrafe «Taxas — veículos usados», enuncia:

«1 — O [ISV] incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados‑Membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, incluindo‑se o agravamento previsto no n.° 3 do artigo 7.°, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida útil média remanescente dos veículos, respetivamente:

TABELA D

Componente cilindrada

Tempo de uso

Percentagem de redução

Até 1 ano

10

Mais de 1 a 2 anos

20

[...]

[...]

Mais de 10 anos

80


Componente ambiental

Tempo de uso

Percentagem de redução

Até 2 anos

10

Mais de 2 a 4 anos

20

[...]

[...]

Mais de 15 anos

80


2 — Para efeitos de aplicação do número anterior, entende‑se por “tempo de uso” o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respetivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.

[...]»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

8        MB introduziu em Portugal dois veículos automóveis provenientes da Bélgica e com as primeiras matrículas registadas neste último Estado‑Membro. Procedeu à declaração aduaneira desses veículos, com base na qual a Autoridade Tributária liquidou o ISV pelo valor de 13 687,77 euros.

9        MB pagou esse montante e apresentou um pedido de decisão arbitral em matéria tributária contra a Autoridade Tributária no Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) (Portugal), que é o órgão jurisdicional de reenvio. Pediu, a título principal, a declaração da ilegalidade e a anulação parcial das liquidações de ISV incorporadas nas declarações aduaneiras dos veículos em causa pelo montante de 1 990,58 euros. A título acessório, pediu a condenação na restituição do quantitativo de imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios.

10      Em apoio do seu pedido, MB sustenta que a parcela de ISV liquidado correspondente à componente ambiental deste imposto foi calculada em aplicação de uma norma de direito interno que é incompatível com o disposto no artigo 110.° TFUE. Com efeito, as percentagens de redução aplicadas a esta componente são inferiores às que são aplicadas à componente cilindrada, mantendo assim um tratamento desigual entre estas duas componentes do ISV. Por conseguinte, o montante de imposto, calculado sem tomar em consideração a depreciação real do veículo, excede o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados em território nacional.

11      Por seu turno, a Autoridade Tributária sustenta que a legislação nacional, na redação aplicável na presente causa, não tem nenhuma incompatibilidade com o artigo 110.° TFUE. Salienta que, no Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Portugal (Imposto sobre veículos) (C‑169/20, EU:C:2021:679), embora tenha considerado que a depreciação de um veículo usado tem de ser tida em conta na componente ambiental do ISV, o Tribunal de Justiça não entendeu, porém, que a percentagem de redução deste a aplicar à cilindrada tenha de ser a mesma que a aplicada à componente ambiental deste imposto. Dessa forma, o artigo 11.°, n.° 1, do CISV, porquanto prevê que os veículos usados provenientes de outros Estados‑Membros beneficiem de uma redução sobre a componente ambiental do ISV, cumpre a jurisprudência do Tribunal de Justiça e incorpora as preocupações levantadas pela Comissão Europeia no passado.

12      O órgão jurisdicional de reenvio considera que, não obstante a jurisprudência do Tribunal de Justiça acima referida e em face da constante evolução legislativa do direito português neste domínio, continua a verificar‑se uma ausência de diretrizes claras e inequívocas por parte do Tribunal de Justiça quanto à compatibilidade com o direito da União do regime interno de determinação do ISV devido pela admissão no mercado português de veículos automóveis provenientes de outros Estados‑Membros.

13      Nestas circunstâncias, o Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«No âmbito do cálculo do [ISV] previsto no [CISV], o n.° 1 do artigo 11.° deste [Código], ao não desvalorizar a componente ambiental na mesma proporção e nos mesmos termos em que o faz em relação à componente cilindrada no cálculo do valor de imposto aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, é incompatível com o artigo 110.° do TFUE?»

 Quanto à questão prejudicial

14      Nos termos do artigo 99.° do seu Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça pode, a qualquer momento, mediante proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, decidir pronunciar‑se por meio de despacho fundamentado, quando a resposta a uma questão submetida a título prejudicial possa ser claramente deduzida da jurisprudência.

15      Importa também recordar que a cooperação judiciária instituída pelo artigo 267.° TFUE se baseia numa clara separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça. Por um lado, o Tribunal de Justiça não está habilitado a aplicar as regras do direito da União a um caso determinado, mas apenas a pronunciar‑se sobre a interpretação dos Tratados e dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União (v., neste sentido, Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» e o., C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.° 201 e jurisprudência referida). Por outro lado, em conformidade com o ponto 11 das Recomendações do Tribunal de Justiça da União Europeia à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (JO 2019, C 380, p. 1), cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais retirar, no litígio neles pendente, as consequências concretas dos elementos de interpretação fornecidos pelo Tribunal de Justiça (v., neste sentido, Acórdão de 25 de outubro de 2018, Roche Lietuva, C‑413/17, EU:C:2018:865, n.° 43).

16      No caso em apreço, o Tribunal de Justiça considera que a interpretação do direito da União solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio pode ser claramente deduzida do Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Portugal (Imposto sobre veículos) (C‑169/20, EU:C:2021:679). Por conseguinte, há que aplicar o artigo 99.° do Regulamento de Processo na presente causa.

17      Como resulta do n.° 15 deste despacho, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio retirar as consequências concretas, no litígio no processo principal, dos elementos de interpretação que decorrem desta jurisprudência do Tribunal de Justiça.

18      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 110.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que não tem em conta, para efeitos do cálculo do montante de um imposto sobre veículos, quando é aplicado a um veículo usado proveniente de outro Estado‑Membro, a desvalorização da componente ambiental desse imposto na mesma proporção e nos mesmos termos em que o faz em relação à componente cilindrada do referido imposto.

19      A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, no Acórdão de 2 de setembro de 2021, Comissão/Portugal (Imposto sobre Veículos) (C‑169/20, EU:C:2021:679):

«35      [A] cobrança, por um Estado‑Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro é contrária ao artigo 110.° TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal, C‑200/15, [...] EU:C:2016:453, n.° 25 e jurisprudência referida).

[...]

38      [O] Tribunal de Justiça especificou que, a partir do momento em que se paga um imposto de matrícula num Estado‑Membro, o montante desse imposto é incorporado no valor do veículo. Deste modo, quando um veículo matriculado no Estado‑Membro em causa é, em seguida, vendido como veículo usado nesse mesmo Estado‑Membro, o seu valor de mercado, que inclui o montante residual do imposto de matrícula, será igual a uma percentagem, determinada pela desvalorização desse veículo, do seu valor inicial (Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.° 40 e jurisprudência referida).

[...]

44      [O] Tribunal de Justiça já teve oportunidade de sublinhar que o artigo 110.° TFUE se opõe a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da “classificação ambiental” dos veículos, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados‑Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado‑Membro de importação (Acórdão de 5 de outubro de 2006, Nádashi e Németh, C‑290/05 e C‑333/05, EU:C:2006:652, n.os 56 e 57).

45      Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que o objetivo de proteção do ambiente poderia ser realizado de forma mais completa e coerente fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado‑Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados‑Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor‑pagador (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.° 60).

46      Em contrapartida, um imposto calculado em função do potencial de poluição de um veículo usado, que, à semelhança do imposto em causa, só é integralmente cobrado no momento da importação e da entrada em circulação de um veículo usado proveniente de outro Estado‑Membro, ao passo que o adquirente de um desses veículos já presente no mercado do Estado‑Membro em causa só tem de suportar o montante do imposto residual incorporado no valor comercial do veículo que adquire, é contrário ao artigo 110.° TFUE.»

20      Cabe assim ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, no momento da introdução no consumo em Portugal de um veículo usado proveniente de outro Estado‑Membro, a aplicação do ISV conduz a que o imposto que incide sobre o referido veículo usado exceda o montante residual do referido imposto incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados em território nacional, criando, assim, o risco de favorecer a venda de veículos usados nacionais e de desencorajar a introdução de veículos usados similares neste território. Para o efeito, deverá determinar se a aplicação de uma percentagem de redução da componente ambiental do ISV diferente da aplicada à componente cilindrada deste imposto conduz a favorecer a venda de veículos usados nacionais.

21      Atendendo a todos os fundamentos anteriores, há que responder à questão submetida que o artigo 110.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que não tem em conta, para efeitos do cálculo do montante de um imposto sobre veículos, quando é aplicado a um veículo usado proveniente de outro Estado‑Membro, a desvalorização da componente ambiental deste imposto na mesma proporção e nos mesmos termos em que o faz em relação à componente cilindrada do referido imposto se, e na medida em que, o montante do imposto cobrado sobre o referido veículo importado exceder o montante do valor residual do imposto incorporado no valor dos veículos nacionais similares presentes no mercado nacional de veículos usados.

 Quanto às despesas

22      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

O artigo 110.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que não tem em conta, para efeitos do cálculo do montante de um imposto sobre veículos, quando é aplicado a um veículo usado proveniente de outro EstadoMembro, a desvalorização da componente ambiental deste imposto na mesma proporção e nos mesmos termos em que o faz em relação à componente cilindrada do referido imposto se, e na medida em que, o montante do imposto cobrado sobre o referido veículo importado exceder o montante do valor residual do imposto incorporado no valor dos veículos nacionais similares presentes no mercado nacional de veículos usados.


Assinaturas


*      Língua do processo: português.


i      O nome do presente processo é um nome fictício. Não corresponde ao nome verdadeiro de nenhuma das partes no processo.