Language of document : ECLI:EU:C:2024:340

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

18 de abril de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Valores e objetivos da União Europeia — Artigo 2.o TUE — Estado de direito — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Jurisdição independente e imparcial — Reorganização das competências jurisdicionais num Estado‑Membro — Extinção de um tribunal criminal especial — Inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial»

No processo C‑634/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária), por Decisão de 28 de setembro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 10 de outubro de 2022, no processo penal contra

OT,

PG,

CR,

VT,

MD,

sendo interveniente:

Sofyiska gradska procuratura,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: C. Lycourgos (relator), presidente de secção, O. Spineanu‑Matei, J.‑C. Bonichot, S. Rodin e L. S. Rossi, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo Polaco, por B. Majczyna e S. Żyrek, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por K. Herrmann, E. Rousseva e P. J. O. Van Nuffel, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 23 de novembro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, do artigo 6.o, n.os 1 e 3, e do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lidos em conjugação com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), bem como do princípio do primado do direito da União.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra cinco pessoas por factos qualificados de criminalidade organizada.

 Quadro jurídico

3        O n.o 43 das disposições transitórias e finais da zakon za izmenenie i dopalnanie na Zakona za sadebnata vlast (Lei que Altera e Complementa a Lei Judiciária) (DV n.o 32, de 26 de abril de 2022, a seguir «ZIDZSV») dispõe:

«A partir da entrada em vigor da presente lei, o Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial, Bulgária)], o Apelativen Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial de Recurso, Bulgária)], a Spetsializirana prokuratura [(Procuradoria Especial, Bulgária)] e a Apelativna Spetsializirana prokuratura [(Procuradoria Especial de Recurso, Bulgária) são extintos].»

4        O n.o 44 destas disposições transitórias e finais enuncia:

«(1)      Os juízes do Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial)] e do Apelativen Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial de Recurso)] são reafetados nas condições e segundo o procedimento previsto no artigo 194.o, n.o 1.

2.      No prazo de catorze dias a contar da promulgação da presente lei, as pessoas referidas no n.o 1 podem apresentar ao Coletivo dos Juízes do Conselho Superior da Magistratura um pedido no sentido de que desejam ser reintegradas na função de juiz que ocupavam antes da sua nomeação para o Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial)] e para o Apelativen Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial de Recurso)], consoante o caso.

3.      No prazo de trinta dias a contar do fim do prazo referido no n.o 2, o Coletivo dos Juízes do Conselho Superior da Magistratura adota uma decisão sobre a criação de lugares de juízes nos tribunais que correspondam aos que são extintos no Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial)] e no Apelativen Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial de Recurso)], tendo em conta o volume de trabalho dos tribunais em causa. Um quarto, no máximo, dos juízes do Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial)] extinto e um terço, no máximo, dos juízes do Apelativen Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial de Recurso)] extinto são reafetados ao mesmo tribunal.

4.      Depois de terminado o prazo previsto no n.o 3, o Coletivo dos Juízes do Conselho Superior da Magistratura reafeta os juízes a contar da entrada em vigor da presente lei.

5.      As decisões do Coletivo dos Juízes do Conselho Superior da Magistratura a que se refere o n.o 4 são imediatamente executórias.»

5        O n.o 49 das referidas disposições transitórias e finais prevê:

«Os processos penais de primeira instância no Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial)] nos quais não tenha havido nenhuma audiência preliminar antes da entrada em vigor da presente lei são remetidos aos tribunais competentes no prazo de sete dias que se seguem à entrada em vigor da presente lei.»

6        O n.o 50 das mesmas disposições transitórias e finais tem a seguinte redação:

«(1)      A partir da entrada em vigor da presente lei, os processos penais de primeira instância pendentes no Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial)] no âmbito dos quais foi realizada uma audiência preliminar são da competência do Sofiyski gradski sad [(Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária)] e o seu exame é retomado pela formação de julgamento que realizou a audiência.

(2)      Os juízes das formações de julgamento que não foram reafetados ao Sofiyski gradski sad [(Tribunal da cidade de Sófia)] são destacados para participar no exame dos processos até ao termo da tramitação.

3.      Os juízes da formação que examinaram os processos penais de primeira instância nos quais uma decisão foi proferida são destacados a fim de fundamentar a decisão, quando não tenham sido reafetados ao Sofiyski gradski sad [(Tribunal da cidade de Sófia)].

[…]»

7        Nos termos do n.o 59 das disposições finais e transitórias da ZIDZSV:

«1)      O Sofiyski gradski sad [(Tribunal da cidade de Sófia)] é o sucessor do ativo, do passivo, dos direitos e das obrigações do Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial)].

2.      O Apelativen sad Sofia [(Tribunal de Recurso de Sófia, Bulgária)] é o sucessor do ativo, do passivo, dos direitos e obrigações do Apelativen Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial de Recurso)].»

 Tramitação no processo principal e questões prejudiciais

8        Desde 12 de julho de 2019, OT, PG, CR, VT e MD foram acusados, inicialmente no Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) e, desde a sua extinção, no Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia), por terem feito parte de uma organização criminosa que leva a cabo atividades de extorsão concertada.

9        O Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) e o Apelativen Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial de Recurso) (a seguir, em conjunto, «jurisdições penais especiais») foram criados pelo legislador búlgaro em 2011. Inicialmente, estas jurisdições penais especiais apenas tinham competência para conhecer das infrações penais cometidas por grupos criminosos organizados. A sua competência foi posteriormente alargada às «infrações contra a República [da Bulgária]» e às infrações de corrupção que digam respeito a pessoas que ocupam cargos públicos de alto nível.

10      Por força da ZIDZSV, as jurisdições penais especiais foram extintas a partir de 28 de julho de 2022.

11      A ZIDZSV prevê que, a contar dessa data, o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia) e o Apelativen sad Sofia (Tribunal de Recurso de Sófia) são os sucessores, respetivamente, do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) e do Apelativen Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial de Recurso).

12      Resulta da exposição de motivos da ZIDZSV que tais alterações estruturais e organizacionais têm por objetivo garantir o princípio constitucional da independência do poder judicial e a defesa dos direitos constitucionais dos cidadãos, uma vez que as jurisdições penais especiais não alcançaram, ao longo dos seus dez anos de atividade, os objetivos que lhes tinham sido fixados quando da sua criação e a mistura dos critérios materiais e pessoais de especialização que definem a competência destas jurisdições suscitaram questões quanto à independência destes últimos.

13      Em conformidade com o n.o 50 das disposições transitórias e finais da ZIDZSV, os processos, como o processo principal, nos quais foi realizada uma audiência preliminar antes da entrada em vigor da ZIDZSV, devem ser levados a termo pela formação de julgamento que realizou essa audiência, não obstante a extinção das jurisdições penais especiais. Para o efeito, o legislador búlgaro previu a transferência desses processos para o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia) e para o Apelativen sad Sofia (Tribunal de Recurso de Sófia), a alteração do mandato dos jurados que neles participam para que estes sejam considerados jurados nestas últimas jurisdicções e o destacamento, nestas jurisdições, dos magistrados das jurisdições penais especiais que não foram reafetados.

14      No caso em apreço, a secção do Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia), que é atualmente competente para conhecer do processo principal, é assim composta da mesma forma que a secção do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial), que era, antes da extinção desta última jurisdição, competente para conhecer desse processo.

15      Com base nas observações precedentes, o órgão jurisdicional de reenvio salienta, em primeiro lugar, que, em 25 de fevereiro de 2022, estando a decorrer o processo de consulta pública relativo ao projeto de lei que conduziu à adoção da ZIDZSV, a advogada de OT, na qualidade de representante de uma organização não governamental, manifestou‑se publicamente a favor da extinção do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial), pelo facto de essa jurisdição penal especial não permitir garantir a condução de um processo equitativo.

16      Porém, mesmo depois da adoção da ZIDZSV, nenhum pedido de escusa foi apresentado por OT. O órgão jurisdicional de reenvio também não encontra motivo para se escusar quando considera que não existe parcialidade subjetiva da sua parte em relação ao processo ou às partes no processo principal.

17      Uma declaração pública como a da advogada de OT suscita, porém, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, uma preocupação legítima quanto à sua independência e à sua imparcialidade. O mesmo se diga quanto aos motivos apresentados pelo legislador búlgaro para justificar a extinção das jurisdições penais especiais, uma vez que esses motivos põem em causa a independência não só da secção que conheceu do processo penal instaurado contra OT, mas de todo o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial).

18      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio manifesta as suas dúvidas quanto à compatibilidade dos referidos motivos com o direito da União.

19      Assim, salienta que, até à adoção da ZIDZSV, era pacífico que o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) cumpria as exigências do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE e do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta.

20      Além disso, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, os motivos adiantados pelo legislador búlgaro para chegar à conclusão de que as jurisdições penais especiais não eram independentes e não protegiam os direitos constitucionais dos cidadãos, nunca se basearam em provas concretas, quando tais motivos deveriam ter sido adequadamente fundamentados.

21      Em terceiro e último lugar, este órgão jurisdicional interroga‑se sobre se, tendo em conta os motivos que justificaram a extinção do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial), pode continuar a conhecer dos processos nele instaurados e, caso não se escuse, quais seriam as consequências para as decisões que viesse a adotar.

22      Nestas circunstâncias, o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Devem o artigo 2.o, o artigo 6.o, n.os 1 e 3, e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 47.o da [Carta], ser interpretados no sentido de que a extinção de um órgão jurisdicional na sequência de uma alteração da [ZIDZSV] põe em causa a independência desse órgão jurisdicional, tendo em conta que os juízes desse órgão jurisdicional devem continuar a apreciar, até à [data da extinção desse órgão jurisdicional] e mesmo posteriormente, os processos pendentes [no referido órgão jurisdicional] em que já tenha havido audiência preliminar, quando a justificação para a extinção do órgão jurisdicional seja que esta medida permite salvaguardar o respeito do princípio constitucional da independência do poder judicial e proteger os direitos constitucionais dos cidadãos, sem, no entanto, serem expostos adequadamente os factos que levam a concluir que [esse princípio foi violado]?

2)      Devem as referidas disposições do direito da União ser interpretadas no sentido de que se opõem a disposições nacionais como as da [ZIDZSV] que, pelos motivos invocados, levaram à extinção total de uma autoridade judiciária independente da Bulgária (o Tribunal Criminal Especial) e à transferência dos seus juízes (incluindo o juiz da formação que conhece do processo penal em concreto) para vários outros órgãos jurisdicionais, mas obriga esses juízes a retomarem a tramitação dos processos já pendentes e por eles instaurados no órgão jurisdicional extinto?

3)      Em caso de resposta afirmativa, e tendo igualmente em conta o primado do direito da União, que atos processuais devem ser realizados pelos juízes dos órgãos jurisdicionais recém‑extintos nos processos do órgão jurisdicional extinto (que, por lei, devem ser concluídos), tendo em conta também a sua obrigação de apreciar com o maior rigor se devem pedir escusa nesses processos com fundamento em parcialidade? Que consequências daí decorreriam para as decisões processuais do órgão jurisdicional recém‑extinto, no que respeita aos processos que devem ser concluídos e aos atos jurídicos que põem termo a esses processos?»

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

23      O Governo Polaco alega, em substância, que as problemáticas relativas à organização judiciária dos Estados‑Membros, como as que são suscitadas pelas questões prejudiciais, são da competência exclusiva destes últimos e não do âmbito de aplicação material do direito da União.

24      A este respeito, resulta de jurisprudência constante que, embora a organização judiciária nos Estados‑Membros seja da competência destes últimos, a verdade é que, no exercício desta competência, os Estados‑Membros estão obrigados a respeitar as obrigações que para eles decorrem do direito da União [Acórdãos de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 75, e de 9 de janeiro de 2024, G. e o. (Nomeação dos juízes de direito comum na Polónia), C‑181/21 e C‑269/21, EU:C:2024:1, n.o 57 e jurisprudência referida].

25      Além disso, resulta claramente dos termos das questões submetidas que estas não têm por objeto a interpretação do direito búlgaro, mas das disposições do direito da União que essas questões visam.

26      Daqui resulta que o Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar sobre o pedido de decisão prejudicial.

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

27      O Governo Polaco considera que, uma vez que o processo principal não apresenta nenhum elemento de conexão com o direito da União, as questões prejudiciais devem ser declaradas inadmissíveis.

28      A Comissão Europeia considera igualmente que estas questões são inadmissíveis, uma vez que as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio são hipotéticas na medida em que este não menciona nenhuma razão subjetiva para se escusar e que as partes no processo principal não põem em causa a sua imparcialidade objetiva. Além disso, as referidas questões carecem de pertinência para a solução do processo principal, uma vez que as alterações estruturais e organizacionais operadas pela ZIDSZV dizem unicamente respeito ao Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) e não ao órgão jurisdicional de reenvio.

29      Segundo jurisprudência constante, compete exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional chamado a decidir do litígio no processo principal, que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades desse litígio, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Daqui resulta que as questões submetidas pelos órgãos jurisdicionais nacionais gozam de presunção de pertinência e o Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre essas questões se for manifesto que a interpretação solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, se o problema for hipotético ou ainda se o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às referidas questões (v., nomeadamente, Acórdão de 21 de dezembro de 2023, European Superleague Company, C‑333/21, EU:C:2023:1011, n.o 64 e jurisprudência referida).

30      Com efeito, como resulta dos próprios termos do artigo 267.o TFUE, a decisão prejudicial solicitada deve ser «necessária» para permitir ao órgão jurisdicional de reenvio proceder «ao julgamento da causa» no processo que lhe tenha sido submetido [Acórdão de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documento), C‑510/19, EU:C:2020:953, n.o 27 e jurisprudência referida].

31      Assim, o Tribunal de Justiça recordou que resulta simultaneamente dos termos e da sistemática do artigo 267.o TFUE que o processo de reenvio prejudicial pressupõe, nomeadamente, que esteja efetivamente pendente um litígio nos órgãos jurisdicionais nacionais, no âmbito do qual estes são chamados a proferir uma decisão suscetível de tomar em consideração o acórdão prejudicial. No âmbito de um processo dessa natureza, deve existir entre o referido litígio e as disposições do direito da União cuja interpretação é solicitada um nexo de ligação tal que essa interpretação responda a uma necessidade objetiva para a decisão que o órgão jurisdicional de reenvio tem de tomar [Acórdão de 9 de janeiro de 2024, G. e o. (Nomeação dos juízes de direito comum na Polónia), C‑181/21 e C‑269/21, EU:C:2024:1, n.os 64 e 65 e jurisprudência referida].

32      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, o artigo 6.o, n.os 1 e 3, e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 47.o da Carta, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que os membros de um órgão jurisdicional que foi extinto por um Estado‑Membro a fim de preservar o princípio constitucional da independência do poder judicial e a defesa dos direitos constitucionais dos cidadãos possam continuar a conhecer, enquanto membros do órgão jurisdicional que sucedeu ao órgão jurisdicional assim extinto, de alguns dos processos que lhes tinham sido submetidos enquanto membros deste último órgão jurisdicional.

33      Decorre dos fundamentos da decisão de reenvio que as questões prejudiciais têm por objeto, mais especificamente, a interpretação do princípio da independência dos juízes, conforme este princípio é garantido pelas disposições do direito da União mencionadas no número anterior.

34      A este respeito, importa recordar que, embora a repartição ou a reorganização das competências jurisdicionais num Estado‑Membro esteja, em princípio, abrangida pela liberdade dos Estados‑Membros garantida pelo artigo 4.o, n.o 2, TUE, é apenas sob reserva, nomeadamente, de tal repartição ou tal reorganização não prejudicar o respeito pelo valor do Estado de direito, estabelecido no artigo 2.o TUE, e os requisitos decorrentes, a este respeito, do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, incluindo os relativos à independência, à imparcialidade e ao estabelecimento prévio por lei dos órgãos jurisdicionais chamados a interpretar e a aplicar o direito da União [Acórdão de 5 de junho de 2023, Comissão/Polónia (Independência e vida privada dos juízes), C‑204/21, EU:C:2023:442, n.o 263].

35      A exigência de independência dos tribunais que decorre do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, comporta dois aspetos. O primeiro aspeto, de ordem externa, requer que a instância em questão exerça as suas funções com total autonomia, sem estar sujeita a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a quem quer que seja e sem receber ordens ou instruções de nenhuma proveniência, estando assim protegida contra intervenções ou pressões externas suscetíveis de pôr em causa a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões. O segundo aspeto, de ordem interna, está ligado ao conceito de imparcialidade e visa o igual distanciamento em relação às partes em litígio e aos respetivos interesses, tendo em conta o objeto do litígio. Este último aspeto requer o respeito da objetividade e a inexistência de qualquer interesse na solução do litígio além da estrita aplicação da regra de direito [Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, RS (Efeito dos acórdãos de um tribunal constitucional), C‑430/21, EU:C:2022:99, n.o 41 e jurisprudência referida].

36      Esta exigência de independência dos juízes impõe que o regime aplicável às transferências não consentidas destes apresente, nomeadamente, as garantias necessárias para evitar qualquer risco de essa independência ser posta em perigo por intervenções externas diretas ou indiretas. Assim, é importante que tais medidas só possam ser decididas por razões legítimas relacionadas, em especial, com uma repartição dos recursos disponíveis que permita assegurar uma boa administração da justiça [v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, W.Ż. (Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público do Supremo Tribunal — Nomeação), C‑487/19, EU:C:2021:798, n.os 117 e 118].

37      No caso em apreço, o legislador búlgaro decidiu extinguir o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) em razão de imperativos ligados à necessidade de assegurar uma boa administração da justiça, sem, no entanto, pôr em causa a independência individual dos membros desse órgão jurisdicional.

38      Com efeito, por um lado, resulta da exposição de motivos da ZIDZSV, conforme referido no n.o 15 da decisão de reenvio, que é a concentração de processos altamente sensíveis que deviam ser tratados pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) que fazia correr o risco de expor esse órgão jurisdicional a falta de efetividade e a pressões indevidas. Por outro lado, decorre das disposições pertinentes do direito búlgaro que o legislador búlgaro considerou os magistrados que compõem o referido órgão jurisdicional suficientemente independentes e imparciais para continuarem a tratar, no Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia), processos nos quais tinha havido uma audiência preliminar no Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial).

39      Além disso, como foi salientado no n.o 16 do presente acórdão, as partes no processo principal não puseram em causa a independência ou a imparcialidade do órgão jurisdicional de reenvio e este último não tem nenhuma dúvida sobre a sua imparcialidade subjetiva.

40      Nestas condições, embora seja verdade que qualquer órgão jurisdicional tem a obrigação de verificar que constitui um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei, na aceção, nomeadamente, do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, quando surja uma dúvida séria sobre este ponto [Acórdão de 9 de janeiro de 2024, G. e o. (Nomeação dos juízes de direito comum na Polónia), C‑181/21 e C‑269/21, EU:C:2024:1, n.o 68 e jurisprudência referida], não é menos verdade que o pedido de decisão prejudicial não permite compreender os motivos pelos quais essa dúvida existiria no caso em apreço.

41      Por conseguinte, uma interpretação das disposições do direito da União das quais decorrem as exigências relativas à independência e à imparcialidade dos órgãos jurisdicionais chamados a interpretar e a aplicar o direito da União não se afigura necessária para efeito da solução do processo principal.

42      Daqui se conclui que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto às despesas

43      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária), por Decisão de 28 de setembro de 2022, é inadmissível.

Assinaturas


*      Língua do processo: búlgaro.